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domingo, 12 de julho de 2020

Viajante do Tempo. Parte 1. O Farol.



- Sabe, às vezes eu sinto que não pertenço a este lugar e a este tempo. E é mais do que apenas algumas vezes.

- E tu és, agora, um viajante do tempo?

Ele fez a pergunta, sorrindo.

- Tu também não te sentes, às vezes, fora do tempo e do lugar?

Ele sorriu de novo, de uma maneira engraçada, como se soubesse mais do que estava dizendo ao amigo.

- Sinto, sim.

- Então me entendes, quando eu digo isso... É tão...

Dessa vez, ele ficou pensativo, como se algo mais sério lhe ocorresse.

- Tu não tens ideia do quanto eu te entendo...

***

- Nós não deveríamos estar aqui. Se alguém nos vê...

- Calado! Ninguém vai-nos ver. Nós estamos seguros. Já passa muito da meia-noite.

- E se a polícia aparecer?

- Seremos rápidos. Eu só quero ter certeza de que está realmente aqui.

- E como nós vamos saber?

- Eu vou saber, acredite em mim...

- Está bem.

- Deveria estar por aqui em algum lugar, mas é tão trivial que ninguém jamais notaria. Ou, se o fizerem, nunca teriam uma ideia do que realmente é. Cá está. Eu sabia!

- Pronto. Já achamos, agora vamos embora daqui! É apenas um ‘geocache’!

- É assim que pode parecer, mas é mais do que isso. Não é uma caixa. Vês? Tenho certeza que é um portal.

- O que nós vamos fazer?

- Nada. Não vamos fazer nada. É mais seguro que fique aqui, do jeito que está.

- Achas que há mais?

- Portais?

- Viajantes?

Ele olhou para o jovem de óculos, em silêncio. Seu rosto estava protegido pela sombra, mas houve uma súbita mudança na sua forma de respirar.

- Vamos sair daqui, agora. Não tarda a amanhecer.

- Espera. Alguém se aproxima. Ouves?

- Rápido! Faz alguns alongamentos. Finge que estamos exercitando.

O som dos passos ficou mais alto. Alguém vinha correndo a caminho do cais e se aproximava de onde eles estavam.

O rapaz de óculos virou-se e descansou a perna no parapeito inferior, esticando-se devagar com as mãos, tentado alcançar os pés, como se estivesse fazendo alongamentos. Seu companheiro segurava um pé com uma das mãos, suportado por uma perna, apenas.

Eles não conseguiam ver se o rosto do corredor recém-chegado, no interior do capuz do casaco de treino escuro, era jovem ou velho, mas pela maneira como ele se movia, podia-se dizer que era um homem atlético. Ele passou pela pista e deu a volta ao redor do farol, voltou ao cais e saiu pelo mesmo caminho que veio, entrando no calçadão. Logo ganhou a rua e desapareceu na escuridão novamente. O som de seus passos foi desaparecendo ao longe.

Os dois homens se entreolharam, aliviados.

- Essa foi por pouco!

- Que nada! Pare de ter tanto medo de tudo. Vamos voltar. Já tivemos mais que o suficiente esta madrugada.

Eles saíram rapidamente para onde o jipe ​​estava estacionado e entraram, não sem antes olharem a volta.

Não viram o homem vestindo um casaco de treino, escuro e com capuz, parado do outro lado da área do estacionamento, protegido da vista, pela penumbra.

Assim que o carro saiu, ele atravessou o parque e voltou a se aproximar do farol, correndo...

***

Os dois chegaram em casa em alguns minutos, já que não havia tráfego àquela hora da manhã. Ainda tinham algumas coisas para discutir.

- Que porra era aquela? Era mesmo um portal? A sério? Eu pensei que havíamos ido procurar um ‘geocache’…

- Tu sabes muito bem que era um portal e não um ‘cache’. Tu viste os detalhes…

O homem de óculos estava totalmente confuso, pois sabia que aquelas coisas eram difíceis de entender e acreditar.

Seu amigo parecia mais à vontade com a existência de um portal, embora desde que eles haviam deixado o farol, parecia bastante distraído, como se estivesse em outro mundo… ou época.

- Tu achas que nós deveríamos...?

- Eu acho.

- Quando?

- Quanto mais cedo melhor. Vamos arrumar algumas coisas nas mochilas. Talvez não voltemos hoje.

***

O sol mal acabava de nascer e eles já estavam na estrada para o norte. A A28 estava silenciosa, mas logo estaria movimentada, devido ao tráfego para as zonas industriais e às pessoas que iam para as praias.

- Um portal? Não é possível! Mas aquele último foi totalmente destruído!

- Eu sei. Mas tudo aponta para um novo e nós o localizamos. Está lá, tão à vista quanto um ‘geocache’ normal… mas com detalhes muito característicos.

- Como isso pode ser possível? A menos que... Espera!... Não, não, não... Isso é improvável...

- O quê? Espera aí! Tu estás sugerindo que eles voltaram para cá?

- Do que vocês dois estão falando? Isto não faz nenhum sentido.

- Mas por que aqui e por que agora? O que há aqui, nesta era, que poderia ser de algum interesse para eles?

- Eu não faço ideia. Se tivéssemos alguma indicação do que aconteceu, quando...

Eles olharam para o homem de óculos.

- ‘Oblívio’, o ‘Esquecimento’...

- OK! Vamos parar aqui e agora. Quero saber tudo sobre este incidente com ‘Oblívio’... Passou-se bastante tempo. Já está mais que na hora de falarmos sobre isso. E não me tentem enganar mais, por favor!

Os dois homens olharam para aquele que usava óculos. Ele estava lívido.

- OK. É melhor sentar. Vou-te trazer um pouco de água. Relaxe um pouco, sim?

- Eu não quero e nem vou relaxar. Tudo isso parece estar relacionado. Digam-me já o que aconteceu... Quero saber agora!

- Ok, mas agora, sente-se, por favor. Beba a água. Eu vou explicar... Ou, pelo menos, vou tentar esclarecer-te esta história, de uma vez por todas.

***



domingo, 28 de junho de 2020

O Menino no Sótão


Embora ainda fosse dia, havia apenas uma fraca luz vindo de um ponto no sótão, como percebi, de pé, junto à base da escada. Eu nunca havia tido autorização para subir aqueles degraus e ir lá em cima… nem acompanhado, muito menos por conta própria...

Agora, já não precisava mais da permissão de ninguém. Eu tinha que encarar aquela situação e queria fazê-lo… o quanto antes…

A escada, de dois lances, era de madeira escura e sem qualquer polimento. Os velhos degraus, tão pouco utilizados nos últimos tempos, rangeram, como se a reclamar, quando pisei neles. Murmurei, para mim mesmo:

- Não olhe para trás...

O sótão não estava tão desorganizado quanto eu pensei que estaria. Estava empoeirado, mas não sujo. Eu mal notei que havia uma pequena janela quadrada, voltada para o sul. A luz do final da tarde filtrava-se através do vidro empoeirado. Algumas caixas e um velho triciclo de metal, quebrado, com um assento de madeira gasto e manchado, estavam no meio do caminho. Vi uma cadeira de balanço junto à parede oposta à janela. Alguns móveis velhos estavam empilhados num canto mal iluminado. Em cima deles havia uma caixa de madeira marrom-escura com enfeites de pinos de metal, de cabeças arredondadas, dispostos ao longo da periferia da tampa.

Quando eu olhei, ele estava sentado no chão, no outro extremo, brincando com alguns minúsculos carros de brinquedo, quase no escuro. A maioria daqueles carrinhos já não tinha mais rodas. Ele estava com os pés descalços, vestindo um velho pijama de algodão estampado. Não olhou diretamente para mim, no início, como se não tivesse notado minha presença. Seu cabelo encaracolado era castanho claro, quase loiro, cortado bem curto. A boca, bem proporcionada, de um tom carmesim, mostrava dois pequenos pontos vermelhos, mais escuros, claramente evidentes, no centro do lábio inferior. Aqueles olhos castanho-esverdeados, muito curiosos e um tanto tristes, me notaram, finalmente.

Ele sorriu, timidamente, quando cheguei mais perto.

- Estás bem?

Ele balançou a cabeça, afirmativamente.

- Posso sentar aí, ao teu lado?

- Pode, mas vais sujar as roupas.

- Não tem importância.

- OK, então. É uma pena. Meus carrinhos estão todos quebrados.

Sentei-me ao lado dele e examinei um daqueles brinquedos que estavam no chão. Senti vontade de chorar e ele percebeu, mas me recuperei rápido o suficiente.

- Quantos anos tu tens?

- Cinco.

- O que estás fazendo aqui em cima, sozinho?

- Gosto de brincar sozinho e, além disso, estava esperando por ti. Podes brincar um pouquinho comigo?

- Sim. Pelo tempo que quiseres.

Ele abriu um sorriso largo e satisfeito, mostrando seus pequenos dentes, bem feitinhos. Pareceu-me ser um miúdo ‘duro na queda’.

- Tu gostas da cadeira de balanço?

- Sim, mas toma cuidado. Está quebrada. Vai desmontar-se toda.

Eu verifiquei e notei que as peças não estavam bem encaixadas, nos lugares certos. Devia ter sido abandonada e esquecida ali em cima. Tentei o meu melhor para reparar e, finalmente, sentei-me nela. O encosto e o assento, de palha trançada, fizeram um ruído característico, provavelmente devido à falta de uso. Ainda era uma cadeira bem forte, pelo que percebi.

- Queres sentar aqui comigo?

Ele veio mais para perto e eu o levantei do chão e sentei-o na minha perna esquerda. Ele sorriu e deitou a cabeça no meu peito, ainda entretido com um de seus carrinhos de brinquedo.

O som monótono e suave da velha cadeira, a balançar, e meus braços em torno de seu minúsculo corpo, eram como um convite para adormecer. Ele fechou os olhos. Eu podia sentir que ele relaxava e deixou o brinquedo cair da sua mãozinha, no meu colo. Parecia estar confortável e sentindo-se protegido e amado. Eu o abracei mais firmemente e beijei suavemente o topo de sua cabeça.

Meus olhos encheram-se de lágrimas. Meu coração estava transbordando.

Levantei-me em silêncio e desci, cuidadosamente, com ele nos braços e deitei-o em uma cama de solteiro, de colchão duro de palha, que havia no quarto abaixo da escada. Sentei-me na beirada de madeira escura, tentando não perturbar seu sono tranquilo. Seu rosto estava muito sereno. Acariciei seu cabelo fino e macio. Ele respirou fundo, descontraído, quase sorrindo, como se estivesse tendo um sonho bom.

Levantei-me e saí do quarto, deixando o menino em sua cama. Votei-me e olhei para ele, da porta.

Ele, agora, sorria. Seu sorriso era espontâneo e tranquilo, naquele rostinho inocente, em seu sonho feliz... Ele era, na verdade, um menino bem bonito. Deduzi que seria um belo homem, no futuro.

Respirei fundo e abri os olhos. Aquela minha jornada, ao passado, acabava ali. Senti uma satisfação enorme por haver conseguido fazê-la, daquele jeito.

***

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Homens do Mar (Epílogo)


A porta destrancada não pareceu bom presságio ao pescador, ainda ressabiado pelo sonho que tivera algumas semanas antes. Ele vestiu o casaco e saiu correndo pela porta afora, num ímpeto desesperado, que nem conseguia distinguir se era protetor ou auto defensivo; um medo de perder ou, ao mesmo tempo, de ficar sozinho...
Quase nem sentia os pés, a pisar, ligeiros, a areia molhada, nem, ao menos, percebia a carga de adrenalina, que circulava veloz em seu corpo, enquanto corria pela praia, sentindo a angústia aumentar, exponencialmente, dentro de si. Em sua mente, só conseguia pensar no pior. E o pior era-lhe mesmo inconcebível, naquele momento.
O dia mal raiara e a brisa fresca, misturada a uma densa névoa, bastante comum naquela época do ano, passavam quase despercebidos pela mente preocupada do homem, cujo olhar, mais atento que seus pés, escrutinava a orla, com extrema e minuciosa atenção. A visibilidade estava comprometida pela pouca luz e pela neblina, mas ele era movido por uma força que o levava a não desistir, enquanto não encontrasse o rapaz.
Mais à frente, viu delinear-se a silhueta conhecida do amigo, sentado sobre o rochedo. Um alívio e uma urgência misturam-se em seu peito e ele correu naquela direção.
- Deste-me um susto enorme, rapaz. Pensei que havia acontecido o pior.
- Eu precisava refletir um pouco sobre tudo o que aconteceu recentemente. Estar aqui dá-me uma sensação de segurança e amplia-me os horizontes. Tento pensar fora da caixa… e não é fácil... Minha vida vai tomar um novo rumo, muito em breve e eu tenho que tomar as decisões mais acertadas.
- Eu percebo. Fomos surpreendidos, não fomos?
- Com certeza. É tudo um pouco fantasioso demais para mim, neste momento e eu tenho que pensar bem no que fazer.
- Sabe? Naquela noite em que tive um sonho estranho, fiquei bastante apreensivo. Sonhei que tentavas cometer suicídio, afogando-te no mar. Não consegui engolir a seco aquela história da testemunha, que viu-te ser assaltado e jogado num carro. Quando vi que a porta estava aberta e não estavas deitado no sofá, só consegui lembrar do meu sonho… ou pesadelo… e pensar que ele tornava-se real. Confesso que tive medo…
- Não tão rápido, amigo... Eu também tive um sonho muito peculiar, naquela mesma noite, como sabes…
O rapaz contou, com detalhes, o sonho que tivera, semanas antes. O pescador achou aquilo bem mais credível que as "evidências" informadas pela Polícia. De uma certa forma, corroborava a presença do homem de fato escuro.
- Será que, de alguma forma, minha memória trouxe de volta aquele facto? Ou foi mesmo muita coincidência?
- Tudo é possível, meu amigo. Tudo é muito possível nessa história. Gostaria que tua memória recuperasse, para acabarmos com este mistério, mas, ao mesmo tempo, tenho receio do que vais lembrar e do que vai acontecer em seguida. Mas tens que ir adiante, não importa o que vais descobrir.
- Não temas. Não vamos deixar de ser amigos, não importa o que eu lembre... Não vou poder desligar minha vida do que aconteceu neste tempo em que estive a conviver nesta ilha. Eu posso ser jovem... bem mais jovem que tu, para dizer a verdade, mas não serei ingrato, nem estúpido.
- Jamais pensaria algo neste sentido. Gosto muito de ti, meu amigo.
O rapaz olhou o homem sentado ao seu lado, no rochedo de frente ao mar e sorriu. Deu uma palmadinha na mão de seu protetor e disse:
- Vamos voltar? Temos muito o que fazer. O mar nos espera...
- Já não precisas ajudar-me nas lides do mar. Sabes disso.
- Mas eu quero… uma vez mais, pelo menos. Amanhã devo voltar ao continente e, a partir de então, não sei o que pode acontecer comigo. Mas é necessário…
***
- Ainda bem que chegaste. Estás pronto? Devemos ir logo...
O homem, vestido de preto e usando uma gravata de seda azul-escura, muito discreta, com um pequeno logotipo impresso, possivelmente da firma onde trabalhava, aparentava estar na casa dos quarenta anos. Era alto e claro, com o corpo de quem passava muitas horas no ginásio, a fazer musculação. Provavelmente também era perito em defesa pessoal ou artes marciais. Não seria surpresa nenhuma que também tivesse uma arma, afinal era o chefe da segurança de uma empresa, cujo filho bastardo do fundador desaparecera misteriosamente, havia já algum tempo, não muito depois de o pai reconhecê-lo como tal.
O Chefe da Segurança havia chegado à ilha, junto com o doutor, no ferry da manhã e, como na semana anterior, viera com um interesse único: levar o rapaz consigo para o continente, para ser submetido a um novo e revolucionário tratamento de recuperação da memória, especialmente criado e desenvolvido para aqueles sujeitos que tiveram-na perdida em estados traumáticos.
Segundo constava, o jovem tinha um Q.I. muito acima da média e uma capacidade sensitiva muito grande, além de um tino excecional para análise de investimentos e imensa habilidade com computadores. Suas aptidões haviam trazido muito lucro aos empresários e investidores. Por essas e outras razões, era interesse da firma investir na recuperação dele e na volta ao mundo dos negócios.
O combinado era o rapaz estar pronto ao fim de uma semana da primeira visita do Segurança.
Ele fora encarregado de identificar o "náufrago", que havia sido reconhecido pelos panfletos que a polícia distribuíra pelo país afora. Trazia documentos e uma série de fotografias, que suportavam a autenticação. Quando o rapaz entrou, acompanhado pelo pescador, ele estava a mostrar as evidências documentais ao médico, que admitia serem muito bem suportadas e incontestáveis.
- Não consigo reconhecer-me nestas fotos. Aquele não sou eu. Ou melhor… já não tem nada a ver comigo. Estive pensando em estudar, formar-me e fazer minha vida. Quero aprender Oceanografia e aprofundar meus conhecimentos de Informática, que parece ser minha expertise. Quero associar os dois campos em uma carreira...
- Deves voltar a trabalhar connosco. Terás tudo o que quiseres, suportado pela firma e pelo teu pai. Ele te espera, ansiosamente. A empresa precisa dos teus serviços... e, o quanto antes, melhor.
- Mas eu não quero voltar à empresa, desta forma... Quero recuperar a memória, sim, mas tenho outros planos. Se a empresa não quiser investir em mim, nestes termos - o que é compreensível - não há problema. Minha vida já não está voltada naquela direção. Eu quero decidir por mim...
- E como vais sustentar esta decisão? Não tens condições financeiras para tal. Nós podemos prover-te de tudo que desejares. Pelo menos até que possas ter o suficiente para suportares uma mudança. Até lá, tens que ter um emprego decente. Não creio que um velho barco de pesca possa ser a tua fonte de sustento. Teu pai jamais te perdoaria...
- Eu não conheço o homem que dizem ser meu pai. Não conheço a empresa. Não conheço nada além do velho barco de pesca... que, afinal, deu-me o que eu tenho agora...  Eu não quero voltar para a vida que eu tinha e da qual nada conheço, nem tenho qualquer lembrança.
- Eu já vi este filme... Antes do teu desaparecimento, já andavas com intenções de deixar a firma. Foi uma decepção muito grande ao teu pai, meu patrão, e um problema para todos nós. Vamos deixar de conversas e vamos embora, antes que o ferry parta e nos deixe aqui.
O homem de preto segurou o braço do rapaz, com firmeza, o que causou uma distinta estranheza aos outros dois homens. O rapaz puxou o braço, com força, libertando-se da mão do outro.
- Não. Se meu pai estivesse, mesmo, preocupado comigo, teria vindo, ele próprio, buscar-me. Não teria mandado um segurança...
O homem ficou lívido. Sabia que tinha uma missão a executar. As consequências do não cumprimento da sua tarefa, ele conhecia muito bem. Adiantou-se, de encontro ao rapaz, que esquivou-se. Ele pôs a mão dentro do paletó e puxou uma pequena pistola, para assombro de todos. 
O rapaz olhou o homem com a arma apontada em sua direção e foi como se um flash passasse pelos seus olhos, trazendo-lhe memórias há muito perdidas.
Ele lembrou-se de estar sendo perseguido pelas ruas da cidade e de esconder-se nas vielas da ribeira. Viu que havia um barco preparando-se para sair do cais, naquele exato momento. Procurou ouvir atentamente os sons próximos de si, para poder tomar uma ação, mesmo tendo que arriscar-se demais. Aquele mesmo homem, vestido de preto, procurava por ele, atentamente e armado com uma pistola, provavelmente, com a intenção única de trazê-lo de volta a qualquer custo e de qualquer forma...
A qualquer custo, ou de qualquer forma, porém, não era sua intenção voltar para qualquer lugar... menos ainda para aquela empresa...
O rapaz manteve os olhos fixos na pistola apontada para si e disse, fingindo uma serenidade que não sentia:
- Agora eu lembro o que aconteceu...
***
- Foi praticamente um milagre minha memória voltar, tão nítida, diante daquela situação de choque. Eu quase paralisei…
- Normalmente, situações em que há uma grande descarga de adrenalina despoletam este tipo de reação. Se ele não tivesse dito que tu não escapavas dele uma segunda vez, apontando aquela arma, daquele jeito, para ti, não teríamos razão para atacá-lo, nem bases para a polícia prendê-lo. Ainda bem que a nossa reação foi rápida, mas ainda tenho a marca da bala que raspou meu braço, quando eu e o doutor corremos e pulamos nele. As más intenções do homem ficaram claras a partir daquele momento.
- Mas podia ter sido muito pior. Vocês podiam ter sido mortos a tiros. Depois que a arma foi tirada da mão dele, foi mais fácil. Ainda lembro das fortes cadeiradas que a matrona deu nas costas do homem, derrubando-o de vez. Arrancar a confissão, depois daquela confusão toda, no meio de um rompante de raiva, quando ele podia negar tudo, se fosse mais esperto, foi sorte nossa... mas estava completamente tomado pela cólera....
- Sim. Tivemos muita sorte. Foi um grande trabalho de equipa. Ele seria capaz de fazer qualquer coisa. Só não contava que tu fosses sobreviver, depois de teres sido golpeado, despido e jogado ao mar. Só não entendi porque ele preferiu bater na tua cabeça e livrar-se do corpo, sem certificar-se que estavas mesmo morto.
- Ele deve ter pensado que a pancada poderia ser mais fácil de explicar, caso o corpo fosse encontrado. Queria que parecesse um infeliz acidente. O toque de mestre foi achar que por estar sem roupas eu seria mais difícil de ser identificado… e tinha certa razão, afinal...
- Felizmente tudo terminou bem, principalmente porque eu te achei na praia, no momento certo. Jamais hesitaria em defender-te de quaisquer perigos que aparecessem. Eu faria tudo outra vez, se precisasse. Podes ter certeza disso.
- Sabes o que penso? Tu és como a chuva: às vezes cai e refresca; às vezes, simplesmente, inunda. Tu és um homem bom. Não me interessa o que fizeste no passado ou o que o teu passado fez contigo. Já viveste teu inferno particular. Tua dívida já foi paga e não tem nada a ver comigo. Não me conhecias e fizeste o impossível para ajudar-me, mesmo sem saber quem eu era. Não tinhas obrigação nenhuma e foste meu melhor mentor e protetor. Foste a única pessoa que realmente importou-se comigo, sem jamais pensar em segundas intenções. Seguiste tão-somente o teu coração e eu sou-te muito grato pelo que fizeste. Minha dívida contigo é eterna.
- Bobagem. Não me deves nada!
O rapaz abraçou o velho mentor e amigo, com verdadeiro afeto e gratidão e falou-lhe, ao ouvido.
- Devo, sim. Devo-te a minha vida!
Por alguma razão inexplicável, aquele abraço causou-lhe um efeito muito peculiar. Sentiu-se leve e cheio de vida, com o coração a pulsar de emoção, como há muito não acontecia...
- Eu já não lembrava que era capaz de sentir este tipo de emoções. Nem sabia que era possível, ainda, sentir, além das minhas necessidades mais básicas, alguma emoção deste género...
- Tu pensas demais. Parece que tens medo de demonstrar sentimentos, como se fosse um sinal de fraqueza. Eu posso ser jovem, ainda, mas posso garantir que só os fortes vivem, verdadeiramente, os seus sentimentos… e não têm vergonha, nem medo disso.
***
Alguns meses depois, o homem do mar recebeu, pelo correio, dois envelopes.
No menor havia uma carta simples, vindo de longe, escrita em uma caligrafia que ele reconheceu logo. As notícias eram confortantes. O rapaz havia conseguido uma bolsa de estudos, depois de algumas tentativas, no curso de Oceanografia. O dinheiro que usara no início, para poder sustentar-se, enquanto fazia os testes de admissão, havia sido muito bem empregado e a carta trazia a promessa da devolução do mesmo ao seu mentor e amigo, num prazo razoável.
O homem sorriu. Havia investido, com o coração, na certeza do sucesso de seu jovem amigo e sentia que já obtivera os lucros de seu empreendimento. Não estava preocupado com o seu dinheiro, na realidade, mas com o progresso que seu protegido vinha alcançando desde que voltara à cidade. A vida havia sido, finalmente, boa para o rapaz, em resposta aos seus esforços e às suas capacidades. 
Ele colocou a carta de lado, ainda sorrindo e direcionou sua atenção ao envelope pardo, maior que o outro, onde havia um logotipo conhecido, impresso no canto esquerdo. Vinha de uma firma conhecida na cidade, cujo nome trazia-lhe algumas lembranças.
Dentro daquele, havia uma mensagem e um relatório de uma firma de advocacia da cidade. Pelo que constava, um inquérito havia sido aberto, para investigar o acidente/incidente da cirurgia da mulher e sua consequente morte, durante o procedimento. Uma nota, no rodapé, revelava a razão da reabertura do processo investigatório. Haviam motivos para crer-se que a morte não fora uma simples e infeliz contingência, visto que algumas testemunhas haviam-no ouvido a discutir com a esposa, no restaurante, durante o jantar, na noite do acidente, a respeito da infidelidade dela. Aparentemente o médico havia saído do local, bastante alterado, emocionalmente. Apesar de já haver cumprido pena por homicídio culposo, ele ainda podia ser condenado, se fosse confirmado o dolo.
O homem pousou o documento na mesa. Uma tristeza profunda comprimiu-lhe o peito, como se fosse uma camisa de força, amarrada com eficaz crueldade, tolhendo-lhe os movimentos da alma. A ventania e a chuva fina a cair lá fora, naquele dia tão cinzento e quase friorento demais, só aumentaram sua melancolia e trouxeram vívidas lembranças, adormecidas há bastante tempo. Duas lágrimas quentes escorreram-lhe pela face fria e caíram sobre o papel timbrado que jazia sobre a mesa, com notícias tão pouco bem-vindas.
***
Um homem de meia-idade caminhava pela praia, completamente absorto em seus pensamentos. Aqueles fantasmas, que estavam muito bem escondidos, resolviam, vez em quando, manifestar-se e atormentá-lo. Havia dias em que sentia-se mais só que nos outros e aquele era, definitivamente, um deles. Sentia-se triste e uma sensação de vazio parecia aumentar dentro de si. Naquele momento, ele era, apenas, uma carga emocional de lembranças, que faziam-no sentimental e um tanto fragilizado, a ponto de render-se ao choro, mas forte o suficiente para querer manter-se vivo. 
As circunstâncias colocam pessoas e situações em nossos caminhos, para testar-nos, às vezes, ou para chacoalhar nossos equilíbrios e tirar-nos de nossas zonas de conforto. O Universo tem seus próprios meios e seus planos, que a própria vida desconhece. A beleza do viver está, exatamente, nas surpresas e na imprevisibilidade do que nos acontece dia após dia. O pescador sabia que a vida nos põe à prova, todo o tempo, testando nossos limites. É a forma de tornar-nos mais fortes e tolerantes, aumentando nossa resistência às circunstâncias. Viver é, verdadeiramente, uma prova constante de adaptação e resistência. A parte boa é que, muitas vezes, no percorrer do longo caminho, encontra-se pessoas, animais, momentos e ocasiões que, real e efetivamente valem toda a pena.

O vento de outono soprava, ainda ameno, contra seu corpo e seu rosto arredondado, emoldurado pela barba castanho-avermelhada, desalinhando mais ainda os cabelos castanho-claros, que já rareavam no topo da cabeça. Apesar de não estar frio, ele sentia que o inverno estava próximo. Olhou o mar e sentiu o ímpeto de deixar-se levar por um convite silencioso. Despiu-se e entrou na água fria, sem pensar muito. A baixa temperatura da água fê-lo sentir-se mais vivo que há muito tempo atrás. Olhou para o horizonte, deu mais uns passos e mergulhou, sentindo a água fresca a envolver-lhe, completamente, o corpo nu…

terça-feira, 18 de agosto de 2015

Homens do Mar (Parte 3)


Deitado, em silêncio, no sofá da sala e a olhar, fixamente, para um ponto inexistente no teto, o rapaz tentava organizar os pensamentos, depois de tudo o que já vira, ouvira e, obviamente, lera. Apesar da quietude da noite, sua cabeça estava a trabalhar ruidosamente, como os dentes de engrenagens secas e enferrujadas, a ranger uns contra os outros, num campo fértil em ideias conflituantes. Era bastante tarde, mas ele não conseguia dormir, por mais que tentasse.
Segundo constava no relatório da Polícia, uma testemunha vira-o ser assaltado, espancado e jogado dentro de um carro, que arrancou em alta velocidade, a muitas centenas de quilômetros dali. O que acontecera depois era, ainda, uma incógnita.
Ele tentava lembrar de algo, mas aquele relatório e aquela informação, nele contida, não batia muito dentro de sua mente, fazendo com que tudo parecesse muito surreal, para ser verdade. Apesar de estar com o pensamento assim, tão inquieto e de tentar resgatar qualquer coisa que pudesse, de sua memória de longo prazo, entretanto, tudo o que ele conseguia era imaginar alternativas… possibilidades, apenas… do que acontecera, mas sem quaisquer fundamentos. O fino e frágil fio da memória havia-se rompido em algum ponto e, inexplicavelmente, ele não conseguia encontrar as partes, para juntá-las novamente.
Na verdade, ele nem sabia quem era. Podia ser tanta coisa… tanto boa, quanto má. Podia ter sido uma vítima ou ter tido muito azar. Podia ter entrado em confronto com alguém mais forte que ele. Podia ter sido, realmente, atacado por assaltantes. Podia não ser nada daquilo, por mais bizarro que pudesse ser…
O cansaço e o esforço infrutífero fizeram-no, finalmente, adormecer e sonhar…
***
No único quarto da pequena e modesta habitação, construída à beira da praia, o pescador rolava de um lado para o outro em sua simples e antiga cama de madeira escura e resistente, sem conseguir pregar sono. Sua mente também estava perturbada, especialmente depois da conversa mais informal, que tiveram com o doutor. A investigação continuava, baseada no relatório emitido pela Polícia, mas ele tinha um pressentimento de que algo não estava certo. Como padrão, não costumava confiar na sua intuição, mas daquela vez, sentia algo muito forte e não podia deixar de ouvir aquela voz na sua cabeça, a dizer para vasculhar os factos mais a fundo e não confiar piamente em tudo que lera.
Claro que um testemunho era melhor que nada, mas ele preferia contar com o que seu hóspede conseguisse lembrar, em seu próprio tempo, para certificar-se que não estavam enganados. Aquela situação estava cada vez mais angustiante.
Ele havia desenvolvido uma grande afeição pelo rapaz e, descobrir a verdade, bem como recobrar sua memória, de uma vez por todas, tornaram-se suas prioridades. Ele sentia que o mais provável que acontecesse, assim que estivesse recuperado, era que o outro voltasse a viver sua própria vida e deixasse a ilha, talvez para sempre e, aquela quase certeza, também, o afligia. 
Mas, ele tinha que pensar com a razão e não com o coração. Por mais tolo que pudesse parecer, porém, avaliar com o coração era exatamente o que ele vinha fazendo, ultimamente, cada vez que ficava sozinho, com seus próprios pensamentos. De esquivo pescador com, somente, a quase impercetível companhia de seu velho e silencioso amigo felino, ele agora tinha um bem-vindo parceiro, tanto para conversar, quanto para ajudá-lo no trabalho e aquilo parecia divertir a ambos. Embora gostasse da assistência do rapaz, não podia ser egoísta e pensar no que ele gostava ou queria para si, somente. Sentia que ia perder seu camarada, mais cedo ou mais tarde, assim que as coisas voltassem ao seu normal. Mas não podia deixar de desejar que mantivessem a amizade, pelo menos por algum tempo.
Como tudo na vida, a distância iria, invariavelmente, arrefecer aquela relação e os afastar, aos poucos, até que seus contactos desaparecessem de vez. Admitia que iria sentir muita falta do rapaz. Aquele devia ter sua vida e, talvez, uma namorada, uma família e possivelmente, até, um cão ou dois.
Ele, por sua vez, tinha somente seu casebre, seu gato e seu velho barco de pesca... e, absolutamente, nenhuma outra vida para a qual pudesse voltar. Decidira seu destino e tinha que viver com aquilo. Aprendera a viver com muito pouco e de mais não necessitava. Vivia apenas um dia após o outro, sem pensar em um futuro muito longínquo.
Se aquela vidinha era-lhe suficiente, ele já não tinha mais tanta certeza. Sabia somente que, até conhecer o inquilino, que dormia profundamente no sofá da sala, ele havia abdicado de muitas ambições e que não almejava muito mais que aquilo que presentemente possuía.
Agora queria saber mais do outro, vê-lo vencer na vida, testemunhar seu sucesso e, talvez, conhecer sua namorada, vê-lo casar e ter filhos de cabelos rebeldes como do pai. Talvez até pudesse participar de alguma atividade com eles, como um caro e bem-vindo amigo…
Que bobagem! Ele era apenas um velho casca grossa e sem nenhuma relação com o rapaz. Não adiantava iludir-se e achar que poderia ter, no futuro, alguma parte na vida dele.
Havia mudado tanto assim naqueles últimos dias? Um incidente daqueles não devia mexer tanto com sua rotina e sua vida. Era melhor enfrentar a dura realidade: ele iria, em breve, voltar a ser aquele homem solitário, carrancudo e distante, com tão poucas expectativas em relação ao seu próprio futuro.
O homem escarneceu de si mesmo. Estava ficando velho e piegas. Aquele coração ressecado e endurecido não deveria ter-se deixado amolecer tanto, em tão poucas semanas Esteve tão acostumado com sua velha amiga solidão, que esquecera os prazeres de uma boa companhia. Agora, sentia - ou melhor, ressentia – ter que voltar a ficar sozinho, quando a presença do outro, embora tão recente em sua rotina, trouxera mais cor à sua própria existência…
Sentiu-se triste, de repente. Estava cansado de pensar. Na verdade, estava cansado de muita coisa… Fechou os olhos, que começavam a ficar, por aquilo que considerava uma tola razão, tão húmidos quanto as delicadas pétalas das flores, que amanhecem róscidas de orvalho, nas manhãs de outono. Adormeceu… e logo começou a sonhar…
***
- A água está tão boa… Vem ter comigo. 
- Tu és louco! Está frio!
- Não está nada frio. Está bom… Vem.
 O rapaz nadava, tranquilamente, à volta do barco, divertindo-se a desafiar a namorada a mergulhar e nadar com ele, naquele imenso e quieto oceano. Embora o sol estivesse alto, sabia que a temperatura da água estava fresca demais para ela. Para ele, entretanto, estava perfeita. Ela não caiu na conversa dele. Apenas acenou-lhe, jogou-lhe um colchão insuflável e os óculos de sol e deitou-se sobre uma toalha, no convés, a tomar sol. Ele aproveitou e deitou-se no colchão, que flutuava serenamente, entre a intensidade do azul quase cobalto do céu e do verde-esmeralda do oceano, deixando-se levar pelo agradável balanço das ondas e com o pensamento a vagar muito longe dali. Sentiu um peso nas pálpebras e fechou os olhos, adormecendo logo em seguida.
De repente, aquele balanço confortável de seu sono pareceu mudar para um estado mais agitado e violento. O rapaz virou-se, involuntariamente, perdeu o equilíbrio e caiu ao mar. O choque com a água fez com que acordasse totalmente e em estado de confusão total. Ele sentiu que afundava na água fria e salgada do oceano e que seu fôlego fugia-lhe rapidamente. Tentou bater os braços e nadar, mas o movimento das ondas era muito violento. Ele engolia água e sentia-se enfraquecer. Uma dor na parte de trás da cabeça causava-lhe desconforto e ao passar os dedos, viu que estava a sangrar. Ele tentou manter-se na superfície, mas o esforço era muito grande. Sabia que se ficasse com o rosto na água, ia afogar-se, por isso tentou ficar de costas. A água fria ajudaria a aliviar a dor na cabeça. Ele fechou os olhos e deixou-se levar por uns minutos, esforçando-se por boiar, mas as ondas eram cruéis. Uma delas passou por cima dele e, engolindo água, sentiu-se afundar. Ele debateu-se, mas parecia em vão. Seus pulmões estavam inundados, seu corpo cansado e ele sentiu que as forças faltavam-lhe. Aceitou, finalmente, seu destino e deixou-se submergir, lentamente…
Pensou, enquanto afundava, que era muito jovem para morrer… O ar faltou-lhe de vez. Era a morte a envolver-lhe, num frio abraço, com mais afeição que ele esperava. O rapaz ainda pensou, antes de deixar-se desfalecer, que a ideia que tinha de morte era de uma agonia muito maior que aquela…
Um clarão acendeu-se por cima dele, num repente, fazendo-o crer que a lenda popular de que havia uma luz, que todos falavam e que ele nunca acreditou, quando se passa da vida para a morte, era mesmo verdadeira. Aquela luz, tão intensa e muito forte, bateu, em cheio, sobre seus olhos. Naquele momento, ele sentiu uma paz enorme e confortavelmente morna...
Abriu os olhos e viu, entre os raios de sol que entravam pela janela da sala, a familiar silhueta do gato malhado, sentado tranquilamente sobre o descanso da esquadria de madeira pintada de um já-fora-verde-musgo-algum-dia e que agora estava muito desbotada. O animalzinho olhava para fora, aproveitando o sol da manhã, que começava a elevar-se horizonte acima, num azul muito limpo e intenso, como somente o céu de inverno podia ser. Aquele ia ser um dia bonito, afinal… e, também, bastante frio.
O rapaz percebeu que havia tido, apenas, um sonho bastante vívido e pormenorizado, afinal. Sorriu, levantou-se, vestiu-se rapidamente e foi para a cozinha, seguido pelo gato, que esfregava-se em suas pernas, quase fazendo-o perder o equilíbrio, na sua faina de ganhar algum afago ou comida.
***
O homem levantou-se, como de costume e ao passar pela sala, não viu o rapaz deitado no sofá. Estranhou que a porta da varanda estivesse destrancada. Intrigado, vestiu um casaco e saiu. O rapaz estava a alguns metros da margem, caminhando lentamente, cada vez mais para dentro do mar. Ele ficou a observar, por uns instantes, o que acontecia. Apesar da temperatura da água, ele avançava, como se fosse alto verão. Não olhava para trás, nem hesitava. Parecia determinado a algo, que o outro não percebeu, a princípio. Prosseguiu, até onde a água batia-lhe, à altura do peito, deu mais alguns passos e submergiu, em silêncio.
Uma má sensação percorreu a espinha do pescador. O instinto gritou-lhe, mais alto que a razão, dentro de si. Ele livrou-se do casaco, tirou a camisa e os calçados e atirou-se ao mar. A adrenalina, que corria-lhe intensamente pelo corpo, não permitia que sentisse o frio a enrijecer-lhe os músculos. Sem conseguir avistar o rapaz, mergulhou, à procura do corpo, nas águas geladas do oceano. Viu uma sombra à frente, parecendo ser o corpo a afundar e nadou naquela direção, emergindo para tomar fôlego e mergulhando novamente, de modo a resgatar seu protegido.
O homem não pensava; apenas agia, movido pelo desespero e pelo medo de perder o amigo, para um inimigo cujas armas desconhecia completamente. Ele aproximou-se e tentou alcançar os braços do outro, que estavam esticados para cima, já sem movimento algum. Ele fechou os dedos à volta dos pulsos do outro e puxou-o para cima, com energia, para que emergisse, facilitando o resgate e permitindo-lhe, também, encher os pulmões de ar. Ainda deu um impulso no corpo, enquanto via-o subir, antes de alcançar a superfície da água.
Ao emergir, passou o braço à volta do peito do rapaz, que estava inconsciente, mantendo a boca e o nariz acima da linha da água. Ele aprumou-se e começou a nadar, arrastando-o para a praia, quase sem dificuldade e deitando-o, de costas, na areia, iniciando a massagem cardíaca, logo em seguida, na tentativa desesperada de trazê-lo de volta à vida.
- Por que fizeste isso? Onde é que estavas com a cabeça?
O homem não compreendia a atitude descabeçada do rapaz... E agora não conseguia fazê-lo respirar e despertar do estado inconsciente. Segurou-lhe o nariz, abriu-lhe a boca e soprou ar para dentro, voltando a massajar o peito do rapaz.
- Vamos lá! Vamos lá! Acorda, por favor!
Repetiu o procedimento, desta vez, soprando com mais força. Ao apertar-lhe o peito, com as duas mãos, percebeu uma espécie de convulsão e o rapaz tossiu, expelindo a água que havia engolido. O homem sacudiu-o e viu que ele abriu os olhos, confuso, como se não soubesse o que acabara de acontecer.
O pescador levantou-o, abraçando-o e, sem dizer nada, simplesmente chorou, sentindo um misto de alívio e alegria.  Um pouco abaixo da linha do peito, uma estranha pontada de dor sinalizou que algo estava errado.
Fechou os olhos e afrouxou o abraço, sentindo-se cair, numa espécie de desmaio. O esforço que fizera, até aquele momento, talvez houvesse sido demasiado para ele. A pontada ficou mais perfurante e pareceu mover-se com uma pressão a subir-lhe o peito.
Uma sensação fria na ponta do nariz e um leve e contínuo ronco, fê-lo abrir os olhos e deparar com o gato a mirar-lhe nos olhos e pressionar-lhe uma unha na altura do peito. Deu uma risada e levantou-se, percebendo que havia tido um sonho absolutamente invulgar.
***
 - Tive um sonho muito estranho e detalhado.
- Por isso estás levantado tão cedo?
- Já não é tão cedo assim. É quase hora de sairmos para o mar. Já preparei o café…
- Também tive um sonho pouco comum. Acho que ficamos impressionados pelo relatório que o médico nos trouxe…
- Provavelmente…
- Queres falar sobre isso?
- Não. Não, ainda…
***
Quando voltaram da lida matutina, numa ensolarada quinta-feira, algumas semanas depois, notaram um movimento diferente na rotina do cais. Havia um burburinho maior que nos dias normais. A matrona vinha pelo madeirame, com seus passos pesados e sua face rosada, castigada pelo sol e vento do inverno. Ao aproximar-se dos dois, disse-lhes, meio ofegante:
- Ainda bem que chegaram. O doutor quer vê-los imediatamente.
- Aconteceu alguma coisa?
- O doutor disse para trazê-los com urgência. Não me perguntem mais do que eu sei…
Mas eles já a conheciam e perceberam que ela evitava olhar-lhes diretamente. Escondia algo, com certeza, mas havia sido instruída para não dizer-lhes nada, além do necessário. Os dois homens trocaram olhares preocupados e apressaram o passo, atrás da esbaforida mulher, na direção do consultório, no pequeno Posto de Saúde da ilhota.
Quando chegaram, foram recebidos pelo médico, que estava acompanhado de um desconhecido, vestido de maneira muito formal para a rotina insular. O visitante cumprimentou-os com um firme aperto de mãos e, concentrando sua atenção no rapaz, perguntou-lhe:
- Sabes quem eu sou?
- Não. Não sei. Deveria?
O homem sorriu, de uma maneira estranha. O rapaz e o pescador tentaram esconder a preocupação que passou-lhes pelas faces, quando entreolharam-se.
O estranho limpou a garganta, com um típico ‘hahn-hahn’ e começou a falar…

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