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quinta-feira, 15 de agosto de 2019

Voltar Para Casa (Parte Final)



Eu gritei. Estava em choque e com medo. A chuva forte caiu pesada e ruidosamente sobre a superfície do carro, assim que chegamos à rua.

- Está tudo bem, agora. Ele foi muito rápido em saltar para o lado.

- De onde ele veio, pelo amor de Deus? Ele nos perseguia? Há quanto tempo?

- Não sei…

- Porra! Estou com muito medo agora.

- Acalme-se. Em breve estaremos em casa.

- Nós deveríamos ter chamado a polícia... há muito tempo! Desde que ele…

- Nós não achamos que era necessário no momento. Talvez devêssemos agora.

- Definitivamente, sim. Nós temos de chamar a polícia, para o nosso bem!

***

- O que estás fazendo? Me deixa ir embora!

- Diz que vai tomar um café comigo.

- Estás me assustando. Me larga, por favor…

Ele me segurou mais forte. Seus olhos eram como os de um louco. Eu tentei afastá-lo, mas ele era muito mais forte que eu. Então ele me puxou para mais perto e me apontou uma faca. Eu podia sentir o quão forte ele era, pelo jeito firme que me segurava, mas eu não teria coragem de mover um centímetro que fosse, de qualquer maneira, sob aquela ameaça.

E foi então que tudo aconteceu, muito rapidamente...

***

- E se não tivesse acontecido?

- Tu terias morrido, ou talvez, também eu...

- Eu sei... eu te devo...

- Não me deves nada. Ainda bem que eu estava lá.

- Eu nunca serei capaz de te agradecer o suficiente. Aquilo foi muito rápido e agiste como um verdadeiro herói.

- Eu apenas agi por instinto. E estou tão feliz por estar lá, naquela hora em que o vi a forçar a barra contigo. Quando percebi que era uma faca, que ele tinha na mão, não pude deixar de interferir. Tu estavas em perigo. Mas foi meio à louca, sem pensar, embora só tenha considerado o risco, bem mais tarde. Ele poderia ter-nos matado... aos dois. Mas era um grande covarde, afinal, de qualquer maneira. Ele fugiu, assim que se viu desarmado.

- E então tu jogaste a faca tão longe, para dentro do mar. Foi como jogar a situação e o perigo para longe de nós. E agora ele volta para nossas vidas. Por quê?

- Eu não tenho ideia. Mas é sabido que ele tem estado a te seguir desde o dia em que quase esbarraste nele, na porta do prédio. Ele, provavelmente, não superou o dia em que eu lhe chutei o traseiro, também. A vingança é, talvez, o que ele queira agora. Deixemos a polícia lidar com ele a partir daqui. É o dever deles.


***

A polícia não pode fazer nada em termos de segurança, pois não havia provas de que tínhamos sido ameaçados por aquele homem. Fomos nós que tentamos atropelá-lo, afinal. Ele poderia nos ter processado pela tentativa de assassinato, se quisesse. A justiça não nos protegeria em nenhum caso.

Decidimos que teríamos de cuidar da nossa segurança, por conta própria, o que poderia levar à medidas extremas.

Mas para nossa sorte, deixamos de ser ameaçados ou perseguidos… por ele, ou por qualquer outra pessoa. Ele simplesmente desapareceu das nossas vidas. Nós ainda continuávamos a ser cuidadosos, mas já não estávamos tão paranóicos, quase relaxando e voltando à nossa rotina normal, desejando, apenas, sermos abençoados por uma vida mais tranquila.

***

- Estás fazendo fotossíntese?

Ele riu. Com o rosto voltado para o sol da manhã, ele parecia sentir um prazer inigualável naquilo. Estava sem a camisa, mostrando seu torso bem esculpido, pelas horas bem aproveitadas no ginásio. Seu cabelo brilhava, assim como a sua pele pálida. Seus olhos eram tão azuis quanto o céu acima de nós. Eu agradeci ao Universo por ser, aquele, um dia tão agradável e iluminado de verão e por aquela visão adorável. Pensei logo em um deus grego... Apolo, talvez, por causa de seus cabelos e barba cor de fogo, e…

Ele notou meu sorriso quase discreto e presumi que estivesse lendo minha mente.

- Eu acho que estou, sim. Isso é muito bom mesmo. E é tão bom estar cá em casa, assim...

- Eu concordo plenamente. Tome isto…

Ele sabia que eu estava brincando com as palavras, então aceitou, sorrindo, a xícara de café fresco que eu lhe ofereci. Sentamos do lado de fora, ouvindo os sons dos pássaros a gorjear e da água corrente do riacho, correndo, não muito longe da parte de trás da casa. Era uma relaxante manhã de domingo e estávamos desfrutando da companhia um do outro, como deveria ser, sempre.

Depois do pequeno-almoço que nós tivemos nos fundos da propriedade, decidimos dar um passeio na floresta, antes de voltar para preparar uma refeição mais consistente. Estava uma manhã agradável e queríamos aproveitar o melhor que podíamos. Passear pela floresta seria mais fresco e não estaríamos expostos ao sol direto. Sabíamos que nossas peles se queimariam facilmente, mesmo com o uso de uma boa camada de protetor solar.

Levamos cerca de duas horas para voltar. Quando nos aproximamos do portão, notei que seu rosto mudou.

- Nós deixamos o portão aberto, daquele jeito?

- Acho que não…

- Que droga! Tenha cuidado. Fique aqui. Vou conferir isto.

Eu tentei protestar, mas foi inútil. Ele estava muito sério e eu sabia o porquê.

- Fique aqui, com o telefone a postos, para chamar emergência ou a polícia. Podemos ter de pedir ajuda.

- Mas quem…?

Ele cruzou o portão e entrou, correndo, tentando não fazer muito ruído. Eu esperei do lado de fora, como ele me disse, mas minha mente estava tão apreensiva, que eu não conseguia pensar.

Eu o ouvi gritar uma… duas vezes… depois veio um silêncio e, em seguida, uns sons estranhos.

"Isso é o som de uma luta? Mas que diabos?'

Meu coração afundou quando percebi o que estava acontecendo.

- Oh, não! Isso não!

Eu ouvi um baque, como de algo pesado a cair no chão e, depois, um tiro.

- Oh, não! Não, não, não!

Eu atravessei o portão sem pensar claramente. Sentia como se meu coração fosse sair, desesperado, pela minha boca. Então eu presenciei a pior cena que poderia, naquele momento.

O sangue ainda escorria fresco e pegajoso nos ladrilhos acastanhados da varanda.

Os dois corpos ainda estavam estirados no chão. Eu conhecia o homem que estava por cima dele... Os dois corpos estavam, ambos, imóveis.

Eu gritei. O corpo que estava em cima rolou para o lado, sem sinal de vida.

- Ele saiu da casa com a minha arma na mão... e nós brigamos... e...

- O que? Como? Tu estás…?

Estava coberto de sangue, mas não era dele e, sim, do homem com o qual esteve lutando e que jazia ao seu lado, morto.

- Chame a polícia! Eu acabo de matar o sujeito!

- Ai, meu Deus. Isto é horrível! Estamos ferrados! O que fazemos agora? O que devemos fazer agora? A polícia não vai acreditar em nós…

- Não entre em pânico! Chame a polícia!

- E se…

- Pelo amor de Deus! Chame a polícia! Agora!!!

***


quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Pandemónio (na casa de descanso) - Epílogo

- …E não poderia ter revelado isto antes? Me desculpe a impaciência, mas é-nos absolutamente necessário ter ciência das condições médicas das pessoas que entram por aquela porta e aqui vivem. Como é que isso passou, sem que tomássemos conhecimento? Isto é inadmissível. É muito grave.

A directora se sentia cansada e preocupada ao mesmo tempo.

- Ele diz que consegue perceber quando uma crise se aproxima e se prepara. É quase como entrar em depressão. Isolar-se é uma forma de defesa. Se sentir que não há necessidade de incomodar ninguém, prefere ficar à margem, até a crise passar. Afinal, a medicação deveria ajudar a retardar a evolução da doença.

A enfermeira-chefe sabia que não era bem assim. Repetia o que ele lhe havia dito, mas não concordava com o discurso. A medicação não impedia a evolução da doença. Era preciso mais que o isolamento e o remédio, para retardar o progresso. Ele necessitava de um acompanhamento mais de perto. Ela sabia que o facto de exercitar, bastante, o cérebro era um bom sinal. Ele desenhava, pintava, escrevia, lia e ainda tinha as cartas de tarot e o computador… Não se sentia nenhum inútil e não era um covarde. E até que enfrentava a condição com muita coragem e cabeça fria. Mas isso não era suficiente. Ela tinha uma influência sobre ele e tinha que se aproveitar desta. Precisava mantê-lo sob constante vigilância, tentando, entretanto, não ser invasiva à rotina dele.

A directora, por seu lado, tratou de fazer suas pesquisas acerca do historial da doença, com o médico que assinara o diagnóstico e que havia sido emitido mais de dois anos atrás. O médico – o mesmo e único homem, que um dia visitara, incógnito, o velho, na Casa de Descanso - confirmara que não havia sido consultado desde então. Se o paciente tomasse a medicação e tivesse acompanhamento adequado, a doença poderia evoluir mais vagarosamente. Era necessário fazer uma reavaliação, com toda certeza.

O velho passava boa parte do dia observando, distraidamente, o movimento no portão de entrada. Sentava-se no habitual banco de madeira, em baixo da árvore no pátio, com o gato a lhe fazer companhia. Nestes últimos dias, parecia normal, embora um pouco mais introvertido que de costume. Parecia que se preocupava em não deixar a enfermeira-chefe mais aflita que já estava. Prometera a ela que se cuidaria melhor. Ele se deixava levar, por gostar dela mais que conseguia controlar e por tentar prolongar aquela atenção por tanto tempo quanto possível. Quanto mais lúcido estivesse, mais desfrutaria da companhia dela. E ele sabia que seu tempo começava a ficar curto.

A enfermeira-chefe se perguntava como a relação com o gato não era afectada pelas crises do velho homem. Que estranha conexão havia entre eles, que nem a doença conseguia enfraquecer? Enquanto o bichano estivesse por perto, ela se sentia segura e, tinha certeza, ele também.


O velho abriu a janela, para deixar circular um pouco de ar dentro do aposento. Quando abriu a porta, não havia ninguém do lado de fora, no corredor. Ginger, o gato, se espreguiçou e se preparou para sair da cama, acompanhando o velho companheiro, que estivera se aperaltando por quase uma hora. O velho, porém, lhe diz:

- Hoje não, meu amigo. Hoje, eu vou sozinho.

O homem havia se vestido como se fosse sair para um passeio. Ele havia arrumado o quarto com esmero, deixara a caixa de areia devidamente limpa e trocara a água e a comida do gato. Com um olhar crítico, dá uma última avaliada no quarto e faz um carinho no animalzinho, que ronrona de satisfação, olha-o, sereno, como se compreendesse e se aninha sobre o travesseiro, apoiando a cabeça sobre as patas dianteiras, cruzadas. O homem sai, então, sem trancar a porta do pequeno apartamento.

O sol já ia alto no céu de Primavera, quando ele caminhou, corredor afora, na direcção da porta da varanda, que recebia uma brisa suavemente fresca, àquela hora da manhã. As pessoas estavam ocupadas, tomando o lanche da manhã e não perceberam quando ele passou pela porta de saída e atravessou, tranquilamente, o pátio. O homem cruzou o portão, cujo movimento havia observado, por semanas, virou à esquerda e saiu pela calçada afora a assobiar uma velha canção conhecida sua.

“And it was cold and it rained so I felt like an actor
And I thought of Ma and I wanted to get back there
Your face, your race, the way that you talk
I kiss you, you're beautiful, I want you to walk”…*



Poucos minutos depois, a enfermeira-chefe entra e vê, somente, o gato deitado. As orelhas do bichinho se movem, levemente, na direcção do ruído que ela faz. A mulher sorri e balança a cabeça, como se desaprovando aquela organização no quarto do velho. Ela percebeu que um único detalhe conspurcava a cuidadosa arrumação: dentro da lixeira jazia um pedacinho de papel, amarelado pelo tempo e dobrado em dois. Ela apanha-o, desdobra-o e lê a curta mensagem. Uma letra miúda e rebuscada mostra um endereço electrónico. Não é a caligrafia do velho, ela reconhece.

Ela sai, vai à saleta dos computadores e envia uma breve mensagem, por e-mail, ao endereço escrito no papel. Levanta-se, arruma a cadeira e sai. Já ia à porta, quando ouviu o computador dar alerta de mensagem chegando. Volta-se e lê: “o provedor não conseguiu encontrar o destinatário”…

- Algo não está certo. Seria somente uma lembrança, guardada com carinho? E se fosse…

A mulher conecta, então, o Messenger, digita o mesmo endereço escrito no papel e envia uma mensagem. Era um tiro no escuro, mas poderia dar resultado… Ela ouve o som de vozes se aproximando e sai da saleta, para não ter que dar explicações a ninguém.

Já no quarto, seus olhos pousam sobre um livro, cujo autor ela desconhecia e que havia sido deixado em cima de sua escrivaninha. Sobre o mesmo, havia um envelope fechado, com o nome dela, desenhado com esmero, como se fosse um exercício num caderno de caligrafia, com a letra cuidadosa do velho. Ligeiramente apreensiva, ela abre o envelope e retira uma pequena mensagem escrita, quase em código."Use a intuição e não tenha medo do desconhecido. As respostas estão lá: basta concentrar-te." Ela franze o cenho, mas compreende o que ele queria dizer.

A mulher abre uma gaveta, fechada à chave e de lá retira uma pequena caixa azul. Dentro da mesma, envolvido num pano quadrado de cetim roxo, está o deck de tarot – o presente dado pelo velho amigo. Ela vinha se esmerando no estudo da leitura das cartas, mais para agradá-lo, que para seu próprio proveito. A curiosidade queria controlar suas atitudes, mas ela tinha receio do que pudesse encontrar, quando começasse a descobrir coisas, para as quais não estivesse preparada. Era como se entrasse no oceano, mas tivesse medo de nadar. E ela não conhecia a profundidade daquelas águas.

Antes de continuar seu pequeno ritual, volta-se e tranca a porta atrás de si. Ela abre o pano em cima da escrivaninha e escolhe, no maço, uma carta para ser o “Significador”, perguntando-se se o velho seria representado pelo Ermitão – um homem solitário, sábio e prudente – ou pelo Imperador – um grande guerreiro, na hora da parada, protegendo os seus bens. Por fim, decide pelo Rei de Paus, por ser um homem mais velho e um Senhor do Ar: um grande mestre – que é como ela o via.

Em seguida, coloca a carta escolhida no centro e embaralha as outras, sete vezes, com cuidado. Parte em três, recolhe a partir do monte à direita, depois o da esquerda e, por fim, o do centro. Uma a uma, as cartas começam a deixá-la desconfortável. Por cima do significador veio a carta chamada Morte: a grande mudança. Esta era uma carta que as pessoas interpretavam muito mal. Talvez pelo nome, disse-lhe, certa vez, o velho. As pessoas têm medo da morte e temem esta lâmina, mas ela é positiva. Tem uma outra que parece menos malévola e é muito mais nefasta…

As cartas foram se sucedendo e seu coração apertando a cada interpretação. Dois de paus, na posição do futuro próximo: viagem curta; encontro com o mestre. A combinação da sequência final, porém, pareceu densa demais: o Enforcado, o Louco e a Torre: o fim de um sacrifício, a incerteza e a destruição… Ela nunca soubera interpretar direito a carta do Louco. Seria incerteza, ou um passo contra o desconhecido?

Pousou os olhos sobre a última lâmina: a Torre – a única carta realmente negativa de todo o deck – mais nefasta que a da Morte. Enquanto esta última significava apenas uma grande e radical mudança, a Torre significava a destruição... ou algo pior…

Foi então que ela entendeu… Levantou-se depressa e saiu para o corredor. Lá fora, as mulheres e também os homens estavam em polvorosa outra vez, falando todos ao mesmo tempo. As vozes, cada vez mais estridentes, pareciam aumentar à medida que ela se aproximava do centro do furacão acontecendo na sala principal, com a determinação de alguém que enfrenta uma tempestade. Do outro lado, perto da porta da saleta dos computadores, o olhar da directora, exasperado, lhe dizia tudo, sem que uma palavra proferisse.

No meio da confusão, ela soube. Duas lágrimas saltaram, sem cerimónia, de seus olhos azuis… O velho transformara a casa de descanso em pandemónio, mais uma vez…


No quarto, o gato, deitado no costumeiro lugar, fecha os olhos, tranquilo… Poucos minutos depois, dorme o sono dos justos. Instintivamente, se encolhe e vira a cabeça, deixando a parte de baixo virada para cima, como tantas vezes fazia – o que divertia o velho – quando quase pedia um carinho e uma coçada no queixo e pescoço…


A directora ouviu o som característico, conhecido, a vir do computador, na saleta. Aproximou-se e viu a mensagem a piscar na tela do computador. Com um click sobre a tela, abriu o Messenger e recebeu uma mensagem: olá, meu amado amigo… Já estava com saudades…

No canto superior, viu a foto de uma mulher, aparentando uns cinquenta e tantos anos, cujos olhos azuis ela reconheceu imediatamente. Intrigada, leu o nome que o destinatário usava. O mesmo sobrenome da enfermeira-chefe…

* Excerpt from (Five Years - David Bowie - 1972)