domingo, 28 de janeiro de 2018

Pelo Litoral (Parte 3)


Decididos a cumprir rigorosamente a ordem de não deixar vestígios, os seguranças arrastaram os dois prisioneiros para fora do edifício e os fizeram entrar na carrinha branca. Sob a mira das armas, os dois rapazes não tiveram como tentar escapar naquela ocasião.
***
O homenzinho estranho sentou-se de frente para o outro, não tão dissemelhante dele, na grande sala instalada no segundo andar do moderno prédio, cuja fachada diferia muito do bem-arranjado jardim, construído nos fundos da propriedade.
Os olhos inexpressivos e a pele pálida demais, denunciavam as origens do visitante, que, apesar de tudo, não mostrava estar desconfortável naquele lugar. O outro, um pouco mais agitado e com o cenho visivelmente franzido, mostrava o quão desconfiado estava, da oferta que acabara de ser colocada na mesa. Não percebia as razões por trás das razões que traziam aquele homem estranho a aquele lugar.
O visitante, então, tomou a dianteira.
- Já tens a amostra?
- Sim. Está connosco. Já mandamos analisar…
- A amostra sem o dossier não vale nada… ou vale… mas muito pouco. Será uma perda de tempo analisá-la, sem o devido cuidado e sem as informações necessárias sobre o que fazer e como… É uma amostra única e deve ser processada com extrema cautela. Os códigos são bastante complexos e avançados… por razões óbvias.
- Claro. Não ia ser tão fácil, senão não viria parar cá, desta forma. Mas é um negócio estranho… e caro… a meu ver…
- Sim. É uma oferta bastante peculiar, mas é praticamente irrecusável. Os riscos são mínimos e o retorno do capital totalmente assegurado, em muito pouco tempo. Só temos que manter nossa sociedade em segredo e seguir o plano, dentro do prazo. Não podemos acelerar muito as coisas e levantar suspeitas desnecessárias.
- Parece muito bom para ser verdade.
- Não acredito que ainda tenhas dúvidas sobre a veracidade da origem…
- Claro que não tenho, mas deixa-me com dúvidas sobre a verdadeira intenção….
- A intenção é garantir um futuro para esta civilização...e…
- Quem se importa com o futuro desta geração decadente, que só pensa em possuir, cada vez mais, coisas absolutamente inúteis, fazer intrigas e destruir o planeta?
O homenzinho riu.
- A intenção é essa. Ainda pode-se ter esperança no futuro. Somente quem possuir uma informação como esta, pode usufruir dos resultados… e dos ganhos… Temos um negócio ou não?
- Temos. A N.M.E. vai ampliar sua área de atuação e incluir a produção de medicamentos, desta forma, com um fim muito específico. Ninguém vai suspeitar de nada.
- Desde que esse negócio fique entre nós, somente. Minha contribuição não pode ser trazida à luz deste…
- Tempo… é dinheiro… Temos muito que fazer, ainda. Vou tratar de fazer o depósito na conta indicada. Confirme a transferência e mande trazer a amostra e os dados, para iniciarmos o processo o quanto antes.
- Não posso mandar outra pessoa trazer uma informação desta importância para cá. Eu trabalho sozinho. Eu mesmo venho…
- Precisa confiar mais na humanidade… especialmente…
A ironia não foi bem recebida pelo homenzinho, que retrucou:
- Tenho muitas razões para não confiar em ninguém… mais especificamente daqui.
- Muito bem. É justo… por enquanto. Afinal, negócios são negócios.
***  
O carro alugado estava parado à beira da ravina. Um homem vestido com um fato social preto estava encostado ao veículo, a olhar o mar e fumar um cigarro sem filtro. Ele consultou o relógio e olhou para a estrada.
A carrinha branca vinha subindo a estrada.
- Já era hora!
O homem jogou fora o que restava do cigarro, ainda aceso e esperou. O carro aproximou-se e parou. O motorista, também vestido com roupa social escura e usando óculos de sol, saiu do veículo e veio na direção do homem que o aguardava. O passageiro, sentado no banco da frente, também saiu da carrinha e juntou-se aos outros.
- Vamos acabar logo com isso.
Um estrondo na parte traseira do veículo pegou os três de surpresa. Dois jovens, saíram, um de cada lado e vieram correndo a toda a velocidade, vestidos somente com as cuecas e, cada qual, girando as calças na mão direita e vindo direto ao ataque contra os três, que não contavam com aquela atitude. Dois homens foram atingidos, logo, nas cabeças por algo sólido e caíram ao chão. O terceiro homem puxou uma pistola de dentro do paletó e atirou, bem na hora que sentiu algo muito duro bater-lhe na mão, enquanto sentia também, os sentidos falharem. Havia sido atingido, na cabeça, pelo outro rapaz.
- Rápido. Vamos amarrar os três, antes que eles reajam novamente.
Os dois apressaram-se a amarrar os três seguranças, depois de os despirem de seus fatos escuros, deixando-os somente com as roupas de baixo, à beira do penhasco, mas não à vista de quem passava na estrada. Para dificultar, jogaram a carrinha pelo penhasco e partiram no carro alugado.
Teriam que livrar-se daquele carro na primeira ocasião, por isso desceram pelo litoral até a grande cidade industrial, ainda no norte. Ali seria mais fácil trocar de carro e passar despercebidos. A intenção era desaparecer da vista, por uns tempos.
***
- Nossas férias estão estragadas. Estamos condenados…
- Não exagera. Só temos que passar numa agência do banco e pedir cartões novos. Os nossos foram roubados, para todos os efeitos. Depois decidimos o que fazer.
- Isso vai levar uns dias, até resolvermos e podermos sair daqui.
- Que nada. Eles nos dão cartões provisórios. Temos é que evitar sermos vistos.
- Temos que denunciar essa gente! Eles vão continuar a nos perseguir e fazer…
- Nós nem sabemos direito no que eles estão envolvidos. O que sabemos é muito pouco. O que nós diríamos e a quem? E quem iria acreditar em nós, afinal?
- Que droga!
- Temos que saber mais a respeito desta empresa e das falcatruas nas quais estão envolvidos, antes de fazer qualquer coisa.
- Estás maluco?!? Nem pensar. Vamos é voltar para as nossas vidas, antes que alguém descubra que estamos metidos numa alhada destas.
- Não podemos deixar as coisas assim. Não é certo. Aqui há coisa grande e temos que descobrir o que é, senão não podemos fazer nada para mudar esta situação.
- Mas nós não temos que mudar nada. Não é da nossa conta.
- Temos, sim. É da nossa conta, agora. Ou achas que sermos espancados e tratados como animais faz parte de uma vida normal? Estragaram nossas férias. Estamos aqui escondidos e ainda temos que refazer nossos documentos, antes de voltarmos à nossa vida e de volta das nossas férias. Isso não é justo. Além do mais ainda temos mais de uma semana inteira…
- Vamos embora daqui o quanto antes.
O rapaz de óculos olhou para o amigo, mas sabia que sua batalha estava vencida. O outro não ia descansar enquanto não resolvesse o caso, ou pusesse um fim à sua angústia.
- Estou com fome.
- Vamos sair, então. Resta-nos pouco dinheiro, daquele que tiramos dos seguranças. Temos que ser econômicos, até conseguirmos resolver o caso com o banco.
Os dois saíram do quarto alugado na pequena pensão na periferia da cidade, onde poderiam passar mais despercebidos e ter o mínimo de despesas, com o pouco dinheiro que tinham. O carro estava escondido numa das ruas próximas, mas não na mesma da pensão, de modo a não serem descobertos, se acaso aparecesse alguém a procurar por eles. Ali ninguém os conhecia e não perguntavam nada, também. Eram estranhos e passavam incógnitos…por enquanto…
***
O Café estava praticamente vazio quando eles saíram, depois de uma rápida refeição. A noite estava fresca, para o dia quente que havia sido. Os dois caminhavam lado a lado, sem falar muito. Cada qual estava muito ocupado com seus próprios pensamentos.
A rua, onde a pensão ficava, estava deserta. Os dois caminhavam a passos ligeiros, mas não necessariamente tensos. Poucos carros passavam por eles e, quando acontecia, eles evitavam ficar expostos aos faróis, baixando as cabeças, para não serem reconhecidos.
O rapaz de óculos parou, mudo, a olhar seriamente para frente. O outro olhou para ele e seguiu a direção do olhar do mesmo.
Saindo da rua onde o carro estava estacionado, eles viram a carrinha branca. As letras vermelhas na lateral da mesma não escondiam a origem do veículo, nem o propósito de estar por ali. Os dois entraram no terreno baldio e cruzaram para o outro lado, por trás da pensão e subiram apressados os degraus que davam para o quarto onde estavam hospedados.
- Temos que sair daqui. Como é que eles nos chegaram até este lugar?
- Não sei, mas agora é perigoso demais ficar aqui. Eles devem ter contactos em todos os lugares…
Um barulho no andar de baixo, vozes alteradas e portas a baterem, deixaram-nos em estado de alerta. Uma mulher gritou. A última coisa que eles ouviram, antes de saltarem pela sacada, para a rua escura, foi o som da voz conhecida de um homem a gritar:
- Onde eles estão?
O rapaz de óculos só teve tempo de ouvir o amigo a sussurrar e puxá-lo pelo braço, para trás do muro:
- Depressa! Por aqui!
***

domingo, 14 de janeiro de 2018

All Along the Coastline (Part 2)


The sunlight, being filtered through the leaves of the large tree, seemed to flicker onto the face of the young man wearing glasses. He slowly opened his eyes, still half dizzy and with a terrible headache, as if he were hungover. The images were slowly coming into focus, like in a contemporary art film.
Lying uncomfortably on a dark green wooden bench in an unknown city square, all dirty and dishevelled, he could be taken by a beggar or a junkie, who had fallen asleep in the open, for lack of a better place. The few passers-by dodged as if he were dangerous or inconvenient to their decent beings. He sat up and looked around. He did not know where he was. From the position of the sun in the sky, it seemed it was already mid-day, but he had no idea how he ended up in a place like that. He could smell fresh and spicy food in the air and he felt hungry. He tried to reach his wallet, but without much hope of finding it. He felt stolen and it made him angry and nervous. He did not know where he was and did not know how to get help. He looked around again. He needed to wash, change clothes, and eat something.

- These are really the greatest holidays of all!
The irony came into the mind of the young man who made an effort to get up and start walking. His head was spinning. He halted and waited a little, trying to regain his strength. He took a deep breath and walked, determined not to let himself fall, nor lose his balance, at any cost.

- What the hell! I'm a trained soldier. I will not fall here, now. I must reach the sea, or the river, at least.
He looked up to try and follow the course of the sun in the sky. He heard the toll of a church bell. He looked around, trying to find out where the sound came from. If there was a bell, there was a church and probably a clock. He crossed the square and saw that he was well ahead of a small chapel. Its facade was all decorated with painted tiles. The clock marked 1:15.

He walked toward the chapel, which was in the highest part of the place. Behind it, he saw the river flowing to his left. That was certainly the direction of the sea. He ran his hand through his rumpled clothes and strode down the narrow street.


***
The strange-looking man, dressed in a tailored, dark suit, made to order, walked slowly to the window. His brows were furrowed and his face was heavy. He seemed to be very worried.
The sun was shining outside on a typical summer day. The air-conditioned room set for the constant temperature of eighteen degrees Celsius, was furnished with but a few practical pieces. Besides a large table with a dozen chairs, there was only a small counter, discreetly installed in a niche at the corner of the room, with a modern coffee machine. It was on the second floor of the building, in the farthest room from the entrance, where important decisions were made, and often these had quite significant consequences in the food industry. N. & M. Enterprises also had an influence on businesses not as innocent as food production, but few people knew for sure what type of businesses they were.

The man watched the movement that was happening at that moment, at the ground floor, without moving any muscle of his inexpressive face. He looked up and concentrated on a spot beyond the well-designed garden, next to a small grove beyond, practically hidden from anyone who’d come from the front of the building.

Carefully chosen, the quieter and more discreet office was in the back of the building. A white van with large red letters painted on both sides was parked outside, close to the street. He ran a very pale hand over the top of his bald head and down to his face with no trace of beard.

The door opened behind him and he heard the secretary's voice, low, but very firm:

- They are here.

The man took a deep breath and turned slowly.

- It's about time. Bring them in.


The secretary left and returned shortly thereafter with two men dressed in black and another man, younger than both of them. A little farther back, another security guard was dragging one other young man, who wore tortoise shell frame glasses and had his clothes very dirty and wrinkled. This latter one was still looking unconscious.
***
- No. They know nothing. That must have been an unfortunate accident. A coincidence...
- But they will now suspect that there is something big behind this whole story. In fact, they are not fools. They must have suspected by now...

- We have to get rid of them. We cannot leave loose ends.

- We have already left. Now we have to fix all this mess.

- With care and a good plan, and to leave no shadow of doubt about our integrity...

- Certainly. N.M.E. must not be associated with any type of scam. We have to remain unsuspected. The success of this company depends on our discretion and certain secrets.

- We will be very careful. I’ll take care of it. Leave it to me.


The man looked serious at the Chief of Security and did not seem very convinced, but nodded slightly, so that the man would leave immediately and he could be alone in the room. He needed time on his own to think.
***
The river seemed calm, quietly running toward the sea. The young man approached the shoreline and stepped into the cool water. The feeling was good. He washed his face and head with that water. He felt like swimming a little. For a moment he forgot that he did not know exactly where he was and that he had no idea how he had ended up there.
He continued his trip toward the sea. Minutes later, when he was already at the beach, he saw the old windmills. He did not recognize the place, but moved on. He needed to find some answers. Afraid he could be misunderstood, with his clothes in that state, he decided to avoid direct contact with the people who passed by him as he walked along the waterfront.

Further on, he spotted a service station, walked to there, and got in. He took a look around and saw that besides a young attendant behind the counter, there was only another man, dressed in a dark suit, sitting with his back to the door and drinking coffee. With that heat, it did not seem like the best outfit to wear, but who was him to find anything strange, after all. Before he spoke to the attendant, the door behind him opened and he saw a bigger man, also dressed in a dark suit, coming in. He did not notice that a white van was parked outside. He just felt a blow and began to fall into a dark pit.


***
- Are you fine?
- Look at me. Do I look good? I'm all dirty, I've been beaten, drugged, dragged and I do not know what's going on. How can I be fine?

- You’re right. It was a stupid question...

- Where have you been? Who are these people?

- I can only say what I know and it’s not that much.

- You were with them at the boarding house. The lady at the front desk told me.


- Yes. I was under a gun. I tried to look natural, not to raise any more confusion, or to be killed right there. These men are dangerous.
- Who are they?

- They work for N.M.E., a company linked to the food industry, but this is just a facade. There's more behind it all.


- And how do you know all these things?
- I pretended I was unconscious and heard their conversation. There is much more that appearances want to show in here.

- And why are we involved in it?

- We were in the wrong place at the wrong time... and we still are...


- Are we?
- They do not know who we are, but they want to get rid of us. We have to find a way out of here.

- How? If they're going to kill us... What's the way out?

- They want it to look like an accident. I heard them talking to their boss. We may have a chance, but it will depend on how many of those gorillas we have to deal with.

- Face armed men, that size? Bad idea. Bad idea!

- Have you got a better one?

***

"Everything was so well planned, so carefully planned before..."
The man tried to find a flaw in the procedure, but he could not.

"Why did these meddlers have to appear at that time? How could it not be foreseen? What detail has passed, so unnoticed? "
He had no doubt that he was going to make a lot of money and change the course of humanity when that little detail was sorted out. He was going to be a very rich and powerful man. His ambition was limitless and overriding many principles, including those related to scruples.

But that interference, at that moment, was not welcome and had to be resolved, effectively and efficiently... And very soon!
- What the hell!

He picked up the phone and dialled a known number. In less than two minutes the Chief of Security rushed into the large room. The man had his back to the door. Without turning to greet the newcomer, he spoke, low, steady and trying to control his emotions to the extreme.


- Take care of those two. And try not to leave any hint of flaws. Now leave!
- Yes sir.

The Chief of Security left, carefully closing the door behind him. He knew his boss very well. That whole control was just a protective cover. He must have been on the verge of exploding.
The man turned his attention back to a place beyond the large, well-designed and neat garden. He could see the pine forest right at the end. The flower bed around the garden was covered by blackwood and other types of asclepius, planted both to provide a fine effect to the eyes and also with a very specific purpose. The man saw the butterflies flying around the colourful little flowers and smiled.
While he was absently observing that beautiful creation, a door opened on the left side of the garden and a group of men crossed the courtyard. Two of them, dressed in dark suits, carried visibly and ostensibly powerful automatic weapons.


sábado, 6 de janeiro de 2018

Pelo litoral (Parte 2)


Uma faixa de luz do sol infiltrava-se entre as folhas da árvore e pareciam acender e apagar contra o rosto do rapaz de óculos. Ele abriu os olhos, devagar, ainda meio tonto e com uma terrível dor de cabeça, como se estivesse de ressaca. As imagens foram entrando em foco, como num filme de arte contemporânea.
Deitado num banco da praça, sujo e desalinhado, ele passava por um mendigo ou um drogado, que adormecera ao relento, por falta de lugar melhor. Os poucos transeuntes, que passavam por perto, esquivavam-se da sua figura, como se fosse perigoso ou inconveniente. Ele sentou-se e olhou à volta. Não sabia onde estava. Pela posição do sol, parecia ser já a meio do dia, mas ele não tinha a mínima ideia de como viera parar naquele lugar. Ele sentia o cheiro de comida, recém-feita, bem temperada, no ar. Sentiu fome. Procurou a carteira, mas sem muita esperança de encontrá-la. Sentia-se roubado e aquilo deixava-o nervoso. Não sabia onde estava e não sabia como conseguir ajuda. Olhou à volta, mais uma vez. Precisava lavar-se, trocar de roupa e comer algo.
- Que belas férias!
O rapaz levantou-se e começou a caminhar. Sua cabeça girava. Ele parou e esperou um pouco, tentando recuperar as forças. Respirou fundo e caminhou, decidido a não deixar-se abater, nem perder o equilíbrio.
- Que droga! Eu sou um soldado treinado. Não vou cair aqui, agora. Preciso chegar ao mar, ou ao rio.
Olhou para cima, para tentar seguir o curso do sol. Um sino bateu uma vez. Ele procurou localizar de onde vinha o som. Se há um sino, há uma igreja e deve haver um relógio. Cruzou a praceta e viu que estava bem à frente de uma pequena capela, cuja fachada era toda decorada com azulejos pintados. O relógio marcava 1:15.
Ele caminhou na direcção da igreja, que estava na parte mais alta do lugar. Atrás dela, viu o rio, que corria para a sua esquerda. Aquela era, certamente, a direcção do mar. Passou a mão pela roupa bastante amarrotada e começou a descer a rua.
***
O homem, de aparência estranha, mas vestido com um alinhado terno escuro, feito à medida, caminhou, devagar, até a janela. Tinha o cenho franzido e uma expressão carregada, no rosto. Estava bastante preocupado.
O sol brilhava do lado de fora, num dia típico de verão. A sala refrigerada, para a temperatura constante de 18ºC, tinha poucos móveis. Além de uma mesa com uma dúzia de cadeiras, havia apenas um pequeno móvel, onde uma moderna máquina de café estava instalada, discretamente, num nicho, no canto do aposento. Estava no segundo andar do prédio, na sala mais distante da entrada, onde decisões importantes eram tomadas e, muitas vezes, estas tinham consequências bastante grandes na indústria alimentícia. A N. & M. Enterprises também tinha influência em negócios não tão inocentes quanto a produção de alimentos, mas pouca gente sabia, com certeza, em quais negócios seriam.
O homem observava o movimento que acontecia, naquele momento, ao rés-do-chão, sem mover qualquer músculo da face pouco expressiva. Ele levantou os olhos e concentrou-se num ponto além do jardim bem cuidado, junto a um pequeno bosque, mais adiante, praticamente escondido de quem vinha pelo lado da frente do edifício.
Escolhido com cuidado, o escritório ficava na parte traseira, mais silenciosa e mais discreta. Na rua, uma carrinha branca estacionada, tinha grandes letras vermelhas pintadas nas duas laterais. Ele passou a mão muito pálida pelo topo da cabeça calva e pelo rosto sem nenhum vestígio de barba.
A porta abriu-se às suas costas e ele ouviu a voz do secretário, baixa, mas muito firme:
- Eles estão aqui.
O homem respirou fundo e virou-se, devagar.
- Já era hora. Tragam-nos para dentro.
O secretário saiu e voltou logo em seguida com dois homens vestidos de preto e um outro rapaz mais jovem que eles. Um pouco mais atrás, um outro homem, também vestido como segurança, arrastava, pelos braços, um outro rapaz, de óculos, que tinha as roupas muito sujas e amarrotadas. Este último estava, ainda, meio desacordado.
***
- Não. Eles não sabem de nada. Aquilo deve ter sido um infeliz acidente. Uma coincidência…
- Mas eles agora vão desconfiar de que existe algo grande por trás desta história toda. Aliás, eles não são tolos. Já devem ter suspeitado…
- Temos que nos livrar deles. Não podemos deixar pontas soltas.
- Já deixamos. Agora temos que consertar esta burrada.
- Com cuidado e um bom plano, para não deixar nenhuma sombra de dúvidas a respeito de nossa integridade…
- Com certeza. A N.M.E. não pode ser associada a nenhum tipo de falcatruas. Temos que manter-nos insuspeitos. O sucesso dessa empresa depende de nossa discrição e de certos segredos.
- Teremos o máximo cuidado. Pode deixar.
O homem olhou sério para o chefe da Segurança e não pareceu muito convencido, mas fez um leve aceno com a cabeça, assentindo, para que o homem saísse logo e ele pudesse ficar sozinho na sala. Precisava pensar.
***
O rio parecia calmo, tranquilamente correndo na direção do mar. O rapaz aproximou-se e entrou com os pés na água fresca. A sensação era bem boa. Ele abaixou-se, lavou o rosto e a cabeça com aquela água e até sentiu vontade de nadar um pouco. Por um momento, esqueceu-se que não sabia, exatamente, onde estava e que não tinha ideia de como fora parar naquele lugar.
Continuou a seguir na direcção do mar. Minutos depois, quando já estava na praia, avistou os velhos moinhos. Ele não reconheceu o lugar, mas seguiu adiante. Precisava encontrar algumas respostas. Teve receio que fosse mal compreendido, com as roupas naquele estado, por isso evitou contacto directo com as pessoas que passavam por ele, enquanto caminhava pela orla.
Mais à frente, avistou uma estação de serviço, foi até lá e entrou. No balcão, viu um homem sentado, de costas, vestido com um terno escuro, tomando café. Com aquele calor, não pareceu-lhe a melhor indumentária, mas quem era ele para estranhar qualquer coisa. Antes que falasse com o empregado, a porta atrás de si abriu-se e ele viu outro homem, um grandalhão, também vestido de terno escuro, entrar. Não percebeu que uma carrinha branca estava estacionada ao lado das bombas de combustível. Só sentiu uma pancada e teve a impressão que começava a cair num poço escuro.
***
- Estás bem?
- Olha para mim. Pareço bem? Estou todo sujo, fui batido, drogado, arrastado e não sei o que está acontecendo. Como posso estar bem?
- É verdade. Foi uma pergunta estúpida…
- Onde estiveste? Quem são esses?
- Só posso dizer o que sei… o que não é muita coisa.
- Tu saíste, com eles, da pensão. A moça da recepção me contou.
- Sim. Estava sob a mira de uma arma. Tive que parecer natural, para não levantar mais confusão, ou ser morto ali mesmo. Estes homens são perigosos.
- Quem são eles?
- Eles trabalham para a N.M.E., uma empresa ligada ao meio alimentício, mas isso é só uma fachada. Há muito mais coisas por trás disso tudo.
- E como tu sabes disso?
- Eu fingi que estava desacordado e ouvi a conversa. Aqui há muito mais que as aparências querem mostrar.
- E por que nós estamos envolvidos nisso?
- Estávamos no lugar errado, na hora errada… ainda estamos…
- Como assim?
- Eles não sabem quem somos, mas pretendem livrar-se de nós. Temos que dar um jeito de sair daqui.
- Como? Se eles vão-nos matar… Que saída temos?
- Eles querem que pareça um acidente. Ouvi quando eles falavam com o chefe. Talvez tenhamos uma hipótese, mas vai depender de quantos daqueles gorilas teremos que enfrentar.
- Enfrentar homens armados, com aquele tamanho? Péssima ideia. Péssima ideia!
- Tens uma melhor?
***
“Estava tudo tão bem planeado, com tanta precisão, antes de enviar... “
O homem tentava encontrar uma falha no procedimento, mas não conseguia.
“Por qual razão estes intrometidos tinham que aparecer, logo naquela hora? Como não foi possível prever? Que detalhe passou, assim, tão despercebido?”
Ele não tinha dúvidas que ia ganhar muito dinheiro e mudar o curso da humanidade, quando aquele pequeno detalhe fosse resolvido. Ia ser um homem muito rico e poderoso. Sua ambição não tinha limites e passava por cima de muitos princípios, incluindo aqueles relativos aos escrúpulos.
Mas aquela interferência, naquele momento, não era bem-vinda e tinha que ser resolvida logo, de maneira eficaz e eficiente… E logo!
- Que droga!
Ele pegou o fone e discou um número conhecido. Em menos de dois minutos o chefe da Segurança entrava, apressado, na ampla sala. O homem estava de costas para a porta. Sem virar-se para cumprimentar o recém-chegado, ele falou, baixo, firme e tentando controlar a emoção ao extremo.
- Dêem um jeito naqueles dois. E tratem de não deixar nenhum vestígio. Agora!
- Sim, senhor.
O chefe da Segurança saiu, fechando a porta, com cuidado, atrás de si. Conhecia bem seu chefe. Aquele controlo todo era apenas uma capa protectora. Ele devia estar a ponto de explodir.
O homem continuou a olhar para o lado de fora, através do grande e bem cuidado jardim. No fundo podia ver o pequeno bosque de pinheiros, cujo limite era coberto com serralhas e outros tipos de asclépias, formando um bonito efeito, mas que tinham, na verdade, sido plantadas com um objectivo muito específico. Ele viu as borboletas a voar à volta das florzinhas coloridas e sorriu.
Enquanto estava a observar, distraidamente, aquela bela criação, uma porta abriu-se no lado esquerdo do jardim e um grupo de homens atravessou o pátio. Dois deles, vestidos com trajes escuros, carregavam, visível e ostensivamente, poderosas armas automáticas.