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sábado, 12 de novembro de 2016

Revisitando Dragões (Parte 1 - Despedidas e Reencontros)


As belas escamas verde-azuladas refulgiram contra o firmamento, pouco depois que o enorme dragão alçou seu voo, da clareira ao pé do laranjal.

O velho homem fica a acompanhar, com o olhar, seu sensato e alado amigo, que vai desaparecendo, na tranquilidade do céu de Verão, enquanto ganha, aos poucos, a distância.

O homem sorri, um tanto tristemente, já com uma certa saudade a contundir seu peito e leva a mão à bolsa de couro, cuja alça lhe cruza o peito. Com as pontas dos dedos ele apalpa umas poucas frutas que lá se encontram e sente-se, de uma maneira estranha, confortado.

Atrás de si, um menino, de não mais que nove anos e um outro homem, adulto, também observam a trajetória alada do dragão, que vai tornando-se quase invisível, entre as finas nuvens, que mais parecem flocos de algodão, a decorar a larga abóbada azul celeste, aberta sobre suas cabeças.

Um fino fio de fumaça sobe do meio da clareira e dispersa-se no ar. O velho não sabe se lamenta ou se regozija com aquele momento em que suas vidas devem voltar ao normal, ou, pelo menos, o mais próximo possível da normalidade. Os últimos tempos passaram por sua mente e ele, apesar das dificuldades que superou, sentiu uma certa nostalgia.

Ele havia mudado, com toda a certeza. Já não era nem parecido com aquele homem que chegara há muito tempo a aquele lugar, cansado, derrotado e com mais que seu orgulho profundamente ferido, além de uma grande cicatriz a marcar-lhe o peito e a lembrar-lhe de sua condição de ser humano frágil e vulnerável.

A magia daquele lugar pareceu-lhe, de repente, haver desaparecido de vez. Restava-lhe a magia da vida e as surpresas que o existir pode, eventualmente, esconder. O som dos regatos gémeos, a correrem muito próximos, fê-lo sentir-se cansado e, ao mesmo tempo, relaxado.

O velho despediu-se do homem e do menino e caminhou para aquilo a que conseguia chamar de lar: uma caverna adaptada, com um despojamento evidente. Ele, na verdade não precisava mais que aquilo, mas decidiu que ia construir um casebre simples e nele viver, como um fazendeiro normal.

No meio da clareira, onde as cinzas de uma certa laranjeira ainda cobriam o chão, ele elevou seu novo lar, pacientemente e sem pressa nenhuma, por semanas a fio.

Quando reinstalou-se, sentiu que sua vida anterior fosse apenas uma memória, que ficava cada vez mais distante e nebulosa. Ali era, agora, seu lar e era onde ele sentia-se mais aconchegado e seguro, mas o velho sentiu que, com aquela decisão, ele estava, na verdade, a plantar, em definitivo, suas raízes. Até bem pouco tempo atrás, esperava ansiosamente pelo momento em que iria voltar para sua vida de cavaleiro. O tempo passou em seu ritmo próprio e ele sentiu que estava mais próximo da vida de agricultor que de cavaleiro, além de já não ter forças nem ânimo para combates, banquetes ou a vida fútil que outrora vivia. De uma certa forma, sentia-se mais útil e ligado a aquele lugar, do que em qualquer outro, mas sentia a falta de algo, que ele não sabia descrever.

E veio a noite mais escura do ano.

E ele pôs-se a pensar e sentiu falta de seu amigo alado. A grande cicatriz latejou no peito. Ele tentou ignorar, mas não conseguiu. Tentou dormir, mas não sentia sono. Resolveu levantar-se e apanhar um pouco de ar.

Lá fora, uma brisa fresca trazia o perfume das folhas e frutas do pomar que lhe dava sustento. Ele aspirou o ar lenta e profundamente. A vida daquele lugar pareceu pulsar-lhe como sangue nas veias. Ele foi à beira do ponto onde os dois regatos gémeos uniam-se e lavou o rosto com a água fresca e límpida. A cicatriz latejou novamente. Ele passou a mão molhada pelo peito e sentiu um pouco de alívio. Fazia tempo que ele não experimentava aquela sensação. Sentou-se sobre uma grande pedra, como já havia feito tantas vezes e ficou a olhar a escuridão à sua frente, ouvindo o som tranquilo das águas dos regatos.

Estava perdido em suas tantas recordações, quando ouviu um som atrás de si. Seus sentidos entraram, imediatamente, em alerta. Pensando ser um animal qualquer tentando chegar à água, ele voltou-se e esperou em silêncio.

A noite sem lua, escura como breu, não permitia que ele visse nada, mas tinha a forte sensação que não estava só. Seus ouvidos treinados, atentos, tentavam distinguir algum sinal.

Silêncio… Nada mais que um tenso silêncio na escuridão da noite. Ela não podia ter-se enganado… Será que seus ouvidos o enganaram? Era apenas mais um sinal da idade? Ou seria um desejo e um delírio de nostalgia?

Ele resolveu que deveria voltar para casa. Se fosse mesmo um animal sedento, ele deveria deixar o caminho livre e permitir que a vida levasse seu curso normal, sem que ele assustasse um ser vivo em necessidade. O regato não era seu. Ela não tinha o direito de impedir a vida de continuar.

Saltou da rocha e começou a caminhar de volta, convencido de estar enganado e disposto a tentar dormir. O perfume das laranjas era familiar e evidente. Ele sorriu e apressou o passo, sem olhar para trás.

Quando pisou no alpendre, ainda voltou-se um pouco e tentou ouvir os sons da noite.

Nada.

Ele entrou na casa e acendeu uma lamparina. Seus olhos pousaram sobre a fruteira no centro da mesa. Uma laranja muito dourada, que ele conhecia muito bem, jazia por cima das outras. Ele sabia que não a havia posto ali. A fruta era perfeita e parecia reluzir. Ele levou a mão à fruteira e apanhou a grande laranja.

Mais por instinto que por necessidade, ele abriu-a e comeu a metade da mesma. O sabor muito peculiar, doce e ácido, trouxe-lhe memórias, que estavam adormecidas há muito. O homem sorriu. Sabia o que estava fazendo e as consequências daquele ato aparentemente inocente.

Foi então que ele ouviu um ruído pouco familiar atrás de si. O chão pareceu estremecer por baixo de seus pés descalços e ele sentiu o corpo ficar tenso, como se pronto a  lutar, como no seu passado… pela própria vida...

Ele olhou para trás e viu, através da porta aberta, dois grandes fachos de luz amarela a refulgirem na espessa obscuridade daquela noite singular. Seu coração deu um salto e ele correu para fora.

- Olá, meu bom amigo. Senti saudades tuas...

O animal piscou, lentamente, seus grandes olhos amarelos e aproximou-se do homem, abaixando a cabeça para ser tocado, como se fosse o cumprimento mais natural do mundo. De facto, entre eles, era…

O velho estendeu a mão e deu a outra metade da laranja ao dragão, que comeu-a de imediato. A magia daquele encontro não programado começava naquele momento…

***

- Há uma força poderosamente maléfica agindo no Universo, neste momento. Aquele menino corre grande perigo e nós temos que protegê-lo a todo custo.

- Mas, por que ele? É apenas uma criança…Tem pouco mais de oito anos…

- Porque ele conhece o poder dos dragões. Como foi medicado com as lágrimas de cada um dos sete e com uma gota do meu sangue, a magia faz parte dele, desde então. A energia que está a crescer naquela criança é inimaginável, embora ele ainda não tenha consciência disso, mas o grande dragão pardo sabe muito bem e, por isso, pretende destruí-lo, antes que ele se torne mais poderoso ainda, com o passar do tempo…

O velho olhou o amigo, muito seriamente. A lembrança clara do momento em que foi revelado ao menino o valor que ele tinha para os dragões, veio-lhe como um raio. Uma boa dose de melancolia fisgou-lhe o peito, onde uma cicatriz marcava o desfecho de uma batalha antiga.

No meio do laranjal, o dragão verde-azulado dirigia-se ao menino.

- Este é o nosso outro presente. A água que tu tomaste, ali na clareira, antes de vires para o laranjal, continha uma lágrima de cada um de nós. Sete lágrimas foram adicionadas àquela água, para te proteger. O óleo que foi usado na massagem em tuas pernas contém raspas de dentro do casulo que gerou o dragãozinho negro, que simboliza a força de espírito e uma gota do sangue do dragão que representa a esperança… Nós nos referimos a ti, particularmente, como “o guardião” e temos muito orgulho de assim te chamar.

A mente do velho homem voltou ao presente...

- Ele tem que saber disso. Como vamos protegê-lo?

- Pensei em muitas hipóteses, mas ele precisa ser treinado. Ainda tens a armadura?

- Deixei-a na caverna… para o caso de necessidade… mas o tamanho é muito grande para ele…

O dragão encarou o velho homem e falou, muito gravemente:

- Dá-se um jeito. Esta é, definitivamente, uma necessidade…

O homem balançou a cabeça, afirmativamente. Os novos desafios e perigos apenas começavam para aqueles personagens cujas vidas estiveram, sempre, tão interligadas entre si.

- Vou buscar a armadura e a espada…