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domingo, 26 de janeiro de 2014

A Cruz Celta (Epílogo)


A pequena mulher avaliou bem a combinação de cartas, apoiou os cotovelos na mesa, cruzou as rechonchudas mãos à altura do queixo e disse ao consulente – o homem de meia-idade, de cabelos castanhos, olhos esverdeados e com aparência tranquila - manifestamente inflamado pela curiosidade e sentado ali à sua frente:

- Este, definitivamente, não é um homem de confiança. Ele se faz de amigo, para conseguir algo em troca. Tenha cuidado com ele. Tenha sempre muito cuidado, porque ele consegue ser bem convincente…e pode trazer-te um prejuízo considerável.

O homem olhou atentamente as lâminas de cartão, já amareladas pelo uso, dispostas sobre a mesa e gravou, na memória, as palavras da cartomante, que agora parecia-lhe extremamente afável e maternal. A figura do Valete de Copas jazia, imponente, entre as duas outras cartas, como se estivesse desafiando o homem a enfrentá-lo.

 - Queres ver uma coisa? Vamos confirmar o que eu acabei de dizer… Tire outra carta, por favor.

Ele fechou os olhos, respirou fundo e tirou uma carta do meio do leque. A mulher deu uma risadinha, como se sentisse uma ponta de orgulho e uma sensação de triunfo.

- Vês? Não há dúvida nenhuma. O Valete de Paus indica um homem traiçoeiro ao extremo. Vou repetir o aviso: tenha muita cautela, quando estiver com ele.

- Ou o destino é muito brincalhão ou esta mulherzinha sabe manipular este jogo muito bem. Com setenta e oito possibilidades diferentes, por que cargas d’água estas cartas, em especial, estão sempre a se repetir? Que truque existe por trás desta loucura? Bom, uma coisa é certa: eu que vim atrás disso, portanto é minha responsabilidade e, talvez, minha culpa…

O pensamento ficou preso, a vaguear de um lado ao outro de seu raciocínio, sem sair-lhe, entretanto, pelos lábios. Aquela pretensa aventura começara num momento de desespero, havia passado por uma evidente fase de revelações e, agora, acabava de deixá-lo tremenda e inesperadamente assustado. Quanto mais se aprofundava naquela consulta, mais se surpreendia com a forma como as coisas iam sucedendo e pela maneira em que o acaso parecia zombar de si. Ele, que em outros tempos passados havia sido um céptico, começava a admitir que a lei das coincidências aplicava-se cada vez mais àquela suposta brincadeira.

Se as cartas estivessem mesmo certas – e aqui ele desconectava a figura da cartomante do resultado geral da disposição do jogo, até então - havia confiado demais num homem que não merecia uma gota de sua consideração.


- Que outras provas necessitas? Eu posso dar-te quantas quiseres, porque tenho evidências…

- Já não preciso de prova nenhuma. A única coisa que eu quero daquela mulher, agora, é distância…

- Muito bem! É justo, depois de tudo que passaste. Mas não digas que eu não ofereci...

- Não direi…Se tu sabias e tinhas tantas evidências, podias ter-me alertado antes…

- E tu irias acreditar em mim? Creio que não. Nestas horas o melhor a fazer é manter o silêncio, até chegar uma oportunidade certa. Eu mal conseguia chegar perto de ti…

- Faz sentido; mas podias, pelo menos, ter comentado comigo.

Ele dissera aquilo, mas estava convencido que, no fundo, seu discurso não fazia muito sentido, pois a tendência, num relacionamento, não é acreditar nos comentários das pessoas que estão fora da vida dos dois, a não ser que já haja alguma desconfiança. Ele teve de aceitar que o outro estava certo, afinal.

O homem, então, pensou nas palavras da cartomante e ficou a avaliar as intenções por trás daquela insistência em apresentar evidências, que ele já não necessitava, daquela situação da qual queria mesmo era sentir que havia ultrapassado, embora soubesse que a dor ainda estava bem vívida em sua memória… e não somente lá...

Ele percebeu, então, que aquela era uma das únicas coisas a que o outro tinha para agarrar-se, de modo a manter sua atenção. O elo, entretanto, ficava cada vez mais fraco, pois o assunto deixava de interessar-lhe, à medida que o tempo passava. Não demorou muito para ter a revelação da intenção por trás daquela suposta amizade íntima.


- Por qual razão devo pagar-te a dívida agora? Estás precisando do dinheiro, por acaso?

- Espera. Nem continua. Eu não acredito no que acabaste de me dizer. Eu confiei em ti, fiz-te um favor, livrei tua cara e ainda tenho que ouvir isto? Nosso acordo não era ter tudo resolvido em um mês, no máximo?

- Mas não tenho o dinheiro agora. Tive que mandar fazer uma revisão no carro e usei uma boa parte do que tinha. Como tu não deves estar precisando do dinheiro, não vai fazer-te falta. Pago quando puder. Confia em mim.

- Eu confiei e olha onde isso levou-me. Tu já rolaste esta situação por muitos meses. Não te vejo preocupado em pagar a dívida. Na verdade, parece ser o contrário. Pelo jeito não prezas a nossa amizade, nem o esforço que fiz em confiar em ti sobre este assunto, apesar das condições que impus para tal.

- Eu vou pagar…. Quando puder…

O homem de olhos e cabelos claros demonstrava irritação por estar sendo cobrado pelo outro, embora soubesse estar errado. Entretanto, tentava ganhar tempo, a manipular a situação e reverter o jogo a seu favor.

- Se não precisas do dinheiro agora, por que insistes tanto? Não acreditas que eu te pague?

- Na verdade, depois de tanto tempo… mais de dois anos, quando deveria ter sido um mês… não, não acredito. Eu fico triste e chateado contigo, mas muito mais decepcionado comigo, por haver confiado e sido ingénuo, quando na verdade, já deveria esperar por isso. Tu me fazes voltar a perder toda a confiança não só em ti, mas em qualquer outra pessoa, daqui para a frente. O que vejo neste momento é que esta “amizade” – ele colocou ênfase na pronúncia da palavra - nunca valeu muita coisa mesmo, para trocares por este preço…

Ele lembrou as palavras da cartomante, há bastante tempo atrás. Ela esteve certa, mais uma vez, para seu azar, que não conseguiu antever o erro, antes de cometê-lo. Fora enganado e atraiçoado e não perdoava a si mesmo por haver sido tão tolo.


- Vamos terminar a leitura. Agora quem embaralha és tu. Sete vezes.

- Ok.

- Agora, com a mão esquerda, parta o maço em três e disponha-os à sua frente, da esquerda para a direita.

O homem obedeceu. A cartomante então retirou uma carta de cima de cada monte, virando-as em seguida e preparou-se para terminar a consulta.

- Tu não quiseste perguntar em relação às coisas do coração. Eu até entendo porque, mas não vais conseguir escapar do que está alinhado para acontecer.

- Isto é para quem acredita em destino.

- Se não acreditasses não estarias aqui… Ou estou errada?

- Desespero, talvez. Curiosidade, talvez.

- Talvez…

Ela olhou o homem e estendeu-lhe a mão. Ele estendeu a sua, para despedir-se, mas ela, ao invés, tomando-a, virou-a, surpreendendo-o completamente com o gesto brusco. Ela puxou-lhe a mão e com a outra segurou-lhe o pulso com uma firmeza que parecia quase sobrenatural. Ele não fez esforço para livrar-se.

- Olhe esta linha aqui. É a linha do coração. Vês como é bem definida? Não adianta negares; o destino não brinca…

Ele, então, puxou a mão com força e, tomando a carteira do bolso do casaco, pagou a mulher e saiu, em silêncio e a passos largos.


- Sabias que ele manipulou uma parte desta situação? Foi ele quem mandou o colega enviar as flores. Ele sabia e queria certificar-se… Claro que ela teve sua parcela de culpa. Antes houvessem sido somente umas inocentes flores…

- Por que? Com qual propósito, afinal?

- A intenção? Deixar-te fragilizado, mostrar-se amigo e poder manipular-te para emprestar dinheiro a ele… que seria o único que, diante das evidências, pareceria confiável na situação toda…

- Como eu fui tolo…Não consigo me perdoar por isso…

- A verdade sempre vem à tona, meu amigo. Não adianta, porém, culpar-te. Considera que foi mais uma lição, joga a raiva e a dor para trás e olha para frente. No fundo, nenhum dos dois merece que guardes mágoa ou rancor… Este veneno não é teu; é deles. Vai viver a tua vida.

- Eu sei que tens razão…

O homem de cabelos castanhos olhou o outro de frente. Sentia um carinho enorme pelo amigo e sabia que ele estava certo. A mágoa é um veneno que mata, aos poucos, aquele que a sente e não causa nada a quem ela está relacionada ou direccionada.


- Vês como eu estou? Nunca ninguém me excitou tanto como tu. Acredita-me, quando entrei na tua casa, já estava quente e creia-me, nunca aconteceu com ninguém antes… Tu me encantaste. Vim pensando em ti e no que poderia acontecer, o caminho todo. Quando abriste a porta, porém, tive medo...

O homem ruborizou diante da franqueza que lhe era colocada face a face, naquele momento. A cor azul daqueles olhos pareceu intensificar-se quando ele olhou bem no fundo deles e viu as pupilas dilatarem. Ele distinguiu nada mais que sinceridade emanando daquele olhar.

- É verdade.

‎- Como podes ter sentido medo? Já havíamos conversado antes. Até já havíamos nos beijado e tínhamos combinado passar este tempo aqui, sem pensar em stress. Eu não faria isso se não sentisse uma forte atração por ti…

‎- Tive medo que fosse te decepcionar. Sentia uma insegurança enorme. Quando te movias pela casa, assim que entrei, eu pensei: convida-me a tomar um vinho ou café e diz-me que vá embora, antes que seja tarde demais para voltar atrás.

Ele pousou o dedo em sua boca, de modo a impedir que sua insegurança continuasse a falar coisas incongruentes, num momento em que deveria estar a sentir outra coisa. Beijou-a suavemente… longamente… e deixou-a relaxar e intensificar o roçar de lábios e línguas, buscando compartilhar  o calor dos corpos, na penumbra do quarto, iluminado apenas por um pequeno abat-jour, na mesinha de cabeceira.

Ele, então, voltou a beijar-lhe a testa, os olhos, os lábios, o pescoço, desceu por entre os seios, beijou-lhe o ventre e também na área uns poucos centímetros abaixo.

- Hummm…. Que coisa mais louca… que coisa mais boa!...


Ele pensou na última carta de tarot que viu, uma certa vez, numa certa mesa…a Rainha de Copas, aparentemente completava seu par com um certo Rei de Copas


***




Nota: Esta seria a configuração da cruz celta original, com as cartas, conforme consta no conto.

domingo, 19 de janeiro de 2014

A Cruz Celta (Parte 3)


A mulher bateu com a ponta do dedo indicador sobre a carta que havia colocado sobre a mesa, na posição designada para os Fatores Ambientais – o caminho a envolver a situação, que descrevia, em síntese, a imagem que os outros - amigos e família - fariam do consulente. Aquela carta quase sempre implicava o tipo de reacção que a pessoa devia esperar dos outros com relação à sua situação. A lâmina exibia um homem de pé entre duas mulheres e um cupido pairando acima do grupo, ao mesmo tempo que apontava a seta para a cabeça de uma das mulheres…

- Esta carta em si representa a escolha difícil entre a razão e a emoção, a tradição e a novidade, o passado e o porvir… São dois caminhos que se abrem e tu deves optar por um deles, com bastante consciência e firmeza. Não podes hesitar muito em decidir, porque o tempo não vai esperar por ti.

O homem compreendeu a razão pela qual a mulher não havia acompanhado seu riso, quando a carta dos Amantes fora deitada sobre a mesa. Tinha pouco a ver com o nome, especialmente quando disposta naquela posição da cruz. Uma dúvida despertou em seu consciente.

- A carta anterior dizia que eu devo usufruir de uma parada…

- E é verdade. Uma coisa não invalida a outra. Tu deves usufruir desta pausa, mas a decisão sobre o caminho a tomar não precisa ser da mesma duração da parada. Na verdade, esta decisão pode levar à necessidade daquele intervalo. Sem pressa, significa sem ansiedade, mas não quer dizer que devas levar a vida inteira a tomar uma decisão sobre  o que fazer ou qual caminho tomar…

- Ok. Já percebi…

O homem registrou aquelas palavras, com carinho.


- Precisamos conversar.

- Eu sei…

Ele tinha ciência que aquela conversa estava a ser adiada por muito tempo. Ficou chateado de não haver sido ele a propor, mas ficou feliz pela iminência que agora se apresentava de fazê-lo.


A próxima carta indicava o aspecto psicológico, as esperanças e os medos, os desejos e as ansiedades do consulente e tudo isso se apresentava, magnificamente, numa única carta: a Torre. Esta indicava o fim de um ciclo – uma grande ruptura com o passado. Em algumas posições representaria uma grande e catastrófica cisão e podia ser bastante negativa mas, naquela posição, estava a indicar exactamente o oposto. 


Em que parte do caminho a confiança dele perdeu-se? Aonde apareceu a dúvida? Teria sido no dia em que ela dissera-lhe que nem sabia se o amava, apenas meses depois do casamento oficial? Ou teria sido no dia em que sua razão percebeu, antes de seus olhos, que a intimidade havia-se tornado maior para com os outros do que era dividida consigo?

Embora apegado aos seus princípios e às promessas feitas, ele chegara à conclusão que já não havia muito o que fazer. O relacionamento tornara-se estéril… completamente estéril e sem nenhum futuro. Mesmo assim, demorou-se a desapegar-se, deixando-se ser explorado de maneira ingénua e imprudente.

Menos de meia hora depois da tal conversa que tiveram, estavam os dois sentados em frente ao advogado. A decisão havia sido tomada e era definitiva.

Nunca mais voltou atrás, mas aquela resolução custou-lhe demasiadamente caro, não somente pelas dívidas que ficaram-lhe por sobre os ombros, mas também pela carga pesada que teve de assumir para poder pagá-las.   

Sua saúde fora afectada, bem como o equilíbrio que ele tanto prezava. Mas o caminho a seguir havia sido escolhido e era determinante para o seu futuro e da sua sanidade.

O tempo se encarregaria de fechar as feridas, de propor novas oportunidades, de trazer novas possibilidades de relacionamentos, mas nunca iria apagar as cicatrizes.


Finalmente, a última carta iria trazer a conclusão esperada. Aquela não ia servir para descrever uma situação permanente ou definitiva, mas a consequência natural da situação que ele atravessava no momento, abrangendo, no máximo, um período de seis meses: o Louco – representava um passo dentro do desconhecido. As incertezas, desânimos, falta de vontade de seguir em frente, apresentavam-se ali, naquele momento, mas não davam um resultado, nem propunham uma conclusão àquela situação toda. Era um final inconclusivo e um tanto decepcionante…

Ele olhou a mulher, tentando achar uma explicação mais assertiva para o que acabara de ver. Ela, então, olhou-o nos olhos e disse:

- Que o acaso nos diga algo.

Tomando o baralho em suas mãos, a mulher abriu-o em leque e pediu:

- Retire uma outra carta; somente uma, mas concentre-se bem na questão, antes de escolher.

Ele separou uma carta bem do meio do leque e entregou-a à mulher. Ela sorriu quando viu a lâmina e virando-a, dispôs a mesma, cruzada, sobre a última carta do jogo aberto sobre a mesa.

- Uma escolha muito boa. Muito boa mesmo.

O Ás de Paus indicava um novo vislumbrar da vida, um novo começo do zero e uma oportunidade de resolver os seus problemas com toda a sua criatividade. Prenunciava todo um processo de renascimento, inspiração e façanhas criativas, realizadas com grande ímpeto e energia, acompanhados por uma névoa envolvente de aventura e ação.

- Vê-se bem quais são as tuas preocupações neste momento...

Ele pensou nas coisas que havia deixado para trás, por tanto tempo. Perguntou-se por qual razão um homem deixa seus sonhos de lado, suas habilidades artísticas e seus prazeres simples, em função de uma suposta harmonia em qualquer relacionamento? E depois que separam-se, sobra o que, afinal? Uma sombra passou-lhe pelo olhar.


- Agora pode fazer as perguntas que quiser…

A mulher embaralhou o maço inteiro e abriu as cartas em leque outra vez, pedindo-lhe para retirar três, aleatoriamente. Ele concentrou-se na pergunta, que estava viva em sua mente e retirou-as, devagar, de três posições bem distintas e entregou-as, uma a uma.

A mulher dispôs as mesmas sobre a mesa e olhou-o nos olhos, seriamente...

- Qual foi a pergunta, afinal?

- Eu preciso muito saber sobre este meu amigo.

 Aquele em que ele havia pensado era-lhe deveras especial. Ele considerou, secretamente,  que muito pouca gente podia dar-se ao luxo de preocupar-se somente com os amigos. Ele, certamente, era uma destas poucas pessoas. 

Ela, então, disse:

- Posso-lhe garantir que este, especialmente, é mesmo fiel… e não só porque te respeita e te é profundamente agradecido, pelo que fizeste por ele, mas principalmente porque gosta muito de ti.

O homem olhou a carta principal do grupo de três, disposta sobre a mesa. A imagem de um jovem de cabelos e olhos escuros, bem-apessoado e com um sorriso extremamente atraente, veio-lhe à mente. A forma como o rapaz se locomovia, quando estava em ambiente em que se sentia confortável, lembrava-lhe um felino a caminhar, sempre cheio de si e emanando um magnetismo extremamente charmoso.


O homem de cabelos castanhos aguardava, com os olhos atentos ao grande display do aeroporto, as informações de chegada dos voos, principalmente os provenientes do norte da Europa. A aeronave já encontrava-se em solo, há algum tempo, mas o passageiro que ele fora buscar não havia ainda cruzado a porta de chegada.  

Longos minutos depois, aquele sorriso inconfundível cruzava a porta automática e vinha na sua direcção. Ele estendeu a mão, num gesto amigável e formal. O rapaz puxou-o contra o peito e deu-lhe um abraço fraternal, surpreendendo-o completamente. A mão estendida, evidentemente, não lhe havia sido suficiente.

- Você está como o vinho. Parece cada vez melhor, com o passar do tempo…

- Não exagera, rapaz…

As janelas do carro estavam baixadas e o vento de verão, que entrava sem pedir nem fazer cerimónias, brincava com os cabelos dos dois. Ele ouvira o elogio e tentara, timidamente, dizer-se não merecedor do mesmo. Mas intimamente sabia que deliciava-se com a observação do outro.

- E tu? Como estás?

- Estou bem…

Ele fez uma pequena pausa,  olhando o outro a conduzir o carro, a caminho do hotel.

- Vou casar…

- Oh! Sério?

- Sim. Já está na hora de aquietar-me na vida… Já tenho trinta anos.

Ele piscou o olho para o amigo, com um sorriso malicioso. O outro homem riu.

- Trinta anos… uma criança ainda…

A notícia, entretanto, havia sido um tanto inesperada e ele ainda não sabia o que pensar a respeito do que acabara de ouvir. Conhecia o outro razoavelmente bem, embora estivessem sem se ver por um bom tempo, mas fora pego de surpresa pela notícia. Um poema foi criado em sua mente naquele momento, sem nunca ser proferido em alta voz. Ele simplesmente  olhou para a frente e engoliu as palavras…

Hate me, please.
Don’t pity me
Don’t patronize me,
Don’t look at me like that.
I just can’t stand the way
Your gaze burns
My soul inside
So, please, my dearest friend,
Just hate me
And let me go away…


O homem olhou com uma expressão séria para a cartomante, cujas mãos, agora pousavam, tranquilamente cruzadas, sobre a mesa à sua frente.

- Posso fazer outra pergunta?

- Claro que sim.

Ele concentrou-se e tirou mais três cartas, que ela dispôs sobre a mesa. Uma carta conhecida apareceu-lhe pela segunda vez. Ele esperou a análise, com os olhos presos na sequência disposta à sua fente...  


sábado, 28 de dezembro de 2013

A Cruz Celta (Parte 1)


Ela era gordinha. Considerando-se que uma mulher acha-se gorda se tiver mais que cinquenta quilos e ela estava lá pelos oitenta e tantos, nos seus míseros um metro e sessenta de altura… ou menos: ela era gorda. O rosto redondo transmitia benevolência e simpatia; as faces rosadas, um certo ar de juventude. Não era fácil precisar a idade. A impressão que se tinha era que devia haver passado recentemente dos trinta, mas podia-se enganar facilmente.

A cartomante tinha, porém, uma característica que outras talvez não tivessem: uma capacidade de percepção além do normal. Se era mediunidade ou percepção aguçada, não importava. A lei das coincidências jogava muito a seu favor. Mesmo os mais desconfiados balançavam diante da precisão das previsões da pequena mulher e era isso que o levou até ao pequeno estúdio onde ela atendia.

Curiosidade e cepticismo andavam de mãos dadas na mente do homem de meia idade… e uma boa dose de falta de bom senso… 

- Uma cartomante! Onde é que estou com a cabeça? Só pode ser desespero, mesmo…

Os pensamentos vinham em contradição, uns com os outros, lutando entre si, mas a curiosidade estava levando uma boa vantagem. Já havia chegado até aquele lugar. Agora era só relaxar, tentar não levar nada muito a sério e ver onde a coisa toda ia dar. No mínimo, era uma diversão, para um homem que estava à beira de uma crise de nervos.

Os cabelos castanho-claros começavam a tingir-se naturalmente de grisalho, nas têmporas, na cabeleira ainda farta, mas entradas no alto da testa mostravam que a calvície viria logo em seguida. Ainda assim, possuía um certo charme, que somente a maturidade traz, aos homens que sabem o valor que a vida tem. A dele andava um tanto descorada e insípida, sem muita alegoria, além da sequência palidamente bicolor casa-trabalho e trabalho-casa…  e não muito mais.

Já não tinha vida social, desde há muito e os fins-de-semana eram passados solitariamente a percorrer os corredores do supermercado, lavar e passar as roupas da semana e cozinhar algo mais elaborado que nos dias comuns. Nem ao cinema ia mais. Limitava-se a ouvir música, ler e assistir TV ou vídeo, quando invariavelmente adormecia encolhido no sofá.

A única companhia que desfrutava era um gato rafeiro, que adoptara de uma sociedade protectora, para não ficar completamente só. Escolhera um gato, não só pela independência e pouco trabalho que dava, mas por admirar a personalidade dos felinos e a pouca disposição para parecerem estar sempre prontos, quando realmente não estavam ou não lhes apetecia… e era assim que ele também sentia-se, às vezes…                   

Ele olhou a mulher, de frente, quando sentou-se. Ela fez algumas perguntas - que ele respondeu, quase automaticamente - para situar-se, antes de começar a deitar as cartas sobre a mesa.

O velho e amarelado baralho já estava a postos, num lado da mesa, prontinho para entrar em acção, assim que ela achasse que a hora era a certa. Parecia haver sido muito manipulado por aquelas mãos pequenas e gorduchas, que agora moviam-se com uma agilidade digna de um grande e hábil jogador de cartas.

A mulher procurou e escolheu uma carta do meio do monte, antes de começar o ritual. Retirou um Rei de Copas e colocou-o no centro da mesa.

- Este é você. O jogo começa a partir desta carta: o significador. O Rei de Copas representa um homem maduro, de cabelos castanhos, pele clara, generoso e elegante.

Ela piscou o olho e sorriu. Embora não fosse realmente bonita, o sorriso caía-lhe muito bem e tornava-lhe o rosto até um tanto atraente. Ela havia feito uma espécie de elogio, quase subtil e descomprometido. Ele olhou a figura no pequeno cartão colorido e marcado com um grande K impresso em vermelho, no canto esquerdo superior e outro no canto oposto, com olhos de avaliação, como nunca havia feito, quando jogava cartas com os irmãos, em dias de chuva e noites de sábado, em tempos há muito passados.

Então era assim que ela o via…. Ele sentiu-se estranhamente lisonjeado.

Devolveu-lhe um leve sorriso e analisou o desenho: os cabelos e a barba claros, os olhos um tanto perdidos e a mirar, neutros, um nada à frente. A coroa de ouro, decorada com rubis, provavelmente, devido à cor vermelha, escondia o alto da cabeça e parte da testa. Ele sentiu vontade de rir. O rei trazia ainda uma espada numa mão e a outra a segurar a gola de arminho do casaco…

O homem avaliou bem a situação, sem envolver-se demais e concluiu que o desenho da carta já esteve sobre um fundo imaculadamente branco. Agora, as bordas acastanhadas, o fundo amarelo e a figura quase a querer desaparecer no meio de tanta história contada sobre aquele tampo de mesa, pareciam querer gritar-lhe algo, que ele ainda não conseguia perceber. Um pensamento veio como um raio à mente, sem sair-lhe um som pelos lábios.

- …E o nome do jogo? Vida?...

Reteve o pensamento, sem zombar do que não conhecia e sem deixar transparecer qualquer tipo de emoção.

- Vamos ver o que virá agora… vamos ver…

A reflexão não o distraiu, nem fê-lo mudar a feição. Era apenas uma curiosidade aguçada, que ele sentia, então.

Ele olhou as pálidas mãos a embaralharem, com desenvoltura, as cartas gastas por tanto uso, até que ela parou e pediu-lhe para partir o maço em três, com a mão esquerda, a partir do centro da mesa, indo para a direita.

Ele obedeceu.

Ela recolheu os três montes, numa sequência que ia primeiro no monte da esquerda, da direita e, por fim, no monte do meio. A partir dali, começou a deitar as cartas, uma a uma, num desenho muito bem estudado pelo tempo e por uma rotina estranhamente destra: a cruz celta…

Ela começou por colocar a primeira carta em cima da mesa, sobre a que representava o significador: um Valete de Espadas - um homem jovem, moreno, sincero no amor, na posição da situação presente.

Um jovem homem de cabelos escuros movimenta-se com desenvoltura, num ambiente onde sente-se confortavelmente à vontade. Está onde devia estar, tanto no tempo quanto no espaço. Vários pares de olhos o seguem, magnetizados pela graça felina daquele indivíduo. Ele quase ouve os pensamentos dos frequentadores do bar, instalado no último andar de um edifício moderno no centro da cidade. 

Uma grande sacada proporciona uma vista ímpar das luzes da cidade, tornando o lugar bastante frequentado, não só pela qualidade do ambiente, mas também pelo típico e tradicional cardápio de bebidas locais, da mais alta qualidade. Os vinhos mais nobres estão no topo da lista. A noite estava morna e convidativa. 

Ele dirige-se à sacada, com uma taça de vinho branco, fresco, na mão. O outro homem vira-se ao senti-lo aproximar-se. Tem os cabelos castanho-claros, levemente arruivados. Aparentemente os dois homens se conhecem de longa data.Com um aperto de mão e uma troca de sorrisos começam logo uma conversa amigável.

Por cima das duas cartas já deitadas no centro da mesa e formando uma cruz com a anterior, outra foi colocada. Representava as influências imediatas e ocultas. Desta vez era um Valete de Copas - amigo ou amante, nem sempre confiável.

Um certo par de olhos observa os dois homens a conversar descontraidamente na varanda. Eles levantam as taças que trazem nas mãos, brindam e bebem, imediatamente, dando risadas altas, logo em seguida.

- Aquela alegria vai durar muito pouco…muito pouco mesmo…

 O pensamento saiu quase espontaneamente, na mente do jovem de cabelos e olhos claros a observar os dois homens a socializarem espontânea e divertidamente. O rosto afilado e o bigode e pêra, cuidadosamente aparados, davam-lhe uma aparência atraente, mas os olhos causavam uma certa intriga a quem os olhasse. 

Que mistério ocultava-se atrás daquelas lentes naturais de um verde tão incomum e cristalino?

Acima, onde o topo da cruz devia estar, outra carta foi colocada. Representava o consulente perante o problema e as raízes do mesmo. Oito de Espadas: más notícias, desapontamento, crises, conflito, traição.


O rapaz de cabelos e olhos claros aproximou-se da mesa onde os outros dois conversavam, então, após fazerem o pedido ao garção. Os dois sorriram ao vê-lo aproximar-se e saudaram o recém-chegado com um forte aperto de mão, tapinhas nas costas e um convite para sentar-se junto a eles. Ele sentou-se, com um sorriso nos lábios, enquanto iniciavam uma conversa evidentemente amigável. 

Mal sabiam que o rapaz que convidaram a sentar com eles trazia mais que uma conversa meramente inocente e amigável… 


quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Pandemónio (na casa de descanso) - Epílogo

- …E não poderia ter revelado isto antes? Me desculpe a impaciência, mas é-nos absolutamente necessário ter ciência das condições médicas das pessoas que entram por aquela porta e aqui vivem. Como é que isso passou, sem que tomássemos conhecimento? Isto é inadmissível. É muito grave.

A directora se sentia cansada e preocupada ao mesmo tempo.

- Ele diz que consegue perceber quando uma crise se aproxima e se prepara. É quase como entrar em depressão. Isolar-se é uma forma de defesa. Se sentir que não há necessidade de incomodar ninguém, prefere ficar à margem, até a crise passar. Afinal, a medicação deveria ajudar a retardar a evolução da doença.

A enfermeira-chefe sabia que não era bem assim. Repetia o que ele lhe havia dito, mas não concordava com o discurso. A medicação não impedia a evolução da doença. Era preciso mais que o isolamento e o remédio, para retardar o progresso. Ele necessitava de um acompanhamento mais de perto. Ela sabia que o facto de exercitar, bastante, o cérebro era um bom sinal. Ele desenhava, pintava, escrevia, lia e ainda tinha as cartas de tarot e o computador… Não se sentia nenhum inútil e não era um covarde. E até que enfrentava a condição com muita coragem e cabeça fria. Mas isso não era suficiente. Ela tinha uma influência sobre ele e tinha que se aproveitar desta. Precisava mantê-lo sob constante vigilância, tentando, entretanto, não ser invasiva à rotina dele.

A directora, por seu lado, tratou de fazer suas pesquisas acerca do historial da doença, com o médico que assinara o diagnóstico e que havia sido emitido mais de dois anos atrás. O médico – o mesmo e único homem, que um dia visitara, incógnito, o velho, na Casa de Descanso - confirmara que não havia sido consultado desde então. Se o paciente tomasse a medicação e tivesse acompanhamento adequado, a doença poderia evoluir mais vagarosamente. Era necessário fazer uma reavaliação, com toda certeza.

O velho passava boa parte do dia observando, distraidamente, o movimento no portão de entrada. Sentava-se no habitual banco de madeira, em baixo da árvore no pátio, com o gato a lhe fazer companhia. Nestes últimos dias, parecia normal, embora um pouco mais introvertido que de costume. Parecia que se preocupava em não deixar a enfermeira-chefe mais aflita que já estava. Prometera a ela que se cuidaria melhor. Ele se deixava levar, por gostar dela mais que conseguia controlar e por tentar prolongar aquela atenção por tanto tempo quanto possível. Quanto mais lúcido estivesse, mais desfrutaria da companhia dela. E ele sabia que seu tempo começava a ficar curto.

A enfermeira-chefe se perguntava como a relação com o gato não era afectada pelas crises do velho homem. Que estranha conexão havia entre eles, que nem a doença conseguia enfraquecer? Enquanto o bichano estivesse por perto, ela se sentia segura e, tinha certeza, ele também.


O velho abriu a janela, para deixar circular um pouco de ar dentro do aposento. Quando abriu a porta, não havia ninguém do lado de fora, no corredor. Ginger, o gato, se espreguiçou e se preparou para sair da cama, acompanhando o velho companheiro, que estivera se aperaltando por quase uma hora. O velho, porém, lhe diz:

- Hoje não, meu amigo. Hoje, eu vou sozinho.

O homem havia se vestido como se fosse sair para um passeio. Ele havia arrumado o quarto com esmero, deixara a caixa de areia devidamente limpa e trocara a água e a comida do gato. Com um olhar crítico, dá uma última avaliada no quarto e faz um carinho no animalzinho, que ronrona de satisfação, olha-o, sereno, como se compreendesse e se aninha sobre o travesseiro, apoiando a cabeça sobre as patas dianteiras, cruzadas. O homem sai, então, sem trancar a porta do pequeno apartamento.

O sol já ia alto no céu de Primavera, quando ele caminhou, corredor afora, na direcção da porta da varanda, que recebia uma brisa suavemente fresca, àquela hora da manhã. As pessoas estavam ocupadas, tomando o lanche da manhã e não perceberam quando ele passou pela porta de saída e atravessou, tranquilamente, o pátio. O homem cruzou o portão, cujo movimento havia observado, por semanas, virou à esquerda e saiu pela calçada afora a assobiar uma velha canção conhecida sua.

“And it was cold and it rained so I felt like an actor
And I thought of Ma and I wanted to get back there
Your face, your race, the way that you talk
I kiss you, you're beautiful, I want you to walk”…*



Poucos minutos depois, a enfermeira-chefe entra e vê, somente, o gato deitado. As orelhas do bichinho se movem, levemente, na direcção do ruído que ela faz. A mulher sorri e balança a cabeça, como se desaprovando aquela organização no quarto do velho. Ela percebeu que um único detalhe conspurcava a cuidadosa arrumação: dentro da lixeira jazia um pedacinho de papel, amarelado pelo tempo e dobrado em dois. Ela apanha-o, desdobra-o e lê a curta mensagem. Uma letra miúda e rebuscada mostra um endereço electrónico. Não é a caligrafia do velho, ela reconhece.

Ela sai, vai à saleta dos computadores e envia uma breve mensagem, por e-mail, ao endereço escrito no papel. Levanta-se, arruma a cadeira e sai. Já ia à porta, quando ouviu o computador dar alerta de mensagem chegando. Volta-se e lê: “o provedor não conseguiu encontrar o destinatário”…

- Algo não está certo. Seria somente uma lembrança, guardada com carinho? E se fosse…

A mulher conecta, então, o Messenger, digita o mesmo endereço escrito no papel e envia uma mensagem. Era um tiro no escuro, mas poderia dar resultado… Ela ouve o som de vozes se aproximando e sai da saleta, para não ter que dar explicações a ninguém.

Já no quarto, seus olhos pousam sobre um livro, cujo autor ela desconhecia e que havia sido deixado em cima de sua escrivaninha. Sobre o mesmo, havia um envelope fechado, com o nome dela, desenhado com esmero, como se fosse um exercício num caderno de caligrafia, com a letra cuidadosa do velho. Ligeiramente apreensiva, ela abre o envelope e retira uma pequena mensagem escrita, quase em código."Use a intuição e não tenha medo do desconhecido. As respostas estão lá: basta concentrar-te." Ela franze o cenho, mas compreende o que ele queria dizer.

A mulher abre uma gaveta, fechada à chave e de lá retira uma pequena caixa azul. Dentro da mesma, envolvido num pano quadrado de cetim roxo, está o deck de tarot – o presente dado pelo velho amigo. Ela vinha se esmerando no estudo da leitura das cartas, mais para agradá-lo, que para seu próprio proveito. A curiosidade queria controlar suas atitudes, mas ela tinha receio do que pudesse encontrar, quando começasse a descobrir coisas, para as quais não estivesse preparada. Era como se entrasse no oceano, mas tivesse medo de nadar. E ela não conhecia a profundidade daquelas águas.

Antes de continuar seu pequeno ritual, volta-se e tranca a porta atrás de si. Ela abre o pano em cima da escrivaninha e escolhe, no maço, uma carta para ser o “Significador”, perguntando-se se o velho seria representado pelo Ermitão – um homem solitário, sábio e prudente – ou pelo Imperador – um grande guerreiro, na hora da parada, protegendo os seus bens. Por fim, decide pelo Rei de Paus, por ser um homem mais velho e um Senhor do Ar: um grande mestre – que é como ela o via.

Em seguida, coloca a carta escolhida no centro e embaralha as outras, sete vezes, com cuidado. Parte em três, recolhe a partir do monte à direita, depois o da esquerda e, por fim, o do centro. Uma a uma, as cartas começam a deixá-la desconfortável. Por cima do significador veio a carta chamada Morte: a grande mudança. Esta era uma carta que as pessoas interpretavam muito mal. Talvez pelo nome, disse-lhe, certa vez, o velho. As pessoas têm medo da morte e temem esta lâmina, mas ela é positiva. Tem uma outra que parece menos malévola e é muito mais nefasta…

As cartas foram se sucedendo e seu coração apertando a cada interpretação. Dois de paus, na posição do futuro próximo: viagem curta; encontro com o mestre. A combinação da sequência final, porém, pareceu densa demais: o Enforcado, o Louco e a Torre: o fim de um sacrifício, a incerteza e a destruição… Ela nunca soubera interpretar direito a carta do Louco. Seria incerteza, ou um passo contra o desconhecido?

Pousou os olhos sobre a última lâmina: a Torre – a única carta realmente negativa de todo o deck – mais nefasta que a da Morte. Enquanto esta última significava apenas uma grande e radical mudança, a Torre significava a destruição... ou algo pior…

Foi então que ela entendeu… Levantou-se depressa e saiu para o corredor. Lá fora, as mulheres e também os homens estavam em polvorosa outra vez, falando todos ao mesmo tempo. As vozes, cada vez mais estridentes, pareciam aumentar à medida que ela se aproximava do centro do furacão acontecendo na sala principal, com a determinação de alguém que enfrenta uma tempestade. Do outro lado, perto da porta da saleta dos computadores, o olhar da directora, exasperado, lhe dizia tudo, sem que uma palavra proferisse.

No meio da confusão, ela soube. Duas lágrimas saltaram, sem cerimónia, de seus olhos azuis… O velho transformara a casa de descanso em pandemónio, mais uma vez…


No quarto, o gato, deitado no costumeiro lugar, fecha os olhos, tranquilo… Poucos minutos depois, dorme o sono dos justos. Instintivamente, se encolhe e vira a cabeça, deixando a parte de baixo virada para cima, como tantas vezes fazia – o que divertia o velho – quando quase pedia um carinho e uma coçada no queixo e pescoço…


A directora ouviu o som característico, conhecido, a vir do computador, na saleta. Aproximou-se e viu a mensagem a piscar na tela do computador. Com um click sobre a tela, abriu o Messenger e recebeu uma mensagem: olá, meu amado amigo… Já estava com saudades…

No canto superior, viu a foto de uma mulher, aparentando uns cinquenta e tantos anos, cujos olhos azuis ela reconheceu imediatamente. Intrigada, leu o nome que o destinatário usava. O mesmo sobrenome da enfermeira-chefe…

* Excerpt from (Five Years - David Bowie - 1972)

sábado, 5 de dezembro de 2009

Pandemónio (na casa de descanso) - Parte 5

As luzes da sala de espera, próxima ao portão 22, focavam apenas uma única pessoa, ou assim parecia ao homem, que sentado, lia um jornal. Aqueles olhos azuis fingiram não ver o seu olhar cruzar a sala momentaneamente, mas tornaram a observar o homem, assim que este voltara a baixar a cabeça.

Já na fileira de quatro lugares, no meio de um voo lotado, o homem observava as pessoas passarem e se acomodarem, algumas em silêncio, outras em verdadeira balbúrdia, sorrindo e conversando alto. Imediatamente colocou os fones nos ouvidos, para isolar-se do alvoroço geral. Logo o avião estaria no ar, o tumulto mais controlado e ele poderia fechar os olhos e fingir estar dormindo, para não ser perturbado.

Olhares iam-se, indiferentes, procurando o assento certo. Um rapaz sentara-se na poltrona da ponta, deixando um lugar vago entre eles. O homem desejou que o lugar ficasse vago até o destino. Foi quando ele viu aqueles olhos novamente. As luzes pareceram apagar, outra vez, excepto por aquela sobre a cabeça bem desenhada da mulher parada, a olhar o lugar vago a seu lado, com uma expressão divertida.

- Sente-se aqui. Sente-se aqui - desejava ele, em silêncio e com veemência, tentando não parecer desesperado demais, pela expressão de sua face.

Aquele olhar pousou sobre ele e a mulher pediu licença ao rapaz sentado próximo ao corredor. O homem sentiu seu coração dar um salto.

- Com licença…

Ele ouvia a frase repetida, mas era consigo que ela falava agora. O homem quase não acreditava na sua sorte. Não lembra como começaram a conversar. Só lembra que a noite foi curta demais. Não pararam de falar a noite toda. Nunca um voo pareceu tão rápido. Poucos minutos antes da saída, ele ouviu:

- Você tem endereço de Messenger? (Quem não tinha?) Escreva aqui, por favor.

Ele escreveu, com cuidado, caprichando na caligrafia para não deixar dúvidas na sequência de letras. Num pedacinho do mesmo papel, rasgado em rectângulo, numa caligrafia miúda e rebuscada, recebeu o endereço dela. Mesmo que nunca mais se vissem ou se comunicassem, aquela era uma prova que ele não imaginara aquela viagem tão incomum. Tiveram que se separar, pois cada um tinha um destino diferente. Ele ficava, ela partia para um próximo destino. O voo de conexão já estava em vias de embarque.

Se despediram às pressas, sem aperto de mão, sem nada mais que um simples adeus, meio gritado, com um rápido olhar por sobre os ombros, enquanto os passos apressados sumiam à distância. O homem apalpou o pedacinho de papel, dobrado em dois, no bolso, com uma afeição que há muito não sentia.

Ao sair pela porta giratória, o mundo pareceu bater-lhe de frente, à face, com a frieza do ar de inverno e da realidade, vindos, sem piedade, do lado de fora…


O velho olha o gato deitado, a lhe observar com atenção, mas sem se mostrar ansioso a sair do conforto da almofada, sobre a qual se encontrava a descansar. Ele coça o pescoço do amigo, que lhe retorna o carinho com um ronronar de satisfação. Olha, com uma pontinha de tristeza, para a caixa em cima da escrivaninha e pensa que e enfermeira-chefe não voltaria a buscar o presente que ele havia-lhe oferecido.

Ele se adianta e abre a pequena caixa de madeira, retirando dela um objecto embrulhado, cuidadosamente, em um pano de cetim roxo. Dele, desenrola um deck de cartas, marcadas pelo uso. Ele estende o pano sobre a escrivaninha e embaralha as cartas, distraidamente, várias vezes. Neste momento, a porta se abre e ela entra.

- Desculpe por não vir antes. Não foi de propósito… muita coisa para fazer…

O gato espreguiça-se sobre a almofada, enquanto o velho se volta, com o deck de cartas na mão. Ela desculpava-se, por educação, mas ele já havia-se esquecido porque tinha estado triste. Ela tinha o efeito de lhe curar as dores da alma, pela simples presença, que ele estimava tanto.

- Sente-se aqui – disse-lhe ele, apontando para a cadeira à escrivaninha. Vou-te ensinar a jogar estas cartas. Gostaria que aceitasses o presente e as lições…

Ele buscou um livro num armário e o colocou sobre a mesa.

- Em caso de dúvidas, nunca tenha medo de consultar o manual…

Ele dizia aquilo com uma naturalidade e tranquilidade, que ela admirava. O homem ensinou-lhe a embaralhar e dispor as cartas no jogo e pediu-lhe para puxar uma carta do meio do monte disposto em leque aberto, colocado no centro do pano estendido na escrivaninha.

Ela puxa uma carta, franze o cenho e olha para o velho. Uma sombra passa à luz dos seus olhos. Ela tenta não se afectar, mas já havia sentido o efeito que a representação de um esqueleto com uma foice na mão provocara em sua percepção. A figura não causou tanto desconforto, quanto o nome da lâmina representada. Com a mão trémula, ela hesita em continuar e solta a carta sobre a escrivaninha.

- Desculpe. Eu não consigo fazer isso. Tenho medo do que possa ver. Essas coisas me assustam.

Ele percebeu que ela falava com sinceridade. Olhou com complacência para a mulher, que se transformara numa menina amedrontada, recolheu a carta e disse, devagar e firmemente:

- Assim como muitas atitudes e pessoas, esta carta é mal compreendida. Apesar do nome, no tarot, esta carta significa uma grande mudança. É preciso deixar umas coisas para trás, abandonar certos hábitos, para que outros nasçam. Mas deve-se estar preparado para esta transformação. É como se fosse a alegoria da Fénix: das cinzas de uma, nasce a outra, rejuvenescida e pronta para enfrentar novas e radicais mudanças. Não tenha medo. Esta carta é muito positiva!

Ela olhou-o, com cuidado, tentando estudar suas expressões, tentando ver se ele falava a verdade. Ele parecia de um mestre, paciente e sábio, tentando mostrar a verdade à sua pupila. O músculo de sua testa, entre os olhos, relaxou um pouco. O velho, então, sorriu.

- Sabendo usar as cartas, te deu alguma vantagem? Foi mais fácil viver, sabendo que podias contar com um conhecimento que nem todos possuem? Pode-se achar a felicidade, procurando nas cartas?

Ela agora parecia uma menina curiosa e ávida por respostas, que ele não havia se acostumado a dar, em todo o curso da vida. Mas ele sabia que se não fosse a ela, jamais se abriria novamente. A mulher fingiu que não percebeu que ultrapassava uma linha limítrofe entre o respeito e a intimidade. O gato semi-cerrou os olhos e levantou as orelhas, observador que era e conhecedor dos hábitos do velho.

- As coisas não funcionam assim tão fáceis. Não se tem vantagem por saber ler as cartas. Eu usei pouco este conhecimento em meu favor. Minha intenção era compreender certos mistérios e não ser completamente surpreendido em algumas ocasiões. Mas eu também ajudei outras pessoas… não muitas… Algumas tem medo do que vêem.

Ele olhou fixamente nos olhos dela. Será que ela estaria preparada? Ela parecia hipnotizada pelo olhar do homem. Por fim, ele disse:

- Eu fui feliz com tão pouco. A vida não me deu muito… em relacionamentos, em amor, em prazer… e, no entanto, eu fui feliz. Algumas coisas parecem ter acontecido tarde demais, no tempo… Mas... não, eu não vivi uma vida morna. Tudo que eu fiz, foi muito intenso. Eu vivi sempre com muita paixão pelas coisas que fazia e pelas pessoas que eu amei. Se eu fui tão feliz com tão pouco, o que poderia ter sido, se tivesse um amor verdadeiro? E se tivesse recebido mais? Teria, eu, sido mais feliz? Não sei dizer…

A enfermeira-chefe compreendeu o que o homem dizia. Só não esperava pelo próximo passo dele.

- Esta é a carta que deves temer… e, esta, a combinação mais perigosa de todas…