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sábado, 17 de dezembro de 2016

Revisitando Dragões (Parte 4 - Crescer e Lutar)



Ante o olhar incrédulo do velho amigo, o menino falou, com voz muito baixa, quase inaudível.

- Este é o homem que me tem aparecido nos sonhos, nos últimos dias…

- Então sabes porque estou aqui. Nós temos um acordo. Eu cumpro a minha parte, na condição que tu cumpras a tua! Tu sabes os termos e as consequências do nosso acordo, portanto não há o que decidir….

O menino acedeu, balançando a cabeça afirmativamente e deu um passo adiante.

- Eu tenho que ir com ele, ou eles destroem tudo e matam a todos vocês.

- O quê?

- O mal sempre encontra seus próprios meios de superar as expectativas inocentes do bem… Para uma criança nesta idade, ele sabe negociar muito bem. Deves ter muito orgulho dele.

O velho, numa reacção normal de lutador, tentou alcançar a arma, que estava apoiada na sua antiga armadura, mas o guerreiro, bem mais jovem e preparado que ele, foi mais rápido e impediu-o com um golpe de sua própria espada, derrubando o homem e imobilizando-o completamente.

O guerreiro loiro e vestido de negro, então, tomou o menino pelo braço e saiu com o mesmo até o lado de fora, onde o grande dragão pardo os aguardava. Ao seu lado, o dragão verde-azulado jazia desacordado. Havia sido surpreendido pelo outro animal, que sendo maior e mais forte, vencera-o com facilidade, deixando-o inconsciente, por tempo suficiente de saírem sem serem importunados ou impedidos de escapar.

Diante do olhar do pai, manietado e sem poder de acção, o homem de negro partiu, levando o menino consigo, os dois montados no grande dragão pardo. Quando o velho conseguiu chegar ao lado de fora, para acudir o outro homem e seu amigo alado, já era tarde demais e já não havia sinal dos três à vista. 

- Temos que ir atrás deles!

- Não sei se vai adiantar. Nunca chegaremos antes deles… e duvido que estejam indo para o lugar mais óbvio que existe. Não os encontraremos tão facilmente.

- Mas temos que tentar… já!!!

- E nós vamos… mas precisamos de toda a ajuda que pudermos, nesta difícil tarefa… É uma certeza que sete dragões farão uma busca mais eficiente que um, somente.

***

A busca, realmente, não foi nada fácil, como eles já pressentiam. Foram até ao extremo norte, nos confins da região mais gelada, mas não encontraram quem buscavam. A terra parecia modificar-se magicamente, de modo a impedir que fossem achados, cada vez que eles a percorriam. Por mais que tentassem, não conseguiam encontrar nenhum dos personagens que partiram juntos naquele dia.

No ponto mais extremo do Pólo Norte, onde a curvatura da terra ilude o olhar, abre-se uma cratera, que leva ao reino secreto, onde vive o senhor de todo o mal e seu fiel e gigantesco animal de companhia, o dragão pardo. O paradeiro exacto do seu reino é impossível de ser detectado, a não ser por quem tem permissão para tal.

Quando levou o pequeno guardião para o seu reino, a intenção do guerreiro de negro era treiná-lo, para ser um dos seus. O homem sabia que o poder contido naquela criança era imenso e só aumentaria com o tempo. Ao invés de pensar em destruir, o que não seria uma tarefa muito fácil, ele conjecturou que, se aquela capacidade pudesse ser utilizada para combater as forças opostas, ele teria, lutando ao seu lado, o ser mais poderoso do planeta e, talvez, com o tempo, eliminasse a carga da profecia. Os opostos poderiam unir-se, ao invés de combaterem um contra o outro, evitando, assim, a destruição de um ou do outro… ou de ambos... Aquele era o princípio do equilíbrio.

O menino sabia, instintivamente, que não deveria ser libertado tão cedo, por isso mostrou-se aberto a colaborar, antevendo os benefícios de um treinamento com o lado oposto ao que já havia iniciado a aprender, quando estava com seus amigos. Se conseguisse distinguir as forças e, também, as fraquezas do mal, poderia aproveitar-se daquele conhecimento, quando fosse necessário combatê-lo. Embora fosse apenas um menino, sentia que já havia dentro de si um guerreiro em rápida formação. Não tinha ideia, porém, de quão exímio poderia tornar-se.

Ele tinha a protecção do pequeno amuleto, dado pelos dragões, que só usava à noite, quando estava a sós em seus aposentos. Além de ser seu único contacto com a vida que deixou para trás, não por desejo, mas por falta de opção, era também seu consolo e esperança de um dia poder voltar aos seus amigos e família.

As forças do mal, porém, são poderosas e muito atraentes. Muitas vezes sentiu- se tentado a abandonar a esperança e cumprir a sina que o destino redesenhara para ele. O guerreiro de negro satisfazia-se com o progresso do rapaz, cada vez mais, com o passar dos tempos. Os dias tornaram-se semanas e, estas, transformaram-se em sequências de meses… longos meses…

Os mesmos longos meses tornaram-se, então, estações completas.

Veio o Outono, trazendo seus ventos frios e fortes, proporcionando a limpeza da natureza. Seguiu-se o impiedoso Inverno, a bela Primavera e o lânguido Verão… Depois a sequência foi-se repetindo até o dia em que ele recebeu uma espada verdadeira como presente de seu novo mentor. Era uma prova de imensa confiança do poderoso guerreiro de negro. A lâmina da espada fora forjada no fogo das profundezas da terra e havia sido temperada com o fogo do dragão pardo. Era uma arma poderosa e praticamente invencível, sendo uma versão mais actual daquela que o guerreiro e senhor de todo o mal portava. Três Invernos haviam-se passado e o rapaz tornara-se um adolescente, com o corpo e a mente em rápida mudança. 
 
Para conservar o poderoso amuleto sempre junto a si, sem perder o contacto com o mesmo, o rapaz abriu uma cavidade no cabo da espada e introduziu o pequeno objecto protector dentro dela, cobrindo, a seguir, o espaço com cera de abelhas e uma faixa de couro negro. Assim mantinha-se em contacto indirecto com o mesmo, pois percebeu que as forças do mal eram extremamente poderosas e ele começou a sentir-se muito atraído pelo lado obscuro. Com aquele gesto, tentava não afastar-se totalmente o talismã, mas sabia que o tempo poderia fazê-lo esquecer do que representava.

Mais quatro longas sequências de quatro estações completas passaram-se. Ele conheceu o lado mais perverso do mal e foi sábia e extenuadamente treinado para tanto. Aprendeu a distinguir as fraquezas e as forças do lado de lá, bem como a combater todo o bem.

Naquele Inverno, o sétimo desde que chegara, o rapaz foi presenteado com uma armadura negra, para usar no seu primeiro combate contra as tribos no norte. Era mais uma prova de que seu mentor confiava nele. E ele não decepcionou seu mestre.

Na luta, os inimigos foram dizimados facilmente. O jovem guerreiro combatia com a fúria e a destreza de um adulto enlouquecido e movido pelo mal. Vestido na armadura negra, ele empunhou a espada dada por seu antigo algoz - agora protector -, com toda a habilidade de um adulto. Seus pouco mais de dezasseis anos escondiam, debaixo da camada de músculos desenvolvidos e dos longos cabelos e barba, a antiga face da inocência, já totalmente irreconhecível, naquele momento. A força e o poder que habitavam no rapaz haviam aumentado sem precedentes. A ideia de trazer aquela força e poder para o lado do mal havia sido a perfeição, o que muito comprazia o senhor de todo o mal, que, agora, tornara-se o único mentor e protector do guerreiro mais poderoso da terra.

O menino de outrora já não existia e nem voltaria a ser o mesmo. Tornara-se um vigoroso jovem e devia voltar para a terra donde nasceu e viveu até ter sido levado por longos sete anos. A prova de fogo havia sido designada por seu treinador, para garantir seu reconhecimento definitivo. Era seu rito final de passagem e a missão mais importante a ser ultimada.

Ele devia voltar ao laranjal.

Montado num enorme dragão pardo, ao chegar à clareira, ele foi confrontado pelo dragão verde-azulado, mas a fera alimentada pelo mal era bem mais forte e, no ataque, deixou o outro gravemente ferido, com golpes de suas garras afiadas e envenenadas.

O dragão da esperança caiu contra o chão da clareira, desfalecendo imediatamente. Um velho homem, desesperado, correu para acudir o amigo, sem reconhecer o guerreiro que atacou-o, montado no grande animal alado e vestido com uma pesada armadura negra, a observá-los do alto.

O homem amaldiçoou aos dois, jurando que não ia descansar enquanto não os destruísse. Mal sabia ele que fazia uma promessa que jamais teria forças ou poderes para cumprir.

O jovem guerreiro deu instruções ao dragão para pousar, apeou e veio para perto do homem, empunhando a espada. O dragão pardo ficou a observar, de longe.

O rapaz tocou o corpo do animal inconsciente com a ponta da espada e sentiu que algo em seu punho estremeceu, impedindo-o de ferir, ainda mais, o pobre animal caído. Ele, então, arrancou a proteção que lhe cobria a cabeça e mostrou a face de um jovem maltratado pelo tempo e pelo frio, com longos cabelos emaranhados e barba arruivada e bastante crescida.

Uma lufada de vento soprou-lhe os cabelos para longe dos olhos e ele observou o velho homem, com cuidado. O outro percebeu uma familiaridade no olhar do rapaz, levantou-se de onde estava e encarou-o, incrédulo.

- Não pode ser! Isso é realmente incrível!

***

- Passamos tanto tempo a procurar e nunca conseguimos encontrar-te. Nós pensávamos que havias morrido. É um verdadeiro milagre!

O homem adiantou-se para abraçar o rapaz, mas aquele manteve-se impávido e deu um passo atrás, como se a repudiar o gesto do velho. O rapaz, então, falou, muito pausadamente.

- Sete longos anos… é muito tempo…

- Eu sei. Nós procuramos por tudo, por longos anos…até que, finalmente, desistimos.

- Pensei que eu fosse digno do esforço… não achei que iriam desistir.

- Sempre foste digno, meu jovem amigo. Mas nunca tivemos um mínimo sinal de vida, depois que foste embora. Nós tivemos que…

O rapaz interrompeu, bruscamente.

- Também não tiveram nenhum sinal de que havia morrido, portanto não era motivo para desistirem. Eu esperei por anos excessivamente longos, dia após dia… Eu era apenas uma criança. Mas já não sou mais. Nem voltarei a ser…

Havia muita mágoa nos olhos do rapaz. Havia muita decepção na sua mente. Havia muito ódio em seu coração… e havia muita força concentrada em seus músculos, tornando-o um jovem extremamente perigoso.

Junto ao dragão verde-azulado, ainda desacordado, o velho homem mantinha-se de pé, com a expressão facial um tanto confusa, flutuando entre os sentimentos de culpa e o de verdadeiro assombro.  

O jovem guerreiro, então, levantou a espada e avançou contra os dois.

domingo, 4 de dezembro de 2016

Revisitando Dragões (Parte 3 - Treinamento)


- Onde ele está? Não adianta vocês o esconderem, porque eu vou achá-lo, mais cedo ou mais tarde. Se não me disserem onde ele está, eu vou matar a todos.

- Como assim? Então ele não está…?

A pergunta saiu num ímpeto incontrolado, mas o homem parou a frase no meio, como se a verdade tivesse sido percebida justa e somente naquela hora. Arrependeu-se, porém, de ter-se deixado levar pela euforia de saber que o filho não era, afinal, refém do representante do mal.

Os seus companheiros, porém, logo preocuparam-se, por não saber onde poderia estar o guardião, mas só por saber que não estava em poder do grande dragão pardo, sentiram-se, de uma maneira estranha, esperançosos.

O grande réptil, obviamente, percebeu o ingénuo erro e, demonstrando satisfação, deu uma espécie de assobio, levantou o focinho ao ar e meneou a cabeça, como se a desafiar os outros personagens ali, à sua volta.

 - Então… onde estará o rapaz? Vai ser uma grande diversão tentar achar a criaturinha, antes de vocês e… acabar, de vez, com ele…

- Só se passar por cima do meu cadáver!

O dragão abaixou a cabeça e, aproximando-se muito do homem, disse-lhe, com uma voz baixa, calma e grave, num tom bastante irônico:

- Será, mesmo, um prazer extra! Dois, ao invés de um… Perfeito!

O dragão verde-azulado tomou a dianteira e enfrentou o grande animal, mesmo sabendo que aquele era mais forte que ele.

- Saia daqui! Não há nada mais aqui para ti…

- Ainda não. Mas haverá…

E dizendo isso, o dragão saiu, não por medo ou respeito, mas por saber que, tanto ele quanto os outros tencionavam procurar o mesmo, mas nenhum deles sabia por onde começar.

Seria mais fácil se estivesse no ar, ao invés de na terra, onde seus movimentos eram mais limitados. O enorme animal pardo abriu as asas e levantou voo, diante dos olhares preocupados de todos.

- Onde ele poderá estar? Temos que encontrá-lo e tirá-lo daqui antes que seja descoberto pelo nosso inimigo!

O dragão verde-azulado dirigiu-se ao pai e perguntou se o menino costumava esconder-se em algum lugar, em particular. Diante da negativa do outro homem, o velho disse:

- Talvez ele esteja mais perto que pensamos… Tive uma ideia.

E, dizendo isso, atravessou a clareira, a bater com o cajado fortemente no chão, a cada passo que dava.

***

- Eu sabia que não podias estar longe.

- Eu vi que ele andava por perto, porque ouvi os passos e escondi-me… O primeiro lugar que eu encontrei, onde ele não podia entrar, foi a caverna…

- E fizeste muito bem! Mas, agora, temos que proteger-te a todo custo.

- Com todo o cuidado e com o respeito que tenho, não vejo melhor alternativa que tirá-lo daqui o quanto antes. Temos que levá-lo para um lugar onde seja mais difícil ser localizado. Eu tive uma ideia, mas vamos precisar de toda ajuda que conseguirmos…

O dragão precisava convencer o pai do menino a aceitar a triste realidade do perigo e da necessidade do plano de emergência, mas diante do que havia acontecido poucos minutos antes, pareceu-lhe mais fácil argumentar.

O homem, embora a contragosto, sabia que o filho precisava ser protegido. Uma tragédia estava iminente, mas ele não ia entregar o filho ao inimigo, mesmo que para isso tivesse que abrir mão de tê-lo por perto. A vida era, agora, mais importante que os laços de família.

***

Cada um dos sete dragões acrescentou um pequeno detalhe ao presente que deram ao menino, para servir-lhe de proteção contra todo o mal. Como cada um representava uma virtude, todas elas somadas faziam do pequeno amuleto um poderoso artefacto.

Com excertos da simplicidade do dragão albino, do amor apaixonado do vermelho, da paciência do castanho, da generosidade do dourado, da compaixão do prateado, da força de espírito do dragão negro e da esperança do verde azulado, o guardião tornava-se não somente o mais protegido, mas também o mais poderoso ser de toda a região.

Agora precisava ser treinado com muita urgência. Para confundir as forças do mal, caso o dragão pardo desconfiasse, o menino era preparado em um lugar diferente a cada lua, por um protetor diferente. Assim, às vésperas da sétima lua nova, o dragão verde-azulado tomou sua parte do treinamento, com o auxílio do velho companheiro.

Com o cajado em punho, o menino aprendeu a lutar para defender-se, após aprender tudo sobre os pontos fortes e as fraquezas do inimigo pardo, com os outros virtuosos personagens de cores diversas. Não era o treinamento perfeito, mas era essencial conhecer os pontos vulneráveis da força, já que o pequeno guardião tinha forças bastante limitadas, devido à sua juventude e ao seu reduzido tamanho.

Tanto o dragão verde-azulado quanto o velho homem, que outrora havia sido um exímio cavaleiro campeão de muitas contendas, estavam bastante preocupados e faziam de tudo para evitar o confronto entre as duas forças opostas. Sabiam, entretanto, que estavam apenas a adiar o inevitável.

Mas o inevitável pode ser apenas adiado, nunca impedido de acontecer.

O dragão pardo percebeu que estava sendo enganado e passou a vigiar o local onde o velho e o dragão, que representava a esperança, costumavam encontrar-se. No laranjal, por mais que tentassem, não conseguiriam deixar de estarem expostos. Tinham que mudar de estratégia a cada dia, para confundir o algoz, por isso o menino nunca deveria aparecer junto dos dois, quando estivessem por lá. O pai do menino era informado dos progressos do filho, sempre que possível, pelo velho amigo.

O menino, porém, sentiu saudades de casa. Sabendo que corria perigo, consultou seus protectores e combinaram um encontro com a família, numa das noites sem lua, para diminuírem os riscos.

A caverna estava às escuras, os personagens escondidos e em silêncio, no fundo da mesma, onde nunca poderiam ser tocados por uma fera do tamanho daquela que os vigiava constantemente. Num canto de um dos compartimentos mais próximos da entrada da caverna, a armadura parecia um vigia em atalaia, pronto a lutar para defender quem viesse com más intenções, com a espada apoiada ao lado.

O som de passos a aproximar-se deixou-os bastante tensos, mas como eram curtos e ligeiros, a tensão era mais por ansiedade que por medo. Os passos extremamente cuidadosos e um tanto hesitantes, dentro da caverna, pareciam antecipar o encontro entre os personagens, mas todo cuidado era pouco. Um sussurro. Silêncio. Depois outro sussurro. Estava na hora de saírem do esconderijo.

O velho e o menino caminharam cuidadosamente até a sala improvisada. No centro daquela, a silhueta conhecida do homem surgiu contra a abertura da caverna e eles mostraram-se, finalmente, com alegria e entusiasmo, abraçando o visitante, mas este não os pode retornar o entusiasmo e o abraço, pois tinha os braços amarrados às costas e a boca amordaçada.

Atrás dele, um outro homem, bem mais alto, vestido de negro e com cabelos longos e loiros, apareceu com uma espada em punho.

sábado, 19 de novembro de 2016

Revisitando Dragões (Parte 2 - O Guardião)


- Quem é este dragão pardo?

- Ele nasceu das forças do mal e é comandado por um inimigo nosso, que vive muito ao norte, nas terras frias. Seu coração é mais gélido que as neves dos extremos da terra. Além de um animal de muita força, ele é também muito poderoso, perigoso e sabe onde o menino está. É só uma questão de tempo até cá chegar, com o pior dos intuitos. Há uma profecia conhecida que diz que só poderá ser destruído por um guerreiro alimentado com o poder dos sete dragões. Nós sabemos quem este guerreiro é… ele também. O que nós temos que fazer é prepará-lo e evitar o confronto direto, pois pode ser fatal para um dos dois. Se o dragão vencer, será o nosso fim. E ele destruirá tudo e todos que forem contra o seu senhor. Vamos precisar de toda a nossa inteligência em montar uma estratégia e…

O dragão fez uma pequena pausa.

- … e de tempo…, mas este talvez não seja o nosso maior problema.

- O pai… Acredito que ele possa ser um grande empecilho.

- Eu sei. Ele passou maus bocados por causa do acidente com aquela criança. Não vai aceitar ceder assim fácil. Mas temos que falar com ele. Não temos outra alternativa…

- Talvez tenhamos…

O dragão olhou o velho homem e compreendeu, instintivamente, aquela mensagem.

***

- Wow! Isso é sério?

- Mais do que sério!

- Mas eu não serei capaz! Sou pequeno e fraco…

- Por isso nós devemos preparar-te e ensinar-te a lutar… para proteger a ti e a todos…

Os olhos do menino brilharam, mas uma sombra de preocupação seguiu-se á aquela momentânea euforia.

A armadura era, obviamente, grande demais e, para empunhar uma espada verdadeira, ainda era muito cedo.

O velho, então, entregou-lhe um bastão de madeira feito a partir de um pedaço de um tronco de laranjeira. O artefacto era coberto por uma camada lustrosa e apesar de muito suave ao toque, também aparentava ser bastante resistente.

E os ensinamentos começaram… Para evitar maiores constrangimentos, as lições eram dadas muito cedo na madrugada até o nascer do sol. A intenção era evitar serem vistos e o confronto iminente com o pai do aprendiz que, invariavelmente, teria que saber de qualquer jeito... quando o momento fosse mais propício.

O velho mostrava os princípios básicos de combate e de como empunhar uma arma e fazer uso dela, especialmente de maneira defensiva. O dragão ensinava-o a pensar estrategicamente, a procurar os pontos fracos do inimigo e a explorar a velocidade do pensamento. O menino era um excelente pupilo, sempre aberto a absorver os novos conhecimentos e era, também, muito curioso. Apesar do que havia passado, suas pernas e braços eram bastante ágeis e sua mente, extremamente sagaz.

O dragão observava o menino com orgulho, enquanto este aprendia o que lhe era ensinado, com precisão e com a habilidade de um verdadeiro guerreiro.

O velho sabia que o tempo corria contra eles e que, mais cedo ou mais tarde, teriam que revelar, à família do rapaz, o que estava acontecendo e o que viria a acontecer, no futuro. Ele, todavia, evitava revelar toda a verdade, com receio que, se soubessem que o dragão pardo queria a destruição do guardião, para poder reinar sobre toda a terra, iriam duvidar da palavra deles, ou esconder o filho, por isso decidiram que iriam inventar uma desculpa qualquer, se fossem vistos a treinar o rapaz.

Os pais, como seria de esperar, logo descobriram e foram totalmente contra, proibindo aquele tipo de treinamento, veementemente. Bastou alguns dias, porém, para os três arranjarem uma outra forma de se encontrarem, retomando a tarefa, cada vez com mais afinco, sempre que lhes era possível.

Uma madrugada, porém, o menino não apareceu. Pensando tratar-se de um empecilho qualquer com o pai, o velho e o dragão ficaram quietos, sem criar nenhum alarde, aguardando o amanhecer.

Algumas horas passaram, sem que o aprendiz chegasse. O som de passos apressados deixou-os em estado de alerta. Os dois esperaram, para ver o que acontecia. O caçador, pai do menino, vinha a passadas rápidas e com uma mistura de fúria e preocupação estampada no rosto.

- Eu avisei que não queria meu filho envolvido nesta aventura, brincadeira ou o que quer que vocês estejam tramando.

Pegos meio desprevenidos, os dois não disseram nada, já sentindo-se culpados. O homem estava mesmo furioso.

- Onde está o meu filho? Quero saber agora!

Os dois trocaram um olhar suspeito e preocupado e, quando se voltaram para o homem, aquele percebeu que algo estava muito errado, pela expressão grave na face do velho homem.

- Oh, não! Não, não, não!

- Ele não está, nem esteve connosco hoje. E isso é grave; muito grave. Temos que procurá-lo, imediatamente. Ele pode estar em grande perigo…

- E não está preparado para defender-se… ainda… O treino não foi suficiente!

- Isso é outra das artimanhas de vocês, os dois? Mais uma vez ele corre perigo por causa de vocês! Desta vez, não vou perdoá-los…

- Não. Ele está em perigo, porque ainda não está preparado para defender-se. Tomara que não seja o que estamos pensando… Se for, é melhor nós corrermos. Acho que temos que pedir ajuda aos nossos companheiros alados.

O velho, então, contou ao pai do menino toda a verdade sobre a profecia e sobre o dragão pardo e seu plano malévolo, o que aumentou a preocupação do homem… e a deles também.

Estava mais que na hora de trazer os outros seis dragões para perto deles. O menino precisava ser encontrado, antes que fosse tarde demais.

O dragão verde-azulado preparava-se para levantar voo e buscar os companheiros, quando o chão sobre os pés deles estremeceu grandemente, para surpresa de todos. Os homens olharam para o dragão, que olhava para o centro da clareira, com uma expressão ameaçadora.

Um grande animal pardo surgiu e aproximou-se deles, com a boca escancarada, pronto a atacá-los…


sábado, 12 de novembro de 2016

Revisitando Dragões (Parte 1 - Despedidas e Reencontros)


As belas escamas verde-azuladas refulgiram contra o firmamento, pouco depois que o enorme dragão alçou seu voo, da clareira ao pé do laranjal.

O velho homem fica a acompanhar, com o olhar, seu sensato e alado amigo, que vai desaparecendo, na tranquilidade do céu de Verão, enquanto ganha, aos poucos, a distância.

O homem sorri, um tanto tristemente, já com uma certa saudade a contundir seu peito e leva a mão à bolsa de couro, cuja alça lhe cruza o peito. Com as pontas dos dedos ele apalpa umas poucas frutas que lá se encontram e sente-se, de uma maneira estranha, confortado.

Atrás de si, um menino, de não mais que nove anos e um outro homem, adulto, também observam a trajetória alada do dragão, que vai tornando-se quase invisível, entre as finas nuvens, que mais parecem flocos de algodão, a decorar a larga abóbada azul celeste, aberta sobre suas cabeças.

Um fino fio de fumaça sobe do meio da clareira e dispersa-se no ar. O velho não sabe se lamenta ou se regozija com aquele momento em que suas vidas devem voltar ao normal, ou, pelo menos, o mais próximo possível da normalidade. Os últimos tempos passaram por sua mente e ele, apesar das dificuldades que superou, sentiu uma certa nostalgia.

Ele havia mudado, com toda a certeza. Já não era nem parecido com aquele homem que chegara há muito tempo a aquele lugar, cansado, derrotado e com mais que seu orgulho profundamente ferido, além de uma grande cicatriz a marcar-lhe o peito e a lembrar-lhe de sua condição de ser humano frágil e vulnerável.

A magia daquele lugar pareceu-lhe, de repente, haver desaparecido de vez. Restava-lhe a magia da vida e as surpresas que o existir pode, eventualmente, esconder. O som dos regatos gémeos, a correrem muito próximos, fê-lo sentir-se cansado e, ao mesmo tempo, relaxado.

O velho despediu-se do homem e do menino e caminhou para aquilo a que conseguia chamar de lar: uma caverna adaptada, com um despojamento evidente. Ele, na verdade não precisava mais que aquilo, mas decidiu que ia construir um casebre simples e nele viver, como um fazendeiro normal.

No meio da clareira, onde as cinzas de uma certa laranjeira ainda cobriam o chão, ele elevou seu novo lar, pacientemente e sem pressa nenhuma, por semanas a fio.

Quando reinstalou-se, sentiu que sua vida anterior fosse apenas uma memória, que ficava cada vez mais distante e nebulosa. Ali era, agora, seu lar e era onde ele sentia-se mais aconchegado e seguro, mas o velho sentiu que, com aquela decisão, ele estava, na verdade, a plantar, em definitivo, suas raízes. Até bem pouco tempo atrás, esperava ansiosamente pelo momento em que iria voltar para sua vida de cavaleiro. O tempo passou em seu ritmo próprio e ele sentiu que estava mais próximo da vida de agricultor que de cavaleiro, além de já não ter forças nem ânimo para combates, banquetes ou a vida fútil que outrora vivia. De uma certa forma, sentia-se mais útil e ligado a aquele lugar, do que em qualquer outro, mas sentia a falta de algo, que ele não sabia descrever.

E veio a noite mais escura do ano.

E ele pôs-se a pensar e sentiu falta de seu amigo alado. A grande cicatriz latejou no peito. Ele tentou ignorar, mas não conseguiu. Tentou dormir, mas não sentia sono. Resolveu levantar-se e apanhar um pouco de ar.

Lá fora, uma brisa fresca trazia o perfume das folhas e frutas do pomar que lhe dava sustento. Ele aspirou o ar lenta e profundamente. A vida daquele lugar pareceu pulsar-lhe como sangue nas veias. Ele foi à beira do ponto onde os dois regatos gémeos uniam-se e lavou o rosto com a água fresca e límpida. A cicatriz latejou novamente. Ele passou a mão molhada pelo peito e sentiu um pouco de alívio. Fazia tempo que ele não experimentava aquela sensação. Sentou-se sobre uma grande pedra, como já havia feito tantas vezes e ficou a olhar a escuridão à sua frente, ouvindo o som tranquilo das águas dos regatos.

Estava perdido em suas tantas recordações, quando ouviu um som atrás de si. Seus sentidos entraram, imediatamente, em alerta. Pensando ser um animal qualquer tentando chegar à água, ele voltou-se e esperou em silêncio.

A noite sem lua, escura como breu, não permitia que ele visse nada, mas tinha a forte sensação que não estava só. Seus ouvidos treinados, atentos, tentavam distinguir algum sinal.

Silêncio… Nada mais que um tenso silêncio na escuridão da noite. Ela não podia ter-se enganado… Será que seus ouvidos o enganaram? Era apenas mais um sinal da idade? Ou seria um desejo e um delírio de nostalgia?

Ele resolveu que deveria voltar para casa. Se fosse mesmo um animal sedento, ele deveria deixar o caminho livre e permitir que a vida levasse seu curso normal, sem que ele assustasse um ser vivo em necessidade. O regato não era seu. Ela não tinha o direito de impedir a vida de continuar.

Saltou da rocha e começou a caminhar de volta, convencido de estar enganado e disposto a tentar dormir. O perfume das laranjas era familiar e evidente. Ele sorriu e apressou o passo, sem olhar para trás.

Quando pisou no alpendre, ainda voltou-se um pouco e tentou ouvir os sons da noite.

Nada.

Ele entrou na casa e acendeu uma lamparina. Seus olhos pousaram sobre a fruteira no centro da mesa. Uma laranja muito dourada, que ele conhecia muito bem, jazia por cima das outras. Ele sabia que não a havia posto ali. A fruta era perfeita e parecia reluzir. Ele levou a mão à fruteira e apanhou a grande laranja.

Mais por instinto que por necessidade, ele abriu-a e comeu a metade da mesma. O sabor muito peculiar, doce e ácido, trouxe-lhe memórias, que estavam adormecidas há muito. O homem sorriu. Sabia o que estava fazendo e as consequências daquele ato aparentemente inocente.

Foi então que ele ouviu um ruído pouco familiar atrás de si. O chão pareceu estremecer por baixo de seus pés descalços e ele sentiu o corpo ficar tenso, como se pronto a  lutar, como no seu passado… pela própria vida...

Ele olhou para trás e viu, através da porta aberta, dois grandes fachos de luz amarela a refulgirem na espessa obscuridade daquela noite singular. Seu coração deu um salto e ele correu para fora.

- Olá, meu bom amigo. Senti saudades tuas...

O animal piscou, lentamente, seus grandes olhos amarelos e aproximou-se do homem, abaixando a cabeça para ser tocado, como se fosse o cumprimento mais natural do mundo. De facto, entre eles, era…

O velho estendeu a mão e deu a outra metade da laranja ao dragão, que comeu-a de imediato. A magia daquele encontro não programado começava naquele momento…

***

- Há uma força poderosamente maléfica agindo no Universo, neste momento. Aquele menino corre grande perigo e nós temos que protegê-lo a todo custo.

- Mas, por que ele? É apenas uma criança…Tem pouco mais de oito anos…

- Porque ele conhece o poder dos dragões. Como foi medicado com as lágrimas de cada um dos sete e com uma gota do meu sangue, a magia faz parte dele, desde então. A energia que está a crescer naquela criança é inimaginável, embora ele ainda não tenha consciência disso, mas o grande dragão pardo sabe muito bem e, por isso, pretende destruí-lo, antes que ele se torne mais poderoso ainda, com o passar do tempo…

O velho olhou o amigo, muito seriamente. A lembrança clara do momento em que foi revelado ao menino o valor que ele tinha para os dragões, veio-lhe como um raio. Uma boa dose de melancolia fisgou-lhe o peito, onde uma cicatriz marcava o desfecho de uma batalha antiga.

No meio do laranjal, o dragão verde-azulado dirigia-se ao menino.

- Este é o nosso outro presente. A água que tu tomaste, ali na clareira, antes de vires para o laranjal, continha uma lágrima de cada um de nós. Sete lágrimas foram adicionadas àquela água, para te proteger. O óleo que foi usado na massagem em tuas pernas contém raspas de dentro do casulo que gerou o dragãozinho negro, que simboliza a força de espírito e uma gota do sangue do dragão que representa a esperança… Nós nos referimos a ti, particularmente, como “o guardião” e temos muito orgulho de assim te chamar.

A mente do velho homem voltou ao presente...

- Ele tem que saber disso. Como vamos protegê-lo?

- Pensei em muitas hipóteses, mas ele precisa ser treinado. Ainda tens a armadura?

- Deixei-a na caverna… para o caso de necessidade… mas o tamanho é muito grande para ele…

O dragão encarou o velho homem e falou, muito gravemente:

- Dá-se um jeito. Esta é, definitivamente, uma necessidade…

O homem balançou a cabeça, afirmativamente. Os novos desafios e perigos apenas começavam para aqueles personagens cujas vidas estiveram, sempre, tão interligadas entre si.

- Vou buscar a armadura e a espada…


sábado, 23 de agosto de 2014

Um Lance de Mestre (Parte 2: Estranhos)


Da penumbra da escada onde estava escondido, o homem podia observar bem o que acontecia no piso térreo, mas ao mesmo tempo tinha dúvidas se estava mesmo a ver ou se estaria imaginando coisas.

O velho homenzinho estava de pé, próximo a uma porta quase imperceptível, quase camuflada, na parede oposta à saída principal,  por trás do lance de escadas, onde o outro espreitava, com interesse e espanto. Ele, então, levantou a machadinha à altura do rosto e segurou-a, concentradamente, próximo à boca.

Em seguida, abriu a boca, que alargou-se enormemente, como o homem nunca havia visto ninguém fazer antes, abocanhou a lâmina da machadinha, por completo e, quando retirou-a, aquela estava limpa, já sem nenhum sinal do inseto que nela jazia há poucos segundos atrás.

- (Que diabos está acontecendo ali? Como é que ele conseguiu fazer... Aquilo não pode ser nada normal...)

O homem deixou aquela reflexão formar-se em silêncio e sufocou sua admiração, tentando não gritar, mas deixou escapulir um som abafado. O estranho levantou a cabeça e olhou para onde ele estava semiescondido, mas já não incógnito.

Ele saiu da sombra da escada e deixou-se ser visto, sem falar nada. O homenzinho, então, disse, sorrindo e com um genuíno ar benevolente, ao perceber que o outro parecia bastante perplexo:

- Ah! Eu sentia que não estava sozinho...

Mas o homem teve um certo medo do estranho homenzinho, que tinha uma característica tão incomum. As coisas não estavam correndo muito bem para o seu lado. Sem saber o que dizer, ele desculpou-se, mais por temor do que por educação.

- Eu sinto muito. Não quis ser indiscreto. O que vi, foi, realmente, um acidente...

- Não te preocupes. Não há realmente um problema em conheceres o meu segredo!

Aparentemente o velho não estava nada preocupado em haver-se revelado ao estranho que o mirava, sem realmente compreender. O que aquela aparente tranquilidade significava, entretanto, o homem de cabelos castanhos não sabia exatamente. Começava a desconfiar que podia não ser nada bom para si.

Secretamente, lá no fundo de sua mente, o homem perguntou-se que novo personagem seria aquele.

- (Que tipo de criatura seria aquele homenzinho estranho? Será que estava imaginando coisas? Teria sido, de alguma maneira, o efeito do vinho?... E eu nem bebi mais que uma taça daquele vinho verde, nem sinto-me minimamente bêbado...).

O velho ainda sorria, olhando para ele, com ar interessado e, provavelmente, ainda a estudar as suas reações.

Um ruído, vindo do topo da escada, porém, desviou-lhe os pensamentos e a atenção da cena ainda a desenrolar-se à sua frente. Alguém, com passos bastante pesados, começava a descer o primeiro lance de degraus. O homenzinho olhou o outro e disse, com a voz calma e baixa, mas em tom de aviso, antes de sair pela porta lateral, quase escondida por trás de uma pilha de barricas.

- Tome bastante cuidado... tenha muito cuidado mesmo! Eles não são, definitivamente, o que parecem ser. De alguma estranha maneira, creio que ainda nos voltaremos a encontrar…

Para falar bem a verdade, o homem de cabelos castanhos já nem tinha certeza do que realmente era e do que apenas parecia, naquele momento.

Quis seguir o velhinho, mais para proteger-se do que propriamente ir atrás dele, mas a abertura, pela qual o bizarro personagem passou, não tinha maçaneta e fechou-se muito rapidamente. Ficou sem saber o que fazer, a não ser esconder-se, para não ser visto. Esgueirou-se por trás das prateleiras e das barricas - umas de azeite, outras de vinho - no fundo do piso, por trás da pesada e escura escada e esperou, com os olhos atentos à porta da saída principal.

Sabia que sua presença ali só poderia levantar suspeitas e uma série de questionamentos, para os quais ele não tinha explicação plausível, além de sua curiosidade fora do normal e da sua tendência de meter-se em situações confusas e complicadas, inadvertidamente.

De onde estava, observou que o homem que passara era bastante forte e vestia um casaco feito de uma espécie de couro muito escuro de réptil, talvez crocodilo, mas ele não tinha certeza, já que não era adepto daquele tipo de material para casacos ou, mesmo, para roupas de qualquer espécie. O tal brutamontes era o mesmo homem que o havia encarado e não tinha ares de bons amigos. Desejou, secretamente, que o estranho de pele azeitonada e ar hostil não o visse.

O homem, porém,  ao chegar à porta principal, empurrou-a, olhou para os dois lados, como se procurasse por alguém e saiu. Atrás de si, desceram os outros três e, sem falar, saíram para fora, seguiram o líder e foram pela calçada afora, provavelmente na direção do carro.

O homem, assustado, esperou ainda alguns minutos até certificar-se que já haviam-se afastado bastante, com os ouvidos muito atentos ao som dos passos, que desvanecia na distância. Saiu com cautela e, já do lado de fora, decidiu que tinha tido aventura demais por uma noite e sentiu um certo receio de ser confrontado pelos homens estranhos, uma vez mais. Apressou-se a dirigir-se ao seu carro, que estava um pouco distante. Procurou, mas já não viu o veículo preto, dos homens estranhos, no estacionamento. Ainda olhou, com atenção, à volta, para certificar-se que estava mais a salvo e seguiu, pronto a sair dali o quanto antes.

Estava com a chave na mão, quando ouviu o som de passos apressados atrás dele. Seu sangue gelou, mas ao virar-se viu apenas uma mocinha, com olhos verdes muito claros, a vir na sua direção. Ela disse, apontando para o bosque:

- Entra no carro, depressa. Aquele homem tem respostas e a indicação de como podemos sair daqui.

Reagiu meio por instinto, antes de pensar que já a havia visto antes. Era a mesma que havia esbarrado em sua cadeira e sorrido, há uns minutos antes, na esplanada na ribeira. Ele não tinha a mínima ideia do que ela queria dizer com ‘sair daqui’, quando entrou e sentou-se ao seu lado, no banco da frente, mas não perguntou nada. Contornou o estacionamento e foi na direção onde haviam avistado o tal homem, que parecia ter estado a procurar alguma coisa nos galhos dos pinheiros. Parou, no espaço entre o complexo de lojas e o estranho bar e esquadrinhou o local perto das árvores, com cuidado, pois já não o via. A mocinha fazia o mesmo.

Uma batida no vidro de sua janela deu-lhe um susto descomunal. Um homem, com olhos de um tom azul-acinzentado, estava ao seu lado, fazendo uns gestos, pedindo para entrar. Ele abriu, instintivamente, a porta traseira e deixou-o acomodar-se no banco atrás de si.

O estranho, realmente, tinha informações a dar. Além de reafirmar-lhe para ter cautela, repetindo o que já dissera, anteriormente, o homenzinho da roupa castanha, ele mostrou-lhe um item muito interessante, que tirou do bolso do velho casaco cinzento, que vestia. O homem teve a leve impressão que, apesar do calor, aquela devia ser a 'noite dos casacos', mas não mencionou nada.

O tal item era uma caixinha metálica, decorada com delicados arabescos de prata batida, que continha um velho pergaminho amarelado. Nele estava impresso um antigo mapa, que mostrava uma marca muito característica, bem onde havia um desenho, representando uma velha árvore, aparentemente oca, no meio de um bosque. Ao lado do desenho do centro, haviam uns números escritos a lápis, em vermelho. Aquelas últimas anotações deviam ter sido acrescentadas recentemente, pois estavam bastante vivas no papel visivelmente envelhecido e amarelado.

Por um instante pensou haver visto uma troca de olhares entre o homem e a mocinha sentada ao seu lado, mas poderia ter sido somente sua usual paranoia e desconfiança, causando-lhe uma estranha impressão. Ele estava completamente tomado pela curiosidade acerca do objetivo daquela estranha situação e queria saber até onde o tal mapa poderia levá-lo.

Mas o mapa tinha um preço, obviamente. O homem  ficou bastante surpreso quando o estranho lho disse.

Aquela, porém, era apenas uma das razões que o traziam ali…

***

Estavam no meio do bosque, procurando seguir as indicações contidas no mapa. O homem tinha o GPS de mão e procuravam a tal árvore oca que, no pergaminho, estava marcada com as coordenadas de localização, que haviam sido anotadas à mão, recentemente. Não deveria ser difícil chegar ao nosso destino em breve, pois a aparelho indicava que estava localizado há poucos metros, bem à frente deles.

A árvore, uma velha figueira, erguia-se sobre um pequeno elevado, coberto de relva e folhas secas, numa linha á esquerda de onde estavam, fora de uma trilha quase nunca usada, por onde haviam seguido. De onde estavam, não viam nada demais, mas ao contornarem, viram uma abertura, quase não suficientemente grande para um homem do seu tamanho passar. Estava coberta por umas lianas e muito musgo, tornando-a quase impercetível. Afastou a cortina natural com as mãos e passou pela abertura, sendo seguido pela mocinha.

O tronco era realmente todo oco e, por dentro, parecia bem maior que percebido por fora. A cerca de uns 45 graus à esquerda, via-se um pequeno declive, com uma abertura para um pequeno portal, bem no final do mesmo. Uma outra mocinha, também de olhos verdes muito claros, aguardava-os, logo que atravessaram o limiar do portal. Ela tomou-lhe a mão e disse-lhe que o Mestre precisava falar com ele. O homem não sabia quem era o tal Mestre, nem o que ele poderia querer, mas tentou convencer quem o havia trazido até ali a continuar aquela estranha jornada consigo até o fim.

- Vem comigo, por favor.

- Não posso, ainda… Deves ir com ela.

Havia uma longa caverna, que ia abrindo e ficava um pouco mais alta à medida que desciam. O homem percebeu que a mocinha devia conhecer muito bem o local, pois sabia exatamente em quais galerias entrar. Sacudiu a cabeça, como se tentasse apagar o pensamento, pois era mais que evidente que ela sabia para onde estava a conduzi-lo. Depois de caminharem por muitos minutos, entraram por uma das pequenas aberturas laterais.

Após uma leve curva na caverna, num nicho quase imperceptível, havia um velho baú, depositado no chão, escondido num canto. Era de madeira castanho-escura e tinha um trinco de metal batido, representando o que pareceu-lhe ser alguma espécie desconhecida de réptil, em alto-relevo. A mocinha puxou o ferrolho para cima e levantou a tampa do mesmo. 

Antes que o homem se aproximasse o suficiente para inspecionar o que havia lá dentro, ela segurou-lhe a mão com firmeza e, com uma força descomunal, para uma miúda daquela aparente delicada compleição física, puxou-o para dentro da arca, com ela. 

Foi então que ele percebeu que a tal arca não tinha fundo...

***


quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Pandemónio (na casa de descanso) - Epílogo

- …E não poderia ter revelado isto antes? Me desculpe a impaciência, mas é-nos absolutamente necessário ter ciência das condições médicas das pessoas que entram por aquela porta e aqui vivem. Como é que isso passou, sem que tomássemos conhecimento? Isto é inadmissível. É muito grave.

A directora se sentia cansada e preocupada ao mesmo tempo.

- Ele diz que consegue perceber quando uma crise se aproxima e se prepara. É quase como entrar em depressão. Isolar-se é uma forma de defesa. Se sentir que não há necessidade de incomodar ninguém, prefere ficar à margem, até a crise passar. Afinal, a medicação deveria ajudar a retardar a evolução da doença.

A enfermeira-chefe sabia que não era bem assim. Repetia o que ele lhe havia dito, mas não concordava com o discurso. A medicação não impedia a evolução da doença. Era preciso mais que o isolamento e o remédio, para retardar o progresso. Ele necessitava de um acompanhamento mais de perto. Ela sabia que o facto de exercitar, bastante, o cérebro era um bom sinal. Ele desenhava, pintava, escrevia, lia e ainda tinha as cartas de tarot e o computador… Não se sentia nenhum inútil e não era um covarde. E até que enfrentava a condição com muita coragem e cabeça fria. Mas isso não era suficiente. Ela tinha uma influência sobre ele e tinha que se aproveitar desta. Precisava mantê-lo sob constante vigilância, tentando, entretanto, não ser invasiva à rotina dele.

A directora, por seu lado, tratou de fazer suas pesquisas acerca do historial da doença, com o médico que assinara o diagnóstico e que havia sido emitido mais de dois anos atrás. O médico – o mesmo e único homem, que um dia visitara, incógnito, o velho, na Casa de Descanso - confirmara que não havia sido consultado desde então. Se o paciente tomasse a medicação e tivesse acompanhamento adequado, a doença poderia evoluir mais vagarosamente. Era necessário fazer uma reavaliação, com toda certeza.

O velho passava boa parte do dia observando, distraidamente, o movimento no portão de entrada. Sentava-se no habitual banco de madeira, em baixo da árvore no pátio, com o gato a lhe fazer companhia. Nestes últimos dias, parecia normal, embora um pouco mais introvertido que de costume. Parecia que se preocupava em não deixar a enfermeira-chefe mais aflita que já estava. Prometera a ela que se cuidaria melhor. Ele se deixava levar, por gostar dela mais que conseguia controlar e por tentar prolongar aquela atenção por tanto tempo quanto possível. Quanto mais lúcido estivesse, mais desfrutaria da companhia dela. E ele sabia que seu tempo começava a ficar curto.

A enfermeira-chefe se perguntava como a relação com o gato não era afectada pelas crises do velho homem. Que estranha conexão havia entre eles, que nem a doença conseguia enfraquecer? Enquanto o bichano estivesse por perto, ela se sentia segura e, tinha certeza, ele também.


O velho abriu a janela, para deixar circular um pouco de ar dentro do aposento. Quando abriu a porta, não havia ninguém do lado de fora, no corredor. Ginger, o gato, se espreguiçou e se preparou para sair da cama, acompanhando o velho companheiro, que estivera se aperaltando por quase uma hora. O velho, porém, lhe diz:

- Hoje não, meu amigo. Hoje, eu vou sozinho.

O homem havia se vestido como se fosse sair para um passeio. Ele havia arrumado o quarto com esmero, deixara a caixa de areia devidamente limpa e trocara a água e a comida do gato. Com um olhar crítico, dá uma última avaliada no quarto e faz um carinho no animalzinho, que ronrona de satisfação, olha-o, sereno, como se compreendesse e se aninha sobre o travesseiro, apoiando a cabeça sobre as patas dianteiras, cruzadas. O homem sai, então, sem trancar a porta do pequeno apartamento.

O sol já ia alto no céu de Primavera, quando ele caminhou, corredor afora, na direcção da porta da varanda, que recebia uma brisa suavemente fresca, àquela hora da manhã. As pessoas estavam ocupadas, tomando o lanche da manhã e não perceberam quando ele passou pela porta de saída e atravessou, tranquilamente, o pátio. O homem cruzou o portão, cujo movimento havia observado, por semanas, virou à esquerda e saiu pela calçada afora a assobiar uma velha canção conhecida sua.

“And it was cold and it rained so I felt like an actor
And I thought of Ma and I wanted to get back there
Your face, your race, the way that you talk
I kiss you, you're beautiful, I want you to walk”…*



Poucos minutos depois, a enfermeira-chefe entra e vê, somente, o gato deitado. As orelhas do bichinho se movem, levemente, na direcção do ruído que ela faz. A mulher sorri e balança a cabeça, como se desaprovando aquela organização no quarto do velho. Ela percebeu que um único detalhe conspurcava a cuidadosa arrumação: dentro da lixeira jazia um pedacinho de papel, amarelado pelo tempo e dobrado em dois. Ela apanha-o, desdobra-o e lê a curta mensagem. Uma letra miúda e rebuscada mostra um endereço electrónico. Não é a caligrafia do velho, ela reconhece.

Ela sai, vai à saleta dos computadores e envia uma breve mensagem, por e-mail, ao endereço escrito no papel. Levanta-se, arruma a cadeira e sai. Já ia à porta, quando ouviu o computador dar alerta de mensagem chegando. Volta-se e lê: “o provedor não conseguiu encontrar o destinatário”…

- Algo não está certo. Seria somente uma lembrança, guardada com carinho? E se fosse…

A mulher conecta, então, o Messenger, digita o mesmo endereço escrito no papel e envia uma mensagem. Era um tiro no escuro, mas poderia dar resultado… Ela ouve o som de vozes se aproximando e sai da saleta, para não ter que dar explicações a ninguém.

Já no quarto, seus olhos pousam sobre um livro, cujo autor ela desconhecia e que havia sido deixado em cima de sua escrivaninha. Sobre o mesmo, havia um envelope fechado, com o nome dela, desenhado com esmero, como se fosse um exercício num caderno de caligrafia, com a letra cuidadosa do velho. Ligeiramente apreensiva, ela abre o envelope e retira uma pequena mensagem escrita, quase em código."Use a intuição e não tenha medo do desconhecido. As respostas estão lá: basta concentrar-te." Ela franze o cenho, mas compreende o que ele queria dizer.

A mulher abre uma gaveta, fechada à chave e de lá retira uma pequena caixa azul. Dentro da mesma, envolvido num pano quadrado de cetim roxo, está o deck de tarot – o presente dado pelo velho amigo. Ela vinha se esmerando no estudo da leitura das cartas, mais para agradá-lo, que para seu próprio proveito. A curiosidade queria controlar suas atitudes, mas ela tinha receio do que pudesse encontrar, quando começasse a descobrir coisas, para as quais não estivesse preparada. Era como se entrasse no oceano, mas tivesse medo de nadar. E ela não conhecia a profundidade daquelas águas.

Antes de continuar seu pequeno ritual, volta-se e tranca a porta atrás de si. Ela abre o pano em cima da escrivaninha e escolhe, no maço, uma carta para ser o “Significador”, perguntando-se se o velho seria representado pelo Ermitão – um homem solitário, sábio e prudente – ou pelo Imperador – um grande guerreiro, na hora da parada, protegendo os seus bens. Por fim, decide pelo Rei de Paus, por ser um homem mais velho e um Senhor do Ar: um grande mestre – que é como ela o via.

Em seguida, coloca a carta escolhida no centro e embaralha as outras, sete vezes, com cuidado. Parte em três, recolhe a partir do monte à direita, depois o da esquerda e, por fim, o do centro. Uma a uma, as cartas começam a deixá-la desconfortável. Por cima do significador veio a carta chamada Morte: a grande mudança. Esta era uma carta que as pessoas interpretavam muito mal. Talvez pelo nome, disse-lhe, certa vez, o velho. As pessoas têm medo da morte e temem esta lâmina, mas ela é positiva. Tem uma outra que parece menos malévola e é muito mais nefasta…

As cartas foram se sucedendo e seu coração apertando a cada interpretação. Dois de paus, na posição do futuro próximo: viagem curta; encontro com o mestre. A combinação da sequência final, porém, pareceu densa demais: o Enforcado, o Louco e a Torre: o fim de um sacrifício, a incerteza e a destruição… Ela nunca soubera interpretar direito a carta do Louco. Seria incerteza, ou um passo contra o desconhecido?

Pousou os olhos sobre a última lâmina: a Torre – a única carta realmente negativa de todo o deck – mais nefasta que a da Morte. Enquanto esta última significava apenas uma grande e radical mudança, a Torre significava a destruição... ou algo pior…

Foi então que ela entendeu… Levantou-se depressa e saiu para o corredor. Lá fora, as mulheres e também os homens estavam em polvorosa outra vez, falando todos ao mesmo tempo. As vozes, cada vez mais estridentes, pareciam aumentar à medida que ela se aproximava do centro do furacão acontecendo na sala principal, com a determinação de alguém que enfrenta uma tempestade. Do outro lado, perto da porta da saleta dos computadores, o olhar da directora, exasperado, lhe dizia tudo, sem que uma palavra proferisse.

No meio da confusão, ela soube. Duas lágrimas saltaram, sem cerimónia, de seus olhos azuis… O velho transformara a casa de descanso em pandemónio, mais uma vez…


No quarto, o gato, deitado no costumeiro lugar, fecha os olhos, tranquilo… Poucos minutos depois, dorme o sono dos justos. Instintivamente, se encolhe e vira a cabeça, deixando a parte de baixo virada para cima, como tantas vezes fazia – o que divertia o velho – quando quase pedia um carinho e uma coçada no queixo e pescoço…


A directora ouviu o som característico, conhecido, a vir do computador, na saleta. Aproximou-se e viu a mensagem a piscar na tela do computador. Com um click sobre a tela, abriu o Messenger e recebeu uma mensagem: olá, meu amado amigo… Já estava com saudades…

No canto superior, viu a foto de uma mulher, aparentando uns cinquenta e tantos anos, cujos olhos azuis ela reconheceu imediatamente. Intrigada, leu o nome que o destinatário usava. O mesmo sobrenome da enfermeira-chefe…

* Excerpt from (Five Years - David Bowie - 1972)

quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Pandemônio (na casa de descanso) - Parte 7

O velho vinha ficando cada vez mais anti-social. De vez em quando se isolava e se trancava no quarto, por períodos cada vez mais longos. Dizia que precisava deste isolamento, para colocar suas ideias em ordem. Ela desconfiava que havia algo além daquela boa intenção.

Ao retiro do quarto, era acompanhado somente pelo gato, que mantinha a cumplicidade, sem restrições, sem cobranças, sem se alterar, mas sempre atento aos movimentos do velho companheiro. Havia, entre eles, uma troca incondicional, com a qual o velho aprendera a lidar, tendo em vista a longa jornada que vinham fazendo juntos, entre momentos de alegria e outros de pura angústia. O ruivo felino era companheiro para todas as horas, para todos os momentos de lucidez ou de loucura do homem.


Outra noite avançava lentamente, num dia quente de verão e o silêncio ia tomando conta do lugar. Na saleta, perto da entrada, uma luz ainda estava acesa. O quase inaudível barulho das teclas sendo marteladas, suavemente, chamou a atenção da enfermeira-chefe. Ela sabia quem poderia estar àquela hora no computador. Pensou em se aproximar, mas a sua coerência e o respeito que tinha pelo velho amigo, a impediram de interferir. Ela sentou-se na sala de estar, próxima à entrada, aproveitando a leve brisa que entrava pela porta entreaberta da varanda e um dos poucos momentos de paz de que podia usufruir. A luz do poste iluminava sua silhueta, marcando os contornos do rosto e as linhas delicadas do pescoço e colo, a curva do braço e as ainda belas e torneadas pernas, cruzadas languidamente, sobre a poltrona desbotada. Sua tarefa do dia estava praticamente concluída e ela precisava descansar. Mas ficar ali, ouvindo o toque suave das teclas na sala ao lado, causavam uma certa sonolência e sua mente já divagava por outros lugares e outros tempos.

Ela lembrou do dia em que o velho entrou por aquela porta pela primeira vez. Trazia nas mãos uma pequena mala com roupas e a caixa de transporte do gato. O felino era uma figura à parte. Grande e gorducho, com idade avançada, ainda era bastante inteligente e ágil, dentro do possível, sendo a âncora do velho, para todos os momentos. Sabia o momento certo de se manifestar e o momento certo de, somente, observar. O velho tinha uma consideração e uma afeição sem limites pelo animal que o acompanhava. Eram dois solitários que se compreendiam e se respeitavam mutuamente.

A mulher lembrou das negociações do homem com a directora e como ela se divertiu ao ver a matrona se curvar diante da oferta generosa do velho, com uma condição que ela se arrependera depois de ter tomado. Apesar do período conturbado que se seguiu e que piorava a cada dia, ela ainda conseguia dar boas risadas. Tinha que se esquivar, politicamente, das investidas da directora, do veneno das mulheres mais velhas e até dos comentários das outras enfermeiras, que lhe diziam que era ainda jovem para se enclausurar na casa de repouso e esquecer sua vida social.

Como diria, sabiamente, Colleen McCullough, ela havia se deixado seduzir pela mais indecente das obsessões: o trabalho. Ela sabia que era bem mais profundo que isso, mas preferia não deixar transparecer suas frustrações em relação aos relacionamentos não profícuos que havia tido no passado. Ao invés de continuar tentando, preferia se dedicar exclusivamente à sua vida profissional. O resto, pensava, era secundário. Ela sabia que não estava totalmente certa, mas não estava completamente errada. Evitava sofrer, na melhor das hipóteses.

O som das teclas já havia parado e ela só percebeu que não estava mais sozinha na sala, quando o homem atrás de si fingiu limpar a garganta com um hum-hum audível. Ela se voltou, tentando não parecer embaraçada pela situação e olhou o homem de pé, a lhe observar na penumbra da sala. Não sabia há quanto tempo ele estava ali, quieto, enquanto ela viajava nos pensamentos e lembranças, tentando se convencer que havia tomado todas as decisões correctas em sua vida.

Ele a olhava com um olhar especial, dedicado somente à ela. Ela parecia ser um dos poucos elos que ele ainda tinha com a sanidade. Aquele par de olhos azuis, com a profundidade do mar e aquele ar desprotegido, como se vida esperasse por ela para continuar, fazia os seus dias mais brilhantes, mais suportáveis... Ele fazia de tudo para estender o tempo em que ela ficava à sua disposição. Ela era uma companhia agradável, que ele apreciava ao extremo. Além do mais, representava a lembrança de um passado, que não era dela, mas que ele prezava - do tempo em que julgou ser feliz.

- É tarde. Melhor ir se deitar, antes que a directora venha fazer alguma ronda e comece a fazer perguntas.

Ela dizia o que lhe vinha à cabeça, pois queria evitar qualquer confronto. Sabia, porém, que o velho não iria dizer nada, pois também não queria conversar sobre o que estava fazendo no computador àquela hora.

- Um chá gelado ia bem, com este calor. Será que há algum na cozinha?

Ele era mestre em iniciar aquelas conversas sem objectivo, para deixá-la à vontade, exprimindo uma conivência descomprometida, demonstrando que respeitava o silêncio dela, desde que o seu também o fosse. Ela sabia que aquela era a deixa para saírem dali, ir à cozinha e falar de amenidades, permitindo que o embaraço do momento passasse completamente. Sabia que, logo, estariam dando risadas, comentando os acontecimentos da casa de descanso e as aprontadas dele e de Ginger, o gato malhado, que no momento descansava no sofá da sala.


Horas depois de amanhecer, no dia seguinte, uma das mulheres notou que a porta do quarto ao fim do corredor não havia sido aberta. Curiosa que era, foi até o lado de fora e verificou que a janela também estava fechada, apesar do calor e do dia já ir adiantado. Era quase hora do almoço e o homem não havia sentado à mesa para fazer as primeiras refeições do dia. Alertada para o fato, a enfermeira-chefe, ao comando da directora, bateu à porta do quarto. Preocupada por não obter nenhuma reacção, nem resposta, usou a chave mestra e entrou no quarto. Na penumbra, viu que o homem ainda estava na cama. Ela desconfiou que algo estivesse errado. Com cautela, acendeu a luz.

O homem que jazia na cama não era, definitivamente, o mesmo da noite anterior, que tomava chá gelado na cozinha e dava risadas com ela, lembrando da gritaria das mulheres, quando o gato trazia seus "presentes" e os depositava aos pés do pessoal, na sala de jantar. O animalzinho, por sua vez, estava sentado aos pés da cama, cuidando do amigo, atento a todos os movimentos da mulher que havia entrado e do homem que jazia na cama, como se olhasse algo muito distante dali. Ele parecia desfigurado, desconfiado, deslocado... Aparentava não ter muita noção de onde se encontrava.

A mulher olhou o velho com compaixão e preocupação. Era como se ela visse, através dos olhos dele, toda a tristeza e o vazio da vida. Ela não sabia quase nada dele, reconhecia. O homem era um mistério não desvendado; uma equação a resolver. E ela não tinha dados suficientes para o cálculo das incógnitas.

A enfermeira-chefe já havia suspeitado que o velho apresentava alguns sintomas estranhos, mas nunca havia realmente ficado naquele estado anteriormente. Aproximou-se com cuidado, segurou a mão dele na sua e perguntou se ele estava bem. Ele a olhou, com um misto de confusão e impaciência. Ela foi até a escrivaninha, abriu a gaveta, para procurar algum medicamento, que ele pudesse estar tomando. Ao abrir a gaveta, viu o papel dobrado, com o timbre conhecido. Parecia estar ali há muito tempo, pois já começava a amarelar. Sem hesitar, ela pegou a folha de papel dobrada ao meio, abriu e leu o documento. Era o resultado de uma consulta a um especialista. No final da folha, escrito em caligrafia quase ilegível de médico, o diagnóstico: princípio de Alzheimer. Medicação: Memantina.

Ela procurou algum frasco de remédio, mas não encontrou naquela gaveta. Procurou no armário do banheiro, mas não havia nada.

Sem pensar em muitas opções, foi até a farmácia, pegou um sedativo e trouxe ao quarto. Era o mínimo que podia fazer. Ainda intrigada, olhou à sua volta. Pensou em procurar na mesinha de cabeceira. Havia um livro escrito por um autor desconhecido e um Novo Testamento. Quando ia fechar a gaveta, notou que o livro não ia até o fundo da mesma. Passou a mão por trás do livro e puxou um frasco pequeno de comprimidos, com o mesmo símbolo do papel timbrado, estampado no rótulo. Leu rapidamente as indicações e deu um comprimido ao velho, com um pouco de água, na qual havia colocado o sedativo.

Apesar de não demonstrar conhecê-la, o homem tomou, obediente, o medicamento que ela ofereceu. Fechou os olhos lentamente e deu um longo suspiro. Parecia cansado demais para lutar. Fechou os olhos, lentamente, sem dizer nenhuma palavra e se entregou ao sono.

Ao olhar o homem adormecido, a enfermeira se perguntava como deixara passar, despercebida, uma evidência tão clara. Devia prestar mais atenção ao paciente, pois agora o comportamento do velho parecia fazer sentido.

- Por que razão ele havia escondido esta condição por tanto tempo? - perguntava-se ela.

Aquela loucura tinha nome - e era terrível. Ela percebeu que o carinho que sentia pelo homem se transformava em compaixão. Seus olhos encheram-se de lágrimas, que ela não lutou para conter. Mergulhou o rosto nas duas mãos e chorou de tristeza, pelo amigo ali deitado, à sua frente, com o gato, sempre atento, sentado aos seus pés.

Minutos depois, já praticamente recomposta, a enfermeira-chefe saía silenciosamente do quarto, e se dirigia ao gabinete da directora, com a folha de papel dobrada no bolso do uniforme.

domingo, 13 de dezembro de 2009

Pandemónio (na casa de descanso) - Parte 6

Sempre que ouvia gritaria no corredor, a directora sabia que o velho havia aprontado alguma nova estripulia. Mas ela jamais iria se acostumar a ouvir a gritaria geral das mulheres e a correria pelo corredor afora. A enfermeira-chefe, alheia aos gritinhos nervosos das damas, divertia-se secretamente, pois de outra forma o tédio era mais comum que as aprontadas do velho e do gato. Vez ou outra, porém, a casa de descanso virava um pandemónio.


A velha mulher estava sentada, de costas para a porta, quando viu a grande nuvem de fumaça sair pela porta do quarto, ao fundo do corredor lateral. Imediatamente começou a gritar:

- Fogo! Fogo! O velho louco colocou fogo no quarto!!!

A correria começou. A directora, de dentro do seu gabinete, já imaginava o que - e quem - poderia estar causando o tumulto.

- O que foi que este homem aprontou agora, meu Deus? Será que não posso ter uma semana de paz, nesse… nesse… nesse manicómio?

Ela custava a encontrar a palavra certa, para definir o que o velho havia transformado a casa de descanso, desde que chegara, há dois anos. E sentia que ele vinha piorando, a cada dia que passava. Abriu a porta do gabinete e se dirigiu para o salão central, onde já encontrou a enfermeira-chefe, com o extintor de incêndio em mãos, se dirigindo a passos apressados pelo corredor a dentro.

Pronta para disparar a carga de pó químico contra o fogo, a mulher quase não conseguiu conter o riso, quando viu o velho sair, do meio da fumaceira, com uma máscara cirúrgica cobrindo o nariz e a boca. Este era um daqueles dias em que a coerência e a sobriedade do velho pareciam desaparecer por completo. Ela bem que poderia ter desconfiado, quando ele pedira a máscara a ela, uma noite, depois do jantar, sem dizer para quê precisava de uma. Pelo menos estava explicado os estranhos sons de murmúrios repetidos, como cântico, que o velho fazia lá dentro, poucos minutos antes. O velho disse que resolvera defumar o quarto, alegando que precisava purificar o ambiente.

O gato, que havia estado do lado de fora e arranhava a porta, ao receber a grande nuvem de fumaça contra a cara, não se atreveu a entrar. Ao invés disso, saiu atrás do velho, pelo corredor afora.

A enfermeira-chefe olhou para as outras mulheres, desvencilhou-se do equipamento que trazia nas mãos e entrou no quarto, a fim de abrir as janelas e ver se não havia nenhuma avaria deixada pelo homem, que tantas vezes lhe havia ensinado pequenos detalhes de como viver uma vida simples e colorida. Ela notava que ele começava a mostrar sinais de alheamento ou isolamento com mais frequência. Teve medo que houvesse mais coisa escondida, por trás destas atitudes.

Excepto pela fumaça e a quantidade de restos de palitos de incenso caídos num recipiente em cima da escrivaninha, não parecia haver nada mais a queimar no quarto. A mulher vasculhou todos os cantos, mas a única evidência de algo mais, era um pedaço de papel chamuscado, que jazia dentro da lixeira. Ao passar os olhos, lembrou de já haver visto aquele timbre, no alto da folha de papel, quase completamente queimada. O símbolo era de uma clínica de medicina.

- O que será que ele está tentando esconder aqui? Isto parece mais uma tentativa de acobertar uma evidência, que uma defumada no ambiente.

A enfermeira-chefe pensou que havia visto aquele papel anteriormente. Precisava prestar mais atenção aos pequenos detalhes, deixados à vista - talvez propositadamente - quando viesse visitar o homem, mais tarde…


Mais tarde, no pátio, os residentes passeavam ao sol e liam ou jogavam damas e xadrez nas mesas colocadas por baixo do grande flamboyant. O sol era sempre bem-vindo pelos “seniors”, pois lhes dava a liberdade de transitar livremente do lado de fora. O gato brincava do lado de fora, no canteiro de flores, perseguindo as borboletas e os pequenos pássaros que iam e vinham, como se a provocar o velho felino. O velho lia um livro, sentado num banco, a um canto, protegido do sol. Tudo parecia sob controle.

Mesmo assim, as enfermeiras passavam e verificavam os senhores e senhoras, ocupados em seus afazeres simples. Elas, na verdade, iam ver se algum deles – e um, em especial - não estava aprontando alguma. Quando todos estavam no pátio, as coisas ficavam mais calmas e controladas.

Quando todos estavam presentes na casa, é que as aprontadas do velho aconteciam. Em semanadas frias ou chuvosas, sempre acontecia alguma aparição inusitada. Ele parecia se divertir ao ver a mulherada em polvorosa. Uma vez, comprou um ratinho branco e soltou no corredor, para ver a reacção do gato. A reacção foi pior das mulheres que do gato, que se divertia a valer, em caçada ao pequeno roedor, enquanto as mulheres gritavam e corriam pelos corredores, ou subiam sobre as poltronas da sala de visitas.

Outra vez, o gato encontrou um pequeno lagarto no jardim e o trouxe para dentro, depositando-o aos pés do velho, na hora da refeição. Nova gritaria, quando o lagarto deu por si e saiu correndo, com o gato em perseguição desgovernada entre os pés dos comensais no salão principal.

As enfermeiras mais jovens já haviam se acostumado a estes acontecimentos, severamente condenados pela directora, mas tolerados por elas, já que eram inofensivos e as divertiam, quebrando a monotonia da casa de descanso.

Quando era acusado de colocar em risco o sossego e saúde dos outros residentes, o velho respondia com um sorrisinho de canto de boca, ou uma larga gargalhada, mas nunca com uma explicação.


Da janela do quarto, o velho observava o portão principal. O porteiro era metódico nos horários e não abandonava o posto facilmente. Todas as entradas e saídas eram devidamente registradas, de modo que a direcção soubesse, sempre, quem saía e quem entrava no recinto. Em todo o tempo em que se encontrava na casa de descanso, ele havia recebido uma única visita. Um homem havia vindo, há algum tempo atrás, conversar com ele e não ficou mais que uma hora em reunião privada.

Devido a avançada idade da maioria, as saídas para fora do recinto eram somente autorizadas se fossem acompanhadas, por isso o grupo sabia que, uma vez por semana, às quintas-feiras, uma van os levava ao centro da cidade, ao shopping center, ao cinema, ou a algum outro lugar previamente combinado. O velho não costumava acompanhar os outros nestas viagens. Preferia ficar ocupado com seus hobbies e com o acesso quase livre ao computador, por um tempo mais longo.


Nestas ocasiões, em que a casa de descanso ficava mais calma, o velho aproveitava e passava a tarde inteira trancado no quarto ou na sala do computador. Foi numa destas tardes, que a enfermeira viu, “en passant”, o que aparecia na tela do computador. Ela, que achava que o velho apenas se divertia lendo ou pesquisando alguma coisa na internet, ficou surpresa ao ver que estava em “conversa” no Messenger.

Ela parou, intrigada, à porta, mas logo foi notada pelo homem, que desligou imediatamente e saiu da saleta, sem dizer uma palavra, nem olhar directamente à ela. Pigarreou ao passar pela porta e assobiou uma canção conhecida sua.

A enfermeira ficou ali, parada, a olhar a tela vazia do computador, imaginando quem poderia ser o contacto do velho, com o mundo lá fora…