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sábado, 22 de junho de 2019

Hypnos (Epílogo: Os Gêmeos)



- Não esperava por isto.

- Nem fales nada. Isto é de loucos!

- Não consegui dizer tudo que vi, na frente deles. Pareceu-me absurdo e obscuro demais.

- Mas temos que lhes dizer. Não é justo guardarmos este… segredo, por assim dizer… se é que podemos chamar assim.

- Deixa-me pensar. Temos que ter cuidado. Vão-nos questionar por que não dissemos nada… ou vão-nos chamar de loucos.

- O tempo está correndo. Temos que ser rápidos. Se o que viste, for…

O rapaz hesitou, por um momento.

- O perigo se aproxima rapidamente. Mesmo assim, vou ter que fazer uma pesquisa mais aprofundada, para ver se descubro mais algum detalhe. Nunca levei o assunto muito a sério.

***

- Mitologia? Vocês pensam que eu sou estúpida? Todos sabem que os mitos sempre foram invenção dos homens, para explicar o que não compreendem. Não posso aceitar uma asneira destas. Eu sou uma cientista. Vocês também!

- Sabemos que é difícil. Nós também custamos a acreditar, mas…

- Vocês fumaram alguma coisa? Estão sob o efeito de drogas?

Os dois riram, meio sem jeito. Sabiam que a mulher tinha razão. Quem poderia acreditar numa conversa daquelas?

***

- O que vamos fazer?

- Não sei. O que nós poderemos fazer, afinal? A história toda é muito absurda e nem sabemos se não foi um delírio, somente.

- E se estivermos errados?

- É possível que estejamos… É bem possível que estejamos…

O rapaz olhou o amigo com uma expressão, que revelava sua frustração e uma dúvida, aliada ao medo de que o que mais temiam fosse, na verdade, acontecer.

- E se não estivermos?

- Então temos que ter um plano. Nós sabemos que ninguém vai-nos apoiar, seguir ou proteger. Nem a nós, nem a ela…

***

- Mitologia… quem diria… dois malucos!

Ela sorriu, como se achasse a ideia realmente absurda, mas algo em sua mente dizia, firmemente, que não era.

Ela sentiu-se sonolenta. Passava de sua hora de deitar. Como de costume, havia arranjado a louça do jantar, que mal havia tocado, desligara o computador e apagara todas as luzes do apartamento. Na casa de banho, olhara-se no espelho, por um período mais longo que fazia, normalmente.

Seus olhos pareciam cansados e avermelhados. Ela havia chorado, mas não de tristeza. Havia uma certa nostalgia em sua alma. Tanta coisa a fazer e tão pouco tempo…

A mulher entrou no quarto e abriu a gaveta da cômoda. Sentia-se cansada. Algumas das muitas caixas de medicamentos estavam praticamente vazias. Outras estavam intocadas. Ela fechou a gaveta, sem tocar em nenhum daqueles comprimidos, como vinha fazendo na última semana, depois que havia tido a conversa com os dois jovens cientistas.

Vestiu o pijama de uma malha fina de algodão e deitou-se, calmamente.

O apartamento de dois quartos pareceu-lhe, de repente, um imenso deserto. Apagou a luz da cômoda e fechou os olhos…

***

O rapaz, extremamente atraente, aproximou-se. Ela já o conhecia, de outras ocasiões. Ele estendeu-lhe a mão, num gesto convidativo e gentil, que a mulher aceitou, como se fossem amigos, de longa data.

Pela primeira vez, porém, dirigiu-lhe a palavra, pois nunca se sentiu encorajada para tal. Ele sempre lhe pareceu distante, intocável, de imenso poder.

- Vais-me dizer quem és, afinal?

- Tu sabes quem eu sou. Meu nome é Hypnos, o guardião dos sonhos.

- Eu não acredito em deuses, nem me curvo em idolatrias, por nenhum ser vivo.

- Não esperava que o fizesses, apesar de não ser considerado um ser vivo.

Ela quase riu. Esperou. Ele simplesmente olhou, profundamente, em seus olhos escuros.

- Para onde vais-me levar?

- Por que perguntas o que já sabes? Ele está à nossa espera.

- Quero ir à praia… ver o mar.

- É lá que ele está…

Ela tremeu. Havia uma apreensão natural, em seu peito.

- Não te preocupes, ele é gentil e pacífico. Tenha calma. Não há o que temer…

Ele estava sentado no murete, ao sol. Tão atraente quanto seu irmão gémeo, o rapaz parecia mais à vontade, quando ela se aproximou. Ele sorriu. Ela, não.

- Este é meu irmão gémeo, Thanatos. Ele te conduzirá, daqui por diante. É a ele que caberá levar-te adiante, nesta viagem. Já não haverá sofrimento, mas não há volta. A passagem será tranquila e pacífica.

O rapaz estendeu-lhe a mão.

- Estás pronta?

- Não.

- Estás, sim. Vamos.

E eles seguiram pela imensa praia deserta, lado a lado e em silêncio…

***

- Ele ouviu a conversa entre os gêmeos Hypnos, o sonho... e Thanatos, a morte pacífica... e achou que se tratava dele… e se apavorou.

- Será? Achas que foi isto mesmo que aconteceu?

- Não tenho certeza, obviamente, e acho que nunca saberemos…

***

domingo, 8 de setembro de 2013

Outros Estudos em Vermelho e Azul (Epílogo)



- Ela estava comigo. Quando o telefone tocou, ela inventou uma desculpa. Teve que inventar… Sentiu-se culpada, mas já não havia o que fazer. 

- Ela não faria isso comigo…

Mas uma pontada de dúvida e dor abriu caminho na mente sofrida do jovem rapaz.

- Mas fez. Estava carente e a oportunidade apareceu. Todas as pessoas são assim. Não tentes enganar-te… sabes bem que sim…

Misha sorriu. E seu sorriso pareceu muitíssimo sarcástico.

- Por que estás fazendo isso?

- Como eu já havia dito, para provar um ponto. As coisas e as pessoas não são o que parecem.

O rapaz, visivelmente afectado pela notícia, quase deixou cair a louça que havia recolhido da mesa, alguns instantes antes. Sentiu-se sozinho, usado… e traído. Um peso enorme caiu-lhe sobre os ombros e ele sentiu-se, subitamente, cansado. Virou-se para sair na direcção da cozinha, quando o outro disse-lhe:

- Traga-me uma daquelas natas, que me parecem tão frescas e apetitosas, por favor. De repente senti uma vontade enorme de comer uma delas.

Misha sorriu outra vez; um sorriso aberto e enganador; calculado, como as suas estudadas acções de sedução. 

Aquele sorriso pareceu, ao outro, uma grande provocação. O rapaz saiu, sem dizer nada mais. 

- Que se fodam as natas… 

O imprecativo saiu sem censura de sua mente, enquanto levava a louça suja para a cozinha do Café. Que outro se encarregasse de servir-lhe as natas…

(Grande filho da puta!)

***

- Senti-me mal e culpada. Fui fraca e deixei-me levar por uma situação, que podia facilmente controlar.

- Estavas carente e insegura...

- Não diminui a minha responsabilidade, nem o sentimento de culpa. Que burra eu fui!!! Olha só no que deu…

A terapeuta tentou não rir-se da atitude dela.

- Culpar-te, não vai resolver nada, nem trazer ninguém de volta. Sabes disso.

- É. Eu sei muito bem…

- Então, aceita e toca a vida adiante. Concentra-te no que seja importante, neste momento…
- Na morte… e no mistério que ficou…

Os olhos da investigadora pareceram levá-la para longe dali. A terapeuta observou-a franzir o cenho, como se estivesse vendo algo que não havia percebido antes…


***

- Como é que ele soube?

A mulher, visivelmente alterada, mostrava a mensagem no visor do telefone: “Dói. Muito!”

- Não sei. Por que tu achas que eu tenho alguma coisa a ver com isso? 

- Não sejas, cínico, Misha. O que foi que tu disseste a ele?

- Eu disse-lhe que podia acabar com a sua dor… se ele deixasse…

- O quê?

- Mas ele não quis ouvir-me. Disse que não queria nada de mim… nem comigo…

- És louco, ou o quê?

- Por quê? Ele até que era bem interessante…

Misha riu. Estava a provocar a mulher, que parecia não gostar, nem um pouco, da brincadeira.

- Deixe de ser asqueroso! Ele não é da tua estirpe!

- Não?!? Tens certeza disso? Olha que ele não foi tão indiferente ao beijo que eu dei…

Ela levantou a mão e ia dar-lhe uma sonora bofetada, mas ele foi rápido o suficiente para segurar-lhe o pulso, antes que fosse atingido. Chegou bem perto da face dela e riu-se. Olhou-a nos olhos e disse, bem devagar:

- Eu teria me divertido muito com ele, assim como diverti-me contigo. Aqueles olhinhos tristes iam ter uma alegria, que ele nunca imaginara ter… mas ele... digamos que desistiu, antes de saber.

- Solte-me, seu grande… porco! Sacana idiota!!!

Ela levantou o joelho, num gesto defensivo e atingiu-o numa parte delicada, entre o alto das duas pernas, levando-o a perder o controle e cair ao chão, urrando e contorcendo-se de dor. 

- Vaca!

- Vá para o inferno, seu filho da puta!

A mulher saiu, fumegando, pela porta afora, com o peito arfando, cheia de asco e revolta, deixando o agressor jogado no meio da sala. 

Ao cruzar a soleira e puxar a porta atrás de si, ainda ouviu um misto de gemido de dor com uma gargalhada de deboche, do rapaz loiro e de olhos azuis, tão profundos quanto o Oceano Pacífico, mas com a alma tão fútil quanto a de um anjo caído.

- Vais pagar por esta…    


***


- O que tu queres aqui? Vá embora!

- Vim trazer-te uma garrafa da melhor vodka russa que há. Ajuda a aliviar a dor.

- Por que tu achas que eu quero alguma coisa, que venha de ti? Já não fizeste mal suficiente? Ainda não estás contente? Tens que destruir tudo que tu tocas?

- Deixa-me entrar e conversamos. 

Ele abriu aquele seu sorriso estudado e segurou o braço do rapaz que estava a bloquear sua entrada no pequeno apartamento onde morava. O outro reagiu imediatamente.

- Saia já daqui!

Levantou o punho e deu um soco contra o vazio, pois Misha conseguiu esquivar-se rapidamente. Quase imediatamente, aproveitou-se da vantagem, deu um golpe certeiro, com a mão cheia e aberta, no peito do rapaz, que perdeu o equilíbrio e caiu, por cima da perna, que Misha colocara à frente, propositadamente. Meio corpo caído para dentro do apartamento foi o suficiente para permitir que entrasse, sem dificuldade, com a garrafa de vodka, cheia, na mão. A porta fechou-se, assim que o outro levantou-se, ainda meio desnorteado.


***


- É melhor vir aqui urgentemente… acho que estávamos bastante enganados.

- Como assim? Enganados?

- O resultado da autópsia saiu. A causa mortis’… não foi o que pensamos inicialmente.

- Já estou a caminho.

A mulher desligou o telefone e entrou no carro, apreensiva. Em sua cabeça, milhares de perguntas, sem resposta, iam-se formando, enquanto conduzia, quase instintivamente, até o laboratório da Polícia.   

Pela janela, as imagens iam passando, num show de slides vivos, enquanto em sua mente as impressões, sensações e sentimentos atropelavam-se, como se quisessem manifestar-se todas ao mesmo tempo.

Sombra… Crianças correndo... Sol... Árvore... Vidro e concreto... Muro... Hidrante… Sombra... Carro parado… Meninas, vestidas com uniforme da escola, a rir alto... Semáforo... Vermelho... Dor… Céu azul… Muita dor… Avenidas… Aço, concreto e vidro… ângulos rectos… esquinas e cruzamentos com sinais em vermelho… Sangue… Morte… Suicídio? … Homicídio? … Acidente?... Por quê?


***


- Nunca vamos conseguir provar que foi crime. O nível de álcool no organismo dele era demasiadamente alto. Estás a ver esta marca? 

Ela confirmou, ao ver a marca de uma batida na têmpora do rapaz morto. O médico legista apontava uma grande lesão, causada por uma superfície em ângulo recto, como numa quina de algo.

- Ele caiu, bateu com a cabeça, enquanto ia em queda e estatelou-se na calçada. Encontramos uma marca de sangue numa das sacadas da escada de incêndio. Pelo jeito, é mais que uma simples teoria. Só não conseguimos saber se houve intervenção de alguém… se foi empurrado ou algo assim. Não há nenhuma evidência no corpo, que demonstre isso. Procurei em tudo, mas não encontrei absolutamente nada. Jamais saberemos a verdade, pelo que pude deduzir…

Mas algo nela dizia que alguém tinha mais a ver com o ocorrido, que as evidências conseguiam demonstrar cientificamente.  


***


Quando a mulher entrou no “Templo”, já era o final da tarde. A iluminação dentro do grande salão trouxe-lhe memórias de um tempo que pareceu-lhe, de repente, tão distante. Uma estranha nostalgia fê-la olhar tudo com outros olhos. Era, agora, uma investigadora de polícia, em busca de respostas. Não estava convencida da inocência de ninguém… nem da dela mesma… 

Dirigiu-se ao bar, no centro e perguntou ao servente, que já conhecia:

- Tens visto Misha? 

- Faz algum tempo que não aparece por aqui. Dizem que voltou para o lugar de onde veio, mas quem poderá dizer com certeza?


***


Sentado à minúscula janela, o rapaz de olhos azuis olhava para fora, atento aos movimentos na pista do aeroporto. Temia que a qualquer momento a polícia invadisse a nave e o levassem para uma sala de interrogatório. Apesar de a temperatura estar regulada para cerca de 21 graus, Misha suava.

Quando as portas fecharam de vez e o avião ganhou a pista, em alta velocidade e levantou voo, deixando para trás a terra em que viveu por uns bons anos, Misha fechou os olhos e expirou, aliviado.

Em seus olhos, a imagem do rapaz, visivelmente bêbado e fragilizado, sentado no chão da sala, ainda estava bastante vívida. Seus braços estavam enlaçados a volta daqueles ombros, enquanto o outro chorava, angustiado, como uma criança. Misha aproveitou-se do momento e beijou-lhe, delicadamente, os lábios. O rapaz não o rejeitou, a princípio. Deixou-se levar por uns poucos segundos…

- Teus lábios são mais doces e macios que os dela…

O jovem afastou-se, indignado, passando a manga da camisa sobre a boca. Enojado, tanto pelo que acabara de fazer, quanto pelo que ouvira, saiu pela porta que ia até a sacada. Misha seguiu-o, agindo naturalmente, como se fora a coisa mais natural do mundo.

- Não há nada de errado com isso. Foi somente um beijo... 

- Afasta-te de mim. Já não basta o mal que causaste? Tens que destruir tudo que tocas, até o mais ínfimo detalhe?

Misha estendeu a mão, mas o outro reagiu com violência e um tanto de asco. Ele insistiu em se aproximar. Ao tentar afastar-se, sem ter consciência exacta de onde pisava, o rapaz chegou-se para trás, tropeçou num pequeno degrau e perdeu o equilíbrio, batendo contra a grade de ferro que protegia – muito mal – quem estivesse na pequena sacada. O efeito do álcool impediu-o de segurar-se, fê-lo perder o controle e cair… da sacada do quinto andar, contra o cimento frio e duro da calçada, batendo, durante a queda, na escada de incêndio.

Uma poça de sangue começou a formar-se à volta da cabeça do rapaz caído.

Misha abriu os olhos. A comissária de bordo vinha pelo corredor, com o carrinho de bebidas.

- O senhor deseja alguma bebida?

- Sim. Por favor. Uma vodka.

- Gelo?

- Não. Pura! 


***


Fim de tarde à beira do rio. Debruçada no ‘guard rail’, a mulher olhava um ponto distante, sem realmente ver, além da outra margem, onde uma construção com estranhas janelas coloridas erguia-se, distinguindo-se das outras edificações à volta. O vento, que soprava contra sua face e jogava-lhe os cabelos para trás, secava-lhe, ao mesmo tempo, as lágrimas recém-choradas. 

Uma dor corroía-lhe por dentro, sem piedade… a dor que misturava ódio, culpa, saudade e impotência, diante do maior algoz da vida: a própria morte. A terapia havia-a ajudado a passar aquela fase de perda e culpa, mas não conseguira fazê-la deixar de pensar no grande erro que cometera. 

Em sua cabeça, a recordação daquela última noite, ainda estava muito viva. Os detalhes, ela lembrava que os revivera, inúmeras vezes. As lembranças estavam tão nítidas, como se estivessem acontecendo naquele momento. Ela fechou os olhos. Um leve ruído a fez voltar a cabeça. 

- Desculpe. Sabe onde fica o “Templo”? 

Ela virou-se automaticamente, saindo de uma espécie de transe. Quase sem perceber, olhou directamente nos olhos azuis do rapaz, que vestia uma t-shirt vermelha e que estava em pé, ao seu lado, exibindo um estranho sorriso nos lábios… A sensação de borboletas, batendo as asas em seu estômago, lançou-lhe um sinal de alerta, que ela decidiu ignorar. 

O rapaz repetiu a pergunta: 

- Sabe onde fica o “Templo”? 

Ela simplesmente respondeu, sorrindo: 

- Sei…

domingo, 28 de abril de 2013

Outros Estudos em Vermelho e Azul - Parte 1


- Tu vens aqui todos os dias, sempre às mesmas horas, rotineiramente. Eu não sei porque… ainda… mas gostaria de saber se há um motivo especial…

Ele tinha razão. Havia já algum tempo em que ela passara a frequentar aquele específico Café da esquina, a caminho do trabalho e ao final da tarde, quando ia de volta para casa.

Depois de umas poucas vezes, percebeu que o funcionário a servir-lhe era quase sempre o mesmo – um rapaz de grandes e melancólicos olhos azuis, cabelos castanho-claros, estrategicamente desalinhados e face agradável de olhar. Parecia ser mais jovem que ela, pelo menos uns dez anos. Era alto e um tanto corpulento, longe do porte puramente atlético, mas não estava nem perto de ser gordo. Na verdade, era bastante atraente a seu ver.

Ele invariavelmente a recebia com um largo sorriso quando ela entrava e dirigia-se à mesma mesa, perto da janela. Apressava-se a servir-lhe o 'espresso', sem açúcar, que ela sempre pedia e que era preparado assim que a avistava à porta.

A mesma rotina repetia-se todos os dias, há semanas e era a primeira vez que ela era interpelada pelo rapaz. Talvez o pequeno contacto que tiveram, nas mãos, quando ele pousou a chávena sobre a mesa, provocara aquela reacção.

Ela olhou-o com uma certa curiosidade, diante daquilo que pareceria um atrevimento do funcionário para com uma cliente habitual.

Em uma pequena fracção de segundos ela deu-se conta do motivo que continuava a frequentar o mesmo lugar, todos os dias.

Como poderia dizer-lhe que, dentro de tantas opções de Café, era ali que ela sentia-se mais viva, pelo simples prazer de olhar momentaneamente para aqueles magnetizantes olhos azuis, que não pareciam sorrir nunca?

O comentário, quase uma pergunta, todavia, deixara-a desconfortável, como uma adolescente flagrada a espreitar um homem proibido.

Por que não dizes o que pensas? Ele deu a linha, para te agarrares e tu o deixaste escapar. Que estás esperando?

Não soube como reagir. Aquele demoniozinho instalado em seu cérebro fazia a pergunta que ela não sabia ou não queria responder.

E como é que poderia dizer-lhe que o simples facto de olhar para aquelas grandes, brilhantes e tristes safiras, fazia seus dias mais luminosos?

Apesar de não responder-lhe com mais que um sorriso meio sem jeito, aquela pergunta dera-lhe o que pensar. Precisava fazer algo, sabia… e o quanto antes fizesse, melhor… teve medo de perder a oportunidade que ele abriu com aquela simples pergunta.

Abriu a boca, para falar, mas algo mais forte – talvez um instinto de sobrevivência – impediu-a.

Ela limitou-se a levantar, deixar o dinheiro para pagar a conta e sair, sem olhar para trás. Quando passou pela janela, ainda viu o rapaz com uma expressão aparvalhada e um leve rubor na face, a recolher as moedas de sobre a mesa.

***

- Porque não me convidas para entrar? Quanto tempo, ainda, vamos manter esta conversa aqui do lado de fora? Sinto um pouco de frio e a minha pequena folga não demora a terminar…

A mulher olhou aquele jovem homem com um misto de carinho e condescendência e convidou-o, então, a entrar no Café da esquina, perto de sua casa, onde costumava frequentar diariamente, para um ‘espresso’ forte e sem açúcar, pela manhã e um ‘capuccino’ no final da tarde.



Depois de um certo incidente, há algumas semanas, havia decidido reconsiderar o que achara um atrevimento, a princípio, mas que tornou-se uma espécie de sedução por palavras… Ela voltou na manhã do dia seguinte, mas não foi o mesmo rapaz de sempre que a serviu, tendo ficado a um canto apenas a observar, enquanto outro lhe trazia o 'espresso-nosso-de-cada-dia'.

Um tanto preocupada, mais ainda que decepcionada, a mulher pediu ao rapaz que solicitasse ao seu colega de profissão que lhe trouxesse uma nata, um doce típico, que sempre vai bem com café forte e denso, apesar de ser acostumada a comer doces àquela hora da manhã.

Ele veio e depositou o pedido sobre a mesa, sem olhá-la directamente. Sabendo que havia ferido os brios do rapaz, a mulher disse:

- Desculpe.

- Dona, eu sou um serviçal aqui. A senhora desculpe meu atrevimento de ontem. Peço imensas desculpas e prometo que não vou repetir esse comportamento inadequado.

Ele falava com formalidade, num discurso estudado, que repassara em sua cabeça muitas vezes antes daquela manhã. Temendo que ela visse quão nervoso estava, ele colocou as duas mãos nos bolsos do avental de trabalho.

Ela percebeu a agitação e disse-lhe:

- Eu preferia que fôssemos, pelo menos, amigos…

- OK, disse-lhe ele, ainda sem levantar os olhos, mas ela percebeu que ele ruborizou e esboçou um leve e acanhado sorriso. Ele virou-se, disse um educado ‘com licença’ e saiu.

Somente no outro dia, quando voltou a entrar no estabelecimento, como se fosse em um dia normal, que ela foi recebida com um sorriso, apesar de, ainda, um tanto tímido. Suspirou aliviada. A tensão havia-se, aparentemente, dissipado entre eles.

***

Ele não estava vestido para um encontro. Trajava uma jaqueta de couro, já gasta pelo uso, sobre uma malha de lã azul. Blue jeans desbotados e botinas castanhas completavam o visual atraentemente casual, que lhe caíam tão bem… pelo menos aos seus olhos. Sem o avental de uniforme por cima da roupa comum, ele passava por um cliente habitual do Café.

Ela ainda estava com a roupa do trabalho, com o casaco acolchoado e um cachecol de caxemira com listras em vários tons de cinza, simples, mas confortável. Não era propriamente a roupa para um encontro tampouco. Apesar de trabalhar para a polícia, não era em uma área onde o uniforme fosse usado obrigatoriamente, por motivos óbvios. Muitas vezes tinha que passar por uma pessoa comum, não uma policial em fardas, para conseguir informações.

Uma pausa para o “espresso” ou até o “capuccino”. Era somente o que haviam combinado. A noite fresca de fim de inverno pedia uma grande chávena de capuccino bem quente – e foi o que ela pediu. Ele preferiu um espresso – forte e sem açúcar.

Sentaram frente a frente, como dois conhecidos de longa data. No fundo, estavam somente analisando um ao outro. Precisavam de tempo para avaliar até onde poderiam chegar. Ela sabia que tinha de ter paciência. Precisavam de um pouco de segurança e um tanto de confiança para poderem se sentir mais à vontade...

Ela ouvia-o, em silêncio, tentando compreender suas razões, suas expectativas, suas preocupações. Era a primeira vez que falavam longamente. Quando se despediram, porém, sentiu uma ponta de decepção. Apenas um aperto de mãos e um ‘até mais’, quebrou suas expectativas em pequenas porções, como um bibelô de cristal que cai no chão de granito - duro, polido e frio.

Minutos depois, ao chegar em casa, decidiu que era tarde demais para qualquer outra coisa além de se preparar para deitar. Já ia a caminho do quarto, quando ouviu o “bip” característico do telefone indicar uma mensagem a entrar. Foi até a cómoda e pegou o aparelho. Leu e deu uma risada alta. Nem tudo estava perdido, afinal...

***

Os pequenos encontros na pausa do turno habitual do rapaz passaram a tornar-se frequentes. Ela começava a ficar encantada com o que ia descobrindo aos poucos sobre aquele personagem tão diferente dela.

Num ímpeto de pretenso atrevimento, ele decidiu convidá-la para jantar. Aquela deveria ser a primeira vez em que marcavam um encontro a sério. Havia uma semana que ela havia-lhe dito a causa de sempre passar no Café duas vezes por dia. Ele sentiu-se lisonjeado, mas ruborizou ligeiramente quando soube. Era sua deixa para deixar a timidez de lado e ser, mais uma vez, arrojado.

A mulher havia jogado suas melhores cartas, sabendo que podia perder o jogo, mas ao contrário de seus temores, o rapaz disse-lhe que tivera receio de levar um não, diante da ausência de resposta no outro dia. Aquela aparente insegurança tornava-o ainda mais atraente e o tímido sorriso absolutamente encantador. Ela tranquilizou-o, dizendo que também se sentia insegura, mas estava disposta a fazer uma tentativa.

- Tu és uma mulher tão sedutora… eu gostaria de ver-te vestida de uma forma mais feminina, fora do contexto pré e pós-laboral, com essas roupas usuais de trabalho. Elas dão-te um ar muito… ahn… sério…

Ele fora educado. Aquela hesitação fê-la pensar que talvez quisesse dizer que a roupa de trabalho deixava-a masculinizada. Riu-se da proposta dele, antecipando seu desconforto em voltar a vestir-se como uma ‘dama’, depois de muito tempo, mas aceitando o desafio. No mínimo poderia ser uma experiência divertida.

- Teu corpo é tão atraente… devias mostrar-te um pouco mais…

Ele começava a passar dos limites… Decidiu que era melhor parar com aquela conversa logo… antes que ela perdesse a compostura… e o beijasse ali mesmo, na frente de todos…

Levantou-se e saiu, meio às pressas, quando ele riu do rubor que apareceu-lhe subitamente a decorar-lhe a face…

***

Achou, num cantinho esquecido no guarda-roupa, um ‘pretinho básico’, como costumava-se chamar, em seus áureos tempos. Seu único vestido, pouquíssimas vezes usado era uma peça inteira, em malha de algodão com Lycra, que colava-se ao corpo de uma maneira que deixava muito pouco para a imaginação. Duas finíssimas alças deixavam os ombros à mostra, fazendo-a sentir praticamente despida - o que não era exactamente uma verdade - mas era como se sentia. Usou um curto bolero de renda preta, a fim de cobrir-lhe a parte de cima do corpo.

De frente ao espelho, analisou-se, cuidadosamente, da cabeça aos pés. Sentiu-se como se estivesse dentro do corpo de uma pessoa que não era ela, realmente. Começava a achar que não havia sido boa ideia, afinal, aceitar o desafio…

Falso pudor? Ela riu-se da ironia.

Apesar de muito pouco acostumada com maquilhagem, usou um pouco de ‘gloss’ transparente nos lábios e um leve retoque nos cantos externos dos olhos, com um lápis escuro. Não sabia ir além daquilo e não queria parecer o que não era.

Embora não estivesse à vontade dentro de um vestido como aquele, viu que os olhos do rapaz sorriram, pela primeira vez, antes mesmo que seus lábios, assim que a viu. Suas dúvidas logo dissiparam-se. Depois de tanto tempo, sentiu-se atraente.

- Hoje vamos cozinhar juntos.

- Já sei quem vai ter que lavar a louça suja, disse-lhe ela, sorrindo.

Ele piscou o olho, maroto, e deu uma gargalhada. Ela apaixonou-se imediatamente pela risada dele – tão solta e espontânea – como de um menino que não tem nada a temer, nada a perder... cheio de vida e de esperança no futuro… ou pelo menos foi a impressão que o rapaz lhe passou.

Ele conduziu-a à cozinha. Enquanto cortava os legumes para uma sopa que preparava, como entrada, conversava animadamente sobre música e sobre sua vida, antes de se conhecerem, como se fosse a coisa mais natural do mundo.

Fascinada a ouvir-lhe, a mulher aproximou-se dele com cuidado e tocou-lhe a mão, de leve. Ele parou de fazer a tarefa e, com naturalidade estudada, juntou os legumes picados, com suas duas mãos em concha, e deitou-os na água, que já fervia na panela. Temperou com um cubo de caldo de legumes, mexeu bem, provou o resultado e, em seguida, voltou-se de frente para ela.

Aquele homem olhou-a de um jeito que poucos até então haviam-na olhado. Ele não só tinha os olhos fixos nela, mas seu interesse ia muito além de simplesmente observar… era como se conseguisse ver através dela… e sentiu que aquilo era assustadoramente sensual.

Adiantou-se e tirou-lhe o bolero, colocando-o cuidadosamente no encosto da cadeira. Beijou-lhe um ombro, depois o outro, enquanto empurrava com os dedos as alcinhas do vestido para os lados. Enquanto abria o fecho, vagarosamente, continuava a beijar-lhe as costas. Ao soltar o negro tecido do seu pálido corpo, descobriu a tatuagem impressa ao lado esquerdo, que estendia-se até próxima à virilha. Perguntou-lhe se tinha algum significado especial.

- ‘Vitória’ - disse-lhe ela.

Ele beijou a imagem – pintada em preto somente - de um alongado dragão japonês, estampada indelevelmente em sua pele, antes de voltar a percorrer-lhe o corpo com seus lábios.

Sua atenção aos mínimos detalhes causava-lhe arrepios, apesar do calor suave que vinha de sua boca. Fechou os olhos e deixou-se levar por suas carícias tépidas e tão bem-vindas. Quando sua boca aproximou-se dos seios, ela segurou-lhe firme e ternamente o rosto com ambas a mãos e trouxe-o até a altura de sua face, olhando-o firmemente no fundo dos olhos azuis.

Beijou-o com carinho… levemente… cuidadosamente. Ele fechou os olhos e entregou-se àquela mulher, como um verdadeiro amante.

Brincaram ali mesmo na cozinha, enquanto a sopa cozia, no fogão atrás deles. Ele levantou-a do chão com um forte abraço, enquanto a beijava com uma paixão à qual ela não estava acostumada e sentou-a sobre o balcão. Beijou-lhe o pescoço, os seios, o ventre e desceu. Ela fechou os olhos, quando ele tocou o ponto mais sensível de seu corpo e gemeu, baixinho.

O menino transformara-se em um experiente homem e fez dela a mulher mais especial que alguma vez ela havia sido. Seu corpo era tudo que ela precisava. Suas carícias, tudo que desejava - mesmo sem ter uma firme consciência daquilo.

Ferveu a volta dele, como se fosse um vulcão em plena actividade, explodindo repetidas vezes, ao sabor do calor que emanava de todos os recônditos do seu corpo.

Quando já havia passado o fogo para chama baixa, ele olhou-a nos olhos e disse, baixinho:

-Os momentos passados contigo são, para mim, os mais belos.

Naquele momento, a mulher que estava adormecida tanto tempo dentro dela, sentiu nele uma enorme força e uma doçura sem igual, ainda que de uma maneira muito inocente e espontânea.

Ele acrescentou:

- Eu gosto tanto da tua ‘tatoo’ e do teu corpo… é tão perfeito…

A mulher perguntou-lhe por que razão dissera aquilo e ele respondeu que sentiu que tinha de expressar o que se passava naquele momento. Ele, que sempre pisava com cautela estudada o terreno sobre o qual aventurava-se a entrar, tornara-se bravo o suficiente para enfrentar seus próprios receios, diante do que havia acontecido entre eles, poucos minutos antes.

Foi quando ele, por sua vez, perguntou-lhe o que sentia, quando o via, que ela disse… não somente tudo o que sentia, mas também o que pensava. Ele percebeu que ela não temia expor-se. Abriu-lhe um sorriso de criança, meio acanhado e agradavelmente provocante, colocando uma canção a tocar, logo em seguida. Costumava desviar o assunto quando se sentia desconfortável ou intimidado a responder algo que não desejava.

“I believe I can fly, I believe I can touch the sky, I think about it every night and day, spread my wings and fly away”… (R. Kelly)

Usou aquele momento para dizer algo, sem precisar falar. Por um breve instante, pareceu, a ela, que os melancólicos olhos azuis do rapaz sorriram-lhe outra vez, mas aquela impressão passou muito rapidamente.

As palavras cantadas mexeram com suas reacções, fazendo-a contemplá-lo com um carinho sem igual, mas ele desviou o olhar, ruborizando um pouco, quase timidamente. Incrível como, em questão de minutos, ele passara de um ousado e experiente amante, que sabia explorar todos os seus sentidos e voltara a ser aquele menininho tímido, novamente. Um animalzinho, que se escondia em sua casca protectora, foi a imagem que ela visualizou imediatamente.

Decidiu escolher outra canção, como se aquela não estivesse expressando tudo o que ele queria.

Fingiu estar ocupado, escondendo os olhos – lindamente azuis - quando a voz rouca de Bryan Adams começou: “Look into my eyes, you will see what you mean to me…  e continuou: Everything I do, I do it for you”…

Ela escreveu aquela frase num pedaço de papel e mostrou a ele, que sorriu, divertido, baixando os olhos mais uma vez.

Ela aproximou-se e beijou-lhe, de leve, um ponto no pescoço, na região atrás da orelha… Seu corpo estremeceu todo, quando viu-lhe a pele arrepiar, como se uma carga de electricidade houvesse ligado uma reacção no corpo do amante.

Ele virou-se e beijou-a novamente… a começar pelos olhos e foi descendo, enquanto ouvia os gemidos da mulher, que já sentia um vulcão prestes a entrar em nova erupção, em todas as tonalidades de vermelho, dentro dela.

Os olhos, de um dos mais impressionantes matizes de azul-safira, brilharam ao reencontrar com os dela. Ela perdeu o controlo completamente, abraçada ao corpo dele, como um náufrago que agarra-se à sua tábua de salvação…

sábado, 30 de outubro de 2010

Em Olhos de Mar


A mulher, sentada sobre a grande rocha à beira mar, parecia alheia ao tempo e ao espaço à sua volta. Seu corpo miúdo e bem formado, escondia a verdadeira idade, enquanto seu rosto de menina amadurecida trazia pequenos vestígios de uma vida melancólica, marcados na testa e em volta dos olhos. O vento da tarde brincava com as madeixas de seus cabelos loiros, enquanto os pensamentos vinham e iam, como as ondas a arrastar-se sobre as areias à sua volta. Em seus inquietos e cristalinos olhos, perdidos na distância, onde o horizonte confunde o céu com o oceano, as lembranças iam-se alternando, aleatoriamente, sem critério algum. Ela se deixava levar, sem considerar a dor que sua alma já suportara, ou as velhas cicatrizes deixadas por acontecimentos de outros tempos. Por que razão vinha o presente trazer, cruelmente, o passado de volta, como um cadáver despejado aos seus pés, trazido por um mar de memórias?

- Qual é a sua idade?

A pergunta não era somente retórica. O rapaz, de pé atrás do balcão do bar, mostrava uma certa inquietação perante a mulher dez anos mais velha que ele e que agora inquiria-o, com uma naturalidade que ele não possuía.

- Dezoito. Por que a pergunta?

Ele se colocara na defensiva. Os cabelos cacheados, de um castanho claro, emolduravam-lhe a face angulosa. Ela percebeu que ele trazia uma melancolia no olhar, que não desaparecia quando sorria.

- Você parece tão jovem, entretanto suas poesias parecem ser escritas por uma pessoa que já passou por tanta coisa na vida…

A frase, assim colocada, fê-lo sentir-se desconfortável. Aquela mulher pisava uma linha que ninguém havia sequer chegado perto, antes dela. Ele não costumava falar de si próprio. A escrita era seu ponto de fuga – invisível - na paisagem desenhada pelos dedos da vida, que mal começara a se descortinar, perante aqueles inexperientes olhos, de um verde musgo semi-escondido por detrás da quase reticulada flor de renda castanha. Não comentou a resposta, apenas baixou o olhar. Ela sorriu levemente, a pensar naquela timidez, como uma característica que o fazia encantador, a seu ver.

- Me dê a sua mão, aqui.

Ele não pensou, apenas estendeu a mão, que ela segurou firmemente, enquanto dava um longo e profundo suspiro, fechando os olhos ao mesmo tempo. A mão dela era pequena, delicada, morna e macia. A dele era fria, grande, com dedos longos e fortes, mas não chegava a ser áspera. Ele sentiu-se incomodado. Puxou a mão com delicadeza, para não magoá-la. Ela apenas riu, divertindo-se com a atitude desajeitada dele.

***

As intermináveis tardes mornas de Outono passaram a ser amenizadas pelas visitas constantes, nas horas mais quietas, acendendo uma pequena chama de conforto no peito do rapaz. Ele, que nunca havia se sentido especial, ansiava por aqueles encontros casualmente intencionais. Ela tinha o propósito de surpreendê-lo, mudar alguma coisa naquela aparência verde e despreparada, moldá-lo como Pigmalião havia feito ao mármore, para amar sua criação, quando esta estivesse pronta. A vida, propriamente dita, viria em seguida, em resposta aos caprichos do destino.

***

- Será que ele saberá o que fazer? É apenas uma criança…

Ante a pergunta e a observação da amiga, assumia que a natureza tomaria seu próprio curso, se fosse necessário.

- Se não souber, depois que estiver lá, não há mais volta…

Há uma parte animal em todo ser humano – o instinto não falha, quando a razão é legada a segundo plano. As reacções do corpo não mentem jamais e ela contava com essa verdade universal. O melhor, mal sabia ela… assim como o pior… ainda estava por vir. Que raízes seriam profundas o suficiente para aguentar as ventanias que viriam a seguir?

***

Poucos dias depois, observava a maneira meio desastrada com que ele abria, com dedos trémulos, o presente que havia-lhe entregado. Dentro do pequeno pacote, uma caneta dourada, com o nome dele gravado, deixou-o completamente sem acção. Com um rubor autêntico, aquecendo-lhe a face, só soube dizer obrigado e mordeu o lábio inferior, o gesto que a fazia estremecer. Ela desejou beijar aquela boca de lábios bem desenhados, mas conteve-se na ocasião.

- É para escrever os poemas. Uma caneta digna da beleza de sua emoção.

Ela usava o pronome “você” com precisão e destreza, mostrando afinidade com a língua, bem e correctamente usada. Mantinha o coloquial fora do seu linguajar habitual, não por arrogância, mas por índole. Quanta coisa o jovem ainda tinha que aprender da vida, para se aproximar da experiência e da sabedoria daquela mulher?

***

Sabendo onde o rapaz guardava o caderno de poesias, ela ia, ávida, em busca de sinais deixados, intencionalmente. Muitas vezes deixava mensagens escritas para que ele as lesse quando chegasse da universidade. Um longo poema, feito especialmente, foi presenteado com uma marca de batom, deixada enquanto estava ausente de casa. Naquele, ele abria um mundo novo, mostrando-se amadurecido e preparado, lançando um convite, irrecusável - embora velado - ao desconhecido. Ao ver a marca no papel, sorriu. Tinha ficado reticente se deveria mostrar, abertamente, aqueles versos, mas a vida - ou parte dela - se encarregou de fazer a sua parte. Ele se perguntava se os deuses estariam ao seu lado…

***

A ruela por trás do horto estava deserta, excepto pelo casal sentado sob a sombra de uma grande árvore. A luz do sol caía sobre as folhas que atapetavam o chão, pintando de luz e cor a amena tarde de Outono. A mulher beijou as mãos pálidas e frias do rapaz, que pendeu a cabeça sobre a dela, para surpresa da mesma. Ele fechara os olhos e cheirava-lhe os cabelos louros, pela primeira vez, desde que se viam, há meses. Enquanto sempre havia sido cuidadoso, ela havia sido ousada, mas desta vez, ela quem fora surpreendida. Os dedos entrelaçados, o ar sério e verosimilmente preocupado, no rosto juvenil, fizeram-na estremecer, quando ele mordeu, como de costume, o lábio inferior. Ela não resistiu e aproximou-se, com cuidado, para que ele não fugisse do que parecia inevitável. Aquele contacto tinha um sabor insólito. Era a aventura, o proibido e um estranho prazer, juntos num mesmo pacote. Os lábios dele, macios, tocaram os dela, devagar e suavemente. Apesar de tudo que já vira e experimentara, ela não estava preparada para aquilo. O beijo fora suave, como a sensação da seda na pele nua. Ele não era um aprendiz, de forma nenhuma, concluiu a mulher que quis abandonar-se ao momento e avançar com ardor, mas ele pediu-lhe calma. Queria senti-la, completamente, vagarosamente, detalhadamente. Foi então que ela compreendeu que um aprendiz pode tornar-se um mestre, desde que tenha as ferramentas necessárias.

***

Na penumbra do quarto, o contacto entre os corpos confundia as sombras, em nuances de luz, cores, volumes e sons. Ela estava certa. A natureza sabia levar seu próprio curso. Ela conduzia, ele seguia. Ela se entregava, ele tomava. Ela ousava, ele controlava. Ela aprendia a se deixar levar e ele a levar. Quem era mestre e quem era aprendiz, naquela hora, não importava. O que importava era estar ali, naquele momento, com aquele menino que se tornava homem, colado à pele dela, como uma tatuagem, que bebia dela como se tivesse sede, que cruzava a fronteira do mundo dela, como se fosse parte do mesmo corpo que possuía. Deixaram-se arrastar pelas ondas que iam e vinham, como no movimento incessante e harmonioso do mar sobre as areias da praia. E ela explodiu, como se as cores fossem todas graduações de vermelho, levando-a a gritar, um grito que ficou abafado pela boca quente do amante. Ele, por sua vez, sentiu-se envolvido por uma onda de calor, que lhe subia pelo corpo, despertando sensações que desconhecia, enquanto ia e vinha, devagar, provocando reacções descontroladas na mulher sob o corpo dele. Quando sentiu seu próprio corpo lançar-se para dentro de um mundo que apenas começara a conhecer, abraçou-se a ela, como se fosse um náufrago agarrando-se à sua tábua de salvação… e chorou. Ela entrelaçou-se ao corpo do menino-homem e chorou junto com ele. A obra ganhava vida, surpreendendo o artista, no melhor estilo da mitologia grega. Ficaram ali, como se fossem um só corpo, na meia-luz do quarto, até o mundo despertar, outra vez, chamando-os para vida que os esperava lá fora. Era a realidade a roubar-lhes a fantasia que acabara de os envolver em sua ténue teia de prata.

Diz-se que a teoria do yin-yang é mais verdadeira que se possa controlar, conscientemente. Para tudo existe um equilíbrio. Para todo mal há um bem; para toda dor, um prazer … e vice-versa… Quantas almas um homem deve possuir, até que lhe roubem toda a esperança? Quantos sonhos serão extirpados à realidade, pela crueldade acre da perfídia? Que ardis se escondem por trás das supostas boas intenções?

***
- Não posso aceitar isso, de jeito nenhum. Eu tenho que me explicar.

A mulher tentava apegar-se à coerência e aos pequenos vestígios de esperança que a notícia, trazida pelo rapaz, ainda deixava aceitar. Era o fim de um sonho que mal começara a acontecer. Por que razão deveria abrir mão da pequena conquista, que se tornara sua única loucura? Há quanto tempo ela não se sentia tão viva? E, agora…

- Por favor, não vá se explicar. Vai ser pior. Não quero que sejas atacada, como eu fui. Não pense que foi fácil ter a família inteira reunida, me agredindo e condenando… As evidências estavam à mostra, na folha de papel com a marca de batom e no bilhete que eu não joguei fora, por prezar tanto a sinceridade da tua emoção. Não temos outra saída. Foi-me dado um ultimato. Temos que por um fim a este caso. Nós sabíamos que isto iria acontecer, mais cedo ou mais tarde. Só não achamos que seria tão cedo. Sei que não é justo, mas não vejo outra alternativa. Temos que nos afastar, antes que seja tarde demais.

Ele tentava ser racional e manter os pés firmes no chão, embora seu coração estivesse estraçalhado. Já era tarde demais e ele sabia. A emoção havia sido relegada a segundo plano, depois da tal reunião, quando sua voz não havia sequer sido ouvida, nem suas razões - se é que havia alguma - consideradas. Nem toda a verdade fora contada, para poupar a mulher de maiores transtornos. Nem tudo que ouviu, ele contou. Ele estaria sendo vigiado de perto e lembrado, em cada oportunidade que aparecesse, das consequências de sua irresponsabilidade, por um bom tempo. Ela jamais saberia nem este, nem mais detalhes.

Ele manteve-se sério e irredutível entre o o que sentia e queria e o que devia ser feito. Ou resistia firmemente ou jogaria tudo para o alto, enfrentando uma guerra que não estaria preparado para vencer, tanto por inabilidade quanto por imaturidade. Sua vontade era abraçar, beijar e proteger a mulher, talvez até morrer por aquela, cujos olhos marejavam com um misto de ódio, decepção e impotência, face à realidade que lhe jogava contra uma parede tão sólida quanto o que sentia. Ele sabia, porém, que os alicerces daquela relação rompiam-se, naquele momento, por falta de uma estrutura consistente para sustentar o peso do futuro e da responsabilidade. Por dentro, sentia o punhal afiado e perverso do destino a dilacerar-lhe, profundamente, com seu corte certeiro e cruel. Um golpe cujas consequências seriam lembradas para todo o sempre. Uma cicatriz profunda demais a marcar eternamente a alma despreparada de um homem, que mal desabrochara para vida e que nunca mais seria o mesmo.

A mulher não conseguia ouvir o discurso com a razão, mas com a emoção. Sentia-se decepcionada, traída, revoltada e só. Sentia que ele entregara os pontos muito cedo e sem luta. Quão frágil era a linha que separava a coragem do medo, ou o amor do ódio…

***
- Mãe!

Os pensamentos da mulher esvanecem com o presente trazendo-a de volta à realidade. Virou-se para onde o menino de cabelos castanho-claros e olhos verdes vinha, desceu da rocha onde se encontrava e foi ao encontro do filho que a chamava. Os cachos que decoravam a face angulosa do menino, dançavam ao vento da tarde, enquanto ele corria de encontro à mãe. Ela abraça-o, beija-lhe a cabeça e saem pela praia, a caminhar sem dizer nada. Havia um entendimento entre eles, que não precisava de palavras. Estas seriam desnecessárias naquele momento e em qualquer outro. Existem segredos que, para permanecerem ocultos, devem ser completamente enterrados em algum lugar secreto da alma… terna e eternamente.

Ela sabia que o tempo (sempre) cura as feridas, mas não apaga as cicatrizes jamais.