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sábado, 24 de outubro de 2020

Deuses do Mar

 


Uma brisa suave entrava pela grande porta de correr, que ligava a varanda à sala de estar. Todas as janelas haviam sido abertas desde cedo, naquele dia quente e ensolarado. Não havia uma única nuvem a manchar o intenso azul do céu.

Depois de um leve e breve café da manhã, decidimos que íamos passar a maior parte do dia à beira-mar. Seria apenas uma curta viagem de carro até a praia mais próxima, onde poderíamos nos refrescar e relaxar juntos. Afinal, para que servem as férias de verão?

- Eu nasci na ilha, sabes disso. O oceano faz parte da minha existência desde que eu me conheço por gente.

- Tu és filho de um daqueles deuses do mar! Tenho certeza.

Ele disse aquilo e abriu seu largo, enigmático e adorável sorriso, que sempre fazia a tristeza desaparecer dos meus olhos, por um momento, como se nunca dantes tivesse ali estado.

- Meu ‘pai’, então, está muito sereno hoje. Até as ondas estão pouco agitadas, quase uma calmaria, ​​no momento. Ele provavelmente me sente por perto...

- Eu pensei que o oceano fosse, de alguma forma, bem diferente disso. Eu conheço o Mar Mediterrâneo. Já estive lá algumas vezes, mas não é, definitivamente, assim. O oceano parece muito mais poderoso e a água é tão mais fria!

- É melhor ficarmos pouco tempo aqui no sol direto, pois não estamos acostumados e nossas peles são muito pálidas, para ficarem expostas assim a estes raios escaldantes.

- Eu, às vezes, duvido que tu tenhas, realmente, nascido na ilha...

- Quando eu era jovem, tive uma grave queimadura de sol e tenho muito medo de repetir uma experiência daquelas.

- Ah! Eu sei muito bem o que tu queres dizer. Cometi o mesmo erro quando estava no colégio. Podes-me ajudar com o protetor solar, então, por favor?

- Claro! Vira-te, um pouco.

 ***

O vento soprava forte, anunciando uma tempestade. As ondas batiam, ruidosamente, na costa e nas rochas. Nenhum barco havia saído para o mar. O céu, muito nublado, estava mais escuro que o normal, para aquela hora do dia. Algumas bravas aves marinhas esperavam na praia, como se estivessem contando os minutos para pescar, mas o vento não as deixava chegar muito perto das águas.

Eu estava sentado, sozinho e em silêncio e sem nenhum pensamento sólido em mente. Gostava de estar ali, acompanhando o vai-e-vem das ondas, quase em transe, como se a esvaziar minha alma de todos os problemas. Estava tranquilo, por haver enterrado aqueles sentimentos pungentes do meu passado. Era incrível como eu havia mudado nos últimos meses.

Ouvi o trovão, ao longe, e levantei-me, pronto para sair da praia, antes que a chuva me alcançasse e caísse fria e pesada sobre mim.

Algo em minha mente, porém, me disse para esperar. Foi uma sensação estranha, como se alguém me estivesse chamando. Eu olhei em volta. O vento soprava cada vez mais forte e o oceano parecia mais selvagem.

Um cão corria ao longo da linha do mar, seguido por um menino de cerca de cinco anos, atento ao animal, mas totalmente alheio a qualquer perigo. O cão correu atrás de algumas das gaivotas que descansavam na areia, junto às rochas. O menino vinha, sorrindo e brincando, atrás de seu animal de estimação.

A chuva, como já devia ser esperado, caiu sobre todos nós. Os dois não pareciam se importar com nada, além de sua brincadeira.

O animal escalou o rochedo e acabou afugentando os pássaros, que lá estavam. Uma onda bateu, ruidosamente, contra as grandes pedras. Eu pressenti o perigo e corri, mas não fui rápido o suficiente.

O menino pisou na superfície molhada e escorregou. Ele tentou, mas não conseguiu agarrar-se a nada e foi abraçado pela onda que se seguiu. O pobre cão ficou totalmente perdido, tentando fazer alguma coisa, correndo e ganindo em desespero.

Antes que eu os alcançasse, o animal pulou no oceano, atrás do rapaz, que já não estava à vista.

Eu gritei, mas era tarde demais. Eles desapareceram em segundos, engolidos pelas águas frias e agressivas.

Eu não pensei muito. Apenas agi por instinto.

***

- O que foi que tu fizeste?

Eu virei a cabeça.

- O que tu achas que eu fiz?

- Como foi que aquilo aconteceu?

Evitei a pergunta.

- Ele está vivo, não está? Ambos estão. É isto que importa, na verdade...

- Sim. Mas…

Eu olhei pra ele. Ele segurou meus braços, com firmeza e tentou falar devagar e com calma.

- Havia uma tempestade e o mar estava muito agitado. Como tu poderias retirá-los das águas, assim? Como aquela tempestade poderia, simplesmente, parar e o mar ficar tão plácido?

Evitei seus olhos.

- Eu não sei. Como eu iria saber?

 - O que tu estás escondendo?

Fechei meus olhos e as memórias vieram rápidas na minha mente. Quando os abri de volta, seus olhos estavam fixos nos meus. Decidi que não poderia evitar os fatos, nem a verdade, então falei.

***

- Meu pai... me ajude!

Saltei das rochas, para dentro do mar. Senti como se o tempo tivesse parado. As águas, de repente, se acalmaram e as ondas quase desapareceram.

Eu vi o menino e seu cão bem perto. O animal arrastava o dono pela camisa e vinha na minha direção, como se soubesse que eu estava ali para tirá-los do perigo que corriam. Ambos haviam engolido bastante água e o menino estava quase inconsciente.

Ele tentava respirar. Eu o puxei de volta para a praia e massageei seu peito, mantendo seu rosto virado para o lado. Ainda quase inconsciente, ele expeliu um pouco de água, tossiu e aquilo deixou seu rosto mais corado.

O cão saltava ao nosso redor, ganindo e inspecionando o amigo com o focinho.

Eu ouvi alguém gritando. Dois homens vinham de direções diferentes. Um deles eu conhecia muito bem.

O homem se aproximou do menino e segurou-o contra seu peito. Aparentemente, havia-me visto salvando seu filho...

O rosto amigável do outro homem estava voltado para mim, com seus curiosos olhos azul-esverdeados, muito abertos.

Olhei para o mar, que voltou ao seu estado normal, quase que imediatamente. A tempestade se fora. Ao longe, a espuma branca das novas ondas desenhava figuras engraçadas na água. Uma onda específica parecia ser mais alta que todas as outras. De repente dissolveu-se e deixou a superfície da água quase intacta...

Sorri para mim mesmo e encarei meu melhor amigo, que estava parado ao meu lado.

Ele olhava para mim, seriamente, com seus olhos brilhantes muito arregalados.

***


domingo, 24 de fevereiro de 2019

Uma noite a mais (Parte 1)



- Deve ser, pelo menos, a quinta vez que ouves esta canção.

- É, eu sei.

- O que se passa?

- Nada… que importe.

- Sei. Se precisares de alguma coisa, fala. Vou deitar-me.

- OK.

Eu não me virei. Estava com a mente ocupada demais a contemplar o imenso vazio à minha frente. Meus olhos perderam-se na escuridão, que se estendia para além da linha do horizonte, ao longo de um oceano pouco iluminado pelas luzes à beira da praia da baía.

Estava uma noite fresca e calma. Era tarde e já não havia quase nenhum movimento nas ruas. Um estranho silêncio enlaçou-me com seus braços frios, provocando um calafrio, que percorreu-me a espinha. Eu tremi, mas sabia que não era de frio.

A canção recomeçou. Eu havia ativado a função de repetição, de propósito. A voz forte e pungente da cantora penetrou-me os pensamentos, como se fosse uma estalactite de gelo, precipitada do teto rústico e sombrio de uma caverna, para dentro de uma lagoa de águas calmas, mas escuras e profundas.

Quantos mistérios e segredos podem esconder-se abaixo da quietude aparente daquela superfície praticamente intocada?

Fechei os olhos e respirei fundo, mergulhando em meus próprios pensamentos. Cada palavra da canção servia de pano de fundo para uma sequência caleidoscópica de imagens, que traziam meu passado e minhas recordações de volta ao presente, com uma nitidez cruel e carregada de emoções tão vívidas quanto aquelas memórias. 

…” They say that love can move a mountain
    They say love can break your heart 
   They say love can make you forget 
   Things that happened in the past” …  (*)

Se aquelas palavras eram verdadeiras, eu não havia experimentado nada similar… até então…

***

Acariciei a cicatriz, como se ela fosse um animal de estimação.

Incrível como nos apegamos às marcas deixadas, tanto no corpo, quanto na alma e as acariciamos sempre que nos sentimos frágeis, como se aquilo nos fosse dar alento e abreviar a solidão ou a dor. É como afagar nossos erros, dando-lhes uma visão mais condescendente. É como trazer alento ao coração, amenizar o efeito de um pecado e conceder uma hipótese de salvação à alma do pecador.  

…”So wave goodbye to heaven for me

  I've thrown it all away

 Just to spend one more night with you”…(*)


- Ainda estás assim?

- Assim como?

- Tu sabes. Eu não sou uma criança, que tu possas enganar facilmente.

- Eu sei que não…

Minhas mãos deslizaram suavemente pelas teclas do piano, talvez, procurando, instintivamente, esquecer aqueles mesmos acordes que não me saíam da cabeça ou dos dedos, já há algumas semanas.
Eu li, uma vez, em algum lugar, que as teclas do piano representam nossos sentimentos. Enquanto as brancas denotam nossas emoções positivas, as pretas representam as negativas. A harmonia, entretanto, só é conseguida com um equilíbrio entre ambas. Não se pode fazer boa música, sem usar tanto as teclas brancas quanto as pretas, assim como não se pode viver a vida verdadeira e completamente, sem um equilíbrio entre as emoções boas e as não boas.

- Toque a música até o último acorde. É melhor exorcizar esta dor de uma vez por todas!

Olhei para ela, surpreso. A menina havia-se transformado numa jovem muito perspicaz. Então eu toquei. Não exatamente para exorcizar, mas para sentir a dor, tão vívida como se estivesse sendo experimentada, pela primeira vez, naquele momento.

Começando quase como um noturno, a acariciar, as teclas brancas e a martelar, levemente, as pretas, minha dor foi aumentando numa progressão de notas e acordes, que se misturaram à minha voz baixa e fraca, no início, porém elevando o tom, como num sentido blues, até que todos os meus nervos reagiam àquela sequência de notas e palavras. Meus olhos e minha alma transbordavam.
…” They say that love can last forever
    They say love can last a day 
    They say love is like an ocean 
    For us to sail away” … (*)


Eu ia ao fundo do poço, para tomar impulso e voltar à superfície. Era necessário descer ao mais fundo do fundo, para poder voltar, com as forças redobradas.
***
- Foi aqui?

- Sim.

- Vamos descer.

- Não.

- Vamos, sim. Vem comigo.

Saiu à minha frente, antes que respondesse, descendo pelo caminho ao lado do penhasco. Meu estômago doeu. Eu segui, sem dizer nada. O caminho não era seguro e eu devia estar por perto, caso acontecesse algo, embora soubesse que estava a me preocupar sem razão.    

Quando chegamos ao fundo da trilha, a praia abria-se, convidativa, embora ainda fosse primavera. O mar rugia, como se a ameaçar, embora eu nunca tivesse medo daquele bramido. Eu havia nascido na ilha. O mar sempre fora um amigo. Não tinha por que temer um amigo.  

Caminhamos pela orla, com os pés na água fria do oceano, em silêncio, por uns momentos. Um grupo de ruidosas gaivotas voavam por sobre nossas cabeças e o vento fustigava nossos rostos.

- Foi um acidente, não foi?

- Foi. Um infeliz acidente.

- Vocês se amavam muito, não?

Eu não pensei.

- Nós éramos grandes amigos. Desde o tempo em que estudávamos juntos.

- Isso não é uma resposta.

- Não. Não é.

Olhou-me com aquele ar de quem quer saber a verdade, quando já não há verdades a saber.

- Então por que vocês decidiram que deviam ter um filho?

- Porque era a vontade dela. Era melhor termos um filho, juntos, sabendo do respeito que tínhamos um pelo outro e sabendo que era melhor isso, que esperar por um sentimento que não existia. Ela era uma mulher prática.

- Vocês nunca se arrependeram da decisão?

- Claro que não. Por que razão haveríamos de nos arrepender?

- Sei lá. Não havia amor…

- Havia um respeito e um carinho muito grande. Ela tinha medo de envelhecer, antes de poder ser mãe… coisas de mulheres!

- Haha! Até parece…

Eu ri. Um riso pálido, quase sem graça. Sabia que ia ter que contar a história toda, pela milionésima vez.

- Achas que vocês foram felizes?

- Talvez. Antes de…

- É estranho…

- O que?

- Aquela vossa relação. A doença. O acidente.

- Não é estranho. O acidente foi uma consequência da doença.

- Mas tu também podias ter morrido.

- Acho que não. Eu só tive uma queda feia, quando tentei ajudar. Falta de jeito, mesmo…

- A cicatriz é grande.

- A dor é maior!

Calou-se. O mar parecia explodir contra as rochas. Caminhou uns segundos, em silêncio, e virou-se. Franziu os olhos, como se estivesse tentando ver algo, atrás de mim, à distância. Pareceu-me que uma nuvem negra se passou pela sua face jovem.

- Pai?

- Que foi?

- É ele, lá em cima do penhasco?

- Hã? O que ele faz aqui?

***

(*) One more night with you : Ged McMahon featuring Kaz Hawkins


***



domingo, 9 de setembro de 2018

As Pedras Grandes (Parte 2)


- Precisa de ajuda?

- Oh. Eu tinha esperança que vocês viessem. Tenho medo do que eles me possam fazer.

- Eles não lhe vão fazer nenhum mal. Por que fariam?

- Eu preciso voltar para a ilha, mas já não vejo a embarcação.

- Embarcação? Não sei de nenhuma embarcação. Por que não vai de carro ou de ónibus?

Ela olhou-nos com uma expressão estranha, como se não soubesse do que falávamos.

‘Deve estar com Alzheimer. Melhor tentar ajudar. Ela parece tão velha’, pensei

- Venha connosco.

Demos-lhe o braço e ela aceitou a ajuda, caminhando ao meio, apoiada aos nossos braços. Parecia mais tranquila. Do que ela tinha medo, afinal?

Os homens mal notaram que nós íamos saindo do local, com a estranha mulher junto de nós. Estavam ocupados com outra coisa.

Já no centro da cidade, depois de atravessar a ponte, deixamo-la no terminal urbano, para pegar o ónibus para o Ribeirão da Ilha, onde ela disse que vivia. Antes de passar pelo portão, todavia, voltou-se e deu um abraço afectuoso em cada um de nós. Depois tirou um pequeno artefacto do bolso do vestido, ao qual estava preso um cordão preto. Entregou-o e disse que usasse para protecção contra todos os males. Aquele amuleto era muito poderoso, segundo ela.

Eu não disse nada. Fiquei a olhar e a imaginar as coisas que as pessoas acreditavam, ainda, em pleno século XXI, mas fiquei feliz que ela estivesse bem e agradecida pelo pequeno gesto que fizemos. Vivemos numa época tão estranha. Por vezes sinto saudades daquela ingenuidade da crença em bruxas e outros seres fantásticos.

Ficamos ao portão do terminal até vê-la entrar, hesitante, no colectivo que ia levá-la de volta à casa, não sem antes olhar para trás e certificar-se que estávamos ali, ainda. Acenamos, uma última vez e fomos embora.

***

Uma velha mulher, vestida de negro, caminhava pelas ruas do Ribeirão da Ilha, à procura de uma determinada casa. Ela parecia um tanto perdida, pois o lugar estava muito diferente do que ela conhecia. Na dificuldade de localizar-se, com precisão, tentava falar com as pessoas que por ela passavam, mas pouca atenção tinha, daqueles que caminhavam às pressas, pelas ruas do bairro, localizado no interior da Ilha.

Teve uma indicação, finalmente, de um jovem, para tentar a rua que descia na direcção da praia, onde havia uma casa antiga, com a cobertura de telhas em calha, muito ‘encarunchadas’ pelo tempo. A casa era pintada de branco, com janelas azuis e era fácil de ser reconhecida, por ser a segunda casa depois da igreja e pelo roseiral, sempre florido, na frente. A descrição que o rapaz fez, pareceu satisfazê-la, pois seus olhinhos negros abriram-se um pouco, com um brilho diferente e uma expressão de agrado iluminou-lhe a face enrugada pelo tempo.

Ela olhou na direcção indicada, deu um longo suspiro e partiu rumo ao seu pretenso destino. Quando chegou à rua da igreja, reconheceu logo a casa e chamou do portão, com a voz meio afectada por causa da idade e da garganta seca pela sede. Apesar de haver chamado somente uma vez, a porta logo abriu-se e uma moça muito bonita veio atendê-la.

A jovem acolheu a estranha, com bondade, apesar de pensar que tratava-se de uma mendiga, de passagem por ali. A anciã sorriu para ela, de maneira um pouco desajeitada e estendeu-lhe a mão esquerda. A moça retribuiu o cumprimento, sem dizer nada, mas com um sorriso aberto, como se reconhecesse uma velha amiga. A velha sorriu, tranquila.

- Tu és uma de nós. Tu sabes porque eu estou aqui…

A moça assentiu, balançando a cabeça, muito levemente, ainda a sorrir e convidou-a a entrar. No mesmo instante, ouviu-se um trovão, não muito longe, e nuvens escuras cobriram o céu da tarde.

Acordei em sobressalto.

- O que foi aquilo?

***

- Andei a ler sobre as bruxas da ilha.

- Ah, sim?

- Uh-hum… É interessante, mas descobri que muita coisa que se dizia era baseada em crendices e, algumas eram mesmo invenções das pessoas…

- Como todas as lendas.

- Acho que muita gente foi prejudicada pela maldade de outras.

- Sempre foi. Maldade, ignorância e medo.

- E interesse.

- Isso mesmo!

- Será que a nossa ‘amiga’ teria sido uma delas? Ela parecia bastante assustada e com medo daqueles homens.

- Não sei dizer.

- Por qual razão as pessoas fazem este tipo de coisas? Que prazer há em fazer maldades?

 - Já tens idade para saber que o ser humano é extremamente complexo. Inveja, medo e ignorância podem causar grandes males. Sabes que, em inglês, a Idade Média, era chamada 'The Dark Ages', não sabes?

- Sabia que foi uma das piores épocas da história da humanidade. Muitas bruxas foram queimadas vivas. Bastava uma pessoa ter pensamentos contrários ao que a Igreja queria que pensassem, para serem acusados de bruxaria e serem condenados. Sei que muitos livros, com informações importantíssimas, foram destruídos. Muitos inocentes foram mortos. Até pelas pestes aquelas pobres pessoas foram acusadas e condenadas.

-  Até pouco tempo atrás acreditava-se que as bruxas foram mais caçadas no auge da Idade Média, porém pesquisas e documentos provaram que foi no fim daquela época e no início da Idade Moderna, já no Iluminismo, quando o protestantismo foi criado. Sabias que muitas das coisas que se afirmavam sobre os poderes das bruxas, como voar nas vassouras e coisas do género, eram alucinações provocados por um fungo que crescia no centeio e que, mais tarde seria usado para sintetizar o LSD? O centeio era armazenado por muito tempo e os fungos cresciam livremente. Quando faziam o pão, nunca se preocupavam em verificar nada. Era uma época difícil e eles não iam jogar o cereal fora, a custo de não terem o que comer.

- A sério?

- Podes imaginar as coisas que as mentes deturpadas e ignorantes podiam fazer, dizer, acusar, sob o efeito de alucinogénos?

- Mas nem todas as bruxas eram más. Havia aquelas que eram também parteiras, especialistas em ervas, em rezas… Algumas das nossas ancestrais devem ter vindo para cá, com estas "especialidades", fugidas das perseguições na Europa.

- Não sei dizer, ao certo, se a maioria era boa ou má, mas sei que, ainda hoje, pessoas inseguras, invejosas, maldosas e ignorantes levantam calúnias umas contra as outras e as pessoas tomam aquilo com verdades, sem nem ao menos verificar a origem das acusações. Basta ires às redes sociais e tens um milhão e meio de exemplos… e já não precisamos de fogueiras para queimar as bruxas modernas.

- Basta um ‘click’, um ‘like’, um ‘share’ ou um comentário…

- Estás a ver? Isso é pior que fogo em palha seca. E vira um incêndio em muito pouco tempo, pois todos têm, sempre, uma opinião sobre aquilo que, na verdade, nem conhecem.

- Pois. É pior que histeria em massa. Eu li sobre a lenda de uma mulher muito bonita que foi acusada de bruxaria na ilha, porque enfeitiçava os homens e dava nós nas roupas penduradas a secar e cortava e emaranhava as tarrafas e redes dos pescadores...

- Uma mulher bonita “enfeitiça” os homens… Na verdade, são eles que se enfeitiçam, mas sabes muito bem como uma mulher determinada pode causar muitos “danos”, por assim dizer.

Riu-se. Sabia muito bem do que eu falava.

- E também como mulheres invejosas podem difamar uma boa moça, por puro despeito… ou os homens, por rejeição. Não há limites para a maldade humana…

***

- Foi tão gentil da parte dela me dar este amuleto. Sorte é sempre bom.

- Cuidado com as coisas em que acreditas.

- Não tem a ver com o que eu acredito e, sim, com gentileza.

- Mesmo assim. Cuidado.

- Vou ter… Será que traz sorte no amor, também?

Olhou para mim com um sorriso. Eu só levantei o sobrolho, em sinal de desconfiança e desaprovação. Deu uma gargalhada.

- Eu sabia que ias fazer esta cara.

Saiu, na direcção da praia, a passos apressados. Não ia esperar por uma resposta, de todo jeito.

Fiquei a olhar, da varanda, enquanto caminhava pela praia, com os pés na água do mar. Parecia uma criança. Parou perto das grandes pedras e ficou a olhar, como se as examinasse. Aquelas histórias de bruxas pareciam ser a fascinação do momento e, as grandes rochas, o ponto de maior interesse.

Eu ri. É bom que tenha interesses por coisas menos corriqueiras e consiga pensar e tirar, por si, conclusões sobre o que lê.

***

Estávamos sentados na varanda, a olhar as luzes reflectidas no mar, à noite, como costumávamos fazer, quando o tempo estava bom. As canecas de café jaziam vazias sobre a mesinha. Estávamos perdidos em pensamentos, sem necessariamente falar. Cada qual ocupava-se com seus próprios pensamentos, …ou quase…, tendo as grandes rochas como pano de fundo. 

- Lembras da primeira coisa que ela disse?

- Não. Tu lembras?

- Claro. Ela disse: “Eu tinha esperança que vocês viessem. Tenho medo do que eles me possam fazer.”

- Ah. Ela estava assustada, como sabes.

- Eu me referia ao “eu tinha esperança que vocês viessem”. Como ela podia ter esperança que NÓS viéssemos? Como poderia saber?

- Foi força de expressão.

- Será?

- Não queres que eu pense que ela sabia, queres? Essa história já deu o que tinha que dar. Não te impressiones mais que o necessário.

- E se ela, realmente, sabia?

- Como poderia saber? Mandaste alguma mensagem por e-mail ou chat? Nem imagino aquela mulher, tão velha, com um computador nas mãos… nem com as mãos em um computador.

Percebi que não achou graça da minha piada, por isso, não continuei a conversa. Passados uns minutos, em que parecia estar com os pensamentos muito longe dali, voltou a comentar.

- Esta história ainda não me deixa dormir.

Lembrei do meu sonho e questionei.

- Tens sonhado? Algum sonho incómodo?

- Mais ou menos.

- Tens sonhado ou não?

Voltou-se e olhou-me directa e seriamente.

- Tenho.

Ouvi, com atenção, o sonho, que era idêntico ao que eu havia tido. Impressionante como as histórias eram tão iguais, até mesmo nos pequenos detalhes. Devia haver alguma explicação plausível para aquilo.

Estávamos, ambos, impressionados pela conversa que havíamos tido, conhecíamos o lugar, havíamos discutido detalhes… mas por qual razão os sonhos eram idênticos nos mínimos detalhes, eu ainda não sabia dizer.

Fiquei em silêncio e aquilo foi suficiente para lançar um pouco mais de lenha à fogueira da dúvida e da imaginação. Aquele sorrisinho era um sinal de vitória, mas eu fiz de conta que não o percebi.

- Não achas melhor irmos ao Ribeirão da Ilha, fazer uma pequena pesquisa?

- Subtil… muito subtil… mas acho que devemos, sim.

***

- Ó de casa!

Riu-se de mim, ante a minha demonstração de conhecimento da cultura local.

- O quê? Não é assim?

- É sim.

A porta azul abriu-se e uma moça muito bonita apareceu na soleira da mesma. Reconheci-a no momento que ela sorriu. Pelo jeito, tivemos o mesmo pensamento, pois ambos sorrimos com satisfação. A casa era aquela mesma… e a moça também.

Tínhamos tantas perguntas a fazer, mas mesmo antes que abríssemos a boca para dizer qualquer coisa, vimos o vulto vestido de negro aparecer por detrás da mocinha.

- Entrem. Já esperávamos por vocês.

***

terça-feira, 28 de agosto de 2018

As Pedras Grandes (Parte 1)



- Como assim, pedras grandes?

- Itá, em Tupi-Guarani, significa pedra e gûasu, significa grande…

- Foram os índios que deram esse nome?

- Não sei ao certo, mas faz sentido. O mais engraçado é a lenda local.

- Que lenda?

- Das bruxas…

Seu interesse aumentou.

- Conta, vai. Quero saber a lenda.

- Diz que as bruxas da ilha queriam fazer uma grande festa e escolheram aquela praia por ser a mais linda da região. Convidaram todos os seres fantásticos…

- Quem eram estes?

- Os lobisomens, os vampiros, a mula sem cabeça e, até, o Curupira, Boitatá e todos os outros seres do folclore local…

- Uau!

- Mas não convidaram, de propósito, o diabo.

- Por quê?

- Porque o diabo cheirava mal, a enxofre e, porque, na sua arrogância de superioridade, o bicho sempre fazia as bruxas lhe beijarem o rabo, para demonstrar submissão a ele.

- Uff! Que nojo!

- Pois é.

Dei uma gargalhada e continuei. Eu adorava a plateia de uma pessoa só.

- Quando a festa estava em alta e todos se divertiam a valer, adivinha quem aparece, de surpresa e muito irritado, a trovejar sua ira desaprovadora…

- O diabo?

- Exatamente. Ele estava muito enfurecido mesmo e, para castigar as bruxas, por terem deixado de lado sua majestosa figura, lançou uma maldição e transformou-as em pedras… grandes… que ficaram presas ao local, desde então.

- Oh!

- Por isso, o nome do lugar é justamente este: Itaguaçu, ou pedras grandes.

- Isso não é verdade, é?

- É uma lenda… É mitologia. Claro que acredita quem quiser, mas é uma história engraçada e interessante.

Ouvi um trovão. Aparentemente teríamos chuva naquela noite quente.

Com o clarão dos raios, seus olhos ficaram meio arregalados, assim meio perdidos, como se estivesse a imaginar a história, em detalhes. Deixei que sua imaginação voasse solta.

Outro raio. Aquele caiu mais perto, pois o estrondo foi maior e o tempo, entre o raio e o trovão, muito curto. Lembrei das aulas de ciências, na escola.

- Vamos entrar. A chuva não tarda.

- Vamos.

Entrou com pressa, como se estivesse com medo. Eu ri.

Os trovões continuaram e em pouco tempo tivemos uma tempestade de verão, daquelas poderosas. Eu, para falar a verdade, gostava das tempestades de verão, pois elas limpavam o ar e refrescavam a terra.

Um clarão, mais forte que os anteriores, foi seguido de um estrondo muito forte. Aquele caiu muito próximo de nós e levou a energia eléctrica da rua inteira. Provavelmente havia atingido um poste, ali na redondeza. Já não era tão cedo, por isso decidi que iria para a cama, ao invés de esperar que a energia voltasse. Pela manhã, já estaria tudo normal.

Adormeci quase de imediato, assim que deitei a cabeça no travesseiro. Não pensava que estivesse com tamanho cansaço.

Tive um sonho estranho, com as pedras grandes da praia. No meu sonho, uma das pedras havia sido atingida por um raio e havia aberto ao meio. A rocha era oca e tinha o formato de uma pessoa escavado por dentro da mesma. Achei aquilo muito peculiar. Eu ainda examinava o interior da pedra, quando alguém, atrás de mim, disse:

- Esperei tanto tempo por este momento.

Eu virei-me e vi aquela mulher muito magrinha, vestida de negro, com os cabelos brancos desalinhadamente presos por um lenço de cabeça, também negro. Lembrava uma daquelas figuras eu havia visto, quando criança, de uma carpideira. A pele era tão enrugada, que parecia um pergaminho.

- Qual momento?

- Não foi justo. Não foi nada justo.

Ela repetiu a frase, sem me responder, mas apertou os olhinhos escuros, como para ver-me melhor. Ela levantou a esquelética mão e tocou-me a face. Seus dedos eram assustadoramente frios.

- Não foi nada justo. Não foi, não.

Ela balançou a cabeça e virando-se, começou a caminhar pela praia, na direção oposta à minha casa. Eu ainda a ouvia murmurar aquela frase estranha, enquanto ia-se embora, absorta em seu mundo próprio e a balançar a cabeça, de forma desconsolada, com o corpo levemente curvado para a frente.

- …Nada justo… nada justo…

***

- Tive um sonho estranho.

- Eu também…

- Deve ter sido por causa da conversa de ontem e da tempestade.

- Pois…

Seus olhos pareceram viajar. Devia estar a lembrar-se do sonho.

Pegou a caneca de café recém-passado e foi até a varanda, a observar a praia. Ficou por uns minutos a olhar numa única direcção, como se observasse, atentamente, algo que se passava. Eu fui até ao seu lado e olhei na mesma direcção.

Um grupo de homens, ao longe, parecia ocupado com algo na beira da água. Eles estavam de pé, formando um círculo, à volta daquilo que eu julguei ser um animal morto, provavelmente arrastado pelo mar até a praia, depois da tempestade da noite anterior.

- Deve ser algum animal, trazido pela maré.

- Pois. Mas não é para aquilo que eu estou a olhar. Olha mais adiante, um pouco, aquela figura atrás da outra rocha, como se estivesse a esconder-se dos homens.

- Onde?

Apontou o dedo para a área atrás de uma das grandes pedras, justamente aquela que tinha o formato mais humano, com uma cabeça, formada por uma pedra redonda, que jazia em cima daquela maior, que parecia constituir o corpo.

- Lá!

Por detrás da grande rocha, estava uma pessoa, meio encurvada e vestida com roupas escuras. A impressão que tinha era que estava a esconder-se dos homens, por algum motivo. O que tornava a figura mais estranha era a semelhança com a personagem com a qual sonhara na noite anterior. Mas minha surpresa ainda estava por tornar-se maior, a partir do momento em que ouvi:

- Parece com aquela velha que eu sonhei na noite passada…

- O quê?

Como seria possível que nós dois tivéssemos sonhado com a mesma personagem, na mesma noite?

- A sério? Eu também sonhei com uma figura assim…

- Isto é tudo muito estranho! Ou, então, é uma grande coincidência. Vamos até lá!

- Vamos!

***

- Algo não está certo.

- O quê?

- Não sei. Sinto uma tristeza tão grande…

- Ainda tens o amuleto?

- Sim. Por quê?

- Joga fora. Atira-o ao mar.

- Mas ela disse…

- Não interessa o que ela disse. Joga-o fora. É isso que te está a influenciar. É o poder da sugestão.

- Nós a ajudamos e ela deu-mo de presente. Não posso fazer isso.

- Então eu faço. Foi um presente envenenado, isso sim. Ela encheu tua cabeça de sandices.

Arranquei-lhe o amuleto da mão e, indo até a beira d’água, atirei-o mar adentro. Pela força que eu usei, ia ser praticamente impossível resgatá-lo, se por algum motivo quisesse. As águas da baía estavam calmas e o facto de atirar o objeto para além da zona de formação das ondas, iria dificultar qualquer busca, se houvesse, mais ainda. Voltei para dentro, com um ar de satisfação estampado no rosto.

- Não foi justo. Não foi nada justo…

- O quê?

Olhou-me de uma maneira muito estranha, como se uma possessão tivesse tomado conta de seu corpo. Balançou a cabeça de forma desconsolada, olhando através de mim, com o corpo levemente encurvado para a frente.

- Nada justo… nada justo…

***