As belas escamas verde-azuladas refulgiram
contra o firmamento, pouco depois que o enorme dragão alçou seu voo, da
clareira ao pé do laranjal.
O velho homem fica a acompanhar,
com o olhar, seu sensato e alado amigo, que vai desaparecendo, na tranquilidade
do céu de Verão, enquanto ganha, aos poucos, a distância.
O homem sorri, um tanto
tristemente, já com uma certa saudade a contundir seu peito e leva a mão à
bolsa de couro, cuja alça lhe cruza o peito. Com as pontas dos dedos ele apalpa
umas poucas frutas que lá se encontram e sente-se, de uma maneira estranha,
confortado.
Atrás de si, um menino, de não
mais que nove anos e um outro homem, adulto, também observam a trajetória alada
do dragão, que vai tornando-se quase invisível, entre as finas nuvens, que mais
parecem flocos de algodão, a decorar a larga abóbada azul celeste, aberta sobre
suas cabeças.
Um fino fio de fumaça sobe do
meio da clareira e dispersa-se no ar. O velho não sabe se lamenta ou se
regozija com aquele momento em que suas vidas devem voltar ao normal, ou, pelo
menos, o mais próximo possível da normalidade. Os últimos tempos passaram por
sua mente e ele, apesar das dificuldades que superou, sentiu uma certa
nostalgia.
Ele havia mudado, com toda a
certeza. Já não era nem parecido com aquele homem que chegara há muito tempo a
aquele lugar, cansado, derrotado e com mais que seu orgulho profundamente
ferido, além de uma grande cicatriz a marcar-lhe o peito e a lembrar-lhe de sua
condição de ser humano frágil e vulnerável.
A magia daquele lugar
pareceu-lhe, de repente, haver desaparecido de vez. Restava-lhe a magia da vida
e as surpresas que o existir pode, eventualmente, esconder. O som dos regatos
gémeos, a correrem muito próximos, fê-lo sentir-se cansado e, ao mesmo tempo,
relaxado.
O velho despediu-se do homem e do
menino e caminhou para aquilo a que conseguia chamar de lar: uma caverna
adaptada, com um despojamento evidente. Ele, na verdade não precisava mais que
aquilo, mas decidiu que ia construir um casebre simples e nele viver, como um
fazendeiro normal.
No meio da clareira, onde as
cinzas de uma certa laranjeira ainda cobriam o chão, ele elevou seu novo lar,
pacientemente e sem pressa nenhuma, por semanas a fio.
Quando reinstalou-se, sentiu que
sua vida anterior fosse apenas uma memória, que ficava cada vez mais distante e
nebulosa. Ali era, agora, seu lar e era onde ele sentia-se mais aconchegado e
seguro, mas o velho sentiu que, com aquela decisão, ele estava, na verdade, a
plantar, em definitivo, suas raízes. Até bem pouco tempo atrás, esperava
ansiosamente pelo momento em que iria voltar para sua vida de cavaleiro. O
tempo passou em seu ritmo próprio e ele sentiu que estava mais próximo da vida
de agricultor que de cavaleiro, além de já não ter forças nem ânimo para
combates, banquetes ou a vida fútil que outrora vivia. De uma certa forma,
sentia-se mais útil e ligado a aquele lugar, do que em qualquer outro, mas
sentia a falta de algo, que ele não sabia descrever.
E veio a noite mais escura do
ano.
E ele pôs-se a pensar e sentiu
falta de seu amigo alado. A grande cicatriz latejou no peito. Ele tentou ignorar,
mas não conseguiu. Tentou dormir, mas não sentia sono. Resolveu levantar-se e
apanhar um pouco de ar.
Lá fora, uma brisa fresca trazia
o perfume das folhas e frutas do pomar que lhe dava sustento. Ele aspirou o ar
lenta e profundamente. A vida daquele lugar pareceu pulsar-lhe como sangue nas
veias. Ele foi à beira do ponto onde os dois regatos gémeos uniam-se e lavou o
rosto com a água fresca e límpida. A cicatriz latejou novamente. Ele passou a
mão molhada pelo peito e sentiu um pouco de alívio. Fazia tempo que ele não
experimentava aquela sensação. Sentou-se sobre uma grande pedra, como já havia
feito tantas vezes e ficou a olhar a escuridão à sua frente, ouvindo o som
tranquilo das águas dos regatos.
Estava perdido em suas tantas
recordações, quando ouviu um som atrás de si. Seus sentidos entraram,
imediatamente, em alerta. Pensando ser um animal qualquer tentando chegar à
água, ele voltou-se e esperou em silêncio.
A noite sem lua, escura como
breu, não permitia que ele visse nada, mas tinha a forte sensação que não
estava só. Seus ouvidos treinados, atentos, tentavam distinguir algum sinal.
Silêncio… Nada mais que um tenso silêncio
na escuridão da noite. Ela não podia ter-se enganado… Será que seus ouvidos o
enganaram? Era apenas mais um sinal da idade? Ou seria um desejo e um delírio
de nostalgia?
Ele resolveu que deveria voltar
para casa. Se fosse mesmo um animal sedento, ele deveria deixar o caminho livre
e permitir que a vida levasse seu curso normal, sem que ele assustasse um ser
vivo em necessidade. O regato não era seu. Ela não tinha o direito de impedir a
vida de continuar.
Saltou da rocha e começou a
caminhar de volta, convencido de estar enganado e disposto a tentar dormir. O
perfume das laranjas era familiar e evidente. Ele sorriu e apressou o passo,
sem olhar para trás.
Quando pisou no alpendre, ainda
voltou-se um pouco e tentou ouvir os sons da noite.
Nada.
Ele entrou na casa e acendeu uma
lamparina. Seus olhos pousaram sobre a fruteira no centro da mesa. Uma laranja
muito dourada, que ele conhecia muito bem, jazia por cima das outras. Ele sabia
que não a havia posto ali. A fruta era perfeita e parecia reluzir. Ele levou a
mão à fruteira e apanhou a grande laranja.
Mais por instinto que por
necessidade, ele abriu-a e comeu a metade da mesma. O sabor muito peculiar, doce
e ácido, trouxe-lhe memórias, que estavam adormecidas há muito. O homem sorriu.
Sabia o que estava fazendo e as consequências daquele ato aparentemente
inocente.
Foi então que ele ouviu um ruído
pouco familiar atrás de si. O chão pareceu estremecer por baixo de seus pés
descalços e ele sentiu o corpo ficar tenso, como se pronto a lutar, como no seu passado… pela própria
vida...
Ele olhou para trás e viu,
através da porta aberta, dois grandes fachos de luz amarela a refulgirem na
espessa obscuridade daquela noite singular. Seu coração deu um salto e ele
correu para fora.
- Olá, meu bom amigo. Senti saudades tuas...
O animal piscou, lentamente, seus
grandes olhos amarelos e aproximou-se do homem, abaixando a cabeça para ser
tocado, como se fosse o cumprimento mais natural do mundo. De facto, entre
eles, era…
O velho estendeu a mão e deu a
outra metade da laranja ao dragão, que comeu-a de imediato. A magia daquele
encontro não programado começava naquele momento…
***
- Há uma força poderosamente maléfica agindo no Universo, neste
momento. Aquele menino corre grande perigo e nós temos que protegê-lo a todo
custo.
- Mas, por que ele? É apenas uma criança…Tem pouco mais de oito anos…
- Porque ele conhece o poder dos dragões. Como foi medicado com as
lágrimas de cada um dos sete e com uma gota do meu sangue, a magia faz parte
dele, desde então. A energia que está a crescer naquela criança é inimaginável,
embora ele ainda não tenha consciência disso, mas o grande dragão pardo sabe
muito bem e, por isso, pretende destruí-lo, antes que ele se torne mais
poderoso ainda, com o passar do tempo…
O velho olhou o amigo, muito
seriamente. A lembrança clara do momento em que foi revelado ao menino o valor
que ele tinha para os dragões, veio-lhe como um raio. Uma boa dose de melancolia
fisgou-lhe o peito, onde uma cicatriz marcava o desfecho de uma batalha antiga.
No meio do laranjal, o dragão
verde-azulado dirigia-se ao menino.
- Este é o nosso outro presente. A água que tu tomaste, ali na
clareira, antes de vires para o laranjal, continha uma lágrima de cada um de
nós. Sete lágrimas foram adicionadas àquela água, para te proteger. O óleo que foi
usado na massagem em tuas pernas contém raspas de dentro do casulo que gerou o
dragãozinho negro, que simboliza a força de espírito e uma gota do sangue do
dragão que representa a esperança… Nós nos referimos a ti, particularmente, como
“o guardião” e temos muito orgulho de assim te chamar.
A mente do velho homem voltou ao presente...
- Ele tem que saber disso. Como vamos protegê-lo?
- Pensei em muitas hipóteses, mas ele precisa ser treinado. Ainda tens
a armadura?
- Deixei-a na caverna… para o caso de necessidade… mas o tamanho é muito
grande para ele…
O dragão encarou o velho homem e
falou, muito gravemente:
- Dá-se um jeito. Esta é, definitivamente, uma necessidade…
- Vou buscar a armadura e a espada…