terça-feira, 25 de abril de 2017

Olhares (Parte 3)


‘Desta vez pareceu-me tão real… O que será que poderia significar, afinal?’

O dia mal começava e eu já estava estranhamente confuso. Aquele sonho pareceu-me mais uma verdadeira visão, de tão realístico e intenso que havia sido.

Olhei para fora, através da grande porta de vidro que levava à varanda, com uma xícara de café quente na mão. Percebi que chovia e ventava, como num dia de inverno, embora a Primavera já tivesse começado há algumas semanas.

Cheguei a pensar em voltar para a cama, mas logo desisti, pois não queria correr o risco de voltar a adormecer e sonhar. Era melhor ocupar-me com alguma coisa mais proveitosa, até compreender o que se passava com minha cabeça… ou esquecer, de vez, o sonho de alguns momentos atrás.

***

Sentado ao lado de uma grande janela, no Café da esquina, eu olhava distraidamente para fora, quando o telefone tocou. Não foi surpresa, quando ouvi a mesma rouca e monótona voz, já velha conhecida minha. Ouvi, com atenção, sem responder mais que uns poucos resmungos. Levantei-me, paguei a conta e fui até a garagem, entrei no meu carro e saí em direção à praia. Tinha vontade de acabar com aquilo de vez, ou não teria paz.

Evitando pensar muito, durante o percurso de pouco mais de quinze minutos, aumentei o volume do som e fui cantando a plenos pulmões, até chegar ao meu destino. No fundo, eu tinha um certo medo a rondar minha cabeça e perturbar minha razão e discernimento.

Quando cheguei ao meu destino, a chuva ainda caía insistentemente. Pensei que era um péssimo dia para qualquer tipo de encontro, ainda mais sendo na praia.

Não estava bem-disposto, nem muito paciente. Esperei uns minutos e, como não apareceu ninguém, resolvi sair dali e voltar à minha vida. Dei partida no carro, engatei a marcha à trás e pressionei o acelerador, devagar. Quando virei o volante e ia sair do estacionamento do pequeno restaurante, à beira da praia, a porta do passageiro abriu-se e ele entrou, para meu espanto, pois julguei que estava trancada por dentro.

***

- Acelera e vai em frente, em linha reta...

- Mas isso é suicídio!

- Não sejas covarde! Acreditas ou não?

Eu não gosto de ser desafiado, nem de ser chamado de covarde. Não olhei para o lado. O carro subia a estrada e eu devia fazer a curva, mas não virei o volante. Acelerei e fui em frente.

Pensei que ia acordar, quando o carro passasse do limite do penhasco, quebrando a pequena cerca de madeira e voando, na direção do mar, algumas dezenas de metros abaixo de nós, mas aquilo não era um sonho. Era a dura realidade. O homem, entretanto, sorria satisfeito, sentado ao meu lado.

O som que se seguiu foi estranhamente ensurdecedor. Senti um gosto estranho na boca e apaguei completamente.

***

- Foi uma bela queda. Poderia ter sido morte certa. Se pensarmos bem, o resultado do acidente até que nem foi tão grave, como poderia ter sido, tendo em vista a altura do penhasco… Se não fosse pelos surfistas que viram o acidente e foram logo em teu socorro…

- Será? E o homem que estava comigo? O que aconteceu com ele?

Eu quase nem reconhecia o som da minha própria voz, que parecia, apenas, um eco do que costumava ser. O médico olhou-me, muito sério, sem esconder uma manifesta preocupação.

- Não havia ninguém contigo no carro…

Encarei, com os olhos arregalados, aquele homem vestido de branco. Uma forte angústia aninhou-se em meu peito. Eu ouvi o som do aparelho ligado ao meu corpo acelerar o ritmo dos bips, quase ao mesmo tempo.

- Acalme-se, por favor. Agora, é melhor, primeiramente, tomar todos os medicamentos, com rigor. Acrescentei uns comprimidos com sais de Lítio, só para testarmos uma teoria. A princípio não pode ser nada muito grave, mas é conveniente termos mais certezas...

Respirei fundo e fechei os olhos, pensando no que havia ouvido.

‘Teoria… Teoria, o cacete!’

Eu sabia para que tipo de distúrbios os sais de Lítio eram usados. Era inconcebível que aquilo estivesse acontecendo comigo.

Quando reabri os olhos, o médico já seguia pelo corredor, andando na direcção da sala de Raio-X, com um grande envelope, que continha minhas radiografias, na mão.

Minha cabeça doía.

A enfermeira estendeu-me um copinho plástico com um bocado de comprimidos e pediu-me que ingerisse todos de uma vez, com um pouco de água. Até então, nem havia dado por sua presença naquele quarto. Ela observou-me com cuidado, certificando-se que eu engolia os medicamentos e saiu em seguida.

Ainda a ouvi conversar baixinho com alguém, mas não consegui perceber o que dizia, nem com quem ela falava. Pareceu-me, entretanto, que era algo como: ‘tudo vai ficar bem’…

Ela puxou a porta atrás de si, deixando-me sozinho, deitado, quase imóvel, por conta de duas pernas quebradas e umas costelas fracturadas, na cama do hospital.

Ouvi uma batida muito leve na porta e esperei, mas meus olhos fecharam-se, sem que eu conseguisse enxergar se via alguém a entrar. O efeito dos analgésicos era muito poderoso e eu adormeci muito rapidamente, naquele sono sem sonhos…

***

Poucos meses depois, com muita terapia e o uso rigoroso dos medicamentos, deixei o hospital e recomecei minha vida. Fui buscar o gato, que havia ficado na casa da minha sobrinha e trouxe-o de volta comigo. Aquele ato simples representava que minha vida voltava ao normal, aos poucos e que eu podia retomar minhas rotinas e meu emprego. 

Ainda tinha que fazer fisioterapia até recuperar meus movimentos na normalidade e visitava o hospital, pelo menos, uma vez por semana.

Numa das visitas, topei com a enfermeira que estava no quarto no dia em que acordei pela primeira vez, depois do acidente. Ela reconheceu-me e cumprimentou-me com um largo sorriso.

- Vejo que está melhor. Como vai seu amigo? Ele demonstrou uma preocupação muito grande quando o viu na cama, todo engessado…

- Que amigo?

- Aquele que se veste sempre de negro…

Devo ter feito uma cara muito estranha, pois ela logo completou.

- Ele veio cá várias vezes, até o dia em que você recuperou a consciência. Naquele mesmo dia, disse que ia viajar, por uns tempos…

- Pois. Já não o vejo há algum tempo. Obrigado pela preocupação.

***

No sábado, ainda de manhã, estava em casa arrumando minhas roupas, quando senti que, num dos bolsos de um casaco, havia um papel dobrado. Reconheci o pequeno símbolo desenhado em negro, assim que o tive na mão. Desdobrei, novamente, aquela pequena mensagem, entregue a mim, por um funcionário de um restaurante, alguns meses antes e li-a, com novo interesse.

Foi como se minha cabeça voltasse no tempo. Fiquei ali, não sei por quanto tempo, com o bilhete na mão, pensando no que havia acontecido…

O gato entrou, lembrando-me que era sua hora de comer e eu fui até a cozinha, servir-lhe a ração, mas ele parou diante da tigela de água, que estava vazia. Eu tinha certeza que havia enchido a mesma, logo depois do café da manhã, mas voltei a preencher, para satisfação do bichano, que bebeu em seguida. Ele agradeceu com uma leve cabeçada e roçou o corpo nas minhas pernas. Acariciei-lhe o dorso e a cabeça, ouvindo seu ronronar satisfeito.

Resolvi almoçar fora. Vesti o casaco e saí, com intenção de ir na direção da estação de metro. Ainda não podia conduzir normalmente e, ademais, não tinha o carro. Quando cheguei ao saguão do prédio, vi que, no vidro empoeirado da porta de entrada, havia um símbolo desenhado e que eu reconheci de imediato. Procurei algum vestígio do autor daquela façanha, do lado de fora, mas não havia ninguém por perto.

‘Alguém anda de brincadeiras comigo.’

***

Estava sentado na esplanada, num pequeno restaurante à beira da praia, com os pensamentos a vaguear muito longe. Um cálice de vinho verde, branco e fresco, pela metade, descansava ao lado do prato de peixe, que eu havia terminado há pouco.

- Pensei que preferias vinho tinto…

Reconheci o tom da voz assim que ouvi as primeiras palavras. A mesma monotonia e o timbre rouco, típicos dele, denunciaram o interlocutor.

- E prefiro, mas dado ao calor e à leveza do prato, acabei decidindo pelo branco. Senta-te.

Ele sentou à minha frente e à sombra do para-sol. Vestir-se de negro, daquele jeito, não era comum na hora do almoço e nem na esplanada de um restaurante à beira da praia, mas não comentei nada. 

Seus olhos azuis pousaram sobre os meus, naquela maneira fixa e provocadora, que era característica dele e que me incomodava sobremaneira. Senti um arrepio. Ele logo percebeu e sorriu.

- Vejo que estás bem melhor…

- Em pouco tempo estarei a cem por cento… Vi o sinal que deixaste na porta.

Ele sorriu, novamente.

- Não fui eu quem deixou o sinal.

- Ai, não? E quem foi, então?

- Quando é que vais acreditar? Ainda não tiveste provas suficientes?

- Acreditar? Eu quase morri, por tua causa e por acreditar… Queres mais que isso? Olha como eu estou. Saia da minha vida de uma vez. Isso tem que acabar…

- Mesmo que eu quisesse, isso já não seria possível.

Ele esperou pela minha reação, olhando-me fixamente. Senti que a confusão transpareceu nos meus olhos, pela forma como ele franziu o cenho.

- Vamos sair daqui.

Ele levantou-se e esperou que pagasse a conta e viesse para o lado de fora, onde as calçadas estavam povoadas de gente a caminhar ao sol. Seus cabelos reluziam com a luz de início de tarde e sua cabeça parecia incendiar. A minha parecia que ia explodir…

Caminhamos por uns minutos, sem falar nada, quando um carro preto, com os vidros protegidos por películas escuras, parou ao lado da calçada e ele disse:

- Vamos!  

- Mas esse é o carro que quase me atropelou há tempos atrás!

- Mas tu estavas bem protegido. Não foste puxado para trás, na hora certa? Nós estamos sempre atentos…

- A mulher…

Ele riu e abriu a porta. Eu segui meu instinto e entrei, com ele, no carro, que partiu imediatamente dali. Sentado no banco de trás e com os olhos no motorista, eu ainda me sentia meio atordoado pelo que acabara de ouvir... e de ver...

***

sábado, 15 de abril de 2017

Stares (Part 2)


By the time I got to work the next day, I was almost too late, because it took me way too long to fall back asleep. It was Thursday, and to confirm my displeasure for the worst day of the week, I was called up for a meeting that lasted all morning long and did not allow me any time to think of anything else but the decisions I had to make during the meeting.

When I left for lunch, it was way past my normal time and I had to go to a restaurant near the office, along with some of my colleagues who attended the same meeting.

I ordered a grilled fish with rice and salad, which was better than I expected, for the meal it was. I was distracted by the informal conversation when the waiter brought a glass of red wine and placed in front of me. As I had not ordered wine to drink, because it was a normal work day, I declined the offer, but he pointed at a table on the opposite end of the large room and said:

- It's a courtesy from that client...

I looked in that direction and saw a man dressed in dark clothes lifting his glass of wine and moving his lips in what seemed to me he was saying 'cheerio'.

For some reason, I felt a pinch in my stomach and did not want to drink it, but I thought better and decided that it was more convenient to force myself and take it in spite of the apprehension I felt. My colleagues finished their meal before I did and got up, but I said it would take me a while longer, still.

When I was alone, I looked in the direction where my beneficiary had once sat, but I did not see him anymore. I got up and walked on to the cashier. The young man on duty told me that the bill was already paid, which I found it odd, once we did not usually pay each other's bills on a work day.

- The customer who paid the bill asked me to give you this...

It was only then that I realized that it had not been any of my colleagues who had paid off my small debt for that simple meal. He handed me a folded paper with a little sign scribbled in black on the outside of the message.

I unfolded the paper and looked around, but I no longer saw the man. I was intrigued as I remembered what he had told me on the phone.

I should have suspected that the offer of a glass of wine was not exactly what I should call a conversation, as he had clearly indicated, when he called me at that hour of the night at home. Since I did not go to lunch alone, he decided to postpone the conference for another occasion, which left me somewhat relieved. But having my meal paid for by a stranger, made me feel rather uncomfortable.

Anyway, I did not know if I was ready for a conversation with that character... yet...

I had no way of knowing what he wanted from me and I found that story very strange. In fact, he gave me more time to prepare for when the time came. Postponing such a meeting was the best thing one could do.

As I prepared to cross the street, I felt a strain on my arm and turned around, surprised and frightened.

A well-dressed woman in a dark grey suit and hair tied behind her head in a well-fitted bun had pulled me back, milliseconds before a black car passed at high speed, very close to the curb where we were.

- Careful! He crossed a red light!

I felt completely stupid.

- Thank you. My mind was elsewhere...

- It's not a good strategy being that distracted when you cross the street.

- True... I'll be more careful. Thank you so much.

She smiled condescendingly, crossing the pedestrian lane and disappearing among the passers-by who were walking in and out the busy sidewalk. A cold sweat ran down my body, although it was a pleasant and warm day.

'Careless fool! And to make matters worse, as if I needed it, this happens on the day of the week I hate most! Fucking odd Thursday!'

***

By mid-afternoon I was so immersed in an assignment that I did not notice the phone ringing insistently. A colleague called my attention and I picked it up immediately. The hoarse, familiar voice on the other end said:

- You must be more careful when crossing the streets. Careless people might get hurt...

- Yes. I know…

- Was the wine any good? I think it tasted a bit too fruity to match the fish.

- It was a full-bodied one, I agree. But that's how I like it. It was very good. Thanks for the offer.

- Great. You’re welcome.

Before I said anything else, I heard the line go off and I stayed there, with the phone still in my ear, as if I thought the conversation was yet not finished. It was getting bored and a little disturbed, to say the truth.

Someone called me to attend another unscheduled meeting and there I was busy for the rest of the afternoon and a little bit of the evening after the normal closing of the day, once again.

When I left the office, it was already past eight o'clock and I was visibly tired. I thought it would be a good idea buying something in a take-away on the way, instead of preparing any food, so I had less work and could eat as soon as I got home. Then I could finally rest from the long day. I could not even think very clearly. I just wanted to get home, eat something and lie down immediately afterwards.

The BBQ chicken was still hot when I started eating and the chips were crunchy and tasty. I pondered on how good it was to be simple. The cat got his small portion of chopped chicken breast and he was still happy savouring it when I finished my dinner. After having the dishes placed in the washing machine, I checked the cat’s bowl of water just to make sure I was not going to miss anything and prepared to rest.

I fell asleep in no time.

In the middle of the night, I woke up with the impression that there was someone else in the apartment. I looked around and noticed that the cat, my reference, was awake and staring out of the room. I got up and switched all the lights on, went to the kitchen, then to the living room but I did not see anyone else.

I also checked the entrance door to certify it was well locked from inside.

‘I must have dreamed of something I can’t remember... or I am starting to go somewhat deranged...

When I turned around to go back to my bedroom, I realized the living room window was open, to my complete astonishment. That was unacceptable, as I used to keep all windows shut so the cat would not go out without my knowing. I did not remember having opened it at all. I would never be that careless… or would I?

‘I have to stop this nonsense! I'm going to end up in a padded cell!’

***

The next day I was so busy that I did not have time to think about any other thing but work. Fortunately, it was the last day of the week and thus I could rest for the next two days. I was looking forward to it.

I got home so tired that even the cat was surprised he did not get enough attention, but he lay down beside me on the couch and fell asleep with me, as if he understood that I needed his support too.

The phone rang just a few minutes before midnight.

The same hoarse voice, quiet and monotonous, showed an affinity that he did not really possess.

- You should not sleep on the couch. You will get up with a sore back and neck.

- And how do you know I'm on the couch?

- You're still not convinced, are you? What do you believe, anyway?

- I'm a man with a totally rational mind. I do not believe in anything I cannot prove scientifically.

- There are many baffling mysteries in this world. You should be more open to the experiences you cannot support with your logic. Who guarantees that there are no other dimensions beyond this one?

- Other dimensions? You must be kidding me...

The man did not argue. I could hear his heavy breathing on the other side of the line. I did not know what was coming next. To my surprise, before I said anything else, he hung up.

‘What does he want from me? Other dimensions? What the hell was that? I only know three dimensions... and sometimes I’m not even sure of those!

***
- You must be open to perception. It is not enough to believe. You must accept it.

- But this can only be an illusion... I cannot believe it!

- Open your mind. There is nothing impossible, as you can well see.

I shut up. I was being preposterous. If that was not enough to believe, then what would it be?

He showed me the way, letting me go though and then began to walk beside me. I did not even know what to think. There was nothing minimally appropriate to say. When looking around, it all seemed to be like a souvenir shop, with many galleries opening, like the sewer tunnels underneath the city... with the exception we were not under the city and the galleries were not empty or dark. The various entrances and exits led to many strategic points, as if they were access portals to that place. They changed places, constantly, as if designed to prevent them from being detected, which made a certain sense.

- This side serves as a balance to the other, but now it's totally chaotic, because of the mercilessness that are continuously happening on that side. Things have gotten out of control and the balance is getting harder and harder to reach.

- And why am I here?

The man stopped and looked at me with a strange face, as if he could not believe my naivety.

- Someone on this side has sent me to show you what's going on and ask for your help.
- Help? Who could need my help?

He just looked over my shoulder.

- Me.

I turned around quickly to see who had spoken. My legs shook and I almost choked. I tried to sound normal, but my voice betrayed me completely.


- I should have known better...


domingo, 9 de abril de 2017

Olhares (Parte 2)


Quando cheguei ao trabalho, no dia seguinte, estava praticamente atrasado, pois demorei a adormecer e perdi a hora. Era quinta-feira e, para confirmar minha ojeriza ao pior dia da semana, desde há muito, fui chamado para uma reunião, que durou a manhã inteira e que não deixou-me tempo para pensar em mais nada, a não ser as decisões que eram exigidas ao grupo.

Quando saí para o almoço, já era passado da minha hora normal e tive que ir a um restaurante próximo do escritório, junto com alguns dos colegas, que participaram da mesma reunião.

Pedi um peixe grelhado com arroz e salada, que estava melhor que eu esperava, para a refeição que era. Estava distraído com a conversa, quando o rapaz que servia à mesa trouxe uma taça de vinho tinto e pousou à minha frente. Como eu não havia pedido vinho para beber, por ser um dia de trabalho normal, recusei o pedido, mas ele apontou para uma mesa na extremidade oposta e disse:

- É cortesia daquele cliente…

Eu olhei naquela direção e vi um homem vestido com roupas escuras a levantar a sua taça de vinho e mexer os lábios, no que pareceu-me ser votos de ‘saúde’.

Por algum motivo, senti uma pontada no estômago e não quis beber, de imediato, mas pensei melhor e decidi que era mais conveniente forçar-me, apesar da apreensão. Meus colegas terminaram a refeição antes de mim e levantaram-se, mas eu disse que ia demorar-me um pouco, ainda.

Quando fiquei a sós, olhei para o local onde antes havia sentado meu beneficiário, mas já não o vi. Levantei-me e fui até o caixa. O rapaz que estava de serviço disse-me que a conta estava paga, o que eu achei estranho, pois nós não costumamos pagar, em dia de trabalho, as contas uns dos outros. Foi quando ele entregou-me um papel dobrado com um pequeno sinal rabiscado a preto, ao lado de fora da mensagem.

- O cliente que pagou a conta pediu-me para entregar-lhe este bilhete…

Foi então que eu percebi que não havia sido nenhum dos meus colegas que havia saldado minha pequena dívida daquela refeição.

Desdobrei a mensagem e olhei à volta, mas já não avistei o tal homem. Li, intrigado, e lembrei-me do que ele havia-me falado ao telefone.

Eu devia desconfiar que a oferta de uma taça de vinho não era, exatamente, aquilo que eu deveria chamar de uma conversa, como ele havia indicado claramente, quando ligou-me, àquela hora da noite. Como não fui almoçar sozinho, ele resolveu adiar a conferência para outra ocasião, o que deixou-me, de certa forma, aliviado. Mas ter a minha refeição paga por um estranho, deixava-me bastante desconfortável.

De todo jeito, eu não sabia se estava preparado para uma conversa com aquele personagem… ainda…

Não tinha como saber do que se tratava e achava aquela história toda muito estranha. Na verdade, ele dava-me mais tempo, para me preparar para um encontro, quando chegasse a hora. Adiar a tal reunião, era o melhor que se podia fazer.

Quando preparei-me para atravessar a rua, senti uma pressão no braço e voltei-me, entre surpreso e assustado.

Uma moça bem vestida, com um tailleur cinza escuro e os cabelos presos atrás da cabeça, num coque bem arranjado, havia-me puxado para trás, milésimos de segundos antes de um carro preto passar, em alta velocidade, muito próximo da calçada.

- Cuidado! Ele avançou o sinal vermelho!

- Obrigado. Estava mesmo absorto…

- Não é uma boa estratégia distrair-se ao atravessar a rua.

- É verdade… Vou tomar mais cuidado. Agradeço imensamente.

Ela sorriu, condescendentemente, atravessando a faixa de pedestres e perdendo-se no meio dos transeuntes que iam e vinham pela calçada movimentada. Um suor frio correu-me pelo corpo, apesar de estar um dia agradavelmente morno.

‘Descuido. Grande descuido! E, para piorar, numa quinta-feira. Odeio isso, tanto quanto as quintas-feiras!’

***

A meio da tarde, estava tão envolvido com um trabalho, que não percebi o telefone tocar insistentemente. Um colega chamou-me à atenção e eu atendi de pronto. A voz rouca e conhecida, do outro lado da linha, falou:

- Deves ter mais cautela ao atravessar a rua. As pessoas descuidadas podem machucar-se…

- É. Eu sei…

- O vinho estava bom? Pareceu-me um pouco frutado demais, para acompanhar o peixe.
- Era bastante denso e encorpado, eu concordo. Mas é como eu gosto. Estava muito bom. Obrigado pela oferta.

- Ótimo. Não há de quê.

Antes que eu dissesse mais qualquer coisa, ouvi o som da linha desligar e fiquei ali, parado, como o telefone ao ouvido, como se desacreditasse que a conversa fosse somente aquela. Aquilo estava ficando, além de entediante, também um pouco perturbador.

Alguém chamou-me e eu tive que participar de outra reunião não programada, o que deixou-me ocupado pelo resto da tarde e um pedacinho da noite, após o encerramento do expediente normal.

Quando saí do escritório, já passava das oito da noite e eu estava visivelmente cansado. Pensei em comprar algo num ‘take-away’ a caminho de casa, ao invés de preparar comida, pois assim tinha menos trabalho e comia logo que chegasse. Depois podia descansar do longo dia. Já nem conseguia pensar muito claramente. Eu só queria chegar em casa, comer e deitar-me.

O frango no churrasco ainda estava quente quando comecei a comer e as batatas fritas bem firmes e saborosas. Pensei em como era bom ser simples. O gato ganhou uma porção de peito de frango picado e ainda estava feliz da vida a saboreá-la, quando terminei o meu jantar. Arranjei a louça na máquina de lavar, dei uma olhada na tigela de água do bichano, para certificar-me que não ia faltar-lhe nada e fui arranjar-me para repousar.

Adormeci em pouco tempo.

A meio da madrugada, acordei-me sobressaltado, com a impressão que havia mais alguém dentro de casa. Olhei à volta e percebi que o gato, minha referência, estava acordado e a olhar fixamente para um ponto fora do quarto. Levantei-me e acendi todas a luzes, fui até a cozinha, depois à sala, mas não vi ninguém.

Verifiquei, também, se a porta de entrada estava bem trancada por dentro, para ficar mais aliviado.

‘Devo ter sonhado com algo que não consigo lembrar… ou estou começando a enlouquecer…’   

Quando eu virei-me para voltar ao quarto, percebi que a janela da sala estava aberta, para minha surpresa. Aquilo era absolutamente inaceitável, pois eu sempre mantinha as janelas bem fechadas, para evitar que o gato saísse sem que eu soubesse. Eu não lembrava mesmo de havê-la aberto. Eu nunca seria tão descuidado… ou seria?

‘Tenho que parar com esta paranóia! Vou acabar indo parar num hospício!’

***

No dia seguinte, estive tão ocupado com o trabalho, que não tive tempo de pensar em muitas coisas. Pelo menos era o último dia útil da semana e eu ia poder descansar nos dois dias seguintes.

Cheguei em casa tão cansado, que até o gato estranhou que não ganhou carinho suficiente, mas deitou-se ao meu lado, no sofá e adormeceu comigo, como se compreendesse que eu também precisava do suporte dele.

O telefone tocou quando faltavam poucos minutos para a meia-noite.

A mesma voz rouca, tranquila e monótona, demonstrava uma afinidade que não possuía, na realidade.

- Não devias dormir no sofá. Vais levantar com dores no corpo.

- E como é que sabes que eu estou no sofá?

- Pelo jeito ainda não estás convencido… No que é que tu acreditas, afinal?

- Eu sou um homem de mente totalmente racional. Não acredito em nada que não possa provar cientificamente.

- Existem muitos mistérios inexplicáveis neste mundo. Devias ser mais aberto às experiências que não consegues provar com a tua lógica. Quem é que garante que não existem outras dimensões além dessa?

- Outras dimensões? Deves estar a brincar comigo…

O homem não argumentou. Eu ouvia sua respiração pesada, do outro lado da linha, sem saber o que viria a seguir. Para minha surpresa, antes que eu dissesse mais qualquer coisa, ele desligou.

O que ele quer comigo? Conversa mais estranha! Outra dimensão? Que porcaria é essa? Só conheço três dimensões… e olhe lá!

***

- Era preciso que tu estivesses aberto para a perceção. Não basta acreditar. É preciso aceitar.

- Mas isso só pode ser uma ilusão… Não posso acreditar!

- Abra a mente. Não há nada impossível, como podes perceber.

Eu calei-me. Estava-me passando por ridículo. Se ver não for suficiente para crer, então o que será?

Ele apontou-me o caminho, deixando-me passar e logo começou a andar ao meu lado. Eu nem sabia o que pensar. Não havia o que dizer. Aquilo parecia uma loja de souvenirs, com muitas galerias que se abriam, como os túneis de esgotos por baixo da cidade… só que não estávamos por baixo da cidade e as galerias não estavam vazias, nem escuras. As várias entradas e saídas levavam a muitos pontos estratégicos, como se fossem portais de acesso. Estes mudavam de lugar, constantemente, como se pretendessem impedir que fossem detectados, o que fazia um certo sentido.

- Este lado serve de equilíbrio para o outro, mas agora está totalmente caótico, por causa das barbaridades que acontecem daquele lado. As coisas ficaram fora de controlo e o equilíbrio está cada vez mais difícil.

- E por que eu estou aqui?

O homem parou e olhou-me, com um ar estranho.

- Alguém do lado de cá enviou-me para mostrar-te o que acontece e pedir-te ajuda.

- Ajuda? Quem poderia necessitar de minha ajuda?

Ele olhou por cima dos meus ombros, como se não conseguisse acreditar que eu fosse tão ingénuo.

- Eu.

Virei-me rapidamente, para ver quem havia falado. Minhas pernas tremeram e eu senti um aperto na garganta. Tentei parecer normal, mas minha voz traiu-me completamente.

- Eu já devia esperar…

***