domingo, 23 de fevereiro de 2014

Semestrados...


- Senta, Thomas.
Ele olhou-me com seus olhos grandes e magnificamente verdes. Não tinha dúvidas sobre o que eu queria, mas esperava que lhe confirmasse. Eu repeti:
- Senta, Thomas.
Ele sentou-se sobre o tapete aos meus pés, enquanto eu preparava o nosso desjejum. O som do pequeno pires de porcelana sendo colocado sobre o granito da pia havia chamado sua atenção. Aquela era parte de sua rotina matutina. Ao ouvir o tilintar da porcelana contra a pedra, ele muda a atenção de sua tigela de ração e vai até o tapete, a esperar pelo miminho, que sempre ganha. Sentado a ouvir o som conhecido da colher a mexer o iogurte, ele não move os olhos de mim, sabendo que uma pequena porção vai ser-lhe dada no pratinho branco, decorado com o símbolo conhecido de um galo português. Ele recebe com satisfação, come até não restar nenhum vestígio e volta à sua ração habitual.
Ninguém diria que em apenas seis meses, estaria tão ambientado à minha vida e aos meus hábitos, como se fizesse parte dos mesmos desde sempre. Aquele gato, cuja triste história comoveu-me no princípio, havia-me cativado completamente, fazendo-me perceber que fora mais fácil que eu esperava, tornarmo-nos parceiros de luta. No fim-de-semana passado havia dado um sinal de confiança que não fizera antes. Deitara-se sobre minha barriga, comodamente, enquanto eu lia, deitado no sofá.
Vindo da criatura que, aos poucos, tivera que ultrapassar alguns traumas que eu desconhecia completamente, aquela era uma demonstração de progresso na relação que vinha sendo construída aos poucos, com muita paciência e perseverança.

Thomas é um gato excepcionalmente inteligente e tem uma percepção bastante aguçada do ambiente que o rodeia. Sabe bem que confiança tem de ser conquistada e precisa estar muito seguro de que não corre nenhum perigo, antes de deixar-se levar por quaisquer demonstrações de afecto.
Desde o dia em que entramos em contacto, pela primeira vez, o gato de aproximadamente dois anos, havia sido respeitado e tratado como um hóspede da casa. E como tal havia-se comportado, pelo menos no começo. O tempo deu-lhe segurança e confiança, mas como fora adoptado já adulto, reagia de maneira desconfiada, cada vez que enfrentava uma situação nova. Não consigo imaginar o que sofreu, antes de ter seu lugar na minha vida, mas garanti-lhe que estava totalmente a salvo, comigo, dali para frente.
Eu, agora, já não troco, distraidamente, seu nome. Um sonho que tivera deu-me um sinal que eu precisava. Tiger deitava-se numa sala separada, confortavelmente, enquanto Thomas estava em outra, também deitado confortavelmente.
‘Somos dois animais bastante diferentes e, portanto, nos comportamos diferentemente’.
É como uma relação nova. Muitas vezes há a inevitável comparação, mas os indivíduos não são os mesmos, nem se comportarão da mesma forma. Era isso que Tiger vinha me dizer no sonho.

Thomas é muito diferente do seu antecessor. Desde a forma física, cor da pelagem e dos olhos, até a forma como se acomodou na minha rotina e eu na dele. Ele não é melhor, nem pior; é diferente e é, também, único. E eu tenho que reconhecer que estou muito feliz de tê-lo comigo... sem nenhum tipo de comparações desnecessárias.
Seus hábitos são simples e fáceis de perceber. Ele espera-me, todos os dias, à porta, ao final do dia. Segue-me ao quarto, onde deleita-se com os carinhos que lhe dou, uma, duas, três… sete vezes... a passar de um lado para o outro, em cima da cama, assim que desfaço-me dos sapatos e do casaco. Depois cheira-me a cabeça, o rosto, o pescoço e dá-me sua cabeça para cheirar.
- Vamos comer, filhote?
Ele percebe logo a mensagem. Segue-me à cozinha, onde recebe a sua porção de ração, come enquanto eu preparo minha refeição e, logo em seguida, fica disputando atenção com minhas tarefas. Por cerca de uma hora, ele corre, brinca com umas bolinhas de papel alumínio amassado, revira os tapetes, sobe na mesa da sala, para beber água do frasco que lá é posto, propositadamente, desloca o rato do computador para o lado, de modo a sentar-se sobre meu braço, ou fica a provocar-me de uma das cadeiras, espiando por baixo do tampo transparente da mesa e dando-me patadas nas mãos, para ganhar carinho, um cumprimento, ou alguma conversa.
Passado o frenesi diário do reencontro e do dispêndio de energia acumulada, ele acalma-se e deita-se no tapete ou no sofá, especialmente se estiver a ouvir música. Estes rituais repetem-se nos dias de semana e, muitas vezes, aos sábados também. Aos domingos, como já era de esperar, sente falta do sono que não usufruiu no dia anterior e dorme a tarde inteira, em algum lugar quieto e escuro, como dentro do armário, em baixo da cama ou outro nicho qualquer, que ele encontra ou cria.
Geralmente não mia, não reclama, não faz sons estranhos. Excepção se dá quando tem de ir à clínica veterinária, pois não gosta de viajar de carro. Algum trauma anterior? Não tenho a mínima ideia...
Seu ronronar é muito suave e quase imperceptível. Seus olhos, porém, estão sempre muito atentos, assim como as orelhas. Às vezes, quando tudo está em silêncio, ouço um ressonar baixinho vindo de onde ele dorme profundamente. Dou uma risada discreta, feliz por saber que está tão relaxadamente confortável no ambiente que lhe é, agora, tão familiar e que é, também, sua casa.
Como um bom animal de companhia, Thomas normalmente está perto de onde estou, como se quisesse ter a certeza que estou protegido por sua presença. Como um pai adoptivo, eu preocupo-me em saber se ele está bem aconchegado, alimentado e tranquilo, ou se as suas inúmeras bolinhas de brinquedo já não estão acumuladas em baixo do sofá da sala.
Recentemente aprendeu a responder convenientemente, quando eu digo:

-‘Bom dia, gato. Estás bem?’

Ele levanta a patinha direita em altura suficiente para que eu o cumprimente com um ‘aperto de mãos’ e olha-me com uma carinha engraçada.
Thomas dá-me suporte. Dá-me alegria. Dá-me companhia e ensina-me a ser paciente, condescendente e, ainda por cima disto tudo, tornou-me extremamente emocional.
Neste momento, está deitado no sofá, 'envelopado' no cobertor, como se fosse uma chamuça de gato, a ouvir música e a dormitar confortavelmente, sem saber que estou a escrever uma homenagem/agradecimento à sua presença nesta casa e na minha vida, sentindo meu coração leve e aquecido, por tê-lo aqui comigo.

Vê-lo assim, faz-me ter certeza que adoptá-lo foi a melhor coisa que eu fiz por nós dois... sem dúvida nenhuma.

domingo, 9 de fevereiro de 2014

Confissão


A estreita porta de madeira com duas fileiras de vidros foscos coloridos, na parte de cima, foi empurrada para dentro com pouco esforço. Era uma daquelas portas de vai-e-vem, que abre para dentro e fora e ficava numa das laterais da entrada principal. O homem entrou e fez o sinal da cruz, em sinal de respeito ao que via no final do corredor central.

Uma imagem de São José com o menino no colo, em madeira esculpida e colorida, em tamanho natural, estava colocada no alto da parede por trás da mesa disposta no centro do altar. O santo olhava com bondade para os fiéis que instalavam-se abaixo de sua presença. Era esta a impressão que ele tinha, desde que entrara na igreja, há muito tempo atrás. Voltar ali, era como reviver o passado… mas não era por isso que ele estava ali. 

O cheiro característico da madeira encerada misturava-se com as lembranças e com o som dos ecos de seus passos, enquanto caminhava pelos corredores da grande nave. Ele queria e devia estar sozinho. Precisava daquilo. Expirou, como se a absorver algo do ar à sua volta.

Havia alguma coisa de sagrada naquele ambiente, antes visitado mais frequentemente. Engraçado como as igrejas não cheiram a detergente, nem à poeira, nem mesmo à fumaça dos incensos, apesar do uso constante deles: cheiram à santidade... Era este o cheiro que ele associava às igrejas.

O piso de granito decorado e gasto dava-lhe a sensação de solidez – uma impressão de segurança que ele sentia quando lá estava.

Quando era mais jovem, o homem gostava de sentar-se em silêncio, sozinho, nos bancos longos de madeira escura, sentindo uma pseudo-paz, uma tranquilidade protegida do mundo lá fora. Ele parou a meio caminho e sentou-se num deles.

***

Lembrou-se do dia em que ouviu o silêncio, na pequena capela do seminário onde fazia retiro espiritual. Ele fechou os olhos e viu-se sentado, sozinho, na minúscula capela, ao entardecer.

Não havia luzes acesas; apenas a iluminação natural, que vinha pelos vitrais. Havia saído da confissão e queria estar só. Ele esvaziou a mente e ficou quieto. Fechou os olhos. Quase sentia um nada a abraçá-lo, envolvendo seu corpo e mente.

Foi então que ouviu, muito baixinho, quase imperceptivelmente, a música que vinha de algum lugar, tomando conta de tudo à sua volta. A nona sinfonia. O hino da alegria. Somente pode ouvir porque estava totalmente quieto, quase sem respirar. E ele se tornou o silêncio e a música, como se não tivesse corpo físico.

Sentiu uma espécie de êxtase… uma leveza na alma… até ser interrompido…

***

Olhou para a construção à sua esquerda. Um impulso fê-lo levantar-se e dirigir-se até o pequeno confessionário, protegido apenas por uma cortina de tecido de um tom muito escuro de roxo, onde entrou e ajoelhou-se.

- Padre, dai-me a vossa bênção porque pequei…

- Filho, esta fórmula já não se usa há muito tempo.

- Oh…

- Há quanto tempo não te confessas?

Realmente. Ele já nem lembrava bem de quanto tempo fazia… Havia sido às vésperas do casamento, há bem mais de vinte anos atrás? Provavelmente sim…

- Mais de vinte anos, padre… a última vez foi quando eu acreditei numa grande mentira: que estaria unido até que a morte nos separasse…. Bom, foi uma verdade, até certo ponto: a morte do que nos unia, pelo menos… Masturbação ainda é pecado?

O padre riu. Uma mudança no assunto que trouxera o outro ali não era estratégia que ele apreciava. Ele olhou  para o lado. Pela grade, semiencoberto pela tela de protecção, o rosto do homem era apenas uma silhueta de perfil indefinido. Um pecador. Um crente ou um desesperado?

- Eu nem sei por onde começar… já custou-me muito chegar até este ponto e ajoelhar-me no confessionário, depois de tanto tempo…

***

O rapaz, sentado numa cadeira simples de madeira envernizada, avaliava suas faltas, em uma conversa de frente a um dos padres, que havia sido designado a ouvir as confissões dos jovens participantes do retiro espiritual de três dias, sem contacto com a civilização fora do prédio de pedra, no cimo do barranco, de frente para o mar aberto. A ingenuidade dava-lhe um certo ar de santidade e sua sensação de culpa por faltas tão menores, uma infantilidade adorável. Os cabelos castanhos muito claros, quase aloirados, caiam-lhe em cachos até quase a altura dos ombros, emoldurando a pálida face, que não escondia um olhar entre o perdido e o triste. O padre pensou que havia ali uma história duramente vivida, apesar da tenra idade.

 -…E é essa a história. Apenas nos encontramos, conversamos, ficamos juntos…

- Então ela só precisava de um pouco do carinho, que já perdeu ao longo de anos de convivência e rotina no casamento… Não é certo, mas não me surpreende. Aconselho-te a tomar bastante cuidado.

- Eu sei.

Mas, na verdade, não sabia…

***

- E o que te traz aqui, hoje, depois de vinte anos, meu filho?

Os padres têm a tendência de chamar-nos de filhos, não importa a idade que tenhamos. Será que isto faz parte do aprendizado no seminário? Ele pensou no motivo. Não havia realmente um motivo, havia? Ele nem ao mesmo sabia porque procurara abrigo num lugar que não frequentava há tanto tempo. Alento? Provavelmente também não. Devia ter procurado a psicóloga, antes...

O silêncio foi interpretado pelo padre como um sinal de culpa.

- O que o aflige?

- Sinto um vazio, padre. Um imenso vazio…

- Há quanto tempo não buscas a Deus?

- Desde que perdi a fé.

- Se a tivesses mesmo perdido, não estarias aqui… agora…

Ele ouviu e ficou em silêncio por uns segundos. Ia argumentar, mas o padre foi mais rápido que ele.

- Tu não precisas acreditar em todas as coisas. O próprio papa resolveu revelar alguns segredos e olha que está a ser muito criticado, tanto pelos fanáticos quanto pelo próprio clero. A fé, na verdade, não tem religião. Tu tens idade e percepção suficiente para entender o que digo.         

- Sim, padre. Eu compreendo bem. E um pouco do meu afastamento se deve aos meus questionamentos à acção da igreja, especialmente à nossa. A história e a ciência descobrem muitas coisas que estavam escondidas, por trás de muita hipocrisia e manipulação do clero, desde antes da idade média…

- Os tempos estão em mudança. Os fanáticos vão-se escandalizar. Eu mesmo estou ansioso para que estas mudanças venham logo, mas considero que é bastante delicado e até perigoso. O papa tem que ser muito forte, porque ele vai enfrentar muitas correntes contrárias à todas estas revelações.

O padre respirou fundo. Talvez pensasse que estava a falar demais. Não era sempre que encontrava alguém com discernimento suficiente para desafiar suas faculdades e discutir abertamente o assunto. O homem retomou o fio da conversa.

- A própria concepção de pecado mudou, não mudou?

- O mal existe. O pecado existe. A intolerância, a falta de respeito, a inveja e o rancor, a falta de consideração e de humildade… todos estes são, por assim dizer, pecados, que nos rondam todos os dias. Não falemos de matar ou prejudicar a vida dos outros, intencionalmente, nem de vinganças a ferro e fogo, porque estas são faltas bem mais graves e até mesmo pelo ponto de vista do estatuto dos homens, são puníveis pela lei. Os tempos modernos revelam crimes hediondos que nunca poderiam sequer ser imaginados há algum tempo atrás. A crueldade e a manipulação tomaram proporções que tornaram-se quase incontroláveis…. Ou não… O grande erro é que nos acostumamos a ver o mal à nossa volta e não fazemos nada. Com o tempo, aquilo torna-se normal…. Algumas vezes até aceitamos o que não admitíamos antes.

- Padre, nenhum destes motivos me trouxe aqui. Minha consciência está tranquila em relação a isto… O que eu faço com a frustração e a decepção?

- Só as sentes quando tiveste expectativas demais, meu filho. A culpa não é exatamente de quem te decepcionou. Não foste tu que esperaste demais?

- Talvez… E a raiva? E a inveja? E a desconfiança?

O padre nem precisou pensar para responder. Estava bastante acostumado com as pessoas e suas perguntas, nos muitos anos de profissão. Aquela era uma das mais recorrentes.

- São males que matam devagar… mas somente a quem os sente. É como se tu ingerisses um forte veneno e esperasses que outra pessoa morresse. Não faz muito sentido… quem morrerá, aos poucos, serás tu… Sentes solidão?

Ele lembrou-se da estranha conversa que teve, uma vez, com Akis.

***

- Eu preciso tirar umas férias, para ficar sozinho um pouco. Já sinto falta disso…

- Para ficar sozinho? Tu já não ficas só por tempo demais?

- Claro que não, senão não precisava ficar mais…

- Ninguém pode ficar mais sozinho do que um máximo admissível. Se o limite máximo que se consegue ficar, seja, digamos, do tamanho de um pacote de cigarros, não se pode exceder este limite. Não adianta querer colocar mais do que cabe dentro dele, nem que este pacote aumente de tamanho…. É simplesmente impossível! Como é que tu queres exceder o máximo exequível e tolerável?

- Eu simplesmente preciso, Akis. Ficar sozinho me devolve a sanidade.

- Tu me tiras do sério, sabias? Há vezes em que tenho vontade de te bater…

Ele riu. O outro desistia de argumentar, diante da teimosia irritante dele.

***

- Não, padre. Não sinto solidão. Às vezes sinto um vazio… às vezes, muita vontade de chorar… mas nem sei, ao certo, por que a tristeza me abraça de quando em quando e faz-me sentir assim desolado…

- E o que fazes?

- Choro… que mais poderia fazer?

Os joelhos doíam-lhe. A cabeça também.

-Tenho de ir, padre.

- Não disseste a que vieste…

O homem levantou-se, sem responder. Vontades contraditórias de matar ou morrer invadiam-lhe os pensamentos. Atravessou o corredor e saiu pela porta, sem olhar para trás. O padre esticou a cabeça branca para fora do confessionário e ficou a olhar o homem a caminhar para fora da igreja.

Não viu quando ele atravessou a rua, sem olhar para os lados… Ouviu apenas o som repentino de uma longa e brusca freada e um som surdo, como de algo sólido a bater contra algo… ou alguém…

Não demorou muito a correr para fora e deparar com o corpo ensanguentado do homem, na rua em frente da igreja, em meio a uma dezena de curiosos, que já se acumulavam no local. O olhar parecia haver sido congelado num ponto à sua frente. Parecia tranquilo, entretanto…


O padre fez-lhe o sinal da cruz na testa e recitou uma fórmula conhecida, fechando-lhe, com cuidado, as pálidas pálpebras…