terça-feira, 24 de setembro de 2013

Thomas




Faz, hoje, um mês que o conheci. Ele havia sofrido maus-tratos, sido expulso de casa, aos pontapés, por haver deixado cair, ao chão, umas pinguinhas de urina com sangue - resultado de uma infecção urinária, provavelmente devido ao stress a que esteve exposto - e fora recolhido por uma associação de protecção aos animais.

Cerca de três meses depois, estava a ler umas notas numa página da internet e vi a história do gatinho. Havia umas fotos, mostrando a carinha dele, no artigo, com um olhar distante e meio tristonho. Por algum motivo, aquela história deixou-me comovido e aflito. Ainda estava chorando a perda do Tiger e não conseguia entender como alguém podia fazer aquele tipo de coisas a qualquer bichinho que fosse. Eu havia tentado até o fim e feito tudo ao meu alcance, para que meu Tiger tivesse assistência até os últimos momentos de sua vida. Era-me estranho pensar que outros não fizessem algo parecido.

Entrei em contacto com as responsáveis da associação e perguntei a idade do bichano. Devia ter cerca de três anos, mas ninguém sabia dizer ao certo. Perguntaram se eu queria servir de família de acolhimento temporário (FAT) e ajudar a cuidar do animalzinho, por uns tempos, até que aparecesse alguém, para adoptá-lo oficialmente. Fiquei incerto e não disse sim, imediatamente. Depois de algumas conversas, combinamos que ele deveria vir para os meus cuidados, num fim-de-semana, de modo a dar-nos tempo de avaliarmos um ao outro por, pelo menos, dois dias completos.

Ele chegou numa transportadora flexível. Pelo que constava, não se sentia bem em viajar de carro, ficando bastante agitado no percurso. Já fora da caixa dentro da qual veio, ele começou a exploração do território, não sem antes avaliar-me, sem deixar tocá-lo, mas deixou-me uma boa impressão. Parecia um gatinho forte, apesar de um tanto assustadiço, mas com um jeitinho carinhoso de envolver-se e deixar-se apreciar. Já havia sido tratado e tinha um aspecto bem saudável e cuidado. Poucos minutos depois, aproximou-se e mostrou que estava pronto para um primeiro contacto. Ele deixou-se tocar e, para nossa surpresa, logo caminhou de rabo levantado, como se já sentisse incluso em território amistoso. Nunca demonstrou sinal de qualquer animosidade.

Quando fomos deixados a sós, decidi deixá-lo à vontade, para explorar todos os cantos e os recônditos do apartamento. Resolvi chamá-lo por Thomas. Uma capa de cor cinzenta cobre-lhe a parte de cima do pelo. A parte de baixo e as patas são de uma pelagem muito branca e macia. Seus olhos são verdes e sempre atentos a tudo, como em qualquer felino que se preze. Parece-se com Tom, o desastrado gato que persegue o camundongo Jerry – daí o nome cair-lhe bem.

Thomas tem seu próprio tempo. Ele é esperto e brincalhão. Sabe avaliar bem os limites, antes de tentar ultrapassá-los. Para um gatinho que havia passado pelo que ele passou, ser tratado com respeito e carinho é uma verdadeira dádiva. Ele é dócil e carinhoso. Não gosta de ficar ao colo, mas deixa-se ser afagado, quando aproxima-se, muitas vezes de propósito, a roçar-se nas minhas pernas. No início, talvez para sentir-se seguro, alimentava-se apenas quando me tinha por perto. Com o tempo, felizmente, tornou-se mais independente.

Ele aprecia música, especialmente quando a quietude da noite o convida a recolher-se e descansar. Que feliz surpresa!

Menos de vinte dias depois de tê-lo em casa, resolvi adoptá-lo oficialmente. Não conseguia imaginar outra pessoa a levá-lo para longe de mim, para sempre. Estava apaixonado, acho eu.

Levei-o ao veterinário, para avaliar suas condições físicas e confirmar se a infecção estava realmente curada. Tive a resposta positiva e voltei para casa, aliviado e satisfeito.

Ele já fazia parte da minha vida, que acabou tomando um rumo que eu não esperava, pelo menos assim tão cedo. Ganhei um grande companheiro em Thomas. Tenho certeza que este é o início de uma grande amizade.

Às vezes, como hoje de manhã, enquanto olho para o gatinho a fazer gracinhas no tapete da sala, comovo-me a pensar no que ele passou, no que sofreu, nos medos que teve… até chegar aqui, neste tempo e neste lugar, junto de mim… e não contenho as lágrimas. Não tenho de as conter, para falar a verdade.

Só penso que o pesadelo deste ser quase indefeso está no fim. Tudo que ele precisava era um pouco de atenção e outro tanto de autêntica afeição. Em mim, tem ambas e, ainda, muito mimo. Ele já é muito estimado, com certeza, e sabe disso. Seus olhos, de um lindo tom luminoso de verde, olham-me assim, de uma maneira enigmática, demonstrando afeição e, talvez, gratidão, quando aproxima-se e faz um cumprimento com a cabeça, pedindo um chamego.

Afago-o, passando a mão pelo corpo forte do bichano e ouço seu ronronar satisfeito. O pelo macio brilha com a luz e eu digo-lhe, baixinho, com a voz emocionada:

- Olá, filhote… está tudo bem, agora… Você é muito amado, sabia?

Ele fecha os olhos, devagar, numa demonstração de confiança, como se dissesse, no seu jeito meio estouvado e adorável de ser:

- Eu sei, amigo… eu sei…


sábado, 21 de setembro de 2013

Other Studies in Red and Blue - Epilogue



- She was with me. When the phone rang, she made an excuse up. She had to... She felt guilty, but there was nothing else she could do at that time.

- She would not do that to me...

But a twinge of doubt and pain made way in the young man’s mind.

- But she did. She was needy and the opportunity simply showed up. All people are like that. Don’t try to fool yourself... you know it very well...

Misha smiled. And his smile seemed extremely sarcastic.

- Why are you doing this?

- As I have already said, to prove a point. Things and people are not what they seem to be.

The boy was visibly affected by the news and almost dropped the dishes that were collected from the table, a few moments before. He felt lonely, betrayed... and used. A huge weight fell upon his shoulders and he felt suddenly tired. He turned around to go towards the kitchen when the other man asked him:

- Bring me one of those cream pastries that look so fresh and tasty, please. I suddenly felt an urge to eat one of them.

Misha smiled again... a large and misleading grin, as deliberate as his studied seductive performances.

That grin seemed to be a mocking taunt to the other man, who left without saying anything else.

- Fuck the cream pastry...

The uncensored expletive came out of his mind, as he took the dirty dishes to the kitchen of the Café. Someone else could take charge of serving him the cream pastry...

(You damn motherfucker!)

***

- I felt so bad and so guilty. I was weak and let me take by a situation that could easily be avoided.

- You were needy and insecure...

- That does neither decrease my responsibility nor guilt. I was so dumb! Look at what that situation turned out to be...

The therapist tried not to laugh at her argument.

- Blaming yourself will not solve anything or bring anyone back. You know that.

- I know. I know it very well...

- So accept it and go ahead. Concentrate on what is important at this point in time...

- On the death... and the mystery left yet to be solved...

The woman's eyes seemed to take her away from where she was. The therapist noticed a frown, as if the woman was seeing something she had not noticed before...

***

- How did he know?

The woman, visibly annoyed, showed a message on the phone display: “It hurts. So very much! "

- I don’t know. Why do you think I have anything to do with it?

- Don’t be so despicable, Misha. What did you tell him?

- I told him I could stop his pain... if he allowed me to...

- What?

- But he wouldn't listen to me. He said he didn't want anything either from me... or with me...

- Are you crazy or what?

- Why? He was a very interesting young man...

Misha laughed. He was teasing the woman, who seemed not to like a bit of that joke.

- Don’t be disgusting! He is none of your kind!

- Oh, isn't he?!? Are you sure about that? You better not bet he was indifferent to the kiss I gave him...

She raised her hand and was going to give him a resounding slap, but he was quick enough to hold her wrist, before his face was hit. He came very close to her face and laughed. He looked into her eyes and said, slowly:

- I would have as much fun with him as I had with you. Those sad little eyes would have a joy that he had never imagined he could have... but he... refused it before getting to know it.

- Let me go, you pig...! Idiot Asshole!

She lifted her knee in a defensive gesture and hit a very soft sensitive part, right up between his two legs, making him lose control and fall to the ground screaming and writhing in pain.

- Bitch!

- Go to hell, you fucking prick!

The woman went, furious, out of the door. Her chest was heaving, full of disgust and revolt, leaving the offender still laying in the middle of the living room.

When she was crossing the threshold and pulled the door behind her, she still could hear a moan of pain mixed with a laugh of derision, from the blond boy with blue eyes, as deep as the Pacific Ocean, but with the soul as futile as that of a fallen angel.

- You're gonna pay for this...

***

- What do you want here? Go away!

- I brought you a bottle of the best Russian vodka there is. It helps relieving the pain.

- Why do you think I want something that comes from you? Have not you done enough harm? Aren’t you happy yet? Do you have to destroy everything you touch?

- Let me come in and we speak.

He opened his studied smile and held the boy's arm that was blocking his entry into the small apartment where he lived. The other responded immediately.

- Get out of here!

He raised his fist and punched against the void, because Misha managed to dodge quickly and took advantage of the moment almost immediately, hitting the other man’s chest with his open hand. The boy lost his balance and fell over the leg that Misha put purposefully on the way. Half body lying inside the apartment was enough to allow him to enter without difficulty, with the bottle of vodka in hand. The door closed, as soon as the other stood up, still half bewildered.

***

- It's best you come here urgently... I think we were quite mistaken.

- How so? Mistaken?

- The autopsy results are ready. The cause of death was, definitely, not what we thought it was, initially.

- I'm on my way.

The woman hung up and got in the car. She was awfully apprehensive. Thousands of unanswered questions were boiling up in her head, while she was driving, almost instinctively, to the police lab.

Through the car window, the images went by in a live slideshow, while in her mind the impressions, sensations and feelings trampled down, as if to manifest themselves all at once.

Shadows... Children running... Afternoon Sun... Trees... Glass and concrete walls... More shadows... Parked cars... Girls, dressed in school uniforms, laughing out loud... Traffic... Red tail lights... Blue sky... pain... Avenues... Steel, concrete and glass... sharp angles... corners and intersections with red lights... blood... Death... Suicide? Homicide...? Accident...? Why?

***

- We'll never prove it was murder, detective. The level of alcohol in his system was way too high. Do you see this mark?

She nodded, seeing the mark of a hit on the side of the dead boy’s head. The doctor pointed at a large injury caused by a sharp angled surface, like the corner of something.

- He fell, hit his head while falling down and plopped down on the pavement. We found a spot of blood on one of the balconies of the fire escape. By the way, it is more than just a theory. One cannot know, however, if there was any intervention from someone... if he was pushed off the balcony or something. There is no evidence in the body, which shows that. I searched every little inch of the corpse but found nothing. We will never know the truth, from what I could figure out...

But something told her that someone had more to do with the fact, than the evidence could scientifically demonstrate.

***

When the woman got in the “Temple", it was already late afternoon. The light inside the great hall brought her memories of a time that seemed suddenly so distant. A strange nostalgia made she look at it all with different eyes. She was now just a police investigator in search of answers. And she was not convinced of the innocence of anyone... not even of herself...

She went to the bar, in the centre of the place and asked the servant, who was an old acquaintance or hers:

- Have you seen Misha lately?

- It’s been some time since he last came here. Some say he went back to where he came from, but who can say for sure?

***

Sitting by the tiny window, the young man with blue eyes stared out, attentive to the movements on the airport tarmac lanes. He feared that at any moment the police would break into the aircraft and take him to the interrogation room. Although the inside temperature was set to about 21 degrees, Misha was sweating.

When the doors closed and locked and the plane reached a high speed and took off, leaving behind the land where he lived for good many years, Misha closed his eyes and exhaled, relieved.

In his eyes, the image of the young man, visibly drunk and frail, sitting on the floor of the room was still quite vivid. His arms were entwined around those shoulders, while the other cried in anguish, like a child. Misha took advantage of the moment, pulled the other’s body closer to his and gently kissed his lips. The boy did not reject him. He let himself go for a few seconds...

- Your lips are even sweeter and softer than hers...

The young man pushed him away angrily, rubbing his sleeve over his mouth. Disgusted, both by what he had done, as by what he had heard, he walked out of the door to the balcony. Misha followed, acting naturally, as if it were the most ordinary thing in the world.

- There is nothing wrong with that. It was only a kiss...

- Get away from me. Aren’t you happy with all the harm you have caused? Do you have to destroy everything you touch, to the tiniest detail?

Misha reached out, but the other reacted with violence and disgust. He insisted on approaching the drunk and angry man. When trying to get away without being aware of exactly where he trod, the boy tripped over a small step and lost his balance, banging against the iron fence that protected - very badly - who were on the small balcony. The effect of alcohol prevented him from holding up, made him lose control and fall... down from the balcony of the fifth floor, against the cold, hard cement of the sidewalk, hitting during the fall, a corner of the fire escape. A pool of blood began to flood around the area where the boy's head hit the floor.

Misha opened his eyes. The flight attendant came down the aisle with the beverage cart.

- Do you want a drink, Sir?

- Yes, please. Vodka.

- Ice?

- No. Plain!

***

It was late afternoon. Leaning on the 'guard rail', the woman looked, without actually seeing, a distant point beyond the other side of the river, where a strange building with tinted windows stood, distinguishing itself from the other edifices around. The wind that blew against her face and her hair dried the bitter tears she had just cried.

A gnawing pain grew inside her; mercilessly... the pain mingled hatred, remorse, longing and helplessness in the face of life's greatest nemesis: death itself. The therapy had helped her survive that phase of loss and guilt, but failed to make her stop thinking about the big mistake she had made.

In her head, the memory of that last night was still very much alive. The details she remembered and relived countless times. The memories were as sharp as if they were happening at that moment. She closed her eyes. A slight noise made her turn her head.

- Sorry. Do you know where the “Temple" is?

She turned her head automatically. Almost without realizing it, she looked directly into the young man’s blue eyes. He was standing beside her, wearing a red t-shirt and displaying a strange smile on his face... The feeling of butterflies flapping wings in her stomach, gave her a warning sign she decided ignore.

The man repeated his question:

- Do you know where the “Temple” is?

She simply replied, smiling:

- Yes, I do know...


domingo, 8 de setembro de 2013

Outros Estudos em Vermelho e Azul (Epílogo)



- Ela estava comigo. Quando o telefone tocou, ela inventou uma desculpa. Teve que inventar… Sentiu-se culpada, mas já não havia o que fazer. 

- Ela não faria isso comigo…

Mas uma pontada de dúvida e dor abriu caminho na mente sofrida do jovem rapaz.

- Mas fez. Estava carente e a oportunidade apareceu. Todas as pessoas são assim. Não tentes enganar-te… sabes bem que sim…

Misha sorriu. E seu sorriso pareceu muitíssimo sarcástico.

- Por que estás fazendo isso?

- Como eu já havia dito, para provar um ponto. As coisas e as pessoas não são o que parecem.

O rapaz, visivelmente afectado pela notícia, quase deixou cair a louça que havia recolhido da mesa, alguns instantes antes. Sentiu-se sozinho, usado… e traído. Um peso enorme caiu-lhe sobre os ombros e ele sentiu-se, subitamente, cansado. Virou-se para sair na direcção da cozinha, quando o outro disse-lhe:

- Traga-me uma daquelas natas, que me parecem tão frescas e apetitosas, por favor. De repente senti uma vontade enorme de comer uma delas.

Misha sorriu outra vez; um sorriso aberto e enganador; calculado, como as suas estudadas acções de sedução. 

Aquele sorriso pareceu, ao outro, uma grande provocação. O rapaz saiu, sem dizer nada mais. 

- Que se fodam as natas… 

O imprecativo saiu sem censura de sua mente, enquanto levava a louça suja para a cozinha do Café. Que outro se encarregasse de servir-lhe as natas…

(Grande filho da puta!)

***

- Senti-me mal e culpada. Fui fraca e deixei-me levar por uma situação, que podia facilmente controlar.

- Estavas carente e insegura...

- Não diminui a minha responsabilidade, nem o sentimento de culpa. Que burra eu fui!!! Olha só no que deu…

A terapeuta tentou não rir-se da atitude dela.

- Culpar-te, não vai resolver nada, nem trazer ninguém de volta. Sabes disso.

- É. Eu sei muito bem…

- Então, aceita e toca a vida adiante. Concentra-te no que seja importante, neste momento…
- Na morte… e no mistério que ficou…

Os olhos da investigadora pareceram levá-la para longe dali. A terapeuta observou-a franzir o cenho, como se estivesse vendo algo que não havia percebido antes…


***

- Como é que ele soube?

A mulher, visivelmente alterada, mostrava a mensagem no visor do telefone: “Dói. Muito!”

- Não sei. Por que tu achas que eu tenho alguma coisa a ver com isso? 

- Não sejas, cínico, Misha. O que foi que tu disseste a ele?

- Eu disse-lhe que podia acabar com a sua dor… se ele deixasse…

- O quê?

- Mas ele não quis ouvir-me. Disse que não queria nada de mim… nem comigo…

- És louco, ou o quê?

- Por quê? Ele até que era bem interessante…

Misha riu. Estava a provocar a mulher, que parecia não gostar, nem um pouco, da brincadeira.

- Deixe de ser asqueroso! Ele não é da tua estirpe!

- Não?!? Tens certeza disso? Olha que ele não foi tão indiferente ao beijo que eu dei…

Ela levantou a mão e ia dar-lhe uma sonora bofetada, mas ele foi rápido o suficiente para segurar-lhe o pulso, antes que fosse atingido. Chegou bem perto da face dela e riu-se. Olhou-a nos olhos e disse, bem devagar:

- Eu teria me divertido muito com ele, assim como diverti-me contigo. Aqueles olhinhos tristes iam ter uma alegria, que ele nunca imaginara ter… mas ele... digamos que desistiu, antes de saber.

- Solte-me, seu grande… porco! Sacana idiota!!!

Ela levantou o joelho, num gesto defensivo e atingiu-o numa parte delicada, entre o alto das duas pernas, levando-o a perder o controle e cair ao chão, urrando e contorcendo-se de dor. 

- Vaca!

- Vá para o inferno, seu filho da puta!

A mulher saiu, fumegando, pela porta afora, com o peito arfando, cheia de asco e revolta, deixando o agressor jogado no meio da sala. 

Ao cruzar a soleira e puxar a porta atrás de si, ainda ouviu um misto de gemido de dor com uma gargalhada de deboche, do rapaz loiro e de olhos azuis, tão profundos quanto o Oceano Pacífico, mas com a alma tão fútil quanto a de um anjo caído.

- Vais pagar por esta…    


***


- O que tu queres aqui? Vá embora!

- Vim trazer-te uma garrafa da melhor vodka russa que há. Ajuda a aliviar a dor.

- Por que tu achas que eu quero alguma coisa, que venha de ti? Já não fizeste mal suficiente? Ainda não estás contente? Tens que destruir tudo que tu tocas?

- Deixa-me entrar e conversamos. 

Ele abriu aquele seu sorriso estudado e segurou o braço do rapaz que estava a bloquear sua entrada no pequeno apartamento onde morava. O outro reagiu imediatamente.

- Saia já daqui!

Levantou o punho e deu um soco contra o vazio, pois Misha conseguiu esquivar-se rapidamente. Quase imediatamente, aproveitou-se da vantagem, deu um golpe certeiro, com a mão cheia e aberta, no peito do rapaz, que perdeu o equilíbrio e caiu, por cima da perna, que Misha colocara à frente, propositadamente. Meio corpo caído para dentro do apartamento foi o suficiente para permitir que entrasse, sem dificuldade, com a garrafa de vodka, cheia, na mão. A porta fechou-se, assim que o outro levantou-se, ainda meio desnorteado.


***


- É melhor vir aqui urgentemente… acho que estávamos bastante enganados.

- Como assim? Enganados?

- O resultado da autópsia saiu. A causa mortis’… não foi o que pensamos inicialmente.

- Já estou a caminho.

A mulher desligou o telefone e entrou no carro, apreensiva. Em sua cabeça, milhares de perguntas, sem resposta, iam-se formando, enquanto conduzia, quase instintivamente, até o laboratório da Polícia.   

Pela janela, as imagens iam passando, num show de slides vivos, enquanto em sua mente as impressões, sensações e sentimentos atropelavam-se, como se quisessem manifestar-se todas ao mesmo tempo.

Sombra… Crianças correndo... Sol... Árvore... Vidro e concreto... Muro... Hidrante… Sombra... Carro parado… Meninas, vestidas com uniforme da escola, a rir alto... Semáforo... Vermelho... Dor… Céu azul… Muita dor… Avenidas… Aço, concreto e vidro… ângulos rectos… esquinas e cruzamentos com sinais em vermelho… Sangue… Morte… Suicídio? … Homicídio? … Acidente?... Por quê?


***


- Nunca vamos conseguir provar que foi crime. O nível de álcool no organismo dele era demasiadamente alto. Estás a ver esta marca? 

Ela confirmou, ao ver a marca de uma batida na têmpora do rapaz morto. O médico legista apontava uma grande lesão, causada por uma superfície em ângulo recto, como numa quina de algo.

- Ele caiu, bateu com a cabeça, enquanto ia em queda e estatelou-se na calçada. Encontramos uma marca de sangue numa das sacadas da escada de incêndio. Pelo jeito, é mais que uma simples teoria. Só não conseguimos saber se houve intervenção de alguém… se foi empurrado ou algo assim. Não há nenhuma evidência no corpo, que demonstre isso. Procurei em tudo, mas não encontrei absolutamente nada. Jamais saberemos a verdade, pelo que pude deduzir…

Mas algo nela dizia que alguém tinha mais a ver com o ocorrido, que as evidências conseguiam demonstrar cientificamente.  


***


Quando a mulher entrou no “Templo”, já era o final da tarde. A iluminação dentro do grande salão trouxe-lhe memórias de um tempo que pareceu-lhe, de repente, tão distante. Uma estranha nostalgia fê-la olhar tudo com outros olhos. Era, agora, uma investigadora de polícia, em busca de respostas. Não estava convencida da inocência de ninguém… nem da dela mesma… 

Dirigiu-se ao bar, no centro e perguntou ao servente, que já conhecia:

- Tens visto Misha? 

- Faz algum tempo que não aparece por aqui. Dizem que voltou para o lugar de onde veio, mas quem poderá dizer com certeza?


***


Sentado à minúscula janela, o rapaz de olhos azuis olhava para fora, atento aos movimentos na pista do aeroporto. Temia que a qualquer momento a polícia invadisse a nave e o levassem para uma sala de interrogatório. Apesar de a temperatura estar regulada para cerca de 21 graus, Misha suava.

Quando as portas fecharam de vez e o avião ganhou a pista, em alta velocidade e levantou voo, deixando para trás a terra em que viveu por uns bons anos, Misha fechou os olhos e expirou, aliviado.

Em seus olhos, a imagem do rapaz, visivelmente bêbado e fragilizado, sentado no chão da sala, ainda estava bastante vívida. Seus braços estavam enlaçados a volta daqueles ombros, enquanto o outro chorava, angustiado, como uma criança. Misha aproveitou-se do momento e beijou-lhe, delicadamente, os lábios. O rapaz não o rejeitou, a princípio. Deixou-se levar por uns poucos segundos…

- Teus lábios são mais doces e macios que os dela…

O jovem afastou-se, indignado, passando a manga da camisa sobre a boca. Enojado, tanto pelo que acabara de fazer, quanto pelo que ouvira, saiu pela porta que ia até a sacada. Misha seguiu-o, agindo naturalmente, como se fora a coisa mais natural do mundo.

- Não há nada de errado com isso. Foi somente um beijo... 

- Afasta-te de mim. Já não basta o mal que causaste? Tens que destruir tudo que tocas, até o mais ínfimo detalhe?

Misha estendeu a mão, mas o outro reagiu com violência e um tanto de asco. Ele insistiu em se aproximar. Ao tentar afastar-se, sem ter consciência exacta de onde pisava, o rapaz chegou-se para trás, tropeçou num pequeno degrau e perdeu o equilíbrio, batendo contra a grade de ferro que protegia – muito mal – quem estivesse na pequena sacada. O efeito do álcool impediu-o de segurar-se, fê-lo perder o controle e cair… da sacada do quinto andar, contra o cimento frio e duro da calçada, batendo, durante a queda, na escada de incêndio.

Uma poça de sangue começou a formar-se à volta da cabeça do rapaz caído.

Misha abriu os olhos. A comissária de bordo vinha pelo corredor, com o carrinho de bebidas.

- O senhor deseja alguma bebida?

- Sim. Por favor. Uma vodka.

- Gelo?

- Não. Pura! 


***


Fim de tarde à beira do rio. Debruçada no ‘guard rail’, a mulher olhava um ponto distante, sem realmente ver, além da outra margem, onde uma construção com estranhas janelas coloridas erguia-se, distinguindo-se das outras edificações à volta. O vento, que soprava contra sua face e jogava-lhe os cabelos para trás, secava-lhe, ao mesmo tempo, as lágrimas recém-choradas. 

Uma dor corroía-lhe por dentro, sem piedade… a dor que misturava ódio, culpa, saudade e impotência, diante do maior algoz da vida: a própria morte. A terapia havia-a ajudado a passar aquela fase de perda e culpa, mas não conseguira fazê-la deixar de pensar no grande erro que cometera. 

Em sua cabeça, a recordação daquela última noite, ainda estava muito viva. Os detalhes, ela lembrava que os revivera, inúmeras vezes. As lembranças estavam tão nítidas, como se estivessem acontecendo naquele momento. Ela fechou os olhos. Um leve ruído a fez voltar a cabeça. 

- Desculpe. Sabe onde fica o “Templo”? 

Ela virou-se automaticamente, saindo de uma espécie de transe. Quase sem perceber, olhou directamente nos olhos azuis do rapaz, que vestia uma t-shirt vermelha e que estava em pé, ao seu lado, exibindo um estranho sorriso nos lábios… A sensação de borboletas, batendo as asas em seu estômago, lançou-lhe um sinal de alerta, que ela decidiu ignorar. 

O rapaz repetiu a pergunta: 

- Sabe onde fica o “Templo”? 

Ela simplesmente respondeu, sorrindo: 

- Sei…