Mostrar mensagens com a etiqueta menino. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta menino. Mostrar todas as mensagens

sábado, 24 de outubro de 2020

Deuses do Mar

 


Uma brisa suave entrava pela grande porta de correr, que ligava a varanda à sala de estar. Todas as janelas haviam sido abertas desde cedo, naquele dia quente e ensolarado. Não havia uma única nuvem a manchar o intenso azul do céu.

Depois de um leve e breve café da manhã, decidimos que íamos passar a maior parte do dia à beira-mar. Seria apenas uma curta viagem de carro até a praia mais próxima, onde poderíamos nos refrescar e relaxar juntos. Afinal, para que servem as férias de verão?

- Eu nasci na ilha, sabes disso. O oceano faz parte da minha existência desde que eu me conheço por gente.

- Tu és filho de um daqueles deuses do mar! Tenho certeza.

Ele disse aquilo e abriu seu largo, enigmático e adorável sorriso, que sempre fazia a tristeza desaparecer dos meus olhos, por um momento, como se nunca dantes tivesse ali estado.

- Meu ‘pai’, então, está muito sereno hoje. Até as ondas estão pouco agitadas, quase uma calmaria, ​​no momento. Ele provavelmente me sente por perto...

- Eu pensei que o oceano fosse, de alguma forma, bem diferente disso. Eu conheço o Mar Mediterrâneo. Já estive lá algumas vezes, mas não é, definitivamente, assim. O oceano parece muito mais poderoso e a água é tão mais fria!

- É melhor ficarmos pouco tempo aqui no sol direto, pois não estamos acostumados e nossas peles são muito pálidas, para ficarem expostas assim a estes raios escaldantes.

- Eu, às vezes, duvido que tu tenhas, realmente, nascido na ilha...

- Quando eu era jovem, tive uma grave queimadura de sol e tenho muito medo de repetir uma experiência daquelas.

- Ah! Eu sei muito bem o que tu queres dizer. Cometi o mesmo erro quando estava no colégio. Podes-me ajudar com o protetor solar, então, por favor?

- Claro! Vira-te, um pouco.

 ***

O vento soprava forte, anunciando uma tempestade. As ondas batiam, ruidosamente, na costa e nas rochas. Nenhum barco havia saído para o mar. O céu, muito nublado, estava mais escuro que o normal, para aquela hora do dia. Algumas bravas aves marinhas esperavam na praia, como se estivessem contando os minutos para pescar, mas o vento não as deixava chegar muito perto das águas.

Eu estava sentado, sozinho e em silêncio e sem nenhum pensamento sólido em mente. Gostava de estar ali, acompanhando o vai-e-vem das ondas, quase em transe, como se a esvaziar minha alma de todos os problemas. Estava tranquilo, por haver enterrado aqueles sentimentos pungentes do meu passado. Era incrível como eu havia mudado nos últimos meses.

Ouvi o trovão, ao longe, e levantei-me, pronto para sair da praia, antes que a chuva me alcançasse e caísse fria e pesada sobre mim.

Algo em minha mente, porém, me disse para esperar. Foi uma sensação estranha, como se alguém me estivesse chamando. Eu olhei em volta. O vento soprava cada vez mais forte e o oceano parecia mais selvagem.

Um cão corria ao longo da linha do mar, seguido por um menino de cerca de cinco anos, atento ao animal, mas totalmente alheio a qualquer perigo. O cão correu atrás de algumas das gaivotas que descansavam na areia, junto às rochas. O menino vinha, sorrindo e brincando, atrás de seu animal de estimação.

A chuva, como já devia ser esperado, caiu sobre todos nós. Os dois não pareciam se importar com nada, além de sua brincadeira.

O animal escalou o rochedo e acabou afugentando os pássaros, que lá estavam. Uma onda bateu, ruidosamente, contra as grandes pedras. Eu pressenti o perigo e corri, mas não fui rápido o suficiente.

O menino pisou na superfície molhada e escorregou. Ele tentou, mas não conseguiu agarrar-se a nada e foi abraçado pela onda que se seguiu. O pobre cão ficou totalmente perdido, tentando fazer alguma coisa, correndo e ganindo em desespero.

Antes que eu os alcançasse, o animal pulou no oceano, atrás do rapaz, que já não estava à vista.

Eu gritei, mas era tarde demais. Eles desapareceram em segundos, engolidos pelas águas frias e agressivas.

Eu não pensei muito. Apenas agi por instinto.

***

- O que foi que tu fizeste?

Eu virei a cabeça.

- O que tu achas que eu fiz?

- Como foi que aquilo aconteceu?

Evitei a pergunta.

- Ele está vivo, não está? Ambos estão. É isto que importa, na verdade...

- Sim. Mas…

Eu olhei pra ele. Ele segurou meus braços, com firmeza e tentou falar devagar e com calma.

- Havia uma tempestade e o mar estava muito agitado. Como tu poderias retirá-los das águas, assim? Como aquela tempestade poderia, simplesmente, parar e o mar ficar tão plácido?

Evitei seus olhos.

- Eu não sei. Como eu iria saber?

 - O que tu estás escondendo?

Fechei meus olhos e as memórias vieram rápidas na minha mente. Quando os abri de volta, seus olhos estavam fixos nos meus. Decidi que não poderia evitar os fatos, nem a verdade, então falei.

***

- Meu pai... me ajude!

Saltei das rochas, para dentro do mar. Senti como se o tempo tivesse parado. As águas, de repente, se acalmaram e as ondas quase desapareceram.

Eu vi o menino e seu cão bem perto. O animal arrastava o dono pela camisa e vinha na minha direção, como se soubesse que eu estava ali para tirá-los do perigo que corriam. Ambos haviam engolido bastante água e o menino estava quase inconsciente.

Ele tentava respirar. Eu o puxei de volta para a praia e massageei seu peito, mantendo seu rosto virado para o lado. Ainda quase inconsciente, ele expeliu um pouco de água, tossiu e aquilo deixou seu rosto mais corado.

O cão saltava ao nosso redor, ganindo e inspecionando o amigo com o focinho.

Eu ouvi alguém gritando. Dois homens vinham de direções diferentes. Um deles eu conhecia muito bem.

O homem se aproximou do menino e segurou-o contra seu peito. Aparentemente, havia-me visto salvando seu filho...

O rosto amigável do outro homem estava voltado para mim, com seus curiosos olhos azul-esverdeados, muito abertos.

Olhei para o mar, que voltou ao seu estado normal, quase que imediatamente. A tempestade se fora. Ao longe, a espuma branca das novas ondas desenhava figuras engraçadas na água. Uma onda específica parecia ser mais alta que todas as outras. De repente dissolveu-se e deixou a superfície da água quase intacta...

Sorri para mim mesmo e encarei meu melhor amigo, que estava parado ao meu lado.

Ele olhava para mim, seriamente, com seus olhos brilhantes muito arregalados.

***


domingo, 28 de junho de 2020

O Menino no Sótão


Embora ainda fosse dia, havia apenas uma fraca luz vindo de um ponto no sótão, como percebi, de pé, junto à base da escada. Eu nunca havia tido autorização para subir aqueles degraus e ir lá em cima… nem acompanhado, muito menos por conta própria...

Agora, já não precisava mais da permissão de ninguém. Eu tinha que encarar aquela situação e queria fazê-lo… o quanto antes…

A escada, de dois lances, era de madeira escura e sem qualquer polimento. Os velhos degraus, tão pouco utilizados nos últimos tempos, rangeram, como se a reclamar, quando pisei neles. Murmurei, para mim mesmo:

- Não olhe para trás...

O sótão não estava tão desorganizado quanto eu pensei que estaria. Estava empoeirado, mas não sujo. Eu mal notei que havia uma pequena janela quadrada, voltada para o sul. A luz do final da tarde filtrava-se através do vidro empoeirado. Algumas caixas e um velho triciclo de metal, quebrado, com um assento de madeira gasto e manchado, estavam no meio do caminho. Vi uma cadeira de balanço junto à parede oposta à janela. Alguns móveis velhos estavam empilhados num canto mal iluminado. Em cima deles havia uma caixa de madeira marrom-escura com enfeites de pinos de metal, de cabeças arredondadas, dispostos ao longo da periferia da tampa.

Quando eu olhei, ele estava sentado no chão, no outro extremo, brincando com alguns minúsculos carros de brinquedo, quase no escuro. A maioria daqueles carrinhos já não tinha mais rodas. Ele estava com os pés descalços, vestindo um velho pijama de algodão estampado. Não olhou diretamente para mim, no início, como se não tivesse notado minha presença. Seu cabelo encaracolado era castanho claro, quase loiro, cortado bem curto. A boca, bem proporcionada, de um tom carmesim, mostrava dois pequenos pontos vermelhos, mais escuros, claramente evidentes, no centro do lábio inferior. Aqueles olhos castanho-esverdeados, muito curiosos e um tanto tristes, me notaram, finalmente.

Ele sorriu, timidamente, quando cheguei mais perto.

- Estás bem?

Ele balançou a cabeça, afirmativamente.

- Posso sentar aí, ao teu lado?

- Pode, mas vais sujar as roupas.

- Não tem importância.

- OK, então. É uma pena. Meus carrinhos estão todos quebrados.

Sentei-me ao lado dele e examinei um daqueles brinquedos que estavam no chão. Senti vontade de chorar e ele percebeu, mas me recuperei rápido o suficiente.

- Quantos anos tu tens?

- Cinco.

- O que estás fazendo aqui em cima, sozinho?

- Gosto de brincar sozinho e, além disso, estava esperando por ti. Podes brincar um pouquinho comigo?

- Sim. Pelo tempo que quiseres.

Ele abriu um sorriso largo e satisfeito, mostrando seus pequenos dentes, bem feitinhos. Pareceu-me ser um miúdo ‘duro na queda’.

- Tu gostas da cadeira de balanço?

- Sim, mas toma cuidado. Está quebrada. Vai desmontar-se toda.

Eu verifiquei e notei que as peças não estavam bem encaixadas, nos lugares certos. Devia ter sido abandonada e esquecida ali em cima. Tentei o meu melhor para reparar e, finalmente, sentei-me nela. O encosto e o assento, de palha trançada, fizeram um ruído característico, provavelmente devido à falta de uso. Ainda era uma cadeira bem forte, pelo que percebi.

- Queres sentar aqui comigo?

Ele veio mais para perto e eu o levantei do chão e sentei-o na minha perna esquerda. Ele sorriu e deitou a cabeça no meu peito, ainda entretido com um de seus carrinhos de brinquedo.

O som monótono e suave da velha cadeira, a balançar, e meus braços em torno de seu minúsculo corpo, eram como um convite para adormecer. Ele fechou os olhos. Eu podia sentir que ele relaxava e deixou o brinquedo cair da sua mãozinha, no meu colo. Parecia estar confortável e sentindo-se protegido e amado. Eu o abracei mais firmemente e beijei suavemente o topo de sua cabeça.

Meus olhos encheram-se de lágrimas. Meu coração estava transbordando.

Levantei-me em silêncio e desci, cuidadosamente, com ele nos braços e deitei-o em uma cama de solteiro, de colchão duro de palha, que havia no quarto abaixo da escada. Sentei-me na beirada de madeira escura, tentando não perturbar seu sono tranquilo. Seu rosto estava muito sereno. Acariciei seu cabelo fino e macio. Ele respirou fundo, descontraído, quase sorrindo, como se estivesse tendo um sonho bom.

Levantei-me e saí do quarto, deixando o menino em sua cama. Votei-me e olhei para ele, da porta.

Ele, agora, sorria. Seu sorriso era espontâneo e tranquilo, naquele rostinho inocente, em seu sonho feliz... Ele era, na verdade, um menino bem bonito. Deduzi que seria um belo homem, no futuro.

Respirei fundo e abri os olhos. Aquela minha jornada, ao passado, acabava ali. Senti uma satisfação enorme por haver conseguido fazê-la, daquele jeito.

***

domingo, 4 de dezembro de 2016

Revisitando Dragões (Parte 3 - Treinamento)


- Onde ele está? Não adianta vocês o esconderem, porque eu vou achá-lo, mais cedo ou mais tarde. Se não me disserem onde ele está, eu vou matar a todos.

- Como assim? Então ele não está…?

A pergunta saiu num ímpeto incontrolado, mas o homem parou a frase no meio, como se a verdade tivesse sido percebida justa e somente naquela hora. Arrependeu-se, porém, de ter-se deixado levar pela euforia de saber que o filho não era, afinal, refém do representante do mal.

Os seus companheiros, porém, logo preocuparam-se, por não saber onde poderia estar o guardião, mas só por saber que não estava em poder do grande dragão pardo, sentiram-se, de uma maneira estranha, esperançosos.

O grande réptil, obviamente, percebeu o ingénuo erro e, demonstrando satisfação, deu uma espécie de assobio, levantou o focinho ao ar e meneou a cabeça, como se a desafiar os outros personagens ali, à sua volta.

 - Então… onde estará o rapaz? Vai ser uma grande diversão tentar achar a criaturinha, antes de vocês e… acabar, de vez, com ele…

- Só se passar por cima do meu cadáver!

O dragão abaixou a cabeça e, aproximando-se muito do homem, disse-lhe, com uma voz baixa, calma e grave, num tom bastante irônico:

- Será, mesmo, um prazer extra! Dois, ao invés de um… Perfeito!

O dragão verde-azulado tomou a dianteira e enfrentou o grande animal, mesmo sabendo que aquele era mais forte que ele.

- Saia daqui! Não há nada mais aqui para ti…

- Ainda não. Mas haverá…

E dizendo isso, o dragão saiu, não por medo ou respeito, mas por saber que, tanto ele quanto os outros tencionavam procurar o mesmo, mas nenhum deles sabia por onde começar.

Seria mais fácil se estivesse no ar, ao invés de na terra, onde seus movimentos eram mais limitados. O enorme animal pardo abriu as asas e levantou voo, diante dos olhares preocupados de todos.

- Onde ele poderá estar? Temos que encontrá-lo e tirá-lo daqui antes que seja descoberto pelo nosso inimigo!

O dragão verde-azulado dirigiu-se ao pai e perguntou se o menino costumava esconder-se em algum lugar, em particular. Diante da negativa do outro homem, o velho disse:

- Talvez ele esteja mais perto que pensamos… Tive uma ideia.

E, dizendo isso, atravessou a clareira, a bater com o cajado fortemente no chão, a cada passo que dava.

***

- Eu sabia que não podias estar longe.

- Eu vi que ele andava por perto, porque ouvi os passos e escondi-me… O primeiro lugar que eu encontrei, onde ele não podia entrar, foi a caverna…

- E fizeste muito bem! Mas, agora, temos que proteger-te a todo custo.

- Com todo o cuidado e com o respeito que tenho, não vejo melhor alternativa que tirá-lo daqui o quanto antes. Temos que levá-lo para um lugar onde seja mais difícil ser localizado. Eu tive uma ideia, mas vamos precisar de toda ajuda que conseguirmos…

O dragão precisava convencer o pai do menino a aceitar a triste realidade do perigo e da necessidade do plano de emergência, mas diante do que havia acontecido poucos minutos antes, pareceu-lhe mais fácil argumentar.

O homem, embora a contragosto, sabia que o filho precisava ser protegido. Uma tragédia estava iminente, mas ele não ia entregar o filho ao inimigo, mesmo que para isso tivesse que abrir mão de tê-lo por perto. A vida era, agora, mais importante que os laços de família.

***

Cada um dos sete dragões acrescentou um pequeno detalhe ao presente que deram ao menino, para servir-lhe de proteção contra todo o mal. Como cada um representava uma virtude, todas elas somadas faziam do pequeno amuleto um poderoso artefacto.

Com excertos da simplicidade do dragão albino, do amor apaixonado do vermelho, da paciência do castanho, da generosidade do dourado, da compaixão do prateado, da força de espírito do dragão negro e da esperança do verde azulado, o guardião tornava-se não somente o mais protegido, mas também o mais poderoso ser de toda a região.

Agora precisava ser treinado com muita urgência. Para confundir as forças do mal, caso o dragão pardo desconfiasse, o menino era preparado em um lugar diferente a cada lua, por um protetor diferente. Assim, às vésperas da sétima lua nova, o dragão verde-azulado tomou sua parte do treinamento, com o auxílio do velho companheiro.

Com o cajado em punho, o menino aprendeu a lutar para defender-se, após aprender tudo sobre os pontos fortes e as fraquezas do inimigo pardo, com os outros virtuosos personagens de cores diversas. Não era o treinamento perfeito, mas era essencial conhecer os pontos vulneráveis da força, já que o pequeno guardião tinha forças bastante limitadas, devido à sua juventude e ao seu reduzido tamanho.

Tanto o dragão verde-azulado quanto o velho homem, que outrora havia sido um exímio cavaleiro campeão de muitas contendas, estavam bastante preocupados e faziam de tudo para evitar o confronto entre as duas forças opostas. Sabiam, entretanto, que estavam apenas a adiar o inevitável.

Mas o inevitável pode ser apenas adiado, nunca impedido de acontecer.

O dragão pardo percebeu que estava sendo enganado e passou a vigiar o local onde o velho e o dragão, que representava a esperança, costumavam encontrar-se. No laranjal, por mais que tentassem, não conseguiriam deixar de estarem expostos. Tinham que mudar de estratégia a cada dia, para confundir o algoz, por isso o menino nunca deveria aparecer junto dos dois, quando estivessem por lá. O pai do menino era informado dos progressos do filho, sempre que possível, pelo velho amigo.

O menino, porém, sentiu saudades de casa. Sabendo que corria perigo, consultou seus protectores e combinaram um encontro com a família, numa das noites sem lua, para diminuírem os riscos.

A caverna estava às escuras, os personagens escondidos e em silêncio, no fundo da mesma, onde nunca poderiam ser tocados por uma fera do tamanho daquela que os vigiava constantemente. Num canto de um dos compartimentos mais próximos da entrada da caverna, a armadura parecia um vigia em atalaia, pronto a lutar para defender quem viesse com más intenções, com a espada apoiada ao lado.

O som de passos a aproximar-se deixou-os bastante tensos, mas como eram curtos e ligeiros, a tensão era mais por ansiedade que por medo. Os passos extremamente cuidadosos e um tanto hesitantes, dentro da caverna, pareciam antecipar o encontro entre os personagens, mas todo cuidado era pouco. Um sussurro. Silêncio. Depois outro sussurro. Estava na hora de saírem do esconderijo.

O velho e o menino caminharam cuidadosamente até a sala improvisada. No centro daquela, a silhueta conhecida do homem surgiu contra a abertura da caverna e eles mostraram-se, finalmente, com alegria e entusiasmo, abraçando o visitante, mas este não os pode retornar o entusiasmo e o abraço, pois tinha os braços amarrados às costas e a boca amordaçada.

Atrás dele, um outro homem, bem mais alto, vestido de negro e com cabelos longos e loiros, apareceu com uma espada em punho.

sábado, 19 de novembro de 2016

Revisitando Dragões (Parte 2 - O Guardião)


- Quem é este dragão pardo?

- Ele nasceu das forças do mal e é comandado por um inimigo nosso, que vive muito ao norte, nas terras frias. Seu coração é mais gélido que as neves dos extremos da terra. Além de um animal de muita força, ele é também muito poderoso, perigoso e sabe onde o menino está. É só uma questão de tempo até cá chegar, com o pior dos intuitos. Há uma profecia conhecida que diz que só poderá ser destruído por um guerreiro alimentado com o poder dos sete dragões. Nós sabemos quem este guerreiro é… ele também. O que nós temos que fazer é prepará-lo e evitar o confronto direto, pois pode ser fatal para um dos dois. Se o dragão vencer, será o nosso fim. E ele destruirá tudo e todos que forem contra o seu senhor. Vamos precisar de toda a nossa inteligência em montar uma estratégia e…

O dragão fez uma pequena pausa.

- … e de tempo…, mas este talvez não seja o nosso maior problema.

- O pai… Acredito que ele possa ser um grande empecilho.

- Eu sei. Ele passou maus bocados por causa do acidente com aquela criança. Não vai aceitar ceder assim fácil. Mas temos que falar com ele. Não temos outra alternativa…

- Talvez tenhamos…

O dragão olhou o velho homem e compreendeu, instintivamente, aquela mensagem.

***

- Wow! Isso é sério?

- Mais do que sério!

- Mas eu não serei capaz! Sou pequeno e fraco…

- Por isso nós devemos preparar-te e ensinar-te a lutar… para proteger a ti e a todos…

Os olhos do menino brilharam, mas uma sombra de preocupação seguiu-se á aquela momentânea euforia.

A armadura era, obviamente, grande demais e, para empunhar uma espada verdadeira, ainda era muito cedo.

O velho, então, entregou-lhe um bastão de madeira feito a partir de um pedaço de um tronco de laranjeira. O artefacto era coberto por uma camada lustrosa e apesar de muito suave ao toque, também aparentava ser bastante resistente.

E os ensinamentos começaram… Para evitar maiores constrangimentos, as lições eram dadas muito cedo na madrugada até o nascer do sol. A intenção era evitar serem vistos e o confronto iminente com o pai do aprendiz que, invariavelmente, teria que saber de qualquer jeito... quando o momento fosse mais propício.

O velho mostrava os princípios básicos de combate e de como empunhar uma arma e fazer uso dela, especialmente de maneira defensiva. O dragão ensinava-o a pensar estrategicamente, a procurar os pontos fracos do inimigo e a explorar a velocidade do pensamento. O menino era um excelente pupilo, sempre aberto a absorver os novos conhecimentos e era, também, muito curioso. Apesar do que havia passado, suas pernas e braços eram bastante ágeis e sua mente, extremamente sagaz.

O dragão observava o menino com orgulho, enquanto este aprendia o que lhe era ensinado, com precisão e com a habilidade de um verdadeiro guerreiro.

O velho sabia que o tempo corria contra eles e que, mais cedo ou mais tarde, teriam que revelar, à família do rapaz, o que estava acontecendo e o que viria a acontecer, no futuro. Ele, todavia, evitava revelar toda a verdade, com receio que, se soubessem que o dragão pardo queria a destruição do guardião, para poder reinar sobre toda a terra, iriam duvidar da palavra deles, ou esconder o filho, por isso decidiram que iriam inventar uma desculpa qualquer, se fossem vistos a treinar o rapaz.

Os pais, como seria de esperar, logo descobriram e foram totalmente contra, proibindo aquele tipo de treinamento, veementemente. Bastou alguns dias, porém, para os três arranjarem uma outra forma de se encontrarem, retomando a tarefa, cada vez com mais afinco, sempre que lhes era possível.

Uma madrugada, porém, o menino não apareceu. Pensando tratar-se de um empecilho qualquer com o pai, o velho e o dragão ficaram quietos, sem criar nenhum alarde, aguardando o amanhecer.

Algumas horas passaram, sem que o aprendiz chegasse. O som de passos apressados deixou-os em estado de alerta. Os dois esperaram, para ver o que acontecia. O caçador, pai do menino, vinha a passadas rápidas e com uma mistura de fúria e preocupação estampada no rosto.

- Eu avisei que não queria meu filho envolvido nesta aventura, brincadeira ou o que quer que vocês estejam tramando.

Pegos meio desprevenidos, os dois não disseram nada, já sentindo-se culpados. O homem estava mesmo furioso.

- Onde está o meu filho? Quero saber agora!

Os dois trocaram um olhar suspeito e preocupado e, quando se voltaram para o homem, aquele percebeu que algo estava muito errado, pela expressão grave na face do velho homem.

- Oh, não! Não, não, não!

- Ele não está, nem esteve connosco hoje. E isso é grave; muito grave. Temos que procurá-lo, imediatamente. Ele pode estar em grande perigo…

- E não está preparado para defender-se… ainda… O treino não foi suficiente!

- Isso é outra das artimanhas de vocês, os dois? Mais uma vez ele corre perigo por causa de vocês! Desta vez, não vou perdoá-los…

- Não. Ele está em perigo, porque ainda não está preparado para defender-se. Tomara que não seja o que estamos pensando… Se for, é melhor nós corrermos. Acho que temos que pedir ajuda aos nossos companheiros alados.

O velho, então, contou ao pai do menino toda a verdade sobre a profecia e sobre o dragão pardo e seu plano malévolo, o que aumentou a preocupação do homem… e a deles também.

Estava mais que na hora de trazer os outros seis dragões para perto deles. O menino precisava ser encontrado, antes que fosse tarde demais.

O dragão verde-azulado preparava-se para levantar voo e buscar os companheiros, quando o chão sobre os pés deles estremeceu grandemente, para surpresa de todos. Os homens olharam para o dragão, que olhava para o centro da clareira, com uma expressão ameaçadora.

Um grande animal pardo surgiu e aproximou-se deles, com a boca escancarada, pronto a atacá-los…


sábado, 12 de novembro de 2016

Revisitando Dragões (Parte 1 - Despedidas e Reencontros)


As belas escamas verde-azuladas refulgiram contra o firmamento, pouco depois que o enorme dragão alçou seu voo, da clareira ao pé do laranjal.

O velho homem fica a acompanhar, com o olhar, seu sensato e alado amigo, que vai desaparecendo, na tranquilidade do céu de Verão, enquanto ganha, aos poucos, a distância.

O homem sorri, um tanto tristemente, já com uma certa saudade a contundir seu peito e leva a mão à bolsa de couro, cuja alça lhe cruza o peito. Com as pontas dos dedos ele apalpa umas poucas frutas que lá se encontram e sente-se, de uma maneira estranha, confortado.

Atrás de si, um menino, de não mais que nove anos e um outro homem, adulto, também observam a trajetória alada do dragão, que vai tornando-se quase invisível, entre as finas nuvens, que mais parecem flocos de algodão, a decorar a larga abóbada azul celeste, aberta sobre suas cabeças.

Um fino fio de fumaça sobe do meio da clareira e dispersa-se no ar. O velho não sabe se lamenta ou se regozija com aquele momento em que suas vidas devem voltar ao normal, ou, pelo menos, o mais próximo possível da normalidade. Os últimos tempos passaram por sua mente e ele, apesar das dificuldades que superou, sentiu uma certa nostalgia.

Ele havia mudado, com toda a certeza. Já não era nem parecido com aquele homem que chegara há muito tempo a aquele lugar, cansado, derrotado e com mais que seu orgulho profundamente ferido, além de uma grande cicatriz a marcar-lhe o peito e a lembrar-lhe de sua condição de ser humano frágil e vulnerável.

A magia daquele lugar pareceu-lhe, de repente, haver desaparecido de vez. Restava-lhe a magia da vida e as surpresas que o existir pode, eventualmente, esconder. O som dos regatos gémeos, a correrem muito próximos, fê-lo sentir-se cansado e, ao mesmo tempo, relaxado.

O velho despediu-se do homem e do menino e caminhou para aquilo a que conseguia chamar de lar: uma caverna adaptada, com um despojamento evidente. Ele, na verdade não precisava mais que aquilo, mas decidiu que ia construir um casebre simples e nele viver, como um fazendeiro normal.

No meio da clareira, onde as cinzas de uma certa laranjeira ainda cobriam o chão, ele elevou seu novo lar, pacientemente e sem pressa nenhuma, por semanas a fio.

Quando reinstalou-se, sentiu que sua vida anterior fosse apenas uma memória, que ficava cada vez mais distante e nebulosa. Ali era, agora, seu lar e era onde ele sentia-se mais aconchegado e seguro, mas o velho sentiu que, com aquela decisão, ele estava, na verdade, a plantar, em definitivo, suas raízes. Até bem pouco tempo atrás, esperava ansiosamente pelo momento em que iria voltar para sua vida de cavaleiro. O tempo passou em seu ritmo próprio e ele sentiu que estava mais próximo da vida de agricultor que de cavaleiro, além de já não ter forças nem ânimo para combates, banquetes ou a vida fútil que outrora vivia. De uma certa forma, sentia-se mais útil e ligado a aquele lugar, do que em qualquer outro, mas sentia a falta de algo, que ele não sabia descrever.

E veio a noite mais escura do ano.

E ele pôs-se a pensar e sentiu falta de seu amigo alado. A grande cicatriz latejou no peito. Ele tentou ignorar, mas não conseguiu. Tentou dormir, mas não sentia sono. Resolveu levantar-se e apanhar um pouco de ar.

Lá fora, uma brisa fresca trazia o perfume das folhas e frutas do pomar que lhe dava sustento. Ele aspirou o ar lenta e profundamente. A vida daquele lugar pareceu pulsar-lhe como sangue nas veias. Ele foi à beira do ponto onde os dois regatos gémeos uniam-se e lavou o rosto com a água fresca e límpida. A cicatriz latejou novamente. Ele passou a mão molhada pelo peito e sentiu um pouco de alívio. Fazia tempo que ele não experimentava aquela sensação. Sentou-se sobre uma grande pedra, como já havia feito tantas vezes e ficou a olhar a escuridão à sua frente, ouvindo o som tranquilo das águas dos regatos.

Estava perdido em suas tantas recordações, quando ouviu um som atrás de si. Seus sentidos entraram, imediatamente, em alerta. Pensando ser um animal qualquer tentando chegar à água, ele voltou-se e esperou em silêncio.

A noite sem lua, escura como breu, não permitia que ele visse nada, mas tinha a forte sensação que não estava só. Seus ouvidos treinados, atentos, tentavam distinguir algum sinal.

Silêncio… Nada mais que um tenso silêncio na escuridão da noite. Ela não podia ter-se enganado… Será que seus ouvidos o enganaram? Era apenas mais um sinal da idade? Ou seria um desejo e um delírio de nostalgia?

Ele resolveu que deveria voltar para casa. Se fosse mesmo um animal sedento, ele deveria deixar o caminho livre e permitir que a vida levasse seu curso normal, sem que ele assustasse um ser vivo em necessidade. O regato não era seu. Ela não tinha o direito de impedir a vida de continuar.

Saltou da rocha e começou a caminhar de volta, convencido de estar enganado e disposto a tentar dormir. O perfume das laranjas era familiar e evidente. Ele sorriu e apressou o passo, sem olhar para trás.

Quando pisou no alpendre, ainda voltou-se um pouco e tentou ouvir os sons da noite.

Nada.

Ele entrou na casa e acendeu uma lamparina. Seus olhos pousaram sobre a fruteira no centro da mesa. Uma laranja muito dourada, que ele conhecia muito bem, jazia por cima das outras. Ele sabia que não a havia posto ali. A fruta era perfeita e parecia reluzir. Ele levou a mão à fruteira e apanhou a grande laranja.

Mais por instinto que por necessidade, ele abriu-a e comeu a metade da mesma. O sabor muito peculiar, doce e ácido, trouxe-lhe memórias, que estavam adormecidas há muito. O homem sorriu. Sabia o que estava fazendo e as consequências daquele ato aparentemente inocente.

Foi então que ele ouviu um ruído pouco familiar atrás de si. O chão pareceu estremecer por baixo de seus pés descalços e ele sentiu o corpo ficar tenso, como se pronto a  lutar, como no seu passado… pela própria vida...

Ele olhou para trás e viu, através da porta aberta, dois grandes fachos de luz amarela a refulgirem na espessa obscuridade daquela noite singular. Seu coração deu um salto e ele correu para fora.

- Olá, meu bom amigo. Senti saudades tuas...

O animal piscou, lentamente, seus grandes olhos amarelos e aproximou-se do homem, abaixando a cabeça para ser tocado, como se fosse o cumprimento mais natural do mundo. De facto, entre eles, era…

O velho estendeu a mão e deu a outra metade da laranja ao dragão, que comeu-a de imediato. A magia daquele encontro não programado começava naquele momento…

***

- Há uma força poderosamente maléfica agindo no Universo, neste momento. Aquele menino corre grande perigo e nós temos que protegê-lo a todo custo.

- Mas, por que ele? É apenas uma criança…Tem pouco mais de oito anos…

- Porque ele conhece o poder dos dragões. Como foi medicado com as lágrimas de cada um dos sete e com uma gota do meu sangue, a magia faz parte dele, desde então. A energia que está a crescer naquela criança é inimaginável, embora ele ainda não tenha consciência disso, mas o grande dragão pardo sabe muito bem e, por isso, pretende destruí-lo, antes que ele se torne mais poderoso ainda, com o passar do tempo…

O velho olhou o amigo, muito seriamente. A lembrança clara do momento em que foi revelado ao menino o valor que ele tinha para os dragões, veio-lhe como um raio. Uma boa dose de melancolia fisgou-lhe o peito, onde uma cicatriz marcava o desfecho de uma batalha antiga.

No meio do laranjal, o dragão verde-azulado dirigia-se ao menino.

- Este é o nosso outro presente. A água que tu tomaste, ali na clareira, antes de vires para o laranjal, continha uma lágrima de cada um de nós. Sete lágrimas foram adicionadas àquela água, para te proteger. O óleo que foi usado na massagem em tuas pernas contém raspas de dentro do casulo que gerou o dragãozinho negro, que simboliza a força de espírito e uma gota do sangue do dragão que representa a esperança… Nós nos referimos a ti, particularmente, como “o guardião” e temos muito orgulho de assim te chamar.

A mente do velho homem voltou ao presente...

- Ele tem que saber disso. Como vamos protegê-lo?

- Pensei em muitas hipóteses, mas ele precisa ser treinado. Ainda tens a armadura?

- Deixei-a na caverna… para o caso de necessidade… mas o tamanho é muito grande para ele…

O dragão encarou o velho homem e falou, muito gravemente:

- Dá-se um jeito. Esta é, definitivamente, uma necessidade…

O homem balançou a cabeça, afirmativamente. Os novos desafios e perigos apenas começavam para aqueles personagens cujas vidas estiveram, sempre, tão interligadas entre si.

- Vou buscar a armadura e a espada…


domingo, 28 de abril de 2013

Outros Estudos em Vermelho e Azul - Parte 1


- Tu vens aqui todos os dias, sempre às mesmas horas, rotineiramente. Eu não sei porque… ainda… mas gostaria de saber se há um motivo especial…

Ele tinha razão. Havia já algum tempo em que ela passara a frequentar aquele específico Café da esquina, a caminho do trabalho e ao final da tarde, quando ia de volta para casa.

Depois de umas poucas vezes, percebeu que o funcionário a servir-lhe era quase sempre o mesmo – um rapaz de grandes e melancólicos olhos azuis, cabelos castanho-claros, estrategicamente desalinhados e face agradável de olhar. Parecia ser mais jovem que ela, pelo menos uns dez anos. Era alto e um tanto corpulento, longe do porte puramente atlético, mas não estava nem perto de ser gordo. Na verdade, era bastante atraente a seu ver.

Ele invariavelmente a recebia com um largo sorriso quando ela entrava e dirigia-se à mesma mesa, perto da janela. Apressava-se a servir-lhe o 'espresso', sem açúcar, que ela sempre pedia e que era preparado assim que a avistava à porta.

A mesma rotina repetia-se todos os dias, há semanas e era a primeira vez que ela era interpelada pelo rapaz. Talvez o pequeno contacto que tiveram, nas mãos, quando ele pousou a chávena sobre a mesa, provocara aquela reacção.

Ela olhou-o com uma certa curiosidade, diante daquilo que pareceria um atrevimento do funcionário para com uma cliente habitual.

Em uma pequena fracção de segundos ela deu-se conta do motivo que continuava a frequentar o mesmo lugar, todos os dias.

Como poderia dizer-lhe que, dentro de tantas opções de Café, era ali que ela sentia-se mais viva, pelo simples prazer de olhar momentaneamente para aqueles magnetizantes olhos azuis, que não pareciam sorrir nunca?

O comentário, quase uma pergunta, todavia, deixara-a desconfortável, como uma adolescente flagrada a espreitar um homem proibido.

Por que não dizes o que pensas? Ele deu a linha, para te agarrares e tu o deixaste escapar. Que estás esperando?

Não soube como reagir. Aquele demoniozinho instalado em seu cérebro fazia a pergunta que ela não sabia ou não queria responder.

E como é que poderia dizer-lhe que o simples facto de olhar para aquelas grandes, brilhantes e tristes safiras, fazia seus dias mais luminosos?

Apesar de não responder-lhe com mais que um sorriso meio sem jeito, aquela pergunta dera-lhe o que pensar. Precisava fazer algo, sabia… e o quanto antes fizesse, melhor… teve medo de perder a oportunidade que ele abriu com aquela simples pergunta.

Abriu a boca, para falar, mas algo mais forte – talvez um instinto de sobrevivência – impediu-a.

Ela limitou-se a levantar, deixar o dinheiro para pagar a conta e sair, sem olhar para trás. Quando passou pela janela, ainda viu o rapaz com uma expressão aparvalhada e um leve rubor na face, a recolher as moedas de sobre a mesa.

***

- Porque não me convidas para entrar? Quanto tempo, ainda, vamos manter esta conversa aqui do lado de fora? Sinto um pouco de frio e a minha pequena folga não demora a terminar…

A mulher olhou aquele jovem homem com um misto de carinho e condescendência e convidou-o, então, a entrar no Café da esquina, perto de sua casa, onde costumava frequentar diariamente, para um ‘espresso’ forte e sem açúcar, pela manhã e um ‘capuccino’ no final da tarde.



Depois de um certo incidente, há algumas semanas, havia decidido reconsiderar o que achara um atrevimento, a princípio, mas que tornou-se uma espécie de sedução por palavras… Ela voltou na manhã do dia seguinte, mas não foi o mesmo rapaz de sempre que a serviu, tendo ficado a um canto apenas a observar, enquanto outro lhe trazia o 'espresso-nosso-de-cada-dia'.

Um tanto preocupada, mais ainda que decepcionada, a mulher pediu ao rapaz que solicitasse ao seu colega de profissão que lhe trouxesse uma nata, um doce típico, que sempre vai bem com café forte e denso, apesar de ser acostumada a comer doces àquela hora da manhã.

Ele veio e depositou o pedido sobre a mesa, sem olhá-la directamente. Sabendo que havia ferido os brios do rapaz, a mulher disse:

- Desculpe.

- Dona, eu sou um serviçal aqui. A senhora desculpe meu atrevimento de ontem. Peço imensas desculpas e prometo que não vou repetir esse comportamento inadequado.

Ele falava com formalidade, num discurso estudado, que repassara em sua cabeça muitas vezes antes daquela manhã. Temendo que ela visse quão nervoso estava, ele colocou as duas mãos nos bolsos do avental de trabalho.

Ela percebeu a agitação e disse-lhe:

- Eu preferia que fôssemos, pelo menos, amigos…

- OK, disse-lhe ele, ainda sem levantar os olhos, mas ela percebeu que ele ruborizou e esboçou um leve e acanhado sorriso. Ele virou-se, disse um educado ‘com licença’ e saiu.

Somente no outro dia, quando voltou a entrar no estabelecimento, como se fosse em um dia normal, que ela foi recebida com um sorriso, apesar de, ainda, um tanto tímido. Suspirou aliviada. A tensão havia-se, aparentemente, dissipado entre eles.

***

Ele não estava vestido para um encontro. Trajava uma jaqueta de couro, já gasta pelo uso, sobre uma malha de lã azul. Blue jeans desbotados e botinas castanhas completavam o visual atraentemente casual, que lhe caíam tão bem… pelo menos aos seus olhos. Sem o avental de uniforme por cima da roupa comum, ele passava por um cliente habitual do Café.

Ela ainda estava com a roupa do trabalho, com o casaco acolchoado e um cachecol de caxemira com listras em vários tons de cinza, simples, mas confortável. Não era propriamente a roupa para um encontro tampouco. Apesar de trabalhar para a polícia, não era em uma área onde o uniforme fosse usado obrigatoriamente, por motivos óbvios. Muitas vezes tinha que passar por uma pessoa comum, não uma policial em fardas, para conseguir informações.

Uma pausa para o “espresso” ou até o “capuccino”. Era somente o que haviam combinado. A noite fresca de fim de inverno pedia uma grande chávena de capuccino bem quente – e foi o que ela pediu. Ele preferiu um espresso – forte e sem açúcar.

Sentaram frente a frente, como dois conhecidos de longa data. No fundo, estavam somente analisando um ao outro. Precisavam de tempo para avaliar até onde poderiam chegar. Ela sabia que tinha de ter paciência. Precisavam de um pouco de segurança e um tanto de confiança para poderem se sentir mais à vontade...

Ela ouvia-o, em silêncio, tentando compreender suas razões, suas expectativas, suas preocupações. Era a primeira vez que falavam longamente. Quando se despediram, porém, sentiu uma ponta de decepção. Apenas um aperto de mãos e um ‘até mais’, quebrou suas expectativas em pequenas porções, como um bibelô de cristal que cai no chão de granito - duro, polido e frio.

Minutos depois, ao chegar em casa, decidiu que era tarde demais para qualquer outra coisa além de se preparar para deitar. Já ia a caminho do quarto, quando ouviu o “bip” característico do telefone indicar uma mensagem a entrar. Foi até a cómoda e pegou o aparelho. Leu e deu uma risada alta. Nem tudo estava perdido, afinal...

***

Os pequenos encontros na pausa do turno habitual do rapaz passaram a tornar-se frequentes. Ela começava a ficar encantada com o que ia descobrindo aos poucos sobre aquele personagem tão diferente dela.

Num ímpeto de pretenso atrevimento, ele decidiu convidá-la para jantar. Aquela deveria ser a primeira vez em que marcavam um encontro a sério. Havia uma semana que ela havia-lhe dito a causa de sempre passar no Café duas vezes por dia. Ele sentiu-se lisonjeado, mas ruborizou ligeiramente quando soube. Era sua deixa para deixar a timidez de lado e ser, mais uma vez, arrojado.

A mulher havia jogado suas melhores cartas, sabendo que podia perder o jogo, mas ao contrário de seus temores, o rapaz disse-lhe que tivera receio de levar um não, diante da ausência de resposta no outro dia. Aquela aparente insegurança tornava-o ainda mais atraente e o tímido sorriso absolutamente encantador. Ela tranquilizou-o, dizendo que também se sentia insegura, mas estava disposta a fazer uma tentativa.

- Tu és uma mulher tão sedutora… eu gostaria de ver-te vestida de uma forma mais feminina, fora do contexto pré e pós-laboral, com essas roupas usuais de trabalho. Elas dão-te um ar muito… ahn… sério…

Ele fora educado. Aquela hesitação fê-la pensar que talvez quisesse dizer que a roupa de trabalho deixava-a masculinizada. Riu-se da proposta dele, antecipando seu desconforto em voltar a vestir-se como uma ‘dama’, depois de muito tempo, mas aceitando o desafio. No mínimo poderia ser uma experiência divertida.

- Teu corpo é tão atraente… devias mostrar-te um pouco mais…

Ele começava a passar dos limites… Decidiu que era melhor parar com aquela conversa logo… antes que ela perdesse a compostura… e o beijasse ali mesmo, na frente de todos…

Levantou-se e saiu, meio às pressas, quando ele riu do rubor que apareceu-lhe subitamente a decorar-lhe a face…

***

Achou, num cantinho esquecido no guarda-roupa, um ‘pretinho básico’, como costumava-se chamar, em seus áureos tempos. Seu único vestido, pouquíssimas vezes usado era uma peça inteira, em malha de algodão com Lycra, que colava-se ao corpo de uma maneira que deixava muito pouco para a imaginação. Duas finíssimas alças deixavam os ombros à mostra, fazendo-a sentir praticamente despida - o que não era exactamente uma verdade - mas era como se sentia. Usou um curto bolero de renda preta, a fim de cobrir-lhe a parte de cima do corpo.

De frente ao espelho, analisou-se, cuidadosamente, da cabeça aos pés. Sentiu-se como se estivesse dentro do corpo de uma pessoa que não era ela, realmente. Começava a achar que não havia sido boa ideia, afinal, aceitar o desafio…

Falso pudor? Ela riu-se da ironia.

Apesar de muito pouco acostumada com maquilhagem, usou um pouco de ‘gloss’ transparente nos lábios e um leve retoque nos cantos externos dos olhos, com um lápis escuro. Não sabia ir além daquilo e não queria parecer o que não era.

Embora não estivesse à vontade dentro de um vestido como aquele, viu que os olhos do rapaz sorriram, pela primeira vez, antes mesmo que seus lábios, assim que a viu. Suas dúvidas logo dissiparam-se. Depois de tanto tempo, sentiu-se atraente.

- Hoje vamos cozinhar juntos.

- Já sei quem vai ter que lavar a louça suja, disse-lhe ela, sorrindo.

Ele piscou o olho, maroto, e deu uma gargalhada. Ela apaixonou-se imediatamente pela risada dele – tão solta e espontânea – como de um menino que não tem nada a temer, nada a perder... cheio de vida e de esperança no futuro… ou pelo menos foi a impressão que o rapaz lhe passou.

Ele conduziu-a à cozinha. Enquanto cortava os legumes para uma sopa que preparava, como entrada, conversava animadamente sobre música e sobre sua vida, antes de se conhecerem, como se fosse a coisa mais natural do mundo.

Fascinada a ouvir-lhe, a mulher aproximou-se dele com cuidado e tocou-lhe a mão, de leve. Ele parou de fazer a tarefa e, com naturalidade estudada, juntou os legumes picados, com suas duas mãos em concha, e deitou-os na água, que já fervia na panela. Temperou com um cubo de caldo de legumes, mexeu bem, provou o resultado e, em seguida, voltou-se de frente para ela.

Aquele homem olhou-a de um jeito que poucos até então haviam-na olhado. Ele não só tinha os olhos fixos nela, mas seu interesse ia muito além de simplesmente observar… era como se conseguisse ver através dela… e sentiu que aquilo era assustadoramente sensual.

Adiantou-se e tirou-lhe o bolero, colocando-o cuidadosamente no encosto da cadeira. Beijou-lhe um ombro, depois o outro, enquanto empurrava com os dedos as alcinhas do vestido para os lados. Enquanto abria o fecho, vagarosamente, continuava a beijar-lhe as costas. Ao soltar o negro tecido do seu pálido corpo, descobriu a tatuagem impressa ao lado esquerdo, que estendia-se até próxima à virilha. Perguntou-lhe se tinha algum significado especial.

- ‘Vitória’ - disse-lhe ela.

Ele beijou a imagem – pintada em preto somente - de um alongado dragão japonês, estampada indelevelmente em sua pele, antes de voltar a percorrer-lhe o corpo com seus lábios.

Sua atenção aos mínimos detalhes causava-lhe arrepios, apesar do calor suave que vinha de sua boca. Fechou os olhos e deixou-se levar por suas carícias tépidas e tão bem-vindas. Quando sua boca aproximou-se dos seios, ela segurou-lhe firme e ternamente o rosto com ambas a mãos e trouxe-o até a altura de sua face, olhando-o firmemente no fundo dos olhos azuis.

Beijou-o com carinho… levemente… cuidadosamente. Ele fechou os olhos e entregou-se àquela mulher, como um verdadeiro amante.

Brincaram ali mesmo na cozinha, enquanto a sopa cozia, no fogão atrás deles. Ele levantou-a do chão com um forte abraço, enquanto a beijava com uma paixão à qual ela não estava acostumada e sentou-a sobre o balcão. Beijou-lhe o pescoço, os seios, o ventre e desceu. Ela fechou os olhos, quando ele tocou o ponto mais sensível de seu corpo e gemeu, baixinho.

O menino transformara-se em um experiente homem e fez dela a mulher mais especial que alguma vez ela havia sido. Seu corpo era tudo que ela precisava. Suas carícias, tudo que desejava - mesmo sem ter uma firme consciência daquilo.

Ferveu a volta dele, como se fosse um vulcão em plena actividade, explodindo repetidas vezes, ao sabor do calor que emanava de todos os recônditos do seu corpo.

Quando já havia passado o fogo para chama baixa, ele olhou-a nos olhos e disse, baixinho:

-Os momentos passados contigo são, para mim, os mais belos.

Naquele momento, a mulher que estava adormecida tanto tempo dentro dela, sentiu nele uma enorme força e uma doçura sem igual, ainda que de uma maneira muito inocente e espontânea.

Ele acrescentou:

- Eu gosto tanto da tua ‘tatoo’ e do teu corpo… é tão perfeito…

A mulher perguntou-lhe por que razão dissera aquilo e ele respondeu que sentiu que tinha de expressar o que se passava naquele momento. Ele, que sempre pisava com cautela estudada o terreno sobre o qual aventurava-se a entrar, tornara-se bravo o suficiente para enfrentar seus próprios receios, diante do que havia acontecido entre eles, poucos minutos antes.

Foi quando ele, por sua vez, perguntou-lhe o que sentia, quando o via, que ela disse… não somente tudo o que sentia, mas também o que pensava. Ele percebeu que ela não temia expor-se. Abriu-lhe um sorriso de criança, meio acanhado e agradavelmente provocante, colocando uma canção a tocar, logo em seguida. Costumava desviar o assunto quando se sentia desconfortável ou intimidado a responder algo que não desejava.

“I believe I can fly, I believe I can touch the sky, I think about it every night and day, spread my wings and fly away”… (R. Kelly)

Usou aquele momento para dizer algo, sem precisar falar. Por um breve instante, pareceu, a ela, que os melancólicos olhos azuis do rapaz sorriram-lhe outra vez, mas aquela impressão passou muito rapidamente.

As palavras cantadas mexeram com suas reacções, fazendo-a contemplá-lo com um carinho sem igual, mas ele desviou o olhar, ruborizando um pouco, quase timidamente. Incrível como, em questão de minutos, ele passara de um ousado e experiente amante, que sabia explorar todos os seus sentidos e voltara a ser aquele menininho tímido, novamente. Um animalzinho, que se escondia em sua casca protectora, foi a imagem que ela visualizou imediatamente.

Decidiu escolher outra canção, como se aquela não estivesse expressando tudo o que ele queria.

Fingiu estar ocupado, escondendo os olhos – lindamente azuis - quando a voz rouca de Bryan Adams começou: “Look into my eyes, you will see what you mean to me…  e continuou: Everything I do, I do it for you”…

Ela escreveu aquela frase num pedaço de papel e mostrou a ele, que sorriu, divertido, baixando os olhos mais uma vez.

Ela aproximou-se e beijou-lhe, de leve, um ponto no pescoço, na região atrás da orelha… Seu corpo estremeceu todo, quando viu-lhe a pele arrepiar, como se uma carga de electricidade houvesse ligado uma reacção no corpo do amante.

Ele virou-se e beijou-a novamente… a começar pelos olhos e foi descendo, enquanto ouvia os gemidos da mulher, que já sentia um vulcão prestes a entrar em nova erupção, em todas as tonalidades de vermelho, dentro dela.

Os olhos, de um dos mais impressionantes matizes de azul-safira, brilharam ao reencontrar com os dela. Ela perdeu o controlo completamente, abraçada ao corpo dele, como um náufrago que agarra-se à sua tábua de salvação…

segunda-feira, 24 de maio de 2010

A Máquina

Eu dirigia, já há horas, por uma estrada poeirenta, no meio de uma grande plantação. O sol ainda estava alto no céu e me batia no rosto, naquela tarde de Outono. A visão do vento a brincar com as folhas verdes do enorme milharal, que se estendia por quilómetros, me faziam sentir saudade de tempos de outrora, mas eu não sabia exactamente o porquê.

Depois de muitos quilómetros de estrada deserta, vi uma encruzilhada. Desacelerei e parei, procurando alguma placa, que me mostrasse onde me encontrava e quão distante poderia estar de outro destino qualquer. Não havia nenhuma indicação, nenhum sinal de trânsito à vista. Em dúvida, sempre uso a mesma táctica: virar à direita. (If right is right, left must be wrong…)

Logo à frente, avistei uma pequena propriedade. Parei e saltei do carro, para tentar obter informações. Tudo estava quieto e deserto. O vento batia na porta falsa da casa de madeira, que abria e fechava contra o batente. Entrei e vi a casa vazia, com as janelas abertas. As velhas cortinas esvoaçavam, como se dançassem, embaladas pela brisa vespertina. Meu olho captou alguma coisa em um canto e eu, instintivamente, virei-me naquela direcção.

Quase invisível, na penumbra, um par de olhos me observava. Aproximei-me com cuidado e vi que era apenas um menininho de uns seis anos - não mais que isso. Os cabelos cacheados, de um castanho muito claro, caíam-lhe pela testa, quase escondendo os olhos esverdeados, que eu via brilhar na meia-luz.

- O que fazes aqui? Estás sozinho? - Eu perguntava, com cuidado, para não assustar a criança.

Estendi-lhe a mão, num esforço meio desajeitado de mostrar que não ia machucá-lo. Ele saiu do cantinho e veio na minha direcção. Olhou-me como se desacreditasse que eu estivesse ali, na frente dele.

- Estás sozinho aqui? - Eu repetia a pergunta, tentando compreender o que se passava.

Ele ainda parecia desconfiado. Mesmo assim, concordou, com um movimento de cabeça.

- Onde estão os outros?

- Não tem mais ninguém aqui. Estão todos mortos. Eles foram pegos pela “máquina de exterminar gente”.

- Como? E por que tu não tiveste a mesma “sorte”?

Ele franziu o cenho, como se começasse a perder a paciência com minhas perguntas. Mas, uma sombra passou pela sua face. Sem responder directamente, ele olhou-me, com condescendência, estendeu um franzino braço e mostrou-me uma grande cicatriz em forma de meia lua.

Eu sorri um sorriso triste e estendi a mão, mais uma vez, tentando mostrar-lhe que podia confiar em mim. Ele aceitou a oferta, colocando a sua pequena mão na palma da minha. Foi então que olhou por cima dos meus ombros, com uma expressão de assombro estampada na face. Com um puxão, desvencilhou-se da minha mão e correu para fora, ao mesmo tempo que um som metálico cortava o ar atrás de mim. Uma fracção de segundo depois, senti uma pontada de dor atravessar meu corpo.

Passei a mão, instintivamente, no peito e pareceu-me que uma ponta muito fina de uma lâmina curva saía dali. Senti um puxão no corpo e penso ter caído de costas, em câmara lenta. Meus olhos não viram mais nada, pois uma escuridão cobriu-me a visão, quase que imediatamente.

Não sei quanto tempo passou. Ainda meio atordoado e sentindo um peso no peito, abri minhas pálpebras lentamente e vi aqueles grandes e esverdeados olhos, bem perto do meu rosto. Uma dor aguda e constante perfurava meu peito.

Com as duas mãos, levantando-o delicadamente, retirei o corpo e as patas do invulgar felino, que havia estado em cima de mim, afastando, ao mesmo tempo, uma afiada unha que me penetrava a pele. Gemi, tentando me levantar, mas tive dificuldade. Eu me sentia enfraquecido.

O gato se afastou, num flash ruivo, como se fugisse de mim ou tivesse encontrado outro ponto de interesse.

Examinando o ambiente à minha volta, percebi que ainda estava dentro da casa. A luz, que entrava pela janela, era ténue e me mostrava que já era tarde. O vento movia as cortinas, delicadamente.

Ao olhar para a porta, vi o menino a me observar, inexpressivamente, com o gato ao seu lado. Estendi o braço naquela direcção, mas ele não se moveu. Julgando que o pequeno estivesse em choque, tentei retirar o telefone do bolso da calça e discar o número da emergência.

De repente o chão começou a vibrar fortemente. Entre surpreso e apavorado, deixei o aparelho cair da minha mão. O gato pulou para fora da casa. A sonolência desapareceu de imediato dos meus olhos, que esgazeados, procuraram reciprocidade no rosto do menino. Não foi espanto que eu vi naquele olhar, porém. Foi um misto de indiferença e, para minha surpresa, um ar de divertimento.

Dizem que as grandes verdades nos atingem, frontalmente, no final. Foi então que compreendi, segundos antes do golpe definitivo e fatal. O quase imperceptível sorrisinho de satisfação, na face angelical dele, revelou-me tudo, sem que precisasse dizer nada…


Na sala dos arquivos telefónicos do número da Emergência, os especialistas ouviam, com cuidado, a gravação incomum. O ruído metálico - como de uma estranha máquina - antecedia um grito abafado de dor, seguido de longos minutos de um silêncio profundamente sufocante. O técnico já ia desistindo de obter mais alguma coisa, quando ouviu, ao fundo, um outro som, mais assustador ainda: aquilo teria sido uma gargalhada de criança, seguida de um - “vem, Ginger” - e de um miado curto?