sábado, 28 de dezembro de 2013

A Cruz Celta (Parte 1)


Ela era gordinha. Considerando-se que uma mulher acha-se gorda se tiver mais que cinquenta quilos e ela estava lá pelos oitenta e tantos, nos seus míseros um metro e sessenta de altura… ou menos: ela era gorda. O rosto redondo transmitia benevolência e simpatia; as faces rosadas, um certo ar de juventude. Não era fácil precisar a idade. A impressão que se tinha era que devia haver passado recentemente dos trinta, mas podia-se enganar facilmente.

A cartomante tinha, porém, uma característica que outras talvez não tivessem: uma capacidade de percepção além do normal. Se era mediunidade ou percepção aguçada, não importava. A lei das coincidências jogava muito a seu favor. Mesmo os mais desconfiados balançavam diante da precisão das previsões da pequena mulher e era isso que o levou até ao pequeno estúdio onde ela atendia.

Curiosidade e cepticismo andavam de mãos dadas na mente do homem de meia idade… e uma boa dose de falta de bom senso… 

- Uma cartomante! Onde é que estou com a cabeça? Só pode ser desespero, mesmo…

Os pensamentos vinham em contradição, uns com os outros, lutando entre si, mas a curiosidade estava levando uma boa vantagem. Já havia chegado até aquele lugar. Agora era só relaxar, tentar não levar nada muito a sério e ver onde a coisa toda ia dar. No mínimo, era uma diversão, para um homem que estava à beira de uma crise de nervos.

Os cabelos castanho-claros começavam a tingir-se naturalmente de grisalho, nas têmporas, na cabeleira ainda farta, mas entradas no alto da testa mostravam que a calvície viria logo em seguida. Ainda assim, possuía um certo charme, que somente a maturidade traz, aos homens que sabem o valor que a vida tem. A dele andava um tanto descorada e insípida, sem muita alegoria, além da sequência palidamente bicolor casa-trabalho e trabalho-casa…  e não muito mais.

Já não tinha vida social, desde há muito e os fins-de-semana eram passados solitariamente a percorrer os corredores do supermercado, lavar e passar as roupas da semana e cozinhar algo mais elaborado que nos dias comuns. Nem ao cinema ia mais. Limitava-se a ouvir música, ler e assistir TV ou vídeo, quando invariavelmente adormecia encolhido no sofá.

A única companhia que desfrutava era um gato rafeiro, que adoptara de uma sociedade protectora, para não ficar completamente só. Escolhera um gato, não só pela independência e pouco trabalho que dava, mas por admirar a personalidade dos felinos e a pouca disposição para parecerem estar sempre prontos, quando realmente não estavam ou não lhes apetecia… e era assim que ele também sentia-se, às vezes…                   

Ele olhou a mulher, de frente, quando sentou-se. Ela fez algumas perguntas - que ele respondeu, quase automaticamente - para situar-se, antes de começar a deitar as cartas sobre a mesa.

O velho e amarelado baralho já estava a postos, num lado da mesa, prontinho para entrar em acção, assim que ela achasse que a hora era a certa. Parecia haver sido muito manipulado por aquelas mãos pequenas e gorduchas, que agora moviam-se com uma agilidade digna de um grande e hábil jogador de cartas.

A mulher procurou e escolheu uma carta do meio do monte, antes de começar o ritual. Retirou um Rei de Copas e colocou-o no centro da mesa.

- Este é você. O jogo começa a partir desta carta: o significador. O Rei de Copas representa um homem maduro, de cabelos castanhos, pele clara, generoso e elegante.

Ela piscou o olho e sorriu. Embora não fosse realmente bonita, o sorriso caía-lhe muito bem e tornava-lhe o rosto até um tanto atraente. Ela havia feito uma espécie de elogio, quase subtil e descomprometido. Ele olhou a figura no pequeno cartão colorido e marcado com um grande K impresso em vermelho, no canto esquerdo superior e outro no canto oposto, com olhos de avaliação, como nunca havia feito, quando jogava cartas com os irmãos, em dias de chuva e noites de sábado, em tempos há muito passados.

Então era assim que ela o via…. Ele sentiu-se estranhamente lisonjeado.

Devolveu-lhe um leve sorriso e analisou o desenho: os cabelos e a barba claros, os olhos um tanto perdidos e a mirar, neutros, um nada à frente. A coroa de ouro, decorada com rubis, provavelmente, devido à cor vermelha, escondia o alto da cabeça e parte da testa. Ele sentiu vontade de rir. O rei trazia ainda uma espada numa mão e a outra a segurar a gola de arminho do casaco…

O homem avaliou bem a situação, sem envolver-se demais e concluiu que o desenho da carta já esteve sobre um fundo imaculadamente branco. Agora, as bordas acastanhadas, o fundo amarelo e a figura quase a querer desaparecer no meio de tanta história contada sobre aquele tampo de mesa, pareciam querer gritar-lhe algo, que ele ainda não conseguia perceber. Um pensamento veio como um raio à mente, sem sair-lhe um som pelos lábios.

- …E o nome do jogo? Vida?...

Reteve o pensamento, sem zombar do que não conhecia e sem deixar transparecer qualquer tipo de emoção.

- Vamos ver o que virá agora… vamos ver…

A reflexão não o distraiu, nem fê-lo mudar a feição. Era apenas uma curiosidade aguçada, que ele sentia, então.

Ele olhou as pálidas mãos a embaralharem, com desenvoltura, as cartas gastas por tanto uso, até que ela parou e pediu-lhe para partir o maço em três, com a mão esquerda, a partir do centro da mesa, indo para a direita.

Ele obedeceu.

Ela recolheu os três montes, numa sequência que ia primeiro no monte da esquerda, da direita e, por fim, no monte do meio. A partir dali, começou a deitar as cartas, uma a uma, num desenho muito bem estudado pelo tempo e por uma rotina estranhamente destra: a cruz celta…

Ela começou por colocar a primeira carta em cima da mesa, sobre a que representava o significador: um Valete de Espadas - um homem jovem, moreno, sincero no amor, na posição da situação presente.

Um jovem homem de cabelos escuros movimenta-se com desenvoltura, num ambiente onde sente-se confortavelmente à vontade. Está onde devia estar, tanto no tempo quanto no espaço. Vários pares de olhos o seguem, magnetizados pela graça felina daquele indivíduo. Ele quase ouve os pensamentos dos frequentadores do bar, instalado no último andar de um edifício moderno no centro da cidade. 

Uma grande sacada proporciona uma vista ímpar das luzes da cidade, tornando o lugar bastante frequentado, não só pela qualidade do ambiente, mas também pelo típico e tradicional cardápio de bebidas locais, da mais alta qualidade. Os vinhos mais nobres estão no topo da lista. A noite estava morna e convidativa. 

Ele dirige-se à sacada, com uma taça de vinho branco, fresco, na mão. O outro homem vira-se ao senti-lo aproximar-se. Tem os cabelos castanho-claros, levemente arruivados. Aparentemente os dois homens se conhecem de longa data.Com um aperto de mão e uma troca de sorrisos começam logo uma conversa amigável.

Por cima das duas cartas já deitadas no centro da mesa e formando uma cruz com a anterior, outra foi colocada. Representava as influências imediatas e ocultas. Desta vez era um Valete de Copas - amigo ou amante, nem sempre confiável.

Um certo par de olhos observa os dois homens a conversar descontraidamente na varanda. Eles levantam as taças que trazem nas mãos, brindam e bebem, imediatamente, dando risadas altas, logo em seguida.

- Aquela alegria vai durar muito pouco…muito pouco mesmo…

 O pensamento saiu quase espontaneamente, na mente do jovem de cabelos e olhos claros a observar os dois homens a socializarem espontânea e divertidamente. O rosto afilado e o bigode e pêra, cuidadosamente aparados, davam-lhe uma aparência atraente, mas os olhos causavam uma certa intriga a quem os olhasse. 

Que mistério ocultava-se atrás daquelas lentes naturais de um verde tão incomum e cristalino?

Acima, onde o topo da cruz devia estar, outra carta foi colocada. Representava o consulente perante o problema e as raízes do mesmo. Oito de Espadas: más notícias, desapontamento, crises, conflito, traição.


O rapaz de cabelos e olhos claros aproximou-se da mesa onde os outros dois conversavam, então, após fazerem o pedido ao garção. Os dois sorriram ao vê-lo aproximar-se e saudaram o recém-chegado com um forte aperto de mão, tapinhas nas costas e um convite para sentar-se junto a eles. Ele sentou-se, com um sorriso nos lábios, enquanto iniciavam uma conversa evidentemente amigável. 

Mal sabiam que o rapaz que convidaram a sentar com eles trazia mais que uma conversa meramente inocente e amigável… 


quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Concubinata


Aquela musiquinha irritante do despertador acordou-me num sobressalto… e não somente a mim. Ele pulou da cama e apanhou o telemóvel do bolso das calças, que jaziam soltas sobre as minhas roupas, na cadeira, num canto.

- Que horas são?

- Meia-noite…

Disse aquilo com um sorriso meio sem graça, a olhar-me ainda protegida pelas cobertas quentinhas e exibindo uma cara de sono, tentando focar a imagem dele, de pé, na penumbra do quarto.

- Já?

- Já! Tenho que ir…

- Uh-hum…

Ele sabia que eu não ia protestar, nem fazer um drama desnecessário. Aceitava aquela condição sem reclamar, há bem mais que um ano e sabia o que o despertador a tocar, àquela hora, significava. Era como se o conto famoso repetisse cada vez que ele vinha. O encanto cessava à meia-noite, quanto as badaladas anunciavam a hora de partir…

A silhueta conhecida, recortada contra a luz que vinha de fora e iluminava as cortinas, por trás, como num teatro de sombras, movia-se como se estivesse num tempo e espaço presos entre o sonhar e o acordar. Vestia-se com pressa, para evitar ficar muito tempo exposto ao frio do ar, tão dissemelhante daquele em baixo do edredão de penas de ganso, em que se encontrava há segundos atrás.

Aquela era para ser uma relação simples. Mas não era. Era tudo; menos simples. Pelo menos na minha cabeça…

Eu não me permitia sentir ciúmes… ou melhor: não me permitia demonstrar ciúmes, mesmo quando o sentia. Eu tinha muitas dúvidas e incertezas, que não queria deixar transparecer, com medo que ele me julgasse impertinente, dona de um sentimento descabido, já que não tinha direito sobre a vontade ou a liberdade dele.

Levantei-me e enrolei o roupão no corpo, quase sem pensar. Fui até a cozinha e abri uma garrafa de água com gás, que eu mantinha sempre fresca, por saber que ele gostava. Bebemos em silêncio, evitando olharmo-nos diretamente nos olhos um do outro.

A despedida era sempre assim: num quase silêncio tristemente consternado. Levava-o à porta, trocávamos um beijo, como se fosse o último e um abraço que beirava o desespero e que amargava o desejo, nunca expresso, de que passássemos a noite juntos, abraçados, como se não houvesse mundo maior que o nosso pequeno quarto.

Quando ele saía e eu fechava a porta, minha vidinha solitária voltava a uma rotina anormalmente normal e completamente desprovida de cores, a não ser a mesma sequência de variantes do mesmo tom frio e impessoal de sépia, que eu não sabia se realmente odiava ou não.

Naquele dia, porém, quando retornei ao quarto, não consegui dormir imediatamente. Minha cabeça começou a trazer, à tona, todas as dúvidas e meus pensamentos vinham aos turbilhões, fazendo-me questionar o que eu estava a viver nos últimos tempos… sem exceções.

 Virava-me de um lado ao outro, sem pegar no sono, por mais que quisesse desligar o cérebro e dormir. Queria desaparecer na escuridão do quarto, sem nem ao menos sonhar. E, justamente por tentar tanto, a impressão que tinha era que parecia afastar-me cada vez mais do meu intento. Não conseguia pregar olho.

Uma mistura de sentimentos resolveu assombrar-me, vindo de baixo da cama, subindo pelas paredes e pousando sobre meu travesseiro, como se fossem impertinentes demonetes, dispostos a infernizar minha noite. Por incrível que pudesse parecer, o único diabrete que não veio sentar-se junto a mim foi o da culpa…  Todos os outros, porém, brincavam com meus cabelos, minha cabeça, minha sanidade…  


Tentei os exercícios de respiração e relaxamento que conhecia, mas não consegui muito. Eu sabia que tinha de tomar uma atitude e tocar a vida adiante, senão aquela sensação estranha a incomodar-me não esvanecia. Vinha evitando pensar seriamente sobre a situação há muito tempo. Pareceu-me que minha consciência já não podia esperar mais por uma definição de vida e dava os sinais daquela evidência.

Levantei-me.

Enrolada novamente no robe, fui até a cozinha. Preparei um chá de maçã vermelha, que sabia tinha propriedades calmantes, dirigi-me à sala, sentei-me confortavelmente no meio das almofadas do sofá e deixei-me relaxar um pouco. Estava mais que evidente que minha consciência procurava um pouco de harmonia. Eu merecia paz…tranquilidade… e uma decisão…

Eu sabia que o óbvio era a única saída, por isso, era apenas uma questão de querer assumir e ir em frente.

Vinha evitando há muito tempo, porque gostava dele, dos carinhos e da atenção que recebia, da generosidade e do respeito nos gestos e da liberdade que tínhamos na relação. Não escondíamos nossos sentimentos, nem fingíamos sentir uma paixão arrebatadora ou doentia.

Mas quando estávamos juntos, éramos amantes no mais denso sentido da palavra…e não só…

A cumplicidade, o humor nas entrelinhas, os jantares acompanhados de vinho, as brincadeiras e o conforto dos braços e do corpo dele a aquecer o meu… era impossível  desconsiderar a beleza da situação, mas também a fragilidade que ela tinha.

Pus as mãos na cabeça e fechei os olhos.

- Coragem!

Eu falava comigo mesma, na esperança de convencer-me.  Encolhi-me, abraçada aos joelhos e recostei a cabeça na grande almofada…

Já não pensava mais… Caí num sono profundo.

Acordei com a luz do sol a entrar pela cortina mal fechada, sentindo dores no corpo, devido à posição em que fiquei deitada por tanto tempo. Estava atrasada para o trabalho…

Nos dias seguintes, quanto mais pensava, mais tinha certeza do que ia fazer. Às vezes surpreendia-me a pensar em nós e enchia os olhos de lágrimas, mas estava cada vez mais decidida. Teria que encarar a decisão, olhando-o nos olhos. Ia doer, mas tinha que ser feito. Era o melhor para nós dois. No fim de semana estava totalmente decidida.

A nossa costumeira noite de encontro chegou, finalmente. Desta vez ele não vinha para jantar. Eu não ia conseguir engolir nada mesmo. O destino compactuava comigo. Teríamos pouco tempo juntos.

Tentei acalmar-me. Não podia estragar o meu plano com o nervosismo. Repassei o discurso, na minha cabeça, um milhão de vezes. Estava pronta.

Quando a campainha tocou, estava já à porta, mas tive que respirar fundo algumas vezes, antes de girar a chave. Abri…

Ele estava vestido de preto. Alinhado. Quase formal. Sorridente.

Engoli em seco. Convidei-o a entrar. Ele disse, com o sorriso ainda aceso na face, cuja barba havia sido aparada recentemente:

- Vamos sair.

- O que?

Devo ter feito uma cara tão pasma, que ele soltou uma deliciosa gargalhada.

- Vamos sair. Vista um casaco, que está frio. Não pensa muito… anda comigo…

Eu obedeci. Havia sido totalmente surpreendida. Fiquei sem saber o que dizer. Ele percebeu, mas não disse nada.  Limitou-se a conduzir-me até o carro. Abriu-me a porta como um verdadeiro cavalheiro. Nossas músicas favoritas começaram a tocar, assim que ele ligou o CD player. Eu não disse nada. Apenas sorri nervosamente.

- Fica tranquila. Vamos a um sítio giro.

- OK.

Meu coração estava aos saltos. Segurei uma mão na outra, para esconder o nervosismo. Ele pousou a mão grande sobre a minha e deu um tapinha, como se tentasse acalmar-me.

Quinze minutos depois, estacionou o carro junto ao passeio, num restaurante que eu já havia falado a respeito, à beira da praia. Ele saltou, abriu-me a porta e deu-me a mão, ajudando-me a sair.

Jantamos como um casal normal, numa noite normal, na cidade… ou na praia…

Ele estava divertido, informal, descontraído. Brincava e conversava comigo, sem mencionar nenhuma razão, sem questionar nada, sem explicar nada. Parecia uma rotina a que já estávamos habituados há muito. O vinho ajudou-me a descontrair e apreciar a comida, a companhia, a noite. Do meio do jantar para frente, esqueci completamente o discurso que havia estudado. Estava semi-bêbada. Ele controlou-se, porque ia conduzir. O café, ao final do jantar, deixou-me um pouco mais desperta.

Quando chegamos à casa, já passava da meia-noite. Eu sabia que era hora dele ir-se, mas não falei nada. Ele acompanhou-me até a porta e beijou-me, de leve, os lábios.

- Precisas ir? Já?

- Não.

Desta vez, eu estava totalmente desperta. Tinha certeza que ele dissera não!

Ele sorriu, abriu a porta e entrou depois de mim. Abraçou-me e beijou-me, como se fosse a primeira vez que nos víssemos. Minhas roupas – e as dele - foram ficando pelo caminho. Quando entramos no quarto, já estávamos completamente despidos. Eu estava totalmente ruborizada…e sabia que não era somente o efeito do vinho.

Ele amou-me como nunca antes. Eu entreguei-me como nunca antes.

Uma sensação de pânico e desespero apareceu-me de repente e fez-me agarrar àquela oportunidade, como se fosse a minha última. Deixei-me levar, como uma nau, velejando por águas densas e escuras e conduzida por um capitão, que conhecia bem os mares por onde navegava. A quilha cortava as águas e singrava pela escuridão, sangrando minha alma, numa insanidade que confundia meus sentidos, deixando-me sem saber se sentia dor ou prazer…

Perdi o controle muitas vezes seguidas, enquanto ele ia e vinha a navegar-me, cada vez mais intensamente. Agarrei-me ao corpo dele e deixei-me cair num precipício de deleite, que culminou num abraço louco, num enlace de braços, pernas e pelos.

Por fim, puxou o lençol e o edredão por cima de nossos corpos, que estavam tão juntos que pareciam um corpo único de um estranho animal, com quatro braços e quatro pernas a se enlaçarem num movimento surreal. Adormecemos colados um ao outro…

Os acontecimentos da noite haviam mudado a minha atitude e eu tive que reconsiderar uma mensagenzinha, que ficava tocando sem parar, na minha mente, durante um sonho agitado, onde eu caía num poço sem fundo, sem poder agarrar-me a nada...

Uma musiquinha irritante insistiu em perturbar-me o sono. Eu não tinha muita consciência do que podia ser, até que senti uma estranha sensação de frio. Abri os olhos, pensando estar em um estado de delírio.  

- O que…

- São duas da manhã. Tenho que ir…

- Oh! Já?

- Sim.


Ele já estava de pé a vestir-se. Eu virei-me para o lado e fechei os olhos. Amanhã pensaria no que ia fazer… 

Por ora, só queria voltar a dormir…


domingo, 1 de dezembro de 2013

Uma das muitas formas de amar...



Esta foto eu havia tirado há algum tempo, em meados do Inverno passado, sem ter consciência que seria a última com ele, deste jeito. Estava perdida na câmera, sem haver sido baixada no PC, por meses...

Esta é uma simples homenagem, em complemento ao post anterior.

Saudades... Não há mais nada a dizer...


domingo, 24 de novembro de 2013

Uma Outra Forma de Amar


- Sabe que vai falar com ele, procurar por ele, chamar o nome, manter as mesmas rotinas, até se acostumar?

- Imagino que sim. Mas não vou ter como evitar… ou vou?

Minha resposta não havia sido nem muito consciente nem tampouco convincente… pelo menos para mim. Eu julgava que saberia gerir bem minhas alternativas e a nova condição que começava naquela nova fase.

As palavras da médica, cheias de experiência e ditas de maneira sábia, numa das mais difíceis ocasiões, não fizeram tanto efeito naquela hora em que minha cabeça estava às voltas, numa confusão de sentimentos, sensações, obrigações… mas fizeram mais tarde...

Era a primeira vez que eu lidava com a morte daquele jeito… Mais de treze anos juntos, vivendo numa quase simbiose e total dependência física e emocional, não me deram bases suficientes para enfrentar uma fortuita fatalidade, como aquela…

Eu não sabia quão despreparado estava para viver sozinho, sem meu bichano – que havia sido meu grande e sempre presente amigo por tanto tempo.

Mas o Universo é sábio e tem seus próprios tempos e seus modos de garantir que sobrevivamos às mais estranhas situações e, ainda, saiamos delas com o espírito um pouco mais fortalecido. A carga deixada em nossos ombros tem sempre os pesos que podemos suportar, mesmo que, às vezes, pensemos que sejam excessivos.

Grandes perdas trazem grandes vazios e deixam, com certeza, grandes cicatrizes. Eu tinha a alma totalmente esfacelada. Minha vida perdia um firme suporte. Eu meio que flutuava entre as horas, sem saber ao certo o que fazer, ou o que sentir…

Mergulhei no trabalho, em silêncio amargo, tentando esconder as lágrimas e evitando os olhares de pena, que as pessoas me dirigiam, sabendo que eu sofria. Não pensei que fosse encontrar tanta consideração das pessoas que viviam à minha volta, de uma maneira ou de outra.

Um feliz incidente trouxe-me um outro personagem, que invadiu minha vida, menos de um mês depois da grande perda. O incidente ganhou um nome: Thomas… e uma vida nova.


Ele entrou na minha vida, lambeu-me, sem cerimónia, as feridas e permitiu-me dar-lhe aquilo que nunca havia tido: um amor incondicional e sem partículas de culpa, miséria ou arrependimento.

O mais puro e irrestrito amor, que dei gratuita e abundantemente, brotou espontaneamente de um coração entristecido e saudoso, mas que ainda estava fértil em generosidade. Ele, em troca, deu-me companhia, segurou-me em silêncio, os dias em que chegava à casa mesmo mal, preencheu-me os espaços vazios, com suas brincadeiras, suas chamadas para ter atenção e sua maneira especial de me olhar, com aqueles olhos grandes e verdes – antes tão perdidos, numa desafeição incompreensível, que terminou –definitivamente - quando nos conhecemos…  

Eu passei a repetir rotinas, quase sem pensar… Muitas vezes errava-lhe o nome e imediatamente pedia-lhe perdão. Ele tinha seu próprio nome, sua própria personalidade e uma maneira toda sua de cativar-me. Eu tentava – às vezes sem muito sucesso – ambientar-me a ele, suas brincadeiras e seus hábitos.

Coisas como esperar à porta, passar um tempinho a fazer gracinhas, enquanto aguarda que eu troque de roupa, para fazer-lhe carinho, em cima da cama, por uns poucos e importantes minutos, mexer na areia, para ter a porta aberta, largar-se sobre o meu braço, para ser carregado pela sala… são os vários expedientes que ele usa, para ter minha atenção.

E tem.

Três meses depois de sua chegada, reconheço que estou totalmente tomado pela presença dele na minha vida e nos meus dias. Ele já é parte do que eu passei a ser.

Com Thomas, eu compreendi, então, que existem muitas formas diferentes de amar. E eu fui surpreendido, mais cedo que consegui alguma vez avaliar.

O facto de passar a amá-lo assim não traz desrespeito nenhum com o amor que eu senti por Tiger...

Tiger foi, sem sombra de dúvida e por mais de treze anos, meu grande amor. Thomas é, hoje, meu outro grande amor…

São duas formas diferentes de amar. São incomparáveis. São imensas, totalmente incondicionais e  absolutamente sem fronteiras.


É AMOR do mais mais simples e mais puro… e basta!



segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Super-Herói (Verso e Reverso)


Às vezes, ele chora… quase em silêncio, como a chuva fina de Outono, quando os dias são cinzentos e melancólicos e as noites são escuras, densas e longas demais. Sua tristeza parece-me tão lancinante e amarga, que deixa-me sem saber o que fazer para tentar apaziguar aquela dor. Seu olhar fica distante e as lágrimas rolam, silenciosas, rosto abaixo.

Aquele sofrimento evidente enche a minha alma de pesar, como se a sua angústia fosse, também, uma melancolia a pintar minha alma com tons lúgubres e pardacentos. Ouço seu longo suspiro e entro no quarto, a fingir que preciso de alguma atenção para abrandar qualquer medo que me pareça coerente naquela hora.

Ele me toma no colo e pede-me para acalmar. Eu recosto-me sobre seu peito, fecho os olhos e aquieto-me, finalmente. Ele, então, beija-me a cabeça, com um carinho triste e, mais sereno, abraça-me com firmeza, como se tentasse assegurar-se que não vou deixá-lo só.

Mal sabe ele que o que faço é uma tentativa desajeitada de aplacar-lhe aquela aflição, demonstrando uma calculada dependência ao seu afecto e à segurança e paz que ele me traz.

Algumas outras vezes, entretanto, seu pranto vem em torrentes, como os temporais de verão, pesados e ruidosos, que chegam a assustar os corações mais desavisados. Nestas horas, sou eu quem o abraça, com meus braços pequenos e, que em silêncio, dá-lhe o peito para que ele chore, sem vergonha e sem receio de parecer, de alguma maneira, ridículo. Faço-me de forte, para que ele tenha onde se apoiar.

Aquela tormenta é mais cortante. É um mistério não revelado, na minha incauta mente. Ele tenta controlar-se, pede-me desculpas e recompõe-se a procurar algo imediato para fazer e espairecer, tentando aliviar minha preocupação evidente. Finjo que acredito que está tudo bem, sabendo que nunca saberei a razão daquele momento em que suas defesas caem todas por terra.

Às vezes, capto um flagrante dele, quando observa-me a brincar e vejo tão-somente ternura e leveza na expressão que sua face amadurecida revela, quase sem querer. São naqueles momentos em que tenho a certeza absoluta que ele me ama. A sua forma de me olhar demonstra isso claramente... e comove-me sobremaneira.

Quando os trovões me acordam em sobressalto e eu choro assustado, no meio da noite, ele me acode, senta-se ao meu lado e, acariciando-me as costas e a cabeça com suas mãos grandes e fortes, faz-me sentir seguro com sua presença marcante de super-herói. E ele diz-me ao ouvido, para não ter medo, que ele está ali a proteger-me e pede-me para ter coragem. Ele deita-se ao meu lado e espera que eu adormeça, finalmente, sentindo-me o mais afortunado e protegido ser do universo.

À noite, olho as estrelas e a lua, sentado à janela do meu quarto, pensando nas histórias que ele me conta, imaginando como pode alguém ter chegado lá em cima, tão distante daqui… e ainda caminhado naquele imenso deserto de prata…

Ele disse que somos dois guerreiros – parceiros de luta... sobreviventes… Eu não sei se percebo bem o sentido das palavras, mas sinto o que ele quer dizer. Nós enfrentamos, juntos, o sufocante e imenso escuro do quarto, as noites de tempestades, o frio dos invernos e uma série de novas aventuras na cozinha e no jardim.

Ele é mesmo um grande guerreiro. Talvez o maior de todos os tempos. Um herói feito de força e pujança, sentimentos e ternura, com uma alma generosa e gigantesca.

Ele está sempre atento. Respeita meus limites e minha individualidade e dá-me tempo para explorar e aprender. Ensinou-me, também, a prezar por todas as coisas e todos os seres, mesmo os mais pequeninos – que podem ser, também, os mais indefesos. Acho que este homem conhece o verdadeiro sentido da palavra amor e da responsabilidade que a mesma traz. Tudo, nele, é bondade e tolerância – especialmente quando se refere a mim.

E quando me olha, até mesmo aquele seu olhar triste e sofrido, de quem já enfrentou tantas lutas, com tantas vitórias e umas tantas derrotas, torna-se completamente afável e condescendente. É forte e maduro, como todo grande homem deve ser. É também delicado e vulnerável, como poucos grandes homens conseguem ser, diante de quem confiam cegamente.


Eu sou apenas uma criança, mas tenho plena noção que meu pai sabe que, na minha inocência e fragilidade, eu dou-lhe toda a energia e o apoio que ele precisa, para ser um homem admirável e um herói magnífico... um verdadeiro Super-Herói.

sábado, 19 de outubro de 2013

Em Paz com os Fantasmas... (Parte 2)




Era cedo na manhã quando o rapaz entrou no quarto e abriu as cortinas e a janela. Uma fina chuva caía sobre o monte, acentuando as cores da paisagem, em um fundo pintado com diferentes e sombrios tons de cinza. O ruído do riacho a correr ali perto, pareceu-lhe, por um momento, melancolicamente mais alto e mais pungente.

Quando a luz baça da manhã iluminou o aposento, ele percebeu que não foi recebido pelo mesmo sorriso de sempre e sentiu um súbito desconforto a apertar-lhe o peito.

Havia algo bastante diferente no semblante cansado da criança. A pele e os lábios pareciam mais descorados e o olhar estava distante, a vaguear para algum ponto, localizado bem além do limiar da janela…

Ele tentou não transparecer sua preocupação, ao encarar o irmãozinho. Falou com a voz mais calma que pode compor, naquele instante, procurando esconder o alarme, que acendeu uma berrante luz encarnada na sua mente:

- Chove…

O pequeno suspirou, desanimado e olhou o irmão, com olhos visivelmente fatigados e sem o usual brilho de vida. Não parecia haver dormido muito bem naquela noite. O outro aproximou-se, aprumou dois grandes travesseiros de penas de ganso às costas do menor e arrumou a coberta sobre as pernas dele, tentando parecer o mais natural possível.

- Vou trazer alguma coisinha para comeres.

- Não...

A voz soou fraca e baixa; quase inaudível.

- Mas tu precisas comer, criança.

- Não agora…

- Ok, então. Depois eu trago-te um chocolate quente…

O mais velho, então, sentou-se na cama, ao lado do irmão e passou o braço a volta do seu ombro, trazendo-o mais para próximo de si. Era extremamente paciente e atencioso com aquele ser que tornara-se, em pouco tempo, tão frágil e indefeso e que passara a necessitar de grande e dedicada atenção. O pequeno estendeu o bracinho magro sobre o peito do mais velho e deitou, ali, a cabeça, de ruiva e macia cabeleira. Parecia demasiadamente esgotado.

Os olhos do rapaz encheram-se de lágrimas, quando sentiu a respiração da criança ficar mais fraca. Apertou o corpinho mirrado do menino contra o seu, pousou-lhe os lábios na testa e deixou-se tomar por um pranto angustiado e impotente, embora silencioso.

Ter o corpo frágil do menino, no seu abraço morno, era como segurar o volátil corpo de um anjo, cujas asas estavam irremediavelmente quebradas e o impediam de voar novamente.

Para o pequeno, entretanto, estar seguro naquele abraço, sentindo-se incondicionalmente amado e protegido, era como ter suas asinhas, finalmente, curadas e prontas para permitir-lhe voar novamente. Rendeu seu espírito ao quente aconchego daquele momento de tranquilidade e afecto, exalou profundamente e sorriu, de leve, como se sentisse que toda sua silenciosa aflição estivesse, finalmente, aplacada.

A bem-vinda paz que invadiu-lhe o corpo e a alma, apagava, naquele momento, todos os vestígios de dor e desconforto que vinha sentindo ultimamente. Estava livre, como um pássaro de plumagem avermelhada, que preparava-se para levantar um apoteótico voo. Fechou, então, as pálpebras, com a expressão de alívio decorando-lhe a face abatida e, ao mesmo tempo, angelical.

Aquele foi seu derradeiro suspiro em vida. Seus sofridos olhinhos verdes, dantes tão vivos e divertidos, nunca mais voltaram a abrir-se…

***

O rapaz, parado de pé, no alto do ‘cliff’, tinha o olhar perdido em um ponto muito além da linha do mar. Uma tristeza e uma revolta imensas assolavam-lhe o espírito. Sentia-se, de alguma forma, culpado pela perda do irmão, embora houvesse feito tudo ao seu alcance, para prover o pequeno com toda a atenção e o carinho que aquele merecia. Mas não havia sido o suficiente para salvar aquela jovem alma sofrida e tomada pela impiedosa doença.

A vida havia sido injusta com ambos, pensou ele.

Sentiu que aquele lugar, agora, exercia sobre ele, uma pesada opressão e resolveu, naquele instante, partir dali, para sempre. Decidiu, ali e então, que jamais tornaria a pisar naquela terra, onde perdera parte de si, na figura do irmãozinho, que amou e que tanto tentou proteger, mesmo que em vão. Era uma decisão firme, à qual jamais tencionava reconsiderar, enquanto vivesse.

Havia sido derrotado. Perdera a difícil e longa batalha. Devia partir o quanto antes… sem olhar para trás… jamais…

***

À beira do rochedo, uma gaivota solitária pairava no ar, quase imóvel, segura pela acção do vento e por sua técnica de aerodinâmica instintivamente perfeita. De pé, em frente ao mar, um homem de meia-idade e cabelos castanho-claros, observava, absorto, o movimento do pássaro, que parecia usufruir daquele momento de destreza, como se estivesse suspenso por invisíveis fios, pendentes do claro e azul firmamento. Sua cabeça movia-se suavemente para um lado e outro, com seus olhos atentos, como se procurasse vestígios de algo, no meio do mar, entre os curtos espaços de tempo.

Movido por um inaudível e estranho sinal de alerta, o pássaro abriu o bico e emitiu um grito agudo e sensivelmente angustiado. Moveu, então, as asas e a cabeça num ângulo diferente e mergulhou no ar, destemidamente, até atingir o frio e azul oceano lá em baixo, deixando à vista, apenas, uma pequena mancha branca, de espuma, sobre a superfície das ondas.

Ao que pareceu, ao homem, infinitos segundos depois, emergiu das águas com um abanão de cabeça. Abriu suas amplas asas e tornou a voar, atingindo, sem esforço, as alturas, já em perfeita harmonia com o vento e o espaço.

Inclinou a cabeça levemente para o oceano azul e frio, como se fizesse as pazes com o que acabara de deixar atrás de si. Voltou-se para frente, ergueu sua cabeça e seu olhar e mirou firmemente o que via diante de si, voando decidido naquela direcção.

O homem ainda observava, com atenção, o pássaro distanciar-se daquela fria imensidão em que estivera submerso, mas que ficara, definitivamente, para trás. Foi como se ele mesmo acordasse de seu melancólico devaneio. Sentiu-se como se um pesado e amargurado véu, que havia encoberto a visão clara das coisas do passado, houvesse finalmente sido levantado, definitivamente, de diante de seus olhos.

Caminhou de volta até o topo do morro, virou à esquerda e começou sua descida à casa de pedra, onde estivera horas antes. Seus passos estavam, agora, seguros e decididos.

***

A cama vazia ainda trazia vestígios de um passado mais vivo que ele alguma vez imaginara haver. O vaso, sobre a mesa da cabeceira, jazia vazio… limpo… assim como sua alma. A roupa de cama ainda tinha cheiro de amaciador e estava impecavelmente arrumada sobre o antigo leito. O homem passou a mão sobre a colcha, o travesseiro, a dobra do lençol… Quase conseguia ouvir a risada divertida e solta do irmão, quando lhe dizia que ia levá-lo ao cais, à margem do riacho.

Da janela, os verdes campos, salpicados de pequenos pontinhos vermelhos e avioletados, pareciam uma suave e bucólica aquarela. Sua face ainda demonstrava uma certa tristeza nostálgica, mas ele sentiu-se, enfim, profundamente sereno e confortado. Trancou a janela com cuidado, deu uma última olhada à volta e saiu do quarto, fechando a porta atrás de si. Enquanto caminhava pelo corredor mal iluminado, sentiu-se como se deixasse aquele local, o passado e suas angústias, para sempre e para trás.

Duas lágrimas mornas ainda escorriam por sua face, quando ele chegou ao lado de fora da casa. Uma leve brisa soprou contra seu corpo e levou, para longe, a fria e amarga revolta que tanto pesou-lhe sobre os ombros, por uma boa parte de sua vida.


Não muito longe, outro homem, verosimilmente mais velho, olhou na direcção da casa e percebeu uma firmeza diferente, na forma do amigo caminhar. Sentiu uma espécie de alívio e sorriu. Os ombros do outro pareciam estar mais aprumados que de costume e a expressão em sua face, inegavelmente mais leve. Até parecia mais jovem… rejuvenescido…

Pelo jeito, os fantasmas podiam, final e peremptoriamente, gozar de sua devida paz.


Tendo percebido que as pendências do passado estavam devidamente conciliadas, o homem concluiu que já era mais que hora de viajarem de volta para a casa da praia… 


domingo, 13 de outubro de 2013

Em Paz com os Fantasmas... (Parte 1)



O sol de verão entrava pela janela recentemente aberta, enchendo, de luz e de cor, o amplo quarto. Uma leve brisa soprou, fazendo as brancas cortinas de voal liso, bailarem sua dança esquisita e fora de ritmo. A decoração, despretensiosamente minimalista, mostrava um sóbrio bom gosto, não somente naquele aposento, mas também no restante da casa, construída numa pequena elevação, à beira mar.

Grandes quadros, dispostos em simples molduras, cobriam partes das paredes, com figuras cuidadosamente detalhadas de originais nus, desenhados a grafite, sépia e sanguínea.  

Apesar de ainda cedo, a grande cama já estava arrumada, com lençóis limpos, de linho branco. A dobra do sobre-lençol, assim como as fronhas das grandes almofadas, jogadas em estudado desalinho sobre a cama, eram adornadas com delicadas papoilas vermelhas, bordadas à mão, em ponto cruz, formando um conjunto suave e harmonioso.

O homem mais jovem, recostado à soleira da porta, tinha o olhar fixo num ponto distante, para além das fronteiras da janela escancarada, a observar uma gaivota solitária, que pairava, plácida, no ar, sem nem mesmo bater as imensas asas.

Quebrou o silêncio e disse, então, ao amigo, que também olhava para fora: 

- Precisamos arrumar as malas. O voo é cedo… e os meus fantasmas não podem esperar mais, para ter seu merecido descanso. É tempo de reconciliação com o meu passado... mas preciso de ti por perto.

***

Algumas horas depois, ao avistar a costa leste escocesa, pela janela da grande nave metálica, os dois amigos sentiram um súbito incómodo no peito. A sensação era de uma estranha nostalgia, ao sobrevoarem os verdes montes e as escarpas - cobertas de imensas rochas negras - que desciam até o mar.

Aventurar-se a remexer o passado enchia o coração do homem mais novo com uma desconfortável apreensão. Eles haviam entrado em acordo, sobre a necessidade de fazer as pazes com as pendências deixadas no passado e que influenciavam, por conseguinte, o comportamento de ambos, no presente. Antevia-se uma difícil batalha, prestes a começar.

O homem mais velho observou, com cuidado, o amigo. Sua face demonstrava a preocupação que o afligia, ao entrar no vagão do trem, rumo ao pequeno vilarejo, no interior do condado. Menos de uma hora depois, desciam na estação de Downies, próximos de seu destino.

***

- Eu tenho que deixar-te buscar, sozinho, o conforto da reconciliação. Essa aventura é tua…e tua somente… Vais ter que ser muito bravo, como sempre haveis sido. Mas não devo ir contigo, além deste ponto. Leva o tempo que precisares…

Com um leve toque no ombro do outro, o homem mais velho girou em seus calcanhares e saiu, pela porta entreaberta. O sol, lá fora, brilhava alto, num incomum céu de limpo e intenso azul.

Deixado só, na casa de pedra que pertencera a seus antepassados, o homem enfrentou o corredor pouco iluminado, até chegar ao último quarto, à esquerda. Por alguma razão incompreensível, a maçaneta de bronze pareceu fria demais ao toque de sua mão. Ele levantou a cabeça, respirou fundo e entrou, hesitante, no quarto iluminado pela luz natural, que vinha de uma grande janela.

A atmosfera pareceu-lhe um tanto surreal, quando fechou a porta às suas costas. Os móveis, de madeira escura e pesada, apresentavam ainda um bom estado, apesar dos muitos anos de uso. Ele reconheceu a cama, a cadeira ao lado da cabeceira e o grande guarda-roupa, cuja porta tinha um espelho que cobria-lhe quase toda a frente. Sobre a mesinha de cabeceira, um vaso de vidro, limpo e vazio, esperava flores há, provavelmente, tempo longo demais.

Um suave e familiar perfume encheu-lhe as narinas, assim que ele abriu a janela, que dava para um regato, a correr ali próximo. Os campos estavam cobertos de papoilas selvagens e tufos de alfazema, que cresciam naturalmente sobre as encostas e às margens do córrego, pintando a paisagem de diversas tonalidades de verde, pespontada com pequenos detalhes em carmesim e lilás.

Aspirar aquela conhecida fragrância trouxe-lhe, imediatamente, o passado de volta. Uma série de memórias demasiadamente vivas e nítidas bateram-lhe de frente, quase fazendo-o perder o equilíbrio. O jovem homem apoiou-se à cadeira, na qual sentou-se, em seguida, ficando a olhar, absorto, a grande cama, coberta por uma pesada colcha colorida.

***

O menino de pele muito pálida e sardenta, com desalinhados cabelos ruivos, olhos verdes e boca rosada, parecia quase desaparecer no meio das fofas cobertas. Aparentava, talvez, uns seis anos de idade. Ele espreguiçou-se e esfregou os olhos, ainda cheio de sono…

O adolescente de cerca de dezessete anos, que acabara de entrar e abrir as cortinas e a janela, riu e saudou o irmão mais novo, com um bem-disposto “bom dia”. O pequeno, então, perguntou:

- Levas-me lá fora, hoje? Adoro molhar meus pés no riacho.

- Se não chover, sem dúvidas.

- Vá lá… o céu está azul…

O menino fez uma carinha de expectativa e abriu um sorriso espontâneo, que convenceu o irmão a ceder. A leucemia estava em estado adiantado e não retrocedia, no organismo já bastante enfraquecido do menino ruivo. Ver a rapidez com que a doença havia-se espalhado no corpinho da criança, cortava a alma do irmão mais velho. O diálogo era uma espécie de brincadeira, pois ele sabia, muito bem, que jamais diria não às vontades do outro. Sabia também que era meramente uma questão de tempo até que a vida fosse ceifada dele de vez. Tentava não pensar no pior, mas o tempo não parecia estar a seu favor.

- Vem comigo…

O rapaz tomou o pequeno nos braços, com cuidado e levou-o para fora. À beira do riacho havia um pequeno cais de troncos de madeira bruta, onde eles costumavam sentar-se. Com os pálidos e frágeis pés a tocar a água fresca, o menininho parecia outro, divertindo-se com um dos prazeres mais simples que havia. A água parecia dar-lhe vida e ânimo. O irmão quase esquecia da doença, quando o via, assim, a espairecer. O vento brincava com a cabeleira ruiva, que brilhava ao sol da manhã.

- Amanhã me trazes cá outra vez?

- Só se o tempo estiver bom… Sabes que não podes apanhar chuva…

O pequeno riu, olhando o céu limpo e tendo a certeza que, no dia seguinte, voltaria a molhar os pezinhos nas águas frescas do córrego.

O sorriso triste, que seu protector devolveu-lhe, porém, não passou-lhe totalmente despercebido. Ele sabia que seus minutos de vida estavam contados e que não havia mais nada que qualquer um pudesse fazer. Ele sentia que tudo, agora, acabaria muito rápido…


O menino ruivo manteve o sorriso aberto, para mostrar-se forte e não desanimar o outro, mas, naquele momento, ao coração, pareceu-lhe faltar uma batida...


quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Brandon


- Sempre fui bastante inseguro. Quando era criança, tinha graves problemas em tomar decisões. Tinha muito medo de errar. Questionava vezes e vezes sem conta, se estaria a fazer a coisa certa… sempre.

- Mas se não tomavas nenhuma decisão, corrias o risco de nunca acertar, tampouco… ou não?

- Pois…

Seu olhar foi-se perdendo na distância, como se as recordações tomassem, paulatinamente, conta de seus pensamentos. Falar de si não parecia ser uma coisa que estivesse habituado a fazer, com naturalidade ou qualquer abertura. Uma espécie de nostalgia pareceu pairar à frente de seu olhar. O passado, com certeza, não havia sido particularmente generoso com aquele homem de meia-idade.

Brandon era, na sua própria maneira, incomum e atraente, ao mesmo tempo. Era um homem atencioso e bem-humorado. Tinha uma noção deveras distorcida a respeito de si mesmo e era isso que o outro tentava perceber. Talvez não tivesse consciência que a aparência física deixa de ter importância, a partir do momento que as pessoas se conhecem melhor e que os próprios gostos diferem muito de uma pessoa para outra.

Sentados na esplanada de um bar, à beira-mar, os dois amigos bebericavam e conversavam, sem se olharem directamente. Um ponto, além do horizonte… era para lá que os olhos de ambos estavam voltados, distraidamente. O mais jovem, de cabelos claros e porte mais magro, riu-se, um tanto nervosamente, tentando deixar Brandon mais à vontade. Também falava pouco de si, mas não havia nenhum acanhamento naquela prosa informal. A maturidade, certamente, fazia bem a ambos.

Ele continuou:

- Eu sempre fui gorducho e, no tempo de escola, era constantemente vítima de ‘bullying’. Fingia que aquilo não me afectava. Para compensar, fazia de tudo para ser o palhaço da turma, contando anedotas e cantando nas festas. Com o tempo aproveitei-me destas ocasiões, meio que manipulando as pessoas, para tirar algum benefício. Às vezes cantava por guloseimas, outras por dinheiro… Era o queridinho das tias, que divertiam-se com minhas habilidades…

- E cantavas bem?

- Pelo menos tinha boa memória. Sabia todas as letras de cor…

Ele riu-se. Rir era nada mais que uma defesa, que aprendera a usar, para disfarçar um certo constrangimento, diante de certas situações. O outro fingiu que deixava aquela impressão passar incólume.

- E o que diziam as miúdas?

- As miúdas?

Respondia com uma pergunta, quando precisava de tempo para pensar numa resposta que lhe calhasse bem. Aquele assunto tornava-o retraído e um tanto vago. E não era para menos. Alvo da maldade dos colegas e dos irmãos, sua insegurança era mais que uma simples companheira. Era parte quase gritante de si.

O amigo, então, falou a ele, como se a uma criança:

- Sim. As meninas… as mulheres…

- Para falar a verdade, namorei muito pouco. Não era popular entre as mulheres… Acho que por razões mais que óbvias.

- Porque? Não existem razões óbvias para isso. Sabes muito bem que as pessoas têm gostos bastante diversos, umas das outras…

- Eu sei. Mas eu era gordo, feio, inexperiente e acanhado. Nenhuma miúda ia levar-me a sério.

- Bobagem. Sabes bem que isto não é verdade. E como, então, chegaste a casar? Afinal, encontraste alguém…

- Ela foi a única mulher que interessou-se por mim. Ria das minhas brincadeiras, convidava-me a sair. Trabalhávamos no mesmo local e almoçávamos juntos…. Não foi difícil, depois de algum tempo a andarmos sempre juntos…

- Mas não foi apenas uma forma de gratidão? Tenho a impressão que as emoções ficaram muito pouco profundas neste campo…

Hesitou um pouco, como se ficasse incerto de ser bem compreendido no que acabara de dizer, mas continuou:

- Claro que posso estar enganado…

- Achas que a maioria das pessoas casa por amor? Eu não tive muitas opções.

Ele calou-se.

O outro olhou-o com seriedade. Uma única mulher… numa vida inteira… parecia um estranho conto romântico da pudica era vitoriana. Era difícil perceber como Brandon havia vivido assim, até aquele ponto.

O breve silêncio foi, então, quebrado com uma súbita mudança de assunto.

- Acabo de saber que vou ficar, por aqui, mais dois anos.

A informação veio assim: solta, mas intencional. O homem mais magro ficou à espera de uma reacção. A pausa na conversa não chegou a incomodar-lhe.

O outro sorriu. E era um sorriso aberto… quase infantil.

- Então, não dizes nada?

- Não viste o tamanho do meu sorriso?

Os dois homens entreolharam-se. Seus olhares cruzaram e foi como se um nó fechasse a garganta do outro, que ainda conseguiu articular a pergunta, quase inofensivamente.

- Amigos para sempre?

- Mas sempre é tanto tempo…

Esperou que a troça, naquele comentário, fizesse algum efeito.

(A defesa… ah, a defesa…)

O outro levantou uma sobrancelha, como costumava fazer, quando desconfiava de algo ou desaprovava algum comentário. Ele soltou uma gargalhada. Havia atingido o amigo, que riu em resposta e voltou a perguntar:

- Então?


- Sim. Amigos para sempre!


terça-feira, 24 de setembro de 2013

Thomas




Faz, hoje, um mês que o conheci. Ele havia sofrido maus-tratos, sido expulso de casa, aos pontapés, por haver deixado cair, ao chão, umas pinguinhas de urina com sangue - resultado de uma infecção urinária, provavelmente devido ao stress a que esteve exposto - e fora recolhido por uma associação de protecção aos animais.

Cerca de três meses depois, estava a ler umas notas numa página da internet e vi a história do gatinho. Havia umas fotos, mostrando a carinha dele, no artigo, com um olhar distante e meio tristonho. Por algum motivo, aquela história deixou-me comovido e aflito. Ainda estava chorando a perda do Tiger e não conseguia entender como alguém podia fazer aquele tipo de coisas a qualquer bichinho que fosse. Eu havia tentado até o fim e feito tudo ao meu alcance, para que meu Tiger tivesse assistência até os últimos momentos de sua vida. Era-me estranho pensar que outros não fizessem algo parecido.

Entrei em contacto com as responsáveis da associação e perguntei a idade do bichano. Devia ter cerca de três anos, mas ninguém sabia dizer ao certo. Perguntaram se eu queria servir de família de acolhimento temporário (FAT) e ajudar a cuidar do animalzinho, por uns tempos, até que aparecesse alguém, para adoptá-lo oficialmente. Fiquei incerto e não disse sim, imediatamente. Depois de algumas conversas, combinamos que ele deveria vir para os meus cuidados, num fim-de-semana, de modo a dar-nos tempo de avaliarmos um ao outro por, pelo menos, dois dias completos.

Ele chegou numa transportadora flexível. Pelo que constava, não se sentia bem em viajar de carro, ficando bastante agitado no percurso. Já fora da caixa dentro da qual veio, ele começou a exploração do território, não sem antes avaliar-me, sem deixar tocá-lo, mas deixou-me uma boa impressão. Parecia um gatinho forte, apesar de um tanto assustadiço, mas com um jeitinho carinhoso de envolver-se e deixar-se apreciar. Já havia sido tratado e tinha um aspecto bem saudável e cuidado. Poucos minutos depois, aproximou-se e mostrou que estava pronto para um primeiro contacto. Ele deixou-se tocar e, para nossa surpresa, logo caminhou de rabo levantado, como se já sentisse incluso em território amistoso. Nunca demonstrou sinal de qualquer animosidade.

Quando fomos deixados a sós, decidi deixá-lo à vontade, para explorar todos os cantos e os recônditos do apartamento. Resolvi chamá-lo por Thomas. Uma capa de cor cinzenta cobre-lhe a parte de cima do pelo. A parte de baixo e as patas são de uma pelagem muito branca e macia. Seus olhos são verdes e sempre atentos a tudo, como em qualquer felino que se preze. Parece-se com Tom, o desastrado gato que persegue o camundongo Jerry – daí o nome cair-lhe bem.

Thomas tem seu próprio tempo. Ele é esperto e brincalhão. Sabe avaliar bem os limites, antes de tentar ultrapassá-los. Para um gatinho que havia passado pelo que ele passou, ser tratado com respeito e carinho é uma verdadeira dádiva. Ele é dócil e carinhoso. Não gosta de ficar ao colo, mas deixa-se ser afagado, quando aproxima-se, muitas vezes de propósito, a roçar-se nas minhas pernas. No início, talvez para sentir-se seguro, alimentava-se apenas quando me tinha por perto. Com o tempo, felizmente, tornou-se mais independente.

Ele aprecia música, especialmente quando a quietude da noite o convida a recolher-se e descansar. Que feliz surpresa!

Menos de vinte dias depois de tê-lo em casa, resolvi adoptá-lo oficialmente. Não conseguia imaginar outra pessoa a levá-lo para longe de mim, para sempre. Estava apaixonado, acho eu.

Levei-o ao veterinário, para avaliar suas condições físicas e confirmar se a infecção estava realmente curada. Tive a resposta positiva e voltei para casa, aliviado e satisfeito.

Ele já fazia parte da minha vida, que acabou tomando um rumo que eu não esperava, pelo menos assim tão cedo. Ganhei um grande companheiro em Thomas. Tenho certeza que este é o início de uma grande amizade.

Às vezes, como hoje de manhã, enquanto olho para o gatinho a fazer gracinhas no tapete da sala, comovo-me a pensar no que ele passou, no que sofreu, nos medos que teve… até chegar aqui, neste tempo e neste lugar, junto de mim… e não contenho as lágrimas. Não tenho de as conter, para falar a verdade.

Só penso que o pesadelo deste ser quase indefeso está no fim. Tudo que ele precisava era um pouco de atenção e outro tanto de autêntica afeição. Em mim, tem ambas e, ainda, muito mimo. Ele já é muito estimado, com certeza, e sabe disso. Seus olhos, de um lindo tom luminoso de verde, olham-me assim, de uma maneira enigmática, demonstrando afeição e, talvez, gratidão, quando aproxima-se e faz um cumprimento com a cabeça, pedindo um chamego.

Afago-o, passando a mão pelo corpo forte do bichano e ouço seu ronronar satisfeito. O pelo macio brilha com a luz e eu digo-lhe, baixinho, com a voz emocionada:

- Olá, filhote… está tudo bem, agora… Você é muito amado, sabia?

Ele fecha os olhos, devagar, numa demonstração de confiança, como se dissesse, no seu jeito meio estouvado e adorável de ser:

- Eu sei, amigo… eu sei…


sábado, 21 de setembro de 2013

Other Studies in Red and Blue - Epilogue



- She was with me. When the phone rang, she made an excuse up. She had to... She felt guilty, but there was nothing else she could do at that time.

- She would not do that to me...

But a twinge of doubt and pain made way in the young man’s mind.

- But she did. She was needy and the opportunity simply showed up. All people are like that. Don’t try to fool yourself... you know it very well...

Misha smiled. And his smile seemed extremely sarcastic.

- Why are you doing this?

- As I have already said, to prove a point. Things and people are not what they seem to be.

The boy was visibly affected by the news and almost dropped the dishes that were collected from the table, a few moments before. He felt lonely, betrayed... and used. A huge weight fell upon his shoulders and he felt suddenly tired. He turned around to go towards the kitchen when the other man asked him:

- Bring me one of those cream pastries that look so fresh and tasty, please. I suddenly felt an urge to eat one of them.

Misha smiled again... a large and misleading grin, as deliberate as his studied seductive performances.

That grin seemed to be a mocking taunt to the other man, who left without saying anything else.

- Fuck the cream pastry...

The uncensored expletive came out of his mind, as he took the dirty dishes to the kitchen of the Café. Someone else could take charge of serving him the cream pastry...

(You damn motherfucker!)

***

- I felt so bad and so guilty. I was weak and let me take by a situation that could easily be avoided.

- You were needy and insecure...

- That does neither decrease my responsibility nor guilt. I was so dumb! Look at what that situation turned out to be...

The therapist tried not to laugh at her argument.

- Blaming yourself will not solve anything or bring anyone back. You know that.

- I know. I know it very well...

- So accept it and go ahead. Concentrate on what is important at this point in time...

- On the death... and the mystery left yet to be solved...

The woman's eyes seemed to take her away from where she was. The therapist noticed a frown, as if the woman was seeing something she had not noticed before...

***

- How did he know?

The woman, visibly annoyed, showed a message on the phone display: “It hurts. So very much! "

- I don’t know. Why do you think I have anything to do with it?

- Don’t be so despicable, Misha. What did you tell him?

- I told him I could stop his pain... if he allowed me to...

- What?

- But he wouldn't listen to me. He said he didn't want anything either from me... or with me...

- Are you crazy or what?

- Why? He was a very interesting young man...

Misha laughed. He was teasing the woman, who seemed not to like a bit of that joke.

- Don’t be disgusting! He is none of your kind!

- Oh, isn't he?!? Are you sure about that? You better not bet he was indifferent to the kiss I gave him...

She raised her hand and was going to give him a resounding slap, but he was quick enough to hold her wrist, before his face was hit. He came very close to her face and laughed. He looked into her eyes and said, slowly:

- I would have as much fun with him as I had with you. Those sad little eyes would have a joy that he had never imagined he could have... but he... refused it before getting to know it.

- Let me go, you pig...! Idiot Asshole!

She lifted her knee in a defensive gesture and hit a very soft sensitive part, right up between his two legs, making him lose control and fall to the ground screaming and writhing in pain.

- Bitch!

- Go to hell, you fucking prick!

The woman went, furious, out of the door. Her chest was heaving, full of disgust and revolt, leaving the offender still laying in the middle of the living room.

When she was crossing the threshold and pulled the door behind her, she still could hear a moan of pain mixed with a laugh of derision, from the blond boy with blue eyes, as deep as the Pacific Ocean, but with the soul as futile as that of a fallen angel.

- You're gonna pay for this...

***

- What do you want here? Go away!

- I brought you a bottle of the best Russian vodka there is. It helps relieving the pain.

- Why do you think I want something that comes from you? Have not you done enough harm? Aren’t you happy yet? Do you have to destroy everything you touch?

- Let me come in and we speak.

He opened his studied smile and held the boy's arm that was blocking his entry into the small apartment where he lived. The other responded immediately.

- Get out of here!

He raised his fist and punched against the void, because Misha managed to dodge quickly and took advantage of the moment almost immediately, hitting the other man’s chest with his open hand. The boy lost his balance and fell over the leg that Misha put purposefully on the way. Half body lying inside the apartment was enough to allow him to enter without difficulty, with the bottle of vodka in hand. The door closed, as soon as the other stood up, still half bewildered.

***

- It's best you come here urgently... I think we were quite mistaken.

- How so? Mistaken?

- The autopsy results are ready. The cause of death was, definitely, not what we thought it was, initially.

- I'm on my way.

The woman hung up and got in the car. She was awfully apprehensive. Thousands of unanswered questions were boiling up in her head, while she was driving, almost instinctively, to the police lab.

Through the car window, the images went by in a live slideshow, while in her mind the impressions, sensations and feelings trampled down, as if to manifest themselves all at once.

Shadows... Children running... Afternoon Sun... Trees... Glass and concrete walls... More shadows... Parked cars... Girls, dressed in school uniforms, laughing out loud... Traffic... Red tail lights... Blue sky... pain... Avenues... Steel, concrete and glass... sharp angles... corners and intersections with red lights... blood... Death... Suicide? Homicide...? Accident...? Why?

***

- We'll never prove it was murder, detective. The level of alcohol in his system was way too high. Do you see this mark?

She nodded, seeing the mark of a hit on the side of the dead boy’s head. The doctor pointed at a large injury caused by a sharp angled surface, like the corner of something.

- He fell, hit his head while falling down and plopped down on the pavement. We found a spot of blood on one of the balconies of the fire escape. By the way, it is more than just a theory. One cannot know, however, if there was any intervention from someone... if he was pushed off the balcony or something. There is no evidence in the body, which shows that. I searched every little inch of the corpse but found nothing. We will never know the truth, from what I could figure out...

But something told her that someone had more to do with the fact, than the evidence could scientifically demonstrate.

***

When the woman got in the “Temple", it was already late afternoon. The light inside the great hall brought her memories of a time that seemed suddenly so distant. A strange nostalgia made she look at it all with different eyes. She was now just a police investigator in search of answers. And she was not convinced of the innocence of anyone... not even of herself...

She went to the bar, in the centre of the place and asked the servant, who was an old acquaintance or hers:

- Have you seen Misha lately?

- It’s been some time since he last came here. Some say he went back to where he came from, but who can say for sure?

***

Sitting by the tiny window, the young man with blue eyes stared out, attentive to the movements on the airport tarmac lanes. He feared that at any moment the police would break into the aircraft and take him to the interrogation room. Although the inside temperature was set to about 21 degrees, Misha was sweating.

When the doors closed and locked and the plane reached a high speed and took off, leaving behind the land where he lived for good many years, Misha closed his eyes and exhaled, relieved.

In his eyes, the image of the young man, visibly drunk and frail, sitting on the floor of the room was still quite vivid. His arms were entwined around those shoulders, while the other cried in anguish, like a child. Misha took advantage of the moment, pulled the other’s body closer to his and gently kissed his lips. The boy did not reject him. He let himself go for a few seconds...

- Your lips are even sweeter and softer than hers...

The young man pushed him away angrily, rubbing his sleeve over his mouth. Disgusted, both by what he had done, as by what he had heard, he walked out of the door to the balcony. Misha followed, acting naturally, as if it were the most ordinary thing in the world.

- There is nothing wrong with that. It was only a kiss...

- Get away from me. Aren’t you happy with all the harm you have caused? Do you have to destroy everything you touch, to the tiniest detail?

Misha reached out, but the other reacted with violence and disgust. He insisted on approaching the drunk and angry man. When trying to get away without being aware of exactly where he trod, the boy tripped over a small step and lost his balance, banging against the iron fence that protected - very badly - who were on the small balcony. The effect of alcohol prevented him from holding up, made him lose control and fall... down from the balcony of the fifth floor, against the cold, hard cement of the sidewalk, hitting during the fall, a corner of the fire escape. A pool of blood began to flood around the area where the boy's head hit the floor.

Misha opened his eyes. The flight attendant came down the aisle with the beverage cart.

- Do you want a drink, Sir?

- Yes, please. Vodka.

- Ice?

- No. Plain!

***

It was late afternoon. Leaning on the 'guard rail', the woman looked, without actually seeing, a distant point beyond the other side of the river, where a strange building with tinted windows stood, distinguishing itself from the other edifices around. The wind that blew against her face and her hair dried the bitter tears she had just cried.

A gnawing pain grew inside her; mercilessly... the pain mingled hatred, remorse, longing and helplessness in the face of life's greatest nemesis: death itself. The therapy had helped her survive that phase of loss and guilt, but failed to make her stop thinking about the big mistake she had made.

In her head, the memory of that last night was still very much alive. The details she remembered and relived countless times. The memories were as sharp as if they were happening at that moment. She closed her eyes. A slight noise made her turn her head.

- Sorry. Do you know where the “Temple" is?

She turned her head automatically. Almost without realizing it, she looked directly into the young man’s blue eyes. He was standing beside her, wearing a red t-shirt and displaying a strange smile on his face... The feeling of butterflies flapping wings in her stomach, gave her a warning sign she decided ignore.

The man repeated his question:

- Do you know where the “Temple” is?

She simply replied, smiling:

- Yes, I do know...