quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Pandemônio (na casa de descanso) - Parte 7

O velho vinha ficando cada vez mais anti-social. De vez em quando se isolava e se trancava no quarto, por períodos cada vez mais longos. Dizia que precisava deste isolamento, para colocar suas ideias em ordem. Ela desconfiava que havia algo além daquela boa intenção.

Ao retiro do quarto, era acompanhado somente pelo gato, que mantinha a cumplicidade, sem restrições, sem cobranças, sem se alterar, mas sempre atento aos movimentos do velho companheiro. Havia, entre eles, uma troca incondicional, com a qual o velho aprendera a lidar, tendo em vista a longa jornada que vinham fazendo juntos, entre momentos de alegria e outros de pura angústia. O ruivo felino era companheiro para todas as horas, para todos os momentos de lucidez ou de loucura do homem.


Outra noite avançava lentamente, num dia quente de verão e o silêncio ia tomando conta do lugar. Na saleta, perto da entrada, uma luz ainda estava acesa. O quase inaudível barulho das teclas sendo marteladas, suavemente, chamou a atenção da enfermeira-chefe. Ela sabia quem poderia estar àquela hora no computador. Pensou em se aproximar, mas a sua coerência e o respeito que tinha pelo velho amigo, a impediram de interferir. Ela sentou-se na sala de estar, próxima à entrada, aproveitando a leve brisa que entrava pela porta entreaberta da varanda e um dos poucos momentos de paz de que podia usufruir. A luz do poste iluminava sua silhueta, marcando os contornos do rosto e as linhas delicadas do pescoço e colo, a curva do braço e as ainda belas e torneadas pernas, cruzadas languidamente, sobre a poltrona desbotada. Sua tarefa do dia estava praticamente concluída e ela precisava descansar. Mas ficar ali, ouvindo o toque suave das teclas na sala ao lado, causavam uma certa sonolência e sua mente já divagava por outros lugares e outros tempos.

Ela lembrou do dia em que o velho entrou por aquela porta pela primeira vez. Trazia nas mãos uma pequena mala com roupas e a caixa de transporte do gato. O felino era uma figura à parte. Grande e gorducho, com idade avançada, ainda era bastante inteligente e ágil, dentro do possível, sendo a âncora do velho, para todos os momentos. Sabia o momento certo de se manifestar e o momento certo de, somente, observar. O velho tinha uma consideração e uma afeição sem limites pelo animal que o acompanhava. Eram dois solitários que se compreendiam e se respeitavam mutuamente.

A mulher lembrou das negociações do homem com a directora e como ela se divertiu ao ver a matrona se curvar diante da oferta generosa do velho, com uma condição que ela se arrependera depois de ter tomado. Apesar do período conturbado que se seguiu e que piorava a cada dia, ela ainda conseguia dar boas risadas. Tinha que se esquivar, politicamente, das investidas da directora, do veneno das mulheres mais velhas e até dos comentários das outras enfermeiras, que lhe diziam que era ainda jovem para se enclausurar na casa de repouso e esquecer sua vida social.

Como diria, sabiamente, Colleen McCullough, ela havia se deixado seduzir pela mais indecente das obsessões: o trabalho. Ela sabia que era bem mais profundo que isso, mas preferia não deixar transparecer suas frustrações em relação aos relacionamentos não profícuos que havia tido no passado. Ao invés de continuar tentando, preferia se dedicar exclusivamente à sua vida profissional. O resto, pensava, era secundário. Ela sabia que não estava totalmente certa, mas não estava completamente errada. Evitava sofrer, na melhor das hipóteses.

O som das teclas já havia parado e ela só percebeu que não estava mais sozinha na sala, quando o homem atrás de si fingiu limpar a garganta com um hum-hum audível. Ela se voltou, tentando não parecer embaraçada pela situação e olhou o homem de pé, a lhe observar na penumbra da sala. Não sabia há quanto tempo ele estava ali, quieto, enquanto ela viajava nos pensamentos e lembranças, tentando se convencer que havia tomado todas as decisões correctas em sua vida.

Ele a olhava com um olhar especial, dedicado somente à ela. Ela parecia ser um dos poucos elos que ele ainda tinha com a sanidade. Aquele par de olhos azuis, com a profundidade do mar e aquele ar desprotegido, como se vida esperasse por ela para continuar, fazia os seus dias mais brilhantes, mais suportáveis... Ele fazia de tudo para estender o tempo em que ela ficava à sua disposição. Ela era uma companhia agradável, que ele apreciava ao extremo. Além do mais, representava a lembrança de um passado, que não era dela, mas que ele prezava - do tempo em que julgou ser feliz.

- É tarde. Melhor ir se deitar, antes que a directora venha fazer alguma ronda e comece a fazer perguntas.

Ela dizia o que lhe vinha à cabeça, pois queria evitar qualquer confronto. Sabia, porém, que o velho não iria dizer nada, pois também não queria conversar sobre o que estava fazendo no computador àquela hora.

- Um chá gelado ia bem, com este calor. Será que há algum na cozinha?

Ele era mestre em iniciar aquelas conversas sem objectivo, para deixá-la à vontade, exprimindo uma conivência descomprometida, demonstrando que respeitava o silêncio dela, desde que o seu também o fosse. Ela sabia que aquela era a deixa para saírem dali, ir à cozinha e falar de amenidades, permitindo que o embaraço do momento passasse completamente. Sabia que, logo, estariam dando risadas, comentando os acontecimentos da casa de descanso e as aprontadas dele e de Ginger, o gato malhado, que no momento descansava no sofá da sala.


Horas depois de amanhecer, no dia seguinte, uma das mulheres notou que a porta do quarto ao fim do corredor não havia sido aberta. Curiosa que era, foi até o lado de fora e verificou que a janela também estava fechada, apesar do calor e do dia já ir adiantado. Era quase hora do almoço e o homem não havia sentado à mesa para fazer as primeiras refeições do dia. Alertada para o fato, a enfermeira-chefe, ao comando da directora, bateu à porta do quarto. Preocupada por não obter nenhuma reacção, nem resposta, usou a chave mestra e entrou no quarto. Na penumbra, viu que o homem ainda estava na cama. Ela desconfiou que algo estivesse errado. Com cautela, acendeu a luz.

O homem que jazia na cama não era, definitivamente, o mesmo da noite anterior, que tomava chá gelado na cozinha e dava risadas com ela, lembrando da gritaria das mulheres, quando o gato trazia seus "presentes" e os depositava aos pés do pessoal, na sala de jantar. O animalzinho, por sua vez, estava sentado aos pés da cama, cuidando do amigo, atento a todos os movimentos da mulher que havia entrado e do homem que jazia na cama, como se olhasse algo muito distante dali. Ele parecia desfigurado, desconfiado, deslocado... Aparentava não ter muita noção de onde se encontrava.

A mulher olhou o velho com compaixão e preocupação. Era como se ela visse, através dos olhos dele, toda a tristeza e o vazio da vida. Ela não sabia quase nada dele, reconhecia. O homem era um mistério não desvendado; uma equação a resolver. E ela não tinha dados suficientes para o cálculo das incógnitas.

A enfermeira-chefe já havia suspeitado que o velho apresentava alguns sintomas estranhos, mas nunca havia realmente ficado naquele estado anteriormente. Aproximou-se com cuidado, segurou a mão dele na sua e perguntou se ele estava bem. Ele a olhou, com um misto de confusão e impaciência. Ela foi até a escrivaninha, abriu a gaveta, para procurar algum medicamento, que ele pudesse estar tomando. Ao abrir a gaveta, viu o papel dobrado, com o timbre conhecido. Parecia estar ali há muito tempo, pois já começava a amarelar. Sem hesitar, ela pegou a folha de papel dobrada ao meio, abriu e leu o documento. Era o resultado de uma consulta a um especialista. No final da folha, escrito em caligrafia quase ilegível de médico, o diagnóstico: princípio de Alzheimer. Medicação: Memantina.

Ela procurou algum frasco de remédio, mas não encontrou naquela gaveta. Procurou no armário do banheiro, mas não havia nada.

Sem pensar em muitas opções, foi até a farmácia, pegou um sedativo e trouxe ao quarto. Era o mínimo que podia fazer. Ainda intrigada, olhou à sua volta. Pensou em procurar na mesinha de cabeceira. Havia um livro escrito por um autor desconhecido e um Novo Testamento. Quando ia fechar a gaveta, notou que o livro não ia até o fundo da mesma. Passou a mão por trás do livro e puxou um frasco pequeno de comprimidos, com o mesmo símbolo do papel timbrado, estampado no rótulo. Leu rapidamente as indicações e deu um comprimido ao velho, com um pouco de água, na qual havia colocado o sedativo.

Apesar de não demonstrar conhecê-la, o homem tomou, obediente, o medicamento que ela ofereceu. Fechou os olhos lentamente e deu um longo suspiro. Parecia cansado demais para lutar. Fechou os olhos, lentamente, sem dizer nenhuma palavra e se entregou ao sono.

Ao olhar o homem adormecido, a enfermeira se perguntava como deixara passar, despercebida, uma evidência tão clara. Devia prestar mais atenção ao paciente, pois agora o comportamento do velho parecia fazer sentido.

- Por que razão ele havia escondido esta condição por tanto tempo? - perguntava-se ela.

Aquela loucura tinha nome - e era terrível. Ela percebeu que o carinho que sentia pelo homem se transformava em compaixão. Seus olhos encheram-se de lágrimas, que ela não lutou para conter. Mergulhou o rosto nas duas mãos e chorou de tristeza, pelo amigo ali deitado, à sua frente, com o gato, sempre atento, sentado aos seus pés.

Minutos depois, já praticamente recomposta, a enfermeira-chefe saía silenciosamente do quarto, e se dirigia ao gabinete da directora, com a folha de papel dobrada no bolso do uniforme.

domingo, 13 de dezembro de 2009

Pandemónio (na casa de descanso) - Parte 6

Sempre que ouvia gritaria no corredor, a directora sabia que o velho havia aprontado alguma nova estripulia. Mas ela jamais iria se acostumar a ouvir a gritaria geral das mulheres e a correria pelo corredor afora. A enfermeira-chefe, alheia aos gritinhos nervosos das damas, divertia-se secretamente, pois de outra forma o tédio era mais comum que as aprontadas do velho e do gato. Vez ou outra, porém, a casa de descanso virava um pandemónio.


A velha mulher estava sentada, de costas para a porta, quando viu a grande nuvem de fumaça sair pela porta do quarto, ao fundo do corredor lateral. Imediatamente começou a gritar:

- Fogo! Fogo! O velho louco colocou fogo no quarto!!!

A correria começou. A directora, de dentro do seu gabinete, já imaginava o que - e quem - poderia estar causando o tumulto.

- O que foi que este homem aprontou agora, meu Deus? Será que não posso ter uma semana de paz, nesse… nesse… nesse manicómio?

Ela custava a encontrar a palavra certa, para definir o que o velho havia transformado a casa de descanso, desde que chegara, há dois anos. E sentia que ele vinha piorando, a cada dia que passava. Abriu a porta do gabinete e se dirigiu para o salão central, onde já encontrou a enfermeira-chefe, com o extintor de incêndio em mãos, se dirigindo a passos apressados pelo corredor a dentro.

Pronta para disparar a carga de pó químico contra o fogo, a mulher quase não conseguiu conter o riso, quando viu o velho sair, do meio da fumaceira, com uma máscara cirúrgica cobrindo o nariz e a boca. Este era um daqueles dias em que a coerência e a sobriedade do velho pareciam desaparecer por completo. Ela bem que poderia ter desconfiado, quando ele pedira a máscara a ela, uma noite, depois do jantar, sem dizer para quê precisava de uma. Pelo menos estava explicado os estranhos sons de murmúrios repetidos, como cântico, que o velho fazia lá dentro, poucos minutos antes. O velho disse que resolvera defumar o quarto, alegando que precisava purificar o ambiente.

O gato, que havia estado do lado de fora e arranhava a porta, ao receber a grande nuvem de fumaça contra a cara, não se atreveu a entrar. Ao invés disso, saiu atrás do velho, pelo corredor afora.

A enfermeira-chefe olhou para as outras mulheres, desvencilhou-se do equipamento que trazia nas mãos e entrou no quarto, a fim de abrir as janelas e ver se não havia nenhuma avaria deixada pelo homem, que tantas vezes lhe havia ensinado pequenos detalhes de como viver uma vida simples e colorida. Ela notava que ele começava a mostrar sinais de alheamento ou isolamento com mais frequência. Teve medo que houvesse mais coisa escondida, por trás destas atitudes.

Excepto pela fumaça e a quantidade de restos de palitos de incenso caídos num recipiente em cima da escrivaninha, não parecia haver nada mais a queimar no quarto. A mulher vasculhou todos os cantos, mas a única evidência de algo mais, era um pedaço de papel chamuscado, que jazia dentro da lixeira. Ao passar os olhos, lembrou de já haver visto aquele timbre, no alto da folha de papel, quase completamente queimada. O símbolo era de uma clínica de medicina.

- O que será que ele está tentando esconder aqui? Isto parece mais uma tentativa de acobertar uma evidência, que uma defumada no ambiente.

A enfermeira-chefe pensou que havia visto aquele papel anteriormente. Precisava prestar mais atenção aos pequenos detalhes, deixados à vista - talvez propositadamente - quando viesse visitar o homem, mais tarde…


Mais tarde, no pátio, os residentes passeavam ao sol e liam ou jogavam damas e xadrez nas mesas colocadas por baixo do grande flamboyant. O sol era sempre bem-vindo pelos “seniors”, pois lhes dava a liberdade de transitar livremente do lado de fora. O gato brincava do lado de fora, no canteiro de flores, perseguindo as borboletas e os pequenos pássaros que iam e vinham, como se a provocar o velho felino. O velho lia um livro, sentado num banco, a um canto, protegido do sol. Tudo parecia sob controle.

Mesmo assim, as enfermeiras passavam e verificavam os senhores e senhoras, ocupados em seus afazeres simples. Elas, na verdade, iam ver se algum deles – e um, em especial - não estava aprontando alguma. Quando todos estavam no pátio, as coisas ficavam mais calmas e controladas.

Quando todos estavam presentes na casa, é que as aprontadas do velho aconteciam. Em semanadas frias ou chuvosas, sempre acontecia alguma aparição inusitada. Ele parecia se divertir ao ver a mulherada em polvorosa. Uma vez, comprou um ratinho branco e soltou no corredor, para ver a reacção do gato. A reacção foi pior das mulheres que do gato, que se divertia a valer, em caçada ao pequeno roedor, enquanto as mulheres gritavam e corriam pelos corredores, ou subiam sobre as poltronas da sala de visitas.

Outra vez, o gato encontrou um pequeno lagarto no jardim e o trouxe para dentro, depositando-o aos pés do velho, na hora da refeição. Nova gritaria, quando o lagarto deu por si e saiu correndo, com o gato em perseguição desgovernada entre os pés dos comensais no salão principal.

As enfermeiras mais jovens já haviam se acostumado a estes acontecimentos, severamente condenados pela directora, mas tolerados por elas, já que eram inofensivos e as divertiam, quebrando a monotonia da casa de descanso.

Quando era acusado de colocar em risco o sossego e saúde dos outros residentes, o velho respondia com um sorrisinho de canto de boca, ou uma larga gargalhada, mas nunca com uma explicação.


Da janela do quarto, o velho observava o portão principal. O porteiro era metódico nos horários e não abandonava o posto facilmente. Todas as entradas e saídas eram devidamente registradas, de modo que a direcção soubesse, sempre, quem saía e quem entrava no recinto. Em todo o tempo em que se encontrava na casa de descanso, ele havia recebido uma única visita. Um homem havia vindo, há algum tempo atrás, conversar com ele e não ficou mais que uma hora em reunião privada.

Devido a avançada idade da maioria, as saídas para fora do recinto eram somente autorizadas se fossem acompanhadas, por isso o grupo sabia que, uma vez por semana, às quintas-feiras, uma van os levava ao centro da cidade, ao shopping center, ao cinema, ou a algum outro lugar previamente combinado. O velho não costumava acompanhar os outros nestas viagens. Preferia ficar ocupado com seus hobbies e com o acesso quase livre ao computador, por um tempo mais longo.


Nestas ocasiões, em que a casa de descanso ficava mais calma, o velho aproveitava e passava a tarde inteira trancado no quarto ou na sala do computador. Foi numa destas tardes, que a enfermeira viu, “en passant”, o que aparecia na tela do computador. Ela, que achava que o velho apenas se divertia lendo ou pesquisando alguma coisa na internet, ficou surpresa ao ver que estava em “conversa” no Messenger.

Ela parou, intrigada, à porta, mas logo foi notada pelo homem, que desligou imediatamente e saiu da saleta, sem dizer uma palavra, nem olhar directamente à ela. Pigarreou ao passar pela porta e assobiou uma canção conhecida sua.

A enfermeira ficou ali, parada, a olhar a tela vazia do computador, imaginando quem poderia ser o contacto do velho, com o mundo lá fora…

sábado, 5 de dezembro de 2009

Pandemónio (na casa de descanso) - Parte 5

As luzes da sala de espera, próxima ao portão 22, focavam apenas uma única pessoa, ou assim parecia ao homem, que sentado, lia um jornal. Aqueles olhos azuis fingiram não ver o seu olhar cruzar a sala momentaneamente, mas tornaram a observar o homem, assim que este voltara a baixar a cabeça.

Já na fileira de quatro lugares, no meio de um voo lotado, o homem observava as pessoas passarem e se acomodarem, algumas em silêncio, outras em verdadeira balbúrdia, sorrindo e conversando alto. Imediatamente colocou os fones nos ouvidos, para isolar-se do alvoroço geral. Logo o avião estaria no ar, o tumulto mais controlado e ele poderia fechar os olhos e fingir estar dormindo, para não ser perturbado.

Olhares iam-se, indiferentes, procurando o assento certo. Um rapaz sentara-se na poltrona da ponta, deixando um lugar vago entre eles. O homem desejou que o lugar ficasse vago até o destino. Foi quando ele viu aqueles olhos novamente. As luzes pareceram apagar, outra vez, excepto por aquela sobre a cabeça bem desenhada da mulher parada, a olhar o lugar vago a seu lado, com uma expressão divertida.

- Sente-se aqui. Sente-se aqui - desejava ele, em silêncio e com veemência, tentando não parecer desesperado demais, pela expressão de sua face.

Aquele olhar pousou sobre ele e a mulher pediu licença ao rapaz sentado próximo ao corredor. O homem sentiu seu coração dar um salto.

- Com licença…

Ele ouvia a frase repetida, mas era consigo que ela falava agora. O homem quase não acreditava na sua sorte. Não lembra como começaram a conversar. Só lembra que a noite foi curta demais. Não pararam de falar a noite toda. Nunca um voo pareceu tão rápido. Poucos minutos antes da saída, ele ouviu:

- Você tem endereço de Messenger? (Quem não tinha?) Escreva aqui, por favor.

Ele escreveu, com cuidado, caprichando na caligrafia para não deixar dúvidas na sequência de letras. Num pedacinho do mesmo papel, rasgado em rectângulo, numa caligrafia miúda e rebuscada, recebeu o endereço dela. Mesmo que nunca mais se vissem ou se comunicassem, aquela era uma prova que ele não imaginara aquela viagem tão incomum. Tiveram que se separar, pois cada um tinha um destino diferente. Ele ficava, ela partia para um próximo destino. O voo de conexão já estava em vias de embarque.

Se despediram às pressas, sem aperto de mão, sem nada mais que um simples adeus, meio gritado, com um rápido olhar por sobre os ombros, enquanto os passos apressados sumiam à distância. O homem apalpou o pedacinho de papel, dobrado em dois, no bolso, com uma afeição que há muito não sentia.

Ao sair pela porta giratória, o mundo pareceu bater-lhe de frente, à face, com a frieza do ar de inverno e da realidade, vindos, sem piedade, do lado de fora…


O velho olha o gato deitado, a lhe observar com atenção, mas sem se mostrar ansioso a sair do conforto da almofada, sobre a qual se encontrava a descansar. Ele coça o pescoço do amigo, que lhe retorna o carinho com um ronronar de satisfação. Olha, com uma pontinha de tristeza, para a caixa em cima da escrivaninha e pensa que e enfermeira-chefe não voltaria a buscar o presente que ele havia-lhe oferecido.

Ele se adianta e abre a pequena caixa de madeira, retirando dela um objecto embrulhado, cuidadosamente, em um pano de cetim roxo. Dele, desenrola um deck de cartas, marcadas pelo uso. Ele estende o pano sobre a escrivaninha e embaralha as cartas, distraidamente, várias vezes. Neste momento, a porta se abre e ela entra.

- Desculpe por não vir antes. Não foi de propósito… muita coisa para fazer…

O gato espreguiça-se sobre a almofada, enquanto o velho se volta, com o deck de cartas na mão. Ela desculpava-se, por educação, mas ele já havia-se esquecido porque tinha estado triste. Ela tinha o efeito de lhe curar as dores da alma, pela simples presença, que ele estimava tanto.

- Sente-se aqui – disse-lhe ele, apontando para a cadeira à escrivaninha. Vou-te ensinar a jogar estas cartas. Gostaria que aceitasses o presente e as lições…

Ele buscou um livro num armário e o colocou sobre a mesa.

- Em caso de dúvidas, nunca tenha medo de consultar o manual…

Ele dizia aquilo com uma naturalidade e tranquilidade, que ela admirava. O homem ensinou-lhe a embaralhar e dispor as cartas no jogo e pediu-lhe para puxar uma carta do meio do monte disposto em leque aberto, colocado no centro do pano estendido na escrivaninha.

Ela puxa uma carta, franze o cenho e olha para o velho. Uma sombra passa à luz dos seus olhos. Ela tenta não se afectar, mas já havia sentido o efeito que a representação de um esqueleto com uma foice na mão provocara em sua percepção. A figura não causou tanto desconforto, quanto o nome da lâmina representada. Com a mão trémula, ela hesita em continuar e solta a carta sobre a escrivaninha.

- Desculpe. Eu não consigo fazer isso. Tenho medo do que possa ver. Essas coisas me assustam.

Ele percebeu que ela falava com sinceridade. Olhou com complacência para a mulher, que se transformara numa menina amedrontada, recolheu a carta e disse, devagar e firmemente:

- Assim como muitas atitudes e pessoas, esta carta é mal compreendida. Apesar do nome, no tarot, esta carta significa uma grande mudança. É preciso deixar umas coisas para trás, abandonar certos hábitos, para que outros nasçam. Mas deve-se estar preparado para esta transformação. É como se fosse a alegoria da Fénix: das cinzas de uma, nasce a outra, rejuvenescida e pronta para enfrentar novas e radicais mudanças. Não tenha medo. Esta carta é muito positiva!

Ela olhou-o, com cuidado, tentando estudar suas expressões, tentando ver se ele falava a verdade. Ele parecia de um mestre, paciente e sábio, tentando mostrar a verdade à sua pupila. O músculo de sua testa, entre os olhos, relaxou um pouco. O velho, então, sorriu.

- Sabendo usar as cartas, te deu alguma vantagem? Foi mais fácil viver, sabendo que podias contar com um conhecimento que nem todos possuem? Pode-se achar a felicidade, procurando nas cartas?

Ela agora parecia uma menina curiosa e ávida por respostas, que ele não havia se acostumado a dar, em todo o curso da vida. Mas ele sabia que se não fosse a ela, jamais se abriria novamente. A mulher fingiu que não percebeu que ultrapassava uma linha limítrofe entre o respeito e a intimidade. O gato semi-cerrou os olhos e levantou as orelhas, observador que era e conhecedor dos hábitos do velho.

- As coisas não funcionam assim tão fáceis. Não se tem vantagem por saber ler as cartas. Eu usei pouco este conhecimento em meu favor. Minha intenção era compreender certos mistérios e não ser completamente surpreendido em algumas ocasiões. Mas eu também ajudei outras pessoas… não muitas… Algumas tem medo do que vêem.

Ele olhou fixamente nos olhos dela. Será que ela estaria preparada? Ela parecia hipnotizada pelo olhar do homem. Por fim, ele disse:

- Eu fui feliz com tão pouco. A vida não me deu muito… em relacionamentos, em amor, em prazer… e, no entanto, eu fui feliz. Algumas coisas parecem ter acontecido tarde demais, no tempo… Mas... não, eu não vivi uma vida morna. Tudo que eu fiz, foi muito intenso. Eu vivi sempre com muita paixão pelas coisas que fazia e pelas pessoas que eu amei. Se eu fui tão feliz com tão pouco, o que poderia ter sido, se tivesse um amor verdadeiro? E se tivesse recebido mais? Teria, eu, sido mais feliz? Não sei dizer…

A enfermeira-chefe compreendeu o que o homem dizia. Só não esperava pelo próximo passo dele.

- Esta é a carta que deves temer… e, esta, a combinação mais perigosa de todas…

domingo, 29 de novembro de 2009

Pandemônio na casa de descanso - Parte 4

A directora vinha saindo do gabinete, quando viu a enfermeira-chefe passar de braços dados com o velho inquilino. Os outros olhos na sala pousaram sobre os dois, ao passarem tranquilos, com o gato acomodado confortavelmente no colo do velho. As mulheres inspiraram o ar e iam estufando o peito, num sinal de recomeço de falação, quando a directora, sábia e perceptiva, chamou a enfermeira. Esta deu uma batidinha leve no braço do homem e deixou-o ir sozinho para seus aposentos. Virou-se, simulou uma expressão tranquila, mesmo sabendo que iria ter que ouvir outro sermão. Na sua mente, ela pediu, aos Céus, paciência para aguentar as batalhas daquela vida…

- Venha comigo!

A voz da directora era autoritária, mas não demonstrava irritação. Era mais um apelo, desta vez. A enfermeira-chefe conhecia as nuances de humor da mulher. Sabia quando devia estar armada e quando devia ouvir. Aparentemente, desta vez, ela precisaria ouvir, apenas.

- O que se passou lá fora? Nós havíamos conversado sobre isso, antes. Esta preferência e esta intimidade entre vocês não pode continuar assim tão aberta. Pense nos outros que vivem aqui. Já me basta ter que ouvir as “gralhas” a reclamar, todas, ao mesmo tempo, por qualquer coisa. Se elas tiverem razão, será pior ainda…

- Eu sei. Não voltará a acontecer. Eu tentava conseguir uma explicação para a atitude dele, mas não consegui nada – defendeu-se a enfermeira, mantendo os olhos concentrados em suas próprias mãos. Ela não conseguia olhar a outra de frente, quando se sentia culpada.

- Estou cansada. Por favor, não torne os meus dias piores que estes últimos. Pode sair agora. Está na hora de servir a janta e eu espero que este homem esteja por lá. Cuide para que isso aconteça, sem muito transtorno.


O velho estava à janela, quando ela bateu, levemente, à porta do quarto. Ela entrou e ele ainda levou uns segundos para olhar a mulher que estava parada no meio do quarto a lhe observar. Ele notou uma ruga entre os olhos dela. Sabia que aquela expressão de preocupação era por sua causa.

- Tenho uma coisa para te dar. A voz do velho era baixa, meio rouca. Ela não sentiu aquela ironia de minutos atrás, nem qualquer emoção, além da seriedade de agora.

- Está na hora do jantar. Gostaria muito… Ela parou no meio da frase. Ele falou “para te dar”? Seria um presente?, pensou ela. A menina dentro de si aflorou como um raio. Ela olhou para o homem, com uma expressão desconcertada.

O homem percebeu um certo desconforto na situação. Pigarreou e disse, apontando para a caixa, em cima da escrivaninha:

- Quero que fique com isso.

Foi então que a enfermeira-chefe percebeu o objecto para o qual o velho apontara. Em sua memória, os dias passaram em alta velocidade. Ela lembrou do dia que viu, pela primeira vez, a pequena caixa de madeira, decorada com estrelas e luas, em um fundo azul-escuro.


Ela havia entrado no quarto, para chamar o amigo a sentar-se na sala de refeições e encontrou-o sentado, de costas para a porta. Ela chegou a ouvir uma gaveta fechar-se às pressas. Ele suspirou, levantou-se devagar e fitou-a com um olhar penetrante. Parecia sério e preocupado.

- Vamos jantar? - perguntou ela, tentando parecer naturalmente alheia ao momento embaraçoso que se sucedia.

Ele não respondeu. Continuou a olhá-la, com aqueles olhos que nunca pareciam sorrir. Por fim, estendeu-lhe a mão. Ela deu-lhe a sua, quase por instinto. Ele a puxou, levemente, trazendo-a para mais perto de si. Ela sentiu uma espécie de tontura. Ele moveu-se um pouco para o lado e colocou-se à sua esquerda. Virou-se para a escrivaninha, meio hesitante, suspirou e tomou uma decisão. Ela estava, ainda, meio incerta do que estava se passando.

Ele, então, girou uma chave na gaveta do meio e abriu-a, devagar. Parecia que curtia o momento, a excitação e o absurdo do que acontecia, sem que ela esperasse. Puxou-a para perto do móvel, de modo que ela pudesse ver melhor o que havia lá, mas sem colocar a mão dentro da gaveta.

Uma caixa azul, decorada com estrelas e luas amarelas, jazia por cima de um papel dobrado. Ela quase percebeu um timbre no avesso do papel, que estava sob a caixa.

O velho pegou a caixa e colocou-a em cima da escrivaninha, fechando a gaveta logo em seguida. Ela se aproximou, com cuidado, como se fosse invadir uma caverna escondida, em algum lugar secreto do mundo do velho, que continha uma arca de tesouro. Ele levantou, devagar, a tampa. Seus olhos azuis brilharam ao olhar dentro da caixa.


- Prometi à directora que lhe convencia a jantar agora, sem criar muito transtorno. Disse ela, voltando ao presente. Não sei se devo aceitar a sua oferta. Ela misturava os pensamentos e assuntos, em frases que iam aparecendo, sem controle, quando ficava nervosa.

Ele levantou a mão. Ela sabia que devia parar de falar.

- Vamos jantar, agora. Depois conversamos sobre isso. Se eu for agora, prometes que aceitas o presente?

O olhar dele era quase uma súplica… ou um apelo. Podia haver qualquer coisa escondida por trás das intenções do velho, pensou ela, desconfiada.

Mesmo assim, ela fez que sim, balançando a cabeça. Em seguida, tomou a mão do velho e se dirigiu para a porta, puxando-o atrás de si, com delicadeza.

domingo, 22 de novembro de 2009

Pandemónio (na casa de descanso) - Parte 3

- A senhora sabe a condição que ele impôs, quando entrou nesta casa a primeira vez. Nós concordamos… - tentou a enfermeira-chefe interpelar.

- Quem ficou responsável por ele, em primeiro lugar? - interrompeu a directora, seca e decididamente.

A enfermeira-chefe suspirou. Ela sabia que a directora não a ouvia, quando estava cega e ensurdecida pela ira. Chegava a ser intransigente, por vezes, e de nada adiantava tentar demovê-la, a não ser pelo bom senso, que nem sempre aparecia.

Seus olhos azuis baixaram e ela olhou para as mãos – brancas e delicadamente longilíneas - como se procurasse um argumento convincente, sem ofender a autoridade da enérgica mulher, sentada à sua frente. Ela sabia que a responsabilidade era sua, pelo bem-estar do velho. Ela havia assumido a sua parte do contrato, quando o homem chegara àquela casa, com uma única condição, que fora aceita pela direcção, depois de alguma argumentação.

A directora e o velho inquilino tinham muito em comum: eram ambos muito arraigados às suas próprias convicções e os termos eram intransponíveis e irredutíveis, de ambos os lados. Enquanto o velho queria sua privacidade intocada, a mulher queria o controle da situação, a qualquer tempo. Por fim a mulher cedeu. O homem vencera a batalha, com um argumento sem precedentes. Dispôs-se a pagar a anuidade de uma vez só e acrescentou um extra, pela sua privacidade e com a condição de não ser perturbado, quando precisasse estar só, por períodos mais longos. Esta condição preocupou a directora, mas não teve o mesmo efeito na enfermeira-chefe, que se divertiu ao ver o homem dobrar a administradora, com uma barganha daquelas. Ela não esperava, porém, que os tais períodos mais longos fossem durar tanto quanto três dias, como desta vez.

- Eu devia ter percebido que o dinheiro, que nós tanto precisávamos, iria me trazer dores de cabeça. Nada vem assim tão fácil, dizia a directora, à beira do histerismo.

A enfermeira-chefe escondeu um risinho, ao olhar para a austera mulher, que começava a cair na realidade. Claro que nenhuma caridade viria daquela situação. Ela sabia que a condição imposta pelo homem tinha suas dualidades, mas o dinheiro era tão necessário para fazer os pequenos reparos na casa… a pintura havia ficado uma maravilha, pensou a mulher, com os olhos distantes e sem prestar verdadeira atenção ao que a outra falava…

- … se apegaram demais! É contra a ética desta casa! E os outros?

A enfermeira-chefe levantou nos olhos e tentou captar a essência daquela conversa. O que a mulher estava dizendo?

- Ela está me acusando? pensou a enfermeira. Não consegui pegar o começo da frase e não tenho coragem de fazê-la repetir. Ela me mataria por estar falando este tempo todo, sem ter a minha atenção… Melhor me concentrar.

- Dois anos! Dois anos foram suficientes para me envelhecer os dez que eu sinto pesar sobre minhas costas. Os tempos são difíceis, mas isto parece um pacto de morte!

- Ela está exagerando… pensou a enfermeira. Dramática, como sempre. Jesus! Me tire daqui… Ela já não ouvia a conversa-sermão da outra…

Quando saiu do gabinete da directora, a enfermeira-chefe estava cansada e drenada de forças. Mesmo assim, tinha prometido ir ao jardim conversar com o velho. Ela tinha uma simpatia pelo homem, que tanto deixava as outras completamente loucas, quanto fazia a vida da administradora uma carga que ela custava carregar. Mas entre ela e o homem havia uma certa cumplicidade. Desde o início, eles haviam sido amigos. Talvez porque ela respeitava o espaço que o inquilino criou à sua volta, talvez por lembrar-lhe alguém de quem gostava muito. O velho era um mestre para ela. Ela, talvez, fosse o único elo com a realidade, que ele ainda mantinha.

Ao caminhar para a porta que dava para o jardim, ela pensou que talvez estivesse errada a este respeito. Certa vez, havia ficado até tarde arquivando os papéis na sala da directora e viu luz na saleta onde havia o computador. Apesar da maioria dos inquilinos serem idosos, alguns mantinham correspondência, através de e-mail com seus parentes ou amigos. Alguns aprenderam a usar o computador após chegarem àquela casa. Apesar de cansada, foi verificar quem estava no computador aquela hora. Não reconheceu os toques subtis nas teclas, até chegar à porta da saleta.

Ela viu o velho digitando algo, com uma boa destreza manual e até uma certa intimidade com a máquina, apesar da idade. Não castigava as teclas com força, como alguns faziam. Os toques não eram rápidos demais, nem tampouco lentos a ponto de parecer um “catar de milho”. O velho conhecia bem o teclado.

Ela pigarreou baixinho e percebeu que o velho parou de digitar. Ele estava bem à frente do monitor e tratou de fechar o arquivo ou o que quer que estivesse fazendo. Ela sentiu que invadiu um território não permitido. O velho fechou o programa e se virou. Ela sorriu, meio sem jeito. Ele levantou-se e caminhou na direcção dela, olhou-a nos olhos e disse, baixinho:

- Existem horas em que é melhor não dizermos nada.

Colocou uma mão leve no ombro da mulher, ao passar por ela e saiu, sem olhar para trás. Ele nunca olhava para trás… pensou ela.


Da porta, ela viu a bizarra figura, sentada com óculos escuros, a acariciar atrás das orelhas do gato. Arrastou levemente os sapatos, para se anunciar, sem interromper a intimidade dos dois. O gato logo levantou a cabeça e olhou para a entrada. O velho não se mexeu. Sabia que a mulher viria conversar com ele, mais cedo ou mais tarde.

- Acabo de ouvir um longo sermão. Ela não dizia aquilo com indignação. Era como se contasse uma história, sobre um acontecimento banal.

- Sinto muito. O homem não exprimiu emoção, nem se virou para olhar para ela, ao dizer aquilo.

- Não, não sente… Ela sorriu, ao fazer a constatação e viu que ele riu também.

- Não, não sinto… mas é educado dizer que sinto muito. Ele se voltou para olhar a mulher.

Ela era jovem, talvez beirando os 35 anos. Não tinha uma beleza que o faria virar a cabeça, quando passasse por ele na rua, mas tinha os olhos de um azul profundo, que pareciam pedir socorro. Ele adorava olhar para aqueles olhos. O velho corou um pouco e ela percebeu que por trás dos estranhos óculos, ele a observava com simpatia.

- Vamos entrar? Está esfriando. Ginger já está meio encolhido, mentiu ela e se levantou.

Estendeu a mão ao velho e este cedeu, levantando-se do banco, na tarde que já esfriava lentamente.

O gato pulou à frente dos dois e correu para a porta de entrada, com a trela arrastando atrás de si. Na varanda, parou e esperou pelos dois, que vinham de braços dados. Entrelaçou-se nas pernas do velho e a mulher se abaixou, retirou a trela do corpo do animal e deixou-o livre. O velho se abaixou e tomou o gato no colo. O bichano esfregou a cabeça afectuosamente no peito do homem. A enfermeira-chefe coçou a cabeça do bichinho e este retribuiu, ronronando de satisfação.


- O senhor me deve uma satisfação, não deve? Ela sabia que a pergunta era meio retórica, somente.

- Ficarei feliz em satisfazê-la, disse o velho… mas não sei se serei capaz…

Ela riu. Sabia que aquela conversa estava encerrada. Mas, para sua surpresa, o homem disse:

- Venha. Vou-lhe mostrar uma coisa…

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Pandemônio (na Casa de Descanso) - Parte 2

Lá fora, o velho usa um jornal seco, que apanhara de cima de uma mesa na varandinha, para secar o banco de madeira do pátio, onde iria se sentar logo em seguida.

O gato, percebendo que o chão está molhado, salta sobre o banco e senta-se sobre as patas traseiras, ao lado do homem, atento aos movimentos dos pequenos pássaros, que voam de um galho ao outro do grande flamboyant e, por vezes, brincam entre as flores cor de magenta da buganvília mais adiante. Os olhos atentos do felino estão no movimento das aves, mas suas orelhas giram na direcção do homem sentado, absortamente, a olhar na mesma direcção que ele, com os olhos aparentemente vazios de emoções.

O velho sacode a cabeça levemente e sorri para si mesmo, discretamente. Ele lembra que a enfermeira-chefe costumava dizer que os seus olhos nunca sorriam.

Se ela soubesse… O homem apalpa alguma coisa no bolso esquerdo da calça e meneia, um pouquinho, a cabeça. A mesma canção, que já havia mexido com suas memórias, recomeça a tocar em sua cabeça…

I heard telephones, opera house, favourite melodies
I saw boys, toys, electric irons and TV’s
My brain hurt like a warehouseit had no room to spare
I had to cram so many things to store everything in there*

O velho tira um pedacinho de papel do bolso. Ele acaricia o papelzinho dobrado e amarelado pelo tempo. Com mãos um tanto trémulas, desdobra-o e observa a caligrafia miúda, quase rebuscada. Teria sido, a pequena mensagem, escrita para impressionar?

…And all the fat-skinny people… and all the tall-short people…*

Um nome, escrito em um pedacinho de papel, guardado com tanto cuidado, por tanto tempo… Uma memória de um único encontro e uma mensagem simples. Simples como a sua vida havia sido. O velho volta a dobrar, em dois, o papelzinho amarelado e a guardá-lo no bolso.

… And all the nobody people and all the somebody people…*

A canção continua a repetir, sem parar, na sua cabeça. Ele lembra do dia em que entendeu claramente o sentido daquelas palavras, colocadas tão simples e sabiamente na letra da canção. Lembra como repetiu aquela frase, inúmeras vezes, como se tentasse interiorizar a força e a veracidade de tão manifesta declaração.

…I never thought I’d need so many people…*

Ele percebera como aquela canção o fazia abominar esta dependência, que ele agora sentia, mais do que nunca antes. E, no entanto, a melodia tão bela e, ao mesmo tempo, tão desesperada, o fazia voltar no tempo e lembrar de coisas que o deixavam com vontade de chorar. Seus olhos perdiam-se no vazio. Ele já não estava interessado nos sons e os acontecimentos à sua volta. Sua mente viajava no tempo, para trás e para frente…

As luzes da sala de espera, em frente ao portão 22, de repente, pareceram apagar, excepto por uma: aquela que estava acima dos olhos azuis, que fingiam não ver o homem sentado, a ler um jornal e a demonstrar uma certa inquietação. Os olhos da alma do homem perceberam a luz do outro lado da sala, antes que ele levantasse a cabeça. Ao olhar naquela direcção, pensou, consigo mesmo, em como a vida, às vezes, podia ser injusta. Uma pessoa tão linda e não ia ter a oportunidade de conhecer. Ele, que não tinha o hábito de conversar facilmente com estranhos, daquela vez, não podia estar mais enganado…


Os olhos, por trás dos estranhos óculos escuros, momentaneamente entristeceram. O velho lembrou-se, com uma certa melancolia, de outras pessoas e sentimentos… Não sabia dizer se sentia saudades do que passara. Pode-se sentir saudades dos erros do passado? Nostalgia ou simples auto comiseração – que importava agora, se sua alma se sentia abraçada por um sentimento tão antagónico e sedutor? Era quase confortável experimentar, pelo menos, aquela sensação de tristeza, misturada com saudades de uma certa pessoa, que lhe deixara, de concreto, somente o pedacinho de papel, agora já amarelado pelo tempo e guardado com extremo cuidado em seu bolso.

O gato, sentado ao seu lado, percebeu uma ponta de angústia passar pelo semblante do homem e, chegando mais perto, deu uma cabeçada amiga no velho companheiro, nostalgicamente sentado, em silêncio, ao seu lado. O homem levou a mão à cabeça do felino e acariciou-lhe ternamente. O ronronar de aprovação fê-lo sorrir, apesar da estranha sensação que experimentava, naquele momento.

- Sempre um amigo… sempre atento às mudanças do meu humor…, disse baixinho o homem.

O gato moveu-se e apoiou as patas dianteiras sobre a perna do velho, pedindo mais um pouquinho de carinho e atenção, como se soubesse que esta atitude tinha o efeito exactamente contrário da intenção. O receptor se comprazia em dar ao outro o prazer da afeição que recebia… e ronronou de satisfação.


Lá dentro, as mulheres iam pouco a pouco se dispersando entre seus afazeres e outros interesses momentâneos, deixando de se preocupar com o homem sentado do lado de fora, que não lhes dava ouvidos, nem às suas lamúrias e protestos. Elas sabiam que seria inútil reclamar a ele, pois não lhes dava atenção, especialmente quando todas falavam ao mesmo tempo, facto que o velho ostensivamente abominava. Ele sabia que a directora servia de suporte às “aves palradoras”, pela sua simples presença. Elas usavam as parcas ocasiões em que a mesma se encontrava por perto, para instilar seus venenos e reclamações, completamente ignoradas pela paciência do velho.

Como a directora ia, agora, se ocupar com a enfermeira-chefe, a força das outras se dissolvera no ar, como nuvens ao vento. O som das vozes estridentes foi-se apagando e elas voltavam à sala de TV, ocupadas com seus crochés, revistas de fofocas e jogos de dominó.

Lá fora, o velho dá um suspiro de alívio, ao sentir que as mulheres se calavam. O gato se aninha ao seu lado e se prepara para uma tranquila soneca. O velho observa o felino a proceder com suas lambidas rápidas pela pelagem do dorso, barriga e patas, como se precisasse tomar um banho antes de dormir.


- Vamos ao meu gabinete, disse a directora à enfermeira-chefe. Precisamos conversar… e muito!

sábado, 31 de outubro de 2009

Pandemônio (na casa de descanso) - Parte 1

Correria pelos corredores da Casa de Descanso… As enfermeiras, desesperadas, batem à porta, insistentemente, com receio que, desta vez, alguma coisa séria tenha acontecido de verdade.

A janela está trancada, com as pesadas cortinas completamente fechadas, de modo que não se pode ver o que acontece lá dentro. Parece que tudo está às escuras. Nem o gato mia, apesar das batidas insistentes.

As enfermeiras ganham uma trégua momentânea… A directora fora chamada. Do meio da sala principal, ela exige respostas.

Há três dias que não se sabe o que acontece no quarto. Há três dias que o homem não sai para fora dos aposentos. Seu velho e companheiro gato está preso lá dentro com ele e nenhum som se consegue ouvir, vindo do pequeno apartamento, provido somente de uma saleta, com uma poltrona e uma escrivaninha à janela, um quartinho com cama e mesinha de cabeceira e um pequeno banheiro com chuveiro. Nada ali é luxuoso, mas confortável o suficiente para uma pessoa que já vive sozinha a sua vida pacata e, quiçá, repleta de recordações.

A directora pergunta como as enfermeiras deixaram de informar o acontecido antes, mas aparentemente ninguém se deu conta que o velho não aparecera às refeições, por tanto tempo. Estas eram religiosamente servidas a cada três horas – duravam cerca de uma hora, cada - e ninguém ousava se atrasar, pois a rotina da cozinha e copa não era quebrada por nada, naquela casa. Quem não estivesse à mesa, tinha que esperar pela próxima ocasião. As enfermeiras não costumavam forçar a presença dos residentes a estas reuniões, pois muitos deles não eram habituados a mais que três refeições por dia. Pular uma ou outra, já era rotina aceita, pois, entre as principais, sempre era servido café e chá com pãezinhos, biscoitos ou bolinhos, sempre acompanhados de geléias, margarina e manteiga, queijo magro e, vez ou outra, algum presunto de frango também.

As moças tinham ordens para manter os alimentos com colesterol baixo sempre à disposição, mas deviam evitar os mais gordurosos – estes, veementemente proibidos pela directora.

Uma das enfermeiras explica que, como a chuva daqueles dias os impedia de ir ao pátio jogar ou tomar sol, as idas e vindas à sala de TV e jogos não eram cronometradas, nem controladas. Com tantos outros afazeres e tantos outros velhinhos para cuidar, elas não notaram a falta…

…Ou notaram, mas não acharam que fosse algo grave ou digno de nota. O velho não é uma pessoa fácil. Muitas vezes era mais um incómodo do que uma simpatia. As enfermeiras o evitam e, na maioria das vezes, os outros moradores da casa também, especialmente quando ele resolve que é tempo de se isolar. Pelo jeito, agora era uma destas ocasiões.

Sabia-se, porém, que o homem não havia saído, pois o portão era vigiado 24 horas por dia e não havia tido nenhuma saída registrada nestes últimos dias.

Mesmo assim, a directora está apreensiva. Uma das enfermeiras mais antigas da casa, a enfermeira-chefe, já acostumada com estas viradas de humor do velho, não se mostrava tão perturbada quanto as outras, mas sabia que ia ser responsabilizada pela negligência. O olhar da directora, entre preocupada e furiosa, cruza com o seu e ela percebe que vai ser atacada.

Sem se colocar na defensiva, a enfermeira se aproxima e se prepara para ouvir o sermão. O velho não aparecia às refeições já há algum tempo e ela sabia que esta, provavelmente, seria a primeira interpelação da directora.


- Água! Água! – grita uma voz feminina, vinda do corredor.


Os passos apressados da mulher ecoam pelo corredor e paredes. Todos olham para aquela direcção, enquanto a enfermeira-chefe solta um contido suspiro de alívio. A directora se vira e corre ao encontro da outra, esquecendo, momentaneamente da mulher que se encontrava à sua frente, segundos atrás. As outras seguem a austera administradora da casa, com a mesma pressa e um misto de curiosidade e apreensão.

Os homens se olham, dão de ombros e voltam para a sala de TV. Ia começar o jogo de futebol e eles queriam assistir…

- Água….ouvi o som de água. Parece ser o chuveiro! – disse, por fim, a esbaforida mulher, que aparece no fim do corredor e que logo percebe que já deveria estar indo na direcção contrária, pois as outras a atropelam na direcção do quarto do velho.

A mulher gira sobre si mesma, perde o equilíbrio, mas nem cai, pois uma outra engancha-se ao seu braço e a arrasta de volta pelo corredor adentro. A gritaria recomeça. Aquele mulherio todo falando ao mesmo tempo, transformam a casa de descanso num pandemónio. Ao chegarem em frente à porta trancada há três dias, a directora levanta a mão e pede silêncio. Como por mágica, todas obedecem e se calam.

- Ouçam! – disse a mulher, com autoridade.


O som meio abafado do miado do gato é ouvido pelas mulheres. Não se ouve, porém, o som de água a escorrer.

A directora suspira. Ela levanta a cabeça, estufa o peito e bate à porta. As outras percebem que ela tenta manter a calma, mas que isso é um esforço muito grande para aquela mulher, tão acostumada aos insólitos acontecimentos na casa de descanso.

Lá fora a chuva parece ter, finalmente estiado. Uma leve garoa ainda cai, insistente, hora sim, hora não, mas o tempo já apresentava melhora, depois de quase duas semanas ininterruptas de chuva e tédio, na pacata cidadezinha e na grande casa de longos corredores, cheios de diminutos apartamentos individuais, como num pequeno hotel.

A enfermeira-chefe olha, distraída, para a janela, através da qual vê uma fina nuvem de neblina cobrir os montes avistados não muito longe do lado leste da casa. Os sons das batidas da directora, à espessa porta de madeira maciça, vão se distanciando, como se ela já não fizesse parte daquele quadro bizarro. Ela se afasta do grupo e olha para fora, na direcção das montanhazinhas quase apagadas pelos tufos brancos de névoa, como se a formar uma delicada aquarela em branco e verde pálido, com uns leves toques de sépia, aqui e acolá.

De repente, com um leve click, mas sem pressa ou indelicadeza, a porta do quarto abre.

A directora ainda estava com a mão levantada, como se fosse bater novamente, parada em frente a um homem semi-calvo, com os ralos cabelos cuidadosamente penteados para trás, vestido com uma camisa branca de punhos abotoados, uma calça cinzenta e confortáveis sapatos, recentemente retocados de graxa preta, à moda antiga. Aparentava uns 70 anos, mas podia-se enganar facilmente pela cor dos cabelos, que ainda mantinham um pouco do castanho claro natural, com as têmporas rajadas de fios brancos. À mão do homem, a trela vermelha terminava em volta do peito e do pescoço do gato malhado de amarelo e ocre, com o peito e as patas em branco, como se calçasse meias três quartos brancas. O velho usava um par de óculos escuros, não condizentes com sua idade, mas parecia altivo e alheio ao tumulto do lado de fora do quarto.

As mulheres olhavam boquiabertas para a tranquilidade ostentada pelo homem e para o comportamento altivo do felino atrelado ao seu lado. O homem as olha sem interesse e dá um passo na direcção da porta de saída, corredor afora, com o gato perceptivelmente atento a cada movimento seu.

- Bom dia, senhoras. Finalmente um lindo dia para um passeio, não? Vamos, Ginger. Vamos passear no pátio.

O gato grunhe e segue o velho com o mesmo passo, o rabo levantado e o caminhar tranquilo e altivo de um felino acostumado ao humano ao seu lado. Parecia que eles faziam parte de uma estudada peça de teatro, da qual os outros também participavam como elenco, mas que haviam sido tomados de surpresa, pelo improviso da situação acontecendo ali à frente deles.

A directora franze o cenho e toma um ar responsável e austero, preparando-se para dizer umas boas verdades ao homem que a deixara exasperada minutos atrás.

- O senhor deve pensar que tem um privilégio maior que as outras pessoas aqui dentro, disse a mulher. Não se faça de desentendido e me dê atenção! A mulher começava a perder a paciência.

O homem não se virou, nem parou, apenas assobiou uma velha canção que conhecia e que havia estado em sua memória, o tempo todo em que esteve ao chuveiro, nos minutos que antecederam aquela situação de anti-clímax, que agora pairava no corredor cheio de pessoas – a maioria ainda sem entender direito o que acontecera - da casa de descanso. Não demorou muito para que a balbúrdia recomeçasse, às costas do velho, para desespero da directora, cuja voz já não se ouvia no meio do burburinho das outras.

A enfermeira-chefe, quase alheia àquela agitação toda, olha, agora, de volta para dentro do edifício e esconde um sorrisinho de alívio, mesmo sabendo que a directora não vai lhe dar trégua, assim que a confusão acabar.

A dois passos da janela, a porta entreaberta do quarto revela o jeito metódico do velho viver. A cama está arrumada, com as cobertas esticadas, mas não a ponto de parecer intocada. Mais adiante, as roupas sujas repousam dentro de um cesto de vime, à entrada do banheiro, onde está também a caixa de areia do gato, limpa dos vestígios dos três dias de clausura dos dois. Alguns papéis empilhados em cima de uma pequena escrivaninha, com alguns lápis e pincéis dentro de um velho frasco de café solúvel, revelam que o velho tem seu próprio mundo e hobby. Não há um cesto de dormir do gato, mas a colcha da cama esconde dois travesseiros, lado a lado. A enfermeira-chefe conclui que não há necessidade de uma cesta de gato naquele aposento. A um canto, perto do pequeno guarda-roupa, um par de chinelos de dedo e um de ténis esperam a sua vez de serem usados novamente. Do lado oposto da cama, uma tigela de comida semi-consumida e outra com água limpa.

A mulher entra, abre as janelas, sem escancará-las, para arejar um pouco o ambiente e sai, fechando a porta atrás de si. Ela avista o velho a sair pela porta que dá para o pátio, com o gato ao seu lado e um batalhão de “aves palradoras” atrás do homem, que parece alheio a tudo, excepto ao gato que o acompanha. Atrás do grupo, vai a directora, com seus passos firmes, no alto do toc-toc de seus saltos de cinco centímetros. Ela diminui os passos, como se lembrando de algo, pára e gira sobre os calcanhares, a olhar a enfermeira-chefe que vem vindo pelo corredor, atrás de si.

- É agora! - pensa a outra.

domingo, 25 de outubro de 2009

Todos os sentidos

Eu ando pelas ruas,
Com os sentidos
- Todos –
Em alerta,
Percebendo os detalhes
Que vão passando
Pelos meus olhos,
Ouvindo os sons
De todas as fontes,
Aspirando os perfumes
De todas as eras,
Sentindo as águas
De todas as chuvas …
Eu ando pela vida,
Ouvindo as músicas
De todas as origens,
Provando os sabores
De todas as culturas,
Sentindo, na pele,
Os prazeres
De todos os amores,
E, no coração,
As emoções
De todas as paixões…
Eu ando
- Solto –
Pelo mundo,
Em terras
Que não são minhas,
Com gentes
De todas as raças,
Bebendo,
Em todas as fontes,
A sabedoria
Que me falta,
Para navegar
Os mares
De todos os oceanos.
Eu ando pelas noites,
Me cobrindo
Com o manto
De todas as estrelas,
Me guiando pela luz
De todos os luares,
Sonhando os devaneios
De todos os anseios,
Enquanto os dias
Não rasgam
A escuridão,
Com sua luz
Sorridente.
Eu ando pelos dias,
Sob o brilho
De todos os sóis,
Em campos de todas as flores,
Sentindo o perfume
De todas as essências,
Nos vapores
De todas as manhãs,
Enquanto os ventos
Espalham as sementes
De todas as plantas,
Nos jardins
De todos os Édens.
Eu ando entre os rostos,
A procurar a luz
De todos os olhares,
A vibrar
Na imensidão
Dos ruídos
De todas as vertentes,
Buscando respostas
Nas vozes
De todos os ventos,
Enquanto observo os detalhes
Despercebidos
A todas as preocupações
Quotidianas,
Que caminham
Ensimesmadas,
Entre o peso
De todas as responsabilidades,
Sem perceber
Que a beleza
Sente a falta
- Constante –
De observadores
Generosos…

Parceria (Para Natasha)

Uma janela
Que se abre
Para o mundo
E uma porta
Que se abre
Para a vida;
Leve como a semente
De dente de leão,
Solta no ar do verão
E forte como o aço,
Que sustenta as estruturas;
Suave como uma brisa
E vigoroso como um furacão;
É trovão no meio da noite
E sol depois da tempestade;
É rio que corre,
Para desaguar no mar
E semente que brota
Depois do inverno;
É dor que dói na alma
E paz que alivia
O coração;
É olhar que se perde
À distância
E os lábios que se aproximam
E se tocam
Na intimidade
Interminável
Da parceria;
É silêncio tranquilo na alma
E grito no coração;
É abrigo das tempestades
E chuva de verão
É choro de saudade
E abraço de reencontro;
É o fogo que aquece
E a brisa que refresca;
É centelha no olhar
E incêndio no peito;
É algema que prende
E chave que liberta;
É perdoar sempre
E magoar nunca;
É um segundo de angústia,
Que dura uma eternidade
E horas de alegria,
Que nunca duram o suficiente;
É o abraço que aquece na chegada
E aquele adeus que esfria a espinha;
É muita conversa
E muito silêncio;
São as canções compartilhadas
E as vozes em meio-tom;
É a dança em contratempo,
Atrapalhando os passos um do outro,
Numa brincadeira de dois;
É amadurecer juntos
E manter o coração de criança;
É tentar manter o sorriso,
Quando as lágrimas inundam a alma,
Com a dor do outro;
É aprender a voar,
Porque os pés
Já não tocam o chão;
É mergulhar num oceano
De incertezas,
Sabendo que vão navegar juntos,
Em qualquer tempo;
É segurar a mão do outro,
Quando o medo
Quer invadir os sentidos
E ser destemido
E avançar
Contra o desconhecido,
Porque a gente tudo pode
Quando está junto do outro…
É ser precioso,
Porque não pode ser diferente;
É ser gigante,
Porque não cabe ser pequeno;
Não é perfeito
E nunca vai ser,
Mas é paixão
E conforto,
Alegria,
Cumplicidade
E uma amizade terna
E eterna…

sábado, 10 de outubro de 2009

Platônico (Excerpt)

O meu amor
É um menino,
Construindo castelos
De areia
À beira do mar:
Mesmo que a maré
Destrua as fortalezas,
Sempre há disposição
Para voltar
A levantar paredes,
Antes que a noite chegue,
Antes que o sol
Se ponha,
- Em silêncio -
Dentro do oceano…
O meu amor é simples
Como as coisas simples
Devem ser:
Directo,
Leve,
Livre,
Despojado de posse,
Cheio de entusiasmo,
Repleto do poder
Da vida.
Assim como caminhar
Pelas madrugadas
Da cidade,
Com a cabeça
Cheia de músicas
E poemas
Nunca acabados,
Atento aos detalhes
De cada ruela,
Das flores
Nos jardins,
Das folhas secas
No Outono,
Meu amor observa
A vida,
Sem querer mudar
A intocável
Mutabilidade
Da natureza...

Hoje...

Hoje, eu sinto falta
Do vento
Que desalinha
Meus cabelos
E do perfume
De alfazema,
Nas urzes
Dos caminhos
Que teus pés
Trilharam.
Hoje, eu sinto falta
Do som
Das águas dos riachos,
A correrem,
Quase silenciosas,
Na direcção do mar
Do teu olhar.
Hoje, eu sinto falta
Do sorriso
Que é só teu,
- Aquela curva,
Suave,
No cantinho
Da tua boca –
Gravado,
Tão nitidamente,
Na minha memória.
Hoje, eu sinto falta
De ti,
Da tua voz,
Das tuas palavras,
Do teu breve contacto.
Hoje, eu sinto falta
De te ver,
De falar contigo,
De te sentir por perto,
De perceber
Que procuras, também,
Subtilmente,
Um sinal da minha presença.
Hoje, eu sinto
Uma saudade imensa
De ti!!!

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Janelas

Tu abriste
Uma janela
Na minha alma,
Donde sai
A musicalidade
Das palavras
E, também,
O silêncio
- Tranquilo –
Das cores.
Tu abriste
Esta janela
No meu peito,
Donde voam
As borboletas,
Que agitam
Minhas entranhas,
Quando vejo
Um indício
Da tua presença,
A movimentar
A placidez
Das águas
Do meu espírito
Inquieto.
Tu abriste
Uma janela
Nos meus sentidos,
Para ver,
Através dos teus olhos,
A magnitude
Da beleza
Que a vida traz,
Em cada pequeno
Detalhe,
Que, nem sempre,
Prende minha atenção,
Quando passo,
Apressado,
Em busca
De mim mesmo.
Tu abriste,
Sem querer,
Esta janela
Na minha alma,
Para me mostrar,
Que tudo aquilo
Que entra,
Traz, consigo,
Um pouco
De ti
Para junto de mim
E, o que sai,
Leva, consigo,
Um pouco
De mim,
Para junto de ti…

Efeitos

Tuas palavras
Tem o efeito
De pétalas
Macias,
A cair,
Suavemente,
No meu coração;
De borboletas
Inquietas,
Em voo,
A roçar
No meu estômago;
De música
Nos meus ouvidos;
De perfumes
Incensando
A minha alma…
Tuas palavras
Tem o poder
De alegrar
Meus sonhos,
De alagar meus olhos,
De lavar minha alma,
De mitigar minha dor
E preencher
Os espaços vazios,
Deixados no meio
Da minha solidão…
Tuas palavras
São alívio
Para minha febre,
Abrigo para meu cansaço,
Chuva fresca
Caindo, abençoada,
No calor do verão…
Tuas palavras
Alimentam minha fome
De viver,
Saciam minha sede
De afeição,
Fulguram nos meus olhos
Como candeias
Na escuridão
Das noites…
Tuas palavras
Tem o poder
Curativo
De mil ervas
E a força
Genuína
Das verdades,
Que enchem meus olhos
Com esperança…
Tuas palavras
Quebram o silêncio
Que insiste
Em estacionar
No nosso meio
E fazem todo o resto
Que me cerca
Perder a significância…
Tu alegras minha vida
E preenches meus vazios,
Consolas meu sono
E abrandas o cansaço
Do meu corpo,
Nesta distância
Insuportável,
Que nos separa
De um abraço,
Que eu desejo muito
Há tanto tempo…

sábado, 26 de setembro de 2009

O intruso

Ao chegar em casa, depois de um dia angustiante e atarefado, chuva na estrada e um trânsito caótico, o homem não teve muito ânimo para fazer mais que um jantar rápido, meio mecanicamente, para depois retirar-se no conforto viciante da cama e do quarto.

Arrancara, sem cerimónia, os sapatos e as meias, atirando-os a um canto, mas não trocara de roupa. Afrouxara o cinto, desabotoara os primeiros botões da camisa e jogara-se, assim mesmo, por cima das cobertas, colocando o travesseiro dobrado por trás da cabeça, olhando o teto branco do aposento.

Já estava mais tranquilo, quase cochilando, quando ouviu batidas na porta do quarto. Ele sabia que estava sozinho, na casa fechada, mas, mesmo assim, abriu a porta e deparou-se com o vazio do corredor. Acendeu todas as luzes, verificou a porta de entrada, ainda trancada à chave, deu de ombros e voltou para o quarto, desta vez, sem fechar a porta. Se havia alguém dentro de casa, ele veria, se – e quando – chegasse à porta.

Antes de voltar a sentar na cama, olhou por sobre o ombro direito e então percebeu o ridículo da situação. Chegara sozinho, estava sozinho, morava sozinho… A mulher da limpeza vinha somente uma vez por semana, mas já tinha vindo no dia anterior. De toda a forma, já não era hora de faxina: havia escurecido há bastante tempo.

Talvez o cansaço estivesse lhe pregando peças. A sua semana estava sendo bem estressante, no escritório, e ele bem que precisava de um bom banho quente. Decidiu tomar uma chuveirada e deitar. Era melhor ficar ouvindo música e deixar os pensamentos correrem soltos na atmosfera conhecida e confortável do quarto. Ópera, aquela hora, podia não agradar a vizinhança, mas acalmava a agitação do dia…

Adormeceu logo, sem muita dificuldade. Várias vezes, durante a noite, porém, acordou de sobressalto, com a impressão de novas batidas à porta, mas não se levantou.


Amanheceu rápido demais, depois da última vez que acordou. Estava se sentindo cansado, ainda. A noite não havia sido das melhores, concluiu. Esperava que o dia fosse mais tranquilo.

Durante o dia, no escritório, esquecera completamente dos acontecimentos da noite anterior. A atribulação dos últimos dias, próximos ao fim do mês, era grande, mantendo-o concentrado no trabalho, sem muito tempo para pensar em outras coisas.

Ao chegar de volta em casa, faminto, decidiu não assistir TV, limitando-se a aquecer o resto de jantar da noite anterior e acompanhar-se de um cálice de Porto, para fechar a refeição e relaxar o estômago. A música vinha baixinho da saleta ao lado, onde o computador ligado só não estava em modo stand-by, por causa da selecção longa de canções, que havia colocado a rodar, quando chegara – uma selecção tão eclética quanto a ópera da noite anterior. Um desejo simples passa-lhe rápido, enquanto ele coloca a louça na máquina de lavar. Essa noite, esperava dormir como uma pedra.

Já era madrugada quando percebeu que a luz da cabeceira estava acesa ainda. Apagou-a, virou-se para o lado e adormeceu novamente. Não parecia haver passado muito tempo, quando batidas à porta do quarto o fizeram acordar. A princípio pensou que ainda estava sonhando, mas as batidas voltaram, logo em seguida.

- Isso tem que acabar aqui, pensou…

Levantou-se, foi até a porta e abriu-a, com irritação. Não sentia nada além de impaciência. Acendeu a luz do corredor, depois as outras todas e vasculhou cada canto da casa. Nada... Não havia nada…

Era a segunda noite que isso acontecia. A casa não era assombrada. Era razoavelmente nova. O morador anterior lhe havia vendido, antes mesmo de estar completamente construída. Ele havia feito algumas melhorias, logo que passou a morar na casa de poucos cómodos, apenas para que ficasse mais com a sua cara… Conhecia todos os cantos da morada, que tinha, apenas, os móveis necessários para lhe dar um certo conforto. Como gostava de espaço e simplicidade, a casa estava mais para o estilo minimalista, que para outro estilo qualquer.

Ao constatar que não havia nenhum intruso, ele voltou para cama, mas não conseguiu dormir. Tinha todos os sentidos em estado de alerta, para levantar-se de um salto, caso ouvisse qualquer ruído. Quando o relógio despertou, já de manhã, estava no chuveiro, tentando apagar da memória e do corpo os acontecimentos da noite passada. Ele tentava pensar coerentemente, mas nada vinha em seu favor.

- Deve ser por causa do stress... ou paranóia. Preciso voltar a fazer terapia. E tem que ser urgentemente, falou para si mesmo. Ainda bem que hoje é sexta-feira. Quero dormir feito criança, esta noite.

O dia pareceu interminável. As horas se arrastaram e ele esteve irritadiço o dia inteiro, no trabalho. Quando o expediente, finalmente, terminou, saiu apressado, quase sem se despedir dos colegas, que também saíam apressados, com sorrisos de fim-de-semana, estampados nos rostos cansados.

A caminho de casa, comprou uma garrafa de vinho tinto. Precisava de uma boa dose de um vinho encorpado, acompanhando o jantar que ia fazer. Preparou uma massa com molho de creme de cogumelos com camarões. O tempero havia ficado perfeito. A refeição foi lauta, mas discreta. O vinho estava na temperatura e gosto ideais. Ele bem que mereceu aquele jantar. Terminou com um café, uma pequena dose de Porto e deu-se por satisfeito. Fechava a semana com chave de ouro. Agora ia ouvir um pouco de música, ou assistir TV por um tempo, tomar um banho antes de deitar e dormir, sem se preocupar com o despertador a tocar na manhã seguinte.

Adormeceu facilmente. Sonhou que a TV estava ligada. Ele tomou o controle remoto e desligou-a, mas o programa continuava a voltar a passar, ininterruptamente, na TV que nunca desligava. Reportagens, mostrando assaltos, assassinatos e desgraças pelo mundo, passavam em sequência desgovernada. Ele levantou-se de onde estava e foi até o botão principal e desligou-o. Não demorou mais que pouquíssimos segundos até o noticiário aparecer novamente na tela. Ele arrancou a tomada e jogou o aparelho na parede, irritado.

Um vulto passou atrás de si. Agora seria ele o perseguidor. Ia saber quem estava a lhe importunar. Saiu da sala e entrou na cozinha. Não viu ninguém. Foi ao quarto e viu a si mesmo deitado a dormir. Um vulto de negro se aproximava da cabeceira da cama. Ele gritou ao intruso, para lhe chamar a atenção. O vulto se virou, mostrando uma face sem traços definidos, coberta por uma espécie de malha negra, parecendo uma máscara a lhe esconder o rosto verdadeiro. O vulto avançou sobre ele, emitindo uma espécie de gemido, assustadoramente inumano. Ele recuou. O vulto veio em sua direcção, agora a lhe perseguir. Ele correu para a varanda, saltou para fora da casa e tentou chegar ao portão. Foi cercado, antes de alcançar o objectivo. Teve que voltar, tentando dar a volta pelo outro lado. Só havia uma saída. O muro traseiro era alto demais para saltar por cima. Tinha que sair pela frente da casa. O intruso pareceu ler seus pensamentos e tomou posição de cão de guarda, ao portão. Ele voltou para dentro e fechou a porta atrás de si. Antes que pensasse naquela alternativa, viu o vulto entrar pela varanda e atravessar a porta de vidro da saleta. Estava encurralado.

- A melhor defesa é o ataque, pensou. Não tenho outra alternativa. Avançou sobre o vulto, que esquivou-se para o lado e o agarrou por trás, deixando-o imobilizado e com os braços sem conseguir alcançar nada além do ar à sua frente. O intruso apertou-lhe os braços e aproximou-se de seu ouvido, com um gemido estranho, quase animalesco. Desta vez, ele sentiu medo. Seu corpo tremia. Ele sentia o calor das narinas e boca do seu algoz, quase encostados à sua face. Parecia que a figura de negro lhe queimava a pele, com o calor desconfortável da respiração.

O estranho abraço apertava-lhe o peito e os braços, com mais força, agora, dificultando-lhe respirar. Quis gritar. Sua voz não saiu. Seu corpo agora tremia em espasmos e a dor chegava às raias do insuportável. Começou a desfalecer. Ele teve horror do que viria a seguir. Sentiu os ossos da costela estalar. Seu peito parecia que ia explodir. Os espasmos aumentaram. Ele fechou os olhos. A pele do pescoço queimava, agora, assim como o peito. Parecia que o coração havia rasgado e transbordado sangue à volta, queimando-lhe a caixa torácica e os outros órgãos ali abrigados. Muita dor… Um grande branco passou-lhe em frente aos olhos e, depois, sentiu uma estranha sensação de dormência… Seus sentidos lhe abandonaram e ele imaginou-se desmaiar, com a pele do pescoço, próxima à orelha direita, a queimar aflitivamente, em contraposição ao suor frio que lhe escorria pela face marcada pela dor…


De um salto, ele abriu os olhos e percebeu que estava no quarto, mal iluminado por uma fresta de luz, que entrava por um espaço entre as faces da cortina. O peito arfava e o suor lhe cobria o peito e a face. Uma dor insuportável castigava-lhe o corpo todo… Ele quase suspirou de alívio, ao perceber a porta do quarto fechada e o silêncio a acarinhar-lhe os ouvidos. Deitou a cabeça de volta ao travesseiro, fechou os olhos e relaxou…

Foi, então, que a porta se abriu, sem barulho, mas de rompante. A figura encapuzada em preto entrou e aproximou-se da cabeceira da cama, sem cerimónia, como se conhecesse, muito bem, o quarto.

A mão do intruso se apoiou no travesseiro, quase encostada à sua cabeça, fazendo-a mover-se um pouco para o lado. Aquela presença pesava no ar do quarto, antes fechado, agora com a porta completamente escancarada. Ele sentiu o som próximo da respiração e o bafo quente quase a encostar-lhe no rosto, mas recusava-se a abrir os olhos, agora, com medo do que poderia ver.

O corpo inteiro delatou-o, todavia, com uma convulsão incontrolável de medo a sacudir-lhe da cabeça aos pés e ele abriu os olhos, ofegante e em completo terror…

Ele tentou gritar, mas a voz não saiu. Com os olhos arregalados, fitou os olhos do intruso, a poucos milímetros de sua face…


Na segunda-feira seguinte, ao perceber que não comparecera ao trabalho, os colegas, após desistirem de tentar ligar-lhe, incansavelmente, chamaram os bombeiros para entrar na casa trancada. Encontraram o corpo na cama, a face contorcida de terror e os olhos abertos, esgazeados.

A polícia e os paramédicos registraram “ataque cardíaco – durante o sono” como causa da morte. Ninguém, todavia, conseguiu explicar a estranha marca na pele do pescoço, próxima à orelha direita. Não havia nada no quarto, ou na casa, que pudesse ter dado origem à forma quase arredondada daquela queimadura…

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Me olhas...


E me olhas
Como se visses,
Através de meus olhos,
As cicatrizes
De uma alma
Transparente…
Como se visses além
De mim,
E analisasses minha dor
Na tela da tua mente
Complexa…
E me olhas
Como se tivesses compaixão
Das lágrimas que vês
Rolar
E dos soluços
Que ouves,
No silêncio
Concentrado
Do teu olhar…
Como se tivesses certeza
Que a tua presença
Assim, perto de mim,
Fosse acalmar
Todas as aflições
E as dúvidas
Do meu coração
De frágil cristal…
Quando me olhas,
As tempestades
São suportáveis
E quando elas passam
E vem a bonança,
- Porque tu sabes
Que ela sempre vem –
É tua tranquilidade
Que traz a paz
Que meu peito anseia.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Exulta

Abre tuas asas,
Pois voar é preciso.
Liberta tuas mágoas,
Teu cansaço,
Tuas angústias,
Porque viver é preciso
E só se vive bem
Se a alma
Estiver leve,
Se o coração
Estiver aberto.
Exulta
Em existir,
Pois o mundo
Precisa da tua alegria
E do teu sorriso
Solto
E encantador.
...
Acende tua chama,
Mesmo que pequena,
Pois grandes incêndios
Começam
De pequenas centelhas.
Abre teus braços
Aos ventos,
Fecha teus olhos,
Solta teu corpo
E voa,
Como se tua vida
Dependesse
- Somente –
Deste momento,
Como se teus pés
Não precisassem
Do chão,
Para se deslocar.
Alegra meu coração
Com as tuas palavras
Despretensiosas
- E sensatas –
E com tua capacidade
De destruir
Toda a angústia
Que meu espírito
Já sentiu,
Na apreensão
Do silêncio
E das tormentas
Diárias
Da vida.
Exulta,
Em viver,
Pois tu és
E serás
- Eternamente –
Especial
Demais!!!

terça-feira, 8 de setembro de 2009

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

O Segredo

Tu és o segredo
Que meu coração
Guarda,
Numa caixinha
De cristal,
Com faces lapidadas
- E de formato ímpar -
Que difrata
A luz branca
Do dia-a-dia,
Em milhões
De cores
Brilhantes,
E que eu sempre vejo,
Quando teu olhar
Cruza com o meu
E o mundo pára
De girar,
Naquela minúscula fração
De tempo,
Em que sinto
A tua atenção
Completamente voltada
Para mim…

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Mudanças

E tu mudas,
Como as folhas
Se transformam
Com a passagem dos dias
E te reciclas
A cada estação
E te enfeitas
Do Verde
Ao escarlate,
Te enches de castanho
E desnudas
Teus ramos,
Teus braços,
Teu corpo
E enfrentas o sol
E as tempestades
Com tua força
Tenaz
Como as raízes
Profundas
Das figueiras…
E tu não olhas para trás
Porque o teu passado
Não te faz sentir saudades
De tempos de outrora
Quando eras criança
E teus sonhos
Não eram maiores
Que os teus actos
São agora…

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Outra teoria dos reencontros

Quando meu peito
Estiver assim,
Encostado ao teu,
E meu coração
Copiar o compasso
Da tua pulsação,
Minha alma
Há de se fundir
Com a tua,
No amparo
Sereno
Do nosso abraço.
Quando o silêncio
Em teus lábios
Verter, em lágrimas,
A emoção
Do momento,
Lembra-te
Que nem todas as palavras
Podem expressar
O que o teu coração
Quer me dizer
E o meu
Quer te revelar…
Eu, então,
Procurando não macular
A magia
Que nos envolve,
Te direi,
Somente,
- Baixinho -
Ao pé do ouvido:
Minha criança,
Como é bom estar aqui!

domingo, 16 de agosto de 2009

Fragmentos (excerpt)

Escrever
Poemas
- De paixão
Ou solidão -,
Em meio
Aos dias,
Que passam
Apressados,
Entre uma lágrima
E uma dança,
Um sorriso
E uma canção,
É uma forma
De guardar,
- Congelados no tempo -,
Fragmentos de emoções,
Antes que elas se tornem
Névoas
Dissipadas
De passado,
Flutuando
No ar frio
das manhãs...

Teoria dos Reencontros (excerpt)

Quando me abraçares,
Não precisas dizer
Nada:
Nenhuma palavra
Será mágica,
Nem poderosa
O suficiente,
Para revelar
A teoria
Dos reencontros.
Deixe, apenas,
O calor
Do teu corpo
Aquecer o frio
Da minha saudade;
Deixe o teu coração
Bater forte,
Junto do meu peito,
Na mesma cadência
Do meu…

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Antes... (Excerpt)

Antes de ti,
Já existia o sol,
A dilacerar a escuridão
Com sua navalha
De luz,
Sangrando,
Em cores,
O céu
E o espaço,
Despertando o dia
De seu negro sono
E tingindo,
Devagarinho,
As pequenas pérolas
De orvalho,
Que decoram,
Sutís,
As frágeis pétalas
Adormecidas nos campos…
...
Antes de ti
Eu, com certeza,
Já existia
E meus olhos
Já viam o mundo
Ao meu redor,
Mas não do jeito
Que o vêem agora…
Antes de ti
Eu era água,
Mas não era mar,
Eu era luz,
Mas não era sol,
Eu era sombra,
Mas não era noite,
Eu era som,
Mas não era música,
...
Eu era de vidro…
E, então, me fiz diamante…

domingo, 9 de agosto de 2009

Voo (excerpt)

...
Tu voas
E teu voo
É belo
E silencioso
Como a delicadeza
Da solidão,
Terno,
Como um beijo
Apaixonado
(No segredo das noites),
Intenso,
Como o abraço
De um reencontro
E genuíno,
Como a dor amena
Da saudade,
Que as distâncias
Tentam,
Mas não apagam
Jamais...

sábado, 8 de agosto de 2009

Aquarelas

Hoje,
Eu pinto a vida
Com cores
Leves
E emoções
Fortes.
Eu pinto
Com sol e vento,
Chuvas de Verão,
Barulho das ondas,
E o cheiro do mar
E das folhas verdes
No ar da madrugada;
Entre a neblina
E o silêncio
Suave
Das ruelas
Da cidade.
Hoje,
Eu pinto
A vida
Com as cores
Da saudade,
Dos sonhos
E das tempestades
De Outono.
Eu pinto
Os papéis
Com cores
De paixão,
Águas-fortes
E corpos
Largados,
Soltos,
Em dunas
De ilusão.
Eu pinto aquarelas
De vida,
Com o vigor
Das emoções
E a firmeza
Da existência.
Eu pinto o amor
Com a veemência
E a insistência
Do amante,
Que não aceita
A distância
E sonha,
Acordado,
Com os beijos
Do último encontro.
Eu pinto a paixão
Com a força
Dos abraços
E a certeza
Dos reencontros.
Eu pinto a vida
Com a perfeição
Imperfeita
Dos rostos amados
E dos corpos desejados…
Eu pinto a vida
Com a força
Estranhamente suave
Das aquarelas
E o poder
Forte
Da cor
Das sanguíneas…
Eu pinto minha alegria
Com teu sorriso
E a aguada
De minha tristeza
Com as lágrimas
Das tormentas
Do fim do dia.
Eu pinto meu futuro
Com as cores
Vibrantes
E suaves
Da aquarela
Da tua existência.
Eu pinto tua alegria
Com a energia
Colorida e pujante
Das minhas emoções
E da minha,
Sempre tua,
Dedicação…

A Efígie do Dragão (excerpt)





... Ali, de pé, com uma espada em punho, estava um cavaleiro vestido em uma armadura negra. Ainda conseguiu reconhecer a efígie de um dragão, no peito da armadura do forasteiro. Uma efígie muito parecida com a sua própria, excepto que cabeça do dragão estava voltada para o lado oposto do da sua e as asas pareciam maiores, formando um círculo, que fechava-se à volta da figura. O animal representado, entretanto, era o mesmo.

O cavaleiro levantou-se de um salto, com a inseparável espada em sua mão, os olhos alertas para qualquer movimento do rival, que se manteve erecto, sem dizer palavra, com o gládio já pronto para combate e o visor do elmo ainda baixo, não deixando ver a sua face. Os olhos, entretanto, pareciam flamejar por detrás do visor, como um animal pronto a atacar.

- Quem és tu? O que queres aqui? - perguntou o cavaleiro ao forasteiro. Este não disse nada, apenas colocou-se em posição de combate, a espada agora ameaçadora, apontando para o cavaleiro na armadura prateada, que avançou.

O que aconteceu depois, foi muito rápido, para o cavaleiro da armadura prateada compreender bem. A espada do homem vestido de negro bateu com tanta força na sua, que esta última se partiu de um golpe só, como se fosse feita de um metal frágil e seco. O golpe foi tão certeiro, que lhe atingiu, em cheio, cortando a armadura e machucando seu peito, que ficou comprimido pelo metal cortado e amassado.

O cavaleiro caiu, inconsciente, de costas, pesadamente no gramado verde e com uma expressão de assombro ainda a lhe estampar a face...