Uma faixa de luz do
sol infiltrava-se entre as folhas da árvore e pareciam acender e apagar contra
o rosto do rapaz de óculos. Ele abriu os olhos, devagar, ainda meio tonto e com
uma terrível dor de cabeça, como se estivesse de ressaca. As imagens foram
entrando em foco, como num filme de arte contemporânea.
Deitado num banco
da praça, sujo e desalinhado, ele passava por um mendigo ou um drogado, que
adormecera ao relento, por falta de lugar melhor. Os poucos transeuntes, que
passavam por perto, esquivavam-se da sua figura, como se fosse perigoso ou
inconveniente. Ele sentou-se e olhou à volta. Não sabia onde estava. Pela
posição do sol, parecia ser já a meio do dia, mas ele não tinha a mínima ideia
de como viera parar naquele lugar. Ele sentia o cheiro de comida, recém-feita, bem temperada, no ar. Sentiu fome. Procurou a carteira, mas sem muita esperança de encontrá-la.
Sentia-se roubado e aquilo deixava-o nervoso. Não sabia onde estava e não sabia
como conseguir ajuda. Olhou à volta, mais uma vez. Precisava lavar-se, trocar
de roupa e comer algo.
- Que belas férias!
O rapaz levantou-se
e começou a caminhar. Sua cabeça girava. Ele parou e esperou um pouco, tentando
recuperar as forças. Respirou fundo e caminhou, decidido a não deixar-se
abater, nem perder o equilíbrio.
- Que droga! Eu sou um soldado treinado. Não vou cair
aqui, agora. Preciso chegar ao mar, ou ao rio.
Olhou para cima,
para tentar seguir o curso do sol. Um sino bateu uma vez. Ele procurou localizar de onde
vinha o som. Se há um sino, há uma igreja e deve haver um relógio. Cruzou a
praceta e viu que estava bem à frente de uma pequena capela, cuja fachada era
toda decorada com azulejos pintados. O relógio marcava 1:15.
Ele caminhou na
direcção da igreja, que estava na parte mais alta do lugar. Atrás dela, viu o
rio, que corria para a sua esquerda. Aquela era, certamente, a direcção do mar.
Passou a mão pela roupa bastante amarrotada e começou a descer a rua.
O homem, de
aparência estranha, mas vestido com um alinhado terno escuro, feito à medida, caminhou,
devagar, até a janela. Tinha o cenho franzido e uma expressão carregada, no
rosto. Estava bastante preocupado.
O sol brilhava do
lado de fora, num dia típico de verão. A sala refrigerada, para a temperatura
constante de 18ºC, tinha poucos móveis. Além de uma mesa com uma dúzia de
cadeiras, havia apenas um pequeno móvel, onde uma moderna máquina de café estava
instalada, discretamente, num nicho, no canto do aposento. Estava no segundo
andar do prédio, na sala mais distante da entrada, onde decisões importantes
eram tomadas e, muitas vezes, estas tinham consequências bastante grandes na
indústria alimentícia. A N. & M. Enterprises
também tinha influência em negócios não tão inocentes quanto a produção de
alimentos, mas pouca gente sabia, com certeza, em quais negócios seriam.
O homem observava o
movimento que acontecia, naquele momento, ao rés-do-chão, sem mover qualquer
músculo da face pouco expressiva. Ele levantou os olhos e concentrou-se num
ponto além do jardim bem cuidado, junto a um pequeno bosque, mais adiante,
praticamente escondido de quem vinha pelo lado da frente do edifício.
Escolhido com
cuidado, o escritório ficava na parte traseira, mais silenciosa e mais
discreta. Na rua, uma carrinha branca estacionada, tinha grandes letras
vermelhas pintadas nas duas laterais. Ele passou a mão muito pálida pelo topo
da cabeça calva e pelo rosto sem nenhum vestígio de barba.
A porta abriu-se às
suas costas e ele ouviu a voz do secretário, baixa, mas muito firme:
- Eles estão aqui.
O homem respirou
fundo e virou-se, devagar.
- Já era hora. Tragam-nos para dentro.
O secretário saiu e
voltou logo em seguida com dois homens vestidos de preto e um outro rapaz mais
jovem que eles. Um pouco mais atrás, um outro homem, também vestido como segurança,
arrastava, pelos braços, um outro rapaz, de óculos, que tinha as roupas muito
sujas e amarrotadas. Este último estava, ainda, meio desacordado.
- Não. Eles não sabem de nada. Aquilo deve ter sido um
infeliz acidente. Uma coincidência…
- Mas eles agora vão desconfiar de que existe algo grande
por trás desta história toda. Aliás, eles não são tolos. Já devem ter suspeitado…
- Temos que nos livrar deles. Não podemos deixar pontas
soltas.
- Já deixamos. Agora temos que consertar esta burrada.
- Com cuidado e um bom plano, para não deixar nenhuma
sombra de dúvidas a respeito de nossa integridade…
- Com certeza. A N.M.E. não pode ser associada a nenhum
tipo de falcatruas. Temos que manter-nos insuspeitos. O sucesso dessa empresa
depende de nossa discrição e de certos segredos.
- Teremos o máximo cuidado. Pode deixar.
O homem olhou sério
para o chefe da Segurança e não pareceu muito convencido, mas fez um leve aceno
com a cabeça, assentindo, para que o homem saísse logo e ele pudesse ficar
sozinho na sala. Precisava pensar.
O rio parecia
calmo, tranquilamente correndo na direção do mar. O rapaz aproximou-se e entrou
com os pés na água fresca. A sensação era bem boa. Ele abaixou-se, lavou o
rosto e a cabeça com aquela água e até sentiu vontade de nadar um pouco. Por um
momento, esqueceu-se que não sabia, exatamente, onde estava e que não tinha
ideia de como fora parar naquele lugar.
Continuou a seguir na
direcção do mar. Minutos depois, quando já estava na praia, avistou os velhos
moinhos. Ele não reconheceu o lugar, mas seguiu adiante. Precisava encontrar
algumas respostas. Teve receio que fosse mal compreendido, com as roupas
naquele estado, por isso evitou contacto directo com as pessoas que passavam por
ele, enquanto caminhava pela orla.
Mais à frente,
avistou uma estação de serviço, foi até lá e entrou. No balcão, viu um
homem sentado, de costas, vestido com um terno escuro, tomando café. Com aquele
calor, não pareceu-lhe a melhor indumentária, mas quem era ele para estranhar
qualquer coisa. Antes que falasse com o empregado, a porta atrás de si abriu-se
e ele viu outro homem, um grandalhão, também vestido de terno escuro, entrar.
Não percebeu que uma carrinha branca estava estacionada ao lado das bombas de combustível. Só sentiu uma
pancada e teve a impressão que começava a cair num poço escuro.
- Estás bem?
- Olha para mim. Pareço bem? Estou todo sujo, fui batido,
drogado, arrastado e não sei o que está acontecendo. Como posso estar bem?
- É verdade. Foi uma pergunta estúpida…
- Onde estiveste? Quem são esses?
- Só posso dizer o que sei… o que não é muita coisa.
- Tu saíste, com eles, da pensão. A moça da recepção me
contou.
- Sim. Estava sob a mira de uma arma. Tive que parecer
natural, para não levantar mais confusão, ou ser morto ali mesmo. Estes homens
são perigosos.
- Quem são eles?
- Eles trabalham para a N.M.E., uma empresa ligada ao
meio alimentício, mas isso é só uma fachada. Há muito mais coisas por trás disso tudo.
- E como tu sabes disso?
- Eu fingi que estava desacordado e ouvi a conversa. Aqui
há muito mais que as aparências querem mostrar.
- E por que nós estamos envolvidos nisso?
- Estávamos no lugar errado, na hora errada… ainda
estamos…
- Como assim?
- Eles não sabem quem somos, mas pretendem livrar-se de
nós. Temos que dar um jeito de sair daqui.
- Como? Se eles vão-nos matar… Que saída temos?
- Eles querem que pareça um acidente. Ouvi quando eles
falavam com o chefe. Talvez tenhamos uma hipótese, mas vai depender de quantos
daqueles gorilas teremos que enfrentar.
- Enfrentar homens armados, com aquele tamanho? Péssima
ideia. Péssima ideia!
- Tens uma melhor?
“Estava tudo tão bem planeado, com tanta precisão, antes
de enviar... “
O homem tentava
encontrar uma falha no procedimento, mas não conseguia.
“Por qual razão estes intrometidos tinham que aparecer,
logo naquela hora? Como não foi possível prever? Que detalhe passou, assim, tão
despercebido?”
Ele não tinha
dúvidas que ia ganhar muito dinheiro e mudar o curso da humanidade, quando aquele
pequeno detalhe fosse resolvido. Ia ser um homem muito rico e poderoso. Sua
ambição não tinha limites e passava por cima de muitos princípios, incluindo aqueles
relativos aos escrúpulos.
Mas aquela
interferência, naquele momento, não era bem-vinda e tinha que ser resolvida
logo, de maneira eficaz e eficiente… E logo!
- Que droga!
Ele pegou o fone e
discou um número conhecido. Em menos de dois minutos o chefe da Segurança
entrava, apressado, na ampla sala. O homem estava de costas para a porta. Sem
virar-se para cumprimentar o recém-chegado, ele falou, baixo, firme e tentando
controlar a emoção ao extremo.
- Dêem um jeito naqueles dois. E tratem de não deixar nenhum
vestígio. Agora!
- Sim, senhor.
O chefe da
Segurança saiu, fechando a porta, com cuidado, atrás de si. Conhecia bem seu
chefe. Aquele controlo todo era apenas uma capa protectora. Ele devia estar a
ponto de explodir.
O homem continuou a
olhar para o lado de fora, através do grande e bem cuidado jardim. No fundo
podia ver o pequeno bosque de pinheiros, cujo limite era coberto com serralhas e
outros tipos de asclépias, formando um bonito efeito, mas que tinham, na
verdade, sido plantadas com um objectivo muito específico. Ele viu as borboletas a voar à volta das florzinhas coloridas e sorriu.
Enquanto estava a
observar, distraidamente, aquela bela criação, uma porta abriu-se no lado
esquerdo do jardim e um grupo de homens atravessou o pátio. Dois deles,
vestidos com trajes escuros, carregavam, visível e ostensivamente, poderosas
armas automáticas.