segunda-feira, 24 de maio de 2010

A Máquina

Eu dirigia, já há horas, por uma estrada poeirenta, no meio de uma grande plantação. O sol ainda estava alto no céu e me batia no rosto, naquela tarde de Outono. A visão do vento a brincar com as folhas verdes do enorme milharal, que se estendia por quilómetros, me faziam sentir saudade de tempos de outrora, mas eu não sabia exactamente o porquê.

Depois de muitos quilómetros de estrada deserta, vi uma encruzilhada. Desacelerei e parei, procurando alguma placa, que me mostrasse onde me encontrava e quão distante poderia estar de outro destino qualquer. Não havia nenhuma indicação, nenhum sinal de trânsito à vista. Em dúvida, sempre uso a mesma táctica: virar à direita. (If right is right, left must be wrong…)

Logo à frente, avistei uma pequena propriedade. Parei e saltei do carro, para tentar obter informações. Tudo estava quieto e deserto. O vento batia na porta falsa da casa de madeira, que abria e fechava contra o batente. Entrei e vi a casa vazia, com as janelas abertas. As velhas cortinas esvoaçavam, como se dançassem, embaladas pela brisa vespertina. Meu olho captou alguma coisa em um canto e eu, instintivamente, virei-me naquela direcção.

Quase invisível, na penumbra, um par de olhos me observava. Aproximei-me com cuidado e vi que era apenas um menininho de uns seis anos - não mais que isso. Os cabelos cacheados, de um castanho muito claro, caíam-lhe pela testa, quase escondendo os olhos esverdeados, que eu via brilhar na meia-luz.

- O que fazes aqui? Estás sozinho? - Eu perguntava, com cuidado, para não assustar a criança.

Estendi-lhe a mão, num esforço meio desajeitado de mostrar que não ia machucá-lo. Ele saiu do cantinho e veio na minha direcção. Olhou-me como se desacreditasse que eu estivesse ali, na frente dele.

- Estás sozinho aqui? - Eu repetia a pergunta, tentando compreender o que se passava.

Ele ainda parecia desconfiado. Mesmo assim, concordou, com um movimento de cabeça.

- Onde estão os outros?

- Não tem mais ninguém aqui. Estão todos mortos. Eles foram pegos pela “máquina de exterminar gente”.

- Como? E por que tu não tiveste a mesma “sorte”?

Ele franziu o cenho, como se começasse a perder a paciência com minhas perguntas. Mas, uma sombra passou pela sua face. Sem responder directamente, ele olhou-me, com condescendência, estendeu um franzino braço e mostrou-me uma grande cicatriz em forma de meia lua.

Eu sorri um sorriso triste e estendi a mão, mais uma vez, tentando mostrar-lhe que podia confiar em mim. Ele aceitou a oferta, colocando a sua pequena mão na palma da minha. Foi então que olhou por cima dos meus ombros, com uma expressão de assombro estampada na face. Com um puxão, desvencilhou-se da minha mão e correu para fora, ao mesmo tempo que um som metálico cortava o ar atrás de mim. Uma fracção de segundo depois, senti uma pontada de dor atravessar meu corpo.

Passei a mão, instintivamente, no peito e pareceu-me que uma ponta muito fina de uma lâmina curva saía dali. Senti um puxão no corpo e penso ter caído de costas, em câmara lenta. Meus olhos não viram mais nada, pois uma escuridão cobriu-me a visão, quase que imediatamente.

Não sei quanto tempo passou. Ainda meio atordoado e sentindo um peso no peito, abri minhas pálpebras lentamente e vi aqueles grandes e esverdeados olhos, bem perto do meu rosto. Uma dor aguda e constante perfurava meu peito.

Com as duas mãos, levantando-o delicadamente, retirei o corpo e as patas do invulgar felino, que havia estado em cima de mim, afastando, ao mesmo tempo, uma afiada unha que me penetrava a pele. Gemi, tentando me levantar, mas tive dificuldade. Eu me sentia enfraquecido.

O gato se afastou, num flash ruivo, como se fugisse de mim ou tivesse encontrado outro ponto de interesse.

Examinando o ambiente à minha volta, percebi que ainda estava dentro da casa. A luz, que entrava pela janela, era ténue e me mostrava que já era tarde. O vento movia as cortinas, delicadamente.

Ao olhar para a porta, vi o menino a me observar, inexpressivamente, com o gato ao seu lado. Estendi o braço naquela direcção, mas ele não se moveu. Julgando que o pequeno estivesse em choque, tentei retirar o telefone do bolso da calça e discar o número da emergência.

De repente o chão começou a vibrar fortemente. Entre surpreso e apavorado, deixei o aparelho cair da minha mão. O gato pulou para fora da casa. A sonolência desapareceu de imediato dos meus olhos, que esgazeados, procuraram reciprocidade no rosto do menino. Não foi espanto que eu vi naquele olhar, porém. Foi um misto de indiferença e, para minha surpresa, um ar de divertimento.

Dizem que as grandes verdades nos atingem, frontalmente, no final. Foi então que compreendi, segundos antes do golpe definitivo e fatal. O quase imperceptível sorrisinho de satisfação, na face angelical dele, revelou-me tudo, sem que precisasse dizer nada…


Na sala dos arquivos telefónicos do número da Emergência, os especialistas ouviam, com cuidado, a gravação incomum. O ruído metálico - como de uma estranha máquina - antecedia um grito abafado de dor, seguido de longos minutos de um silêncio profundamente sufocante. O técnico já ia desistindo de obter mais alguma coisa, quando ouviu, ao fundo, um outro som, mais assustador ainda: aquilo teria sido uma gargalhada de criança, seguida de um - “vem, Ginger” - e de um miado curto?