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domingo, 25 de fevereiro de 2018

Pelo Litoral (Parte 4)


- Voltou a sangrar? 

- Sim. Eu devia ter apertado a bandagem mais forte. 

- Temos que dar um jeito nisso, mas sem levantar suspeitas. Se formos a um pronto-socorro, eles vão chamar a polícia. 

- Não há necessidade. É uma questão de tempo. Foi só um raspão. 

- Por sorte. Mas se infecionar, não teremos alternativa. 

- Não nos preocupemos com isso, agora. Vai ficar tudo bem. 

O rapaz de óculos assentiu, preocupado. Não era apenas um raspão. A bala havia entrado e saído, felizmente, sem atingir nenhum órgão vital, pelo menos aparentemente. Ainda assim era um ferimento de bala e podia infecionar. Foi o que eles ganharam por enfrentar homens armados, tendo como defesa apensa as roupas e pedaços de metal dentro delas.

Eles tinham que passar despercebidos, por isso o ferimento tinha que estar contido, ou, então... 

E eles já não tinham certeza de nada… 

*** 

- Incompetentes. Estou rodeado por incompetentes! Como é que três dos meus seguranças, escolhidos a dedo, por serem os mais habilitados, deixam escapar dois rapazes daqueles. 

O chefe da Segurança não respondeu. Sabia que o homem não ouvia ninguém quando estava enfurecido. Era uma questão de tempo e de paciência até a razão voltar e ele, mais calmo, dar novas ordens ou arquitetar um plano, para sair de alguma situação. Aquela era grave. Era um furo no procedimento e um risco muito grande. Se os rapazes descobrissem o que havia por trás da operação, da qual ele sabia pouco, mas tinha certeza que era muito importante, eles estavam em grande perigo de exposição. 

- Vocês tem até o fim do dia para acabarem com isso. Resolvam isso já! 

O chefe da Segurança virou-se e saiu. Não tinha a mínima ideia de como resolver, mas sabia que se não fizesse nada, tinha a cabeça a prêmio. 

*** 

No dia seguinte ao incidente, os dois desceram para a cidade, foram ao banco, resolveram a questão com os cartões e com o dinheiro e arranjaram um Airbnb mais decente para ficarem, porém sem muita exposição, de modo a poderem planear o que fariam em seguida. A escolha era baseada no facto de serem mais dificilmente identificados, do que se ficassem em um hotel. A quinta era suficientemente discreta e bem arranjada, além de muito bem localizada, numa das ruas secundárias, pouco distante do centro da cidade. Era uma escolha muito conveniente. 

Ainda pela manhã, foram até a Biblioteca Pública fazer uma pesquisa sobre os negócios da N.M.E. e descobriram que a mesma estava para fechar um contrato para pesquisa e desenvolvimento de medicamentos. A princípio aquilo pareceria normal, se não fosse um pequeno detalhe escrito no final do artigo. O rapaz de óculos estranhou o facto e comentou com o amigo. Valia uma investigação mais profunda. 

- Vamos ter que ir mais a fundo nisso. Melhor ir até lá! 

- Estás louco? Ir direto à boca do lobo? Isso é suicídio. Eles já estão à nossa procura. Não nos vão deixar sair de lá, vivos! 

- Tem que haver um jeito. 

Airbnb não ficava longe da Biblioteca. Quando estavam chegando à esquina, viram que havia um carro preto parado, perto da quinta, onde estavam hospedados. Os dois perderam, completamente, a naturalidade, sentindo seus músculos a enrijecer. Eles voltaram uns passos e enveredaram pelo portão atrás da pequena igreja, no alto do morro e ficaram a observar, escondidos. 

Dois outros rapazes, mais ou menos da mesma idade que eles vinham descendo a rua, conversando displicentemente, naquele exato momento. O carro arrancou e avançou contra os dois, que pegos de surpresa, não escaparam do atropelamento fatal. O motorista acelerou e enveredou pela rua, deixando as duas vítimas a sangrar no local do crime. 

- Estamos ferrados! Acho que eles pensavam que éramos nós! Não pode ser uma coincidência. 

- Isso está cada vez mais estranho e perigoso. Temos que sumir daqui. Nem podemos pensar em chegar perto da sede deles… Vamos ser mortos! 

- É verdade. Aquilo não foi apenas um incidente. Agora trata-se de um crime. 

*** 

O homenzinho sentou-se. O outro parecia pouco à vontade, mas abriu a pasta de documentos e folheou o dossier, com olhos bem alertas. 

- É essa a documentação que necessitamos para iniciar o processo? 

- Sim. Está tudo aí… para a primeira fase e para estudar a primeira amostra… 

- Primeira fase? Que brincadeira é essa? 

- Não é brincadeira. É a garantia de que vou sair daqui vivo e ileso. A segunda parte será enviada quando eu estiver seguro. 

- Isso não fazia parte do contrato. É uma fraude. 

- Não é. Eu tinha que tomar minhas precauções. Eu soube o que foi feito aos dois rapazes… 

- Efeito colateral. Nada mais que isso. 

- Não gosto dos vossos métodos, mas não tenho nada com isso e nem quero ter. Só me interessa terminar essa transação e retirar-me daqui. Tenho mais o que fazer e me preocupar… E para mostrar que eu falo sério, vou deixar uma segunda amostra. 

- Quem me garante que isso é suficiente, para iniciarmos a produção dos medicamentos? 

O homenzinho ignorou o comentário em forma de pergunta e continuou. 

- Há uma clara diferença no comportamento das duas amostras, embora tenham vindo da mesma origem. Esta segunda está recuperada, mas tem o ciclo de vida mais curto. Para transformar a primeira numa outra, em perfeito estado, com o ciclo de vida muito mais longo, é fácil, com os dados certos. Vocês têm a resposta numa matéria-prima em abundância, aqui mesmo. Foi um erro que cometemos, quando não aproveitamos o tempo que ainda tínhamos. Quando chegamos à resposta, já era tarde. Felizmente, eu tive tempo de recuperar a pesquisa, antes… 

- Recuperou? Mesmo? 

- Passe a informação e a amostra para o laboratório e mande-os comparar as duas. Eu mando o resto da informação, assim que estiver longe daqui. 

- É o que farei. 

O homenzinho esboçou um riso esquisito, como de alguém que não era acostumado a sorrir ou demonstrar simpatia. Sua face era quase impassível e desprovida de marcas de expressão, com exceção da região entre os olhos, onde apareciam profundas rugas de preocupação. Seu riso era, apenas, um pequeno movimento de lábios, sem muita expressividade. Ele parecia um fantasma… ou… 

- Muito bem. Aguardem meu contacto. 

*** 

- Isso não pode estar certo. 

- E não está. 

- Deve ser por isso que eles tem coisas a esconder e acham que nós sabemos mais do que realmente sabemos. 

- Mas a ponto de nos matar? 

- Isso é mais grave que uma infeliz coincidência. Como vamos descobrir mais sobre as falcatruas deles? 

- Não sei e nem quero saber. O melhor que nós fazemos é voltar para casa. Chega desta história. 

- Deixa-me pensar. Tem que haver um jeito… 

- Oh, não. Eu sei onde isso vai acabar. 

- Pelo menos agora temos uma hipótese. Eles pensam que estamos mortos! E eu acabo de ter uma ideia. 

- Oh, meu Deus! Estou ferrado! 

- Vem! 


***

sábado, 6 de janeiro de 2018

Pelo litoral (Parte 2)


Uma faixa de luz do sol infiltrava-se entre as folhas da árvore e pareciam acender e apagar contra o rosto do rapaz de óculos. Ele abriu os olhos, devagar, ainda meio tonto e com uma terrível dor de cabeça, como se estivesse de ressaca. As imagens foram entrando em foco, como num filme de arte contemporânea.
Deitado num banco da praça, sujo e desalinhado, ele passava por um mendigo ou um drogado, que adormecera ao relento, por falta de lugar melhor. Os poucos transeuntes, que passavam por perto, esquivavam-se da sua figura, como se fosse perigoso ou inconveniente. Ele sentou-se e olhou à volta. Não sabia onde estava. Pela posição do sol, parecia ser já a meio do dia, mas ele não tinha a mínima ideia de como viera parar naquele lugar. Ele sentia o cheiro de comida, recém-feita, bem temperada, no ar. Sentiu fome. Procurou a carteira, mas sem muita esperança de encontrá-la. Sentia-se roubado e aquilo deixava-o nervoso. Não sabia onde estava e não sabia como conseguir ajuda. Olhou à volta, mais uma vez. Precisava lavar-se, trocar de roupa e comer algo.
- Que belas férias!
O rapaz levantou-se e começou a caminhar. Sua cabeça girava. Ele parou e esperou um pouco, tentando recuperar as forças. Respirou fundo e caminhou, decidido a não deixar-se abater, nem perder o equilíbrio.
- Que droga! Eu sou um soldado treinado. Não vou cair aqui, agora. Preciso chegar ao mar, ou ao rio.
Olhou para cima, para tentar seguir o curso do sol. Um sino bateu uma vez. Ele procurou localizar de onde vinha o som. Se há um sino, há uma igreja e deve haver um relógio. Cruzou a praceta e viu que estava bem à frente de uma pequena capela, cuja fachada era toda decorada com azulejos pintados. O relógio marcava 1:15.
Ele caminhou na direcção da igreja, que estava na parte mais alta do lugar. Atrás dela, viu o rio, que corria para a sua esquerda. Aquela era, certamente, a direcção do mar. Passou a mão pela roupa bastante amarrotada e começou a descer a rua.
***
O homem, de aparência estranha, mas vestido com um alinhado terno escuro, feito à medida, caminhou, devagar, até a janela. Tinha o cenho franzido e uma expressão carregada, no rosto. Estava bastante preocupado.
O sol brilhava do lado de fora, num dia típico de verão. A sala refrigerada, para a temperatura constante de 18ºC, tinha poucos móveis. Além de uma mesa com uma dúzia de cadeiras, havia apenas um pequeno móvel, onde uma moderna máquina de café estava instalada, discretamente, num nicho, no canto do aposento. Estava no segundo andar do prédio, na sala mais distante da entrada, onde decisões importantes eram tomadas e, muitas vezes, estas tinham consequências bastante grandes na indústria alimentícia. A N. & M. Enterprises também tinha influência em negócios não tão inocentes quanto a produção de alimentos, mas pouca gente sabia, com certeza, em quais negócios seriam.
O homem observava o movimento que acontecia, naquele momento, ao rés-do-chão, sem mover qualquer músculo da face pouco expressiva. Ele levantou os olhos e concentrou-se num ponto além do jardim bem cuidado, junto a um pequeno bosque, mais adiante, praticamente escondido de quem vinha pelo lado da frente do edifício.
Escolhido com cuidado, o escritório ficava na parte traseira, mais silenciosa e mais discreta. Na rua, uma carrinha branca estacionada, tinha grandes letras vermelhas pintadas nas duas laterais. Ele passou a mão muito pálida pelo topo da cabeça calva e pelo rosto sem nenhum vestígio de barba.
A porta abriu-se às suas costas e ele ouviu a voz do secretário, baixa, mas muito firme:
- Eles estão aqui.
O homem respirou fundo e virou-se, devagar.
- Já era hora. Tragam-nos para dentro.
O secretário saiu e voltou logo em seguida com dois homens vestidos de preto e um outro rapaz mais jovem que eles. Um pouco mais atrás, um outro homem, também vestido como segurança, arrastava, pelos braços, um outro rapaz, de óculos, que tinha as roupas muito sujas e amarrotadas. Este último estava, ainda, meio desacordado.
***
- Não. Eles não sabem de nada. Aquilo deve ter sido um infeliz acidente. Uma coincidência…
- Mas eles agora vão desconfiar de que existe algo grande por trás desta história toda. Aliás, eles não são tolos. Já devem ter suspeitado…
- Temos que nos livrar deles. Não podemos deixar pontas soltas.
- Já deixamos. Agora temos que consertar esta burrada.
- Com cuidado e um bom plano, para não deixar nenhuma sombra de dúvidas a respeito de nossa integridade…
- Com certeza. A N.M.E. não pode ser associada a nenhum tipo de falcatruas. Temos que manter-nos insuspeitos. O sucesso dessa empresa depende de nossa discrição e de certos segredos.
- Teremos o máximo cuidado. Pode deixar.
O homem olhou sério para o chefe da Segurança e não pareceu muito convencido, mas fez um leve aceno com a cabeça, assentindo, para que o homem saísse logo e ele pudesse ficar sozinho na sala. Precisava pensar.
***
O rio parecia calmo, tranquilamente correndo na direção do mar. O rapaz aproximou-se e entrou com os pés na água fresca. A sensação era bem boa. Ele abaixou-se, lavou o rosto e a cabeça com aquela água e até sentiu vontade de nadar um pouco. Por um momento, esqueceu-se que não sabia, exatamente, onde estava e que não tinha ideia de como fora parar naquele lugar.
Continuou a seguir na direcção do mar. Minutos depois, quando já estava na praia, avistou os velhos moinhos. Ele não reconheceu o lugar, mas seguiu adiante. Precisava encontrar algumas respostas. Teve receio que fosse mal compreendido, com as roupas naquele estado, por isso evitou contacto directo com as pessoas que passavam por ele, enquanto caminhava pela orla.
Mais à frente, avistou uma estação de serviço, foi até lá e entrou. No balcão, viu um homem sentado, de costas, vestido com um terno escuro, tomando café. Com aquele calor, não pareceu-lhe a melhor indumentária, mas quem era ele para estranhar qualquer coisa. Antes que falasse com o empregado, a porta atrás de si abriu-se e ele viu outro homem, um grandalhão, também vestido de terno escuro, entrar. Não percebeu que uma carrinha branca estava estacionada ao lado das bombas de combustível. Só sentiu uma pancada e teve a impressão que começava a cair num poço escuro.
***
- Estás bem?
- Olha para mim. Pareço bem? Estou todo sujo, fui batido, drogado, arrastado e não sei o que está acontecendo. Como posso estar bem?
- É verdade. Foi uma pergunta estúpida…
- Onde estiveste? Quem são esses?
- Só posso dizer o que sei… o que não é muita coisa.
- Tu saíste, com eles, da pensão. A moça da recepção me contou.
- Sim. Estava sob a mira de uma arma. Tive que parecer natural, para não levantar mais confusão, ou ser morto ali mesmo. Estes homens são perigosos.
- Quem são eles?
- Eles trabalham para a N.M.E., uma empresa ligada ao meio alimentício, mas isso é só uma fachada. Há muito mais coisas por trás disso tudo.
- E como tu sabes disso?
- Eu fingi que estava desacordado e ouvi a conversa. Aqui há muito mais que as aparências querem mostrar.
- E por que nós estamos envolvidos nisso?
- Estávamos no lugar errado, na hora errada… ainda estamos…
- Como assim?
- Eles não sabem quem somos, mas pretendem livrar-se de nós. Temos que dar um jeito de sair daqui.
- Como? Se eles vão-nos matar… Que saída temos?
- Eles querem que pareça um acidente. Ouvi quando eles falavam com o chefe. Talvez tenhamos uma hipótese, mas vai depender de quantos daqueles gorilas teremos que enfrentar.
- Enfrentar homens armados, com aquele tamanho? Péssima ideia. Péssima ideia!
- Tens uma melhor?
***
“Estava tudo tão bem planeado, com tanta precisão, antes de enviar... “
O homem tentava encontrar uma falha no procedimento, mas não conseguia.
“Por qual razão estes intrometidos tinham que aparecer, logo naquela hora? Como não foi possível prever? Que detalhe passou, assim, tão despercebido?”
Ele não tinha dúvidas que ia ganhar muito dinheiro e mudar o curso da humanidade, quando aquele pequeno detalhe fosse resolvido. Ia ser um homem muito rico e poderoso. Sua ambição não tinha limites e passava por cima de muitos princípios, incluindo aqueles relativos aos escrúpulos.
Mas aquela interferência, naquele momento, não era bem-vinda e tinha que ser resolvida logo, de maneira eficaz e eficiente… E logo!
- Que droga!
Ele pegou o fone e discou um número conhecido. Em menos de dois minutos o chefe da Segurança entrava, apressado, na ampla sala. O homem estava de costas para a porta. Sem virar-se para cumprimentar o recém-chegado, ele falou, baixo, firme e tentando controlar a emoção ao extremo.
- Dêem um jeito naqueles dois. E tratem de não deixar nenhum vestígio. Agora!
- Sim, senhor.
O chefe da Segurança saiu, fechando a porta, com cuidado, atrás de si. Conhecia bem seu chefe. Aquele controlo todo era apenas uma capa protectora. Ele devia estar a ponto de explodir.
O homem continuou a olhar para o lado de fora, através do grande e bem cuidado jardim. No fundo podia ver o pequeno bosque de pinheiros, cujo limite era coberto com serralhas e outros tipos de asclépias, formando um bonito efeito, mas que tinham, na verdade, sido plantadas com um objectivo muito específico. Ele viu as borboletas a voar à volta das florzinhas coloridas e sorriu.
Enquanto estava a observar, distraidamente, aquela bela criação, uma porta abriu-se no lado esquerdo do jardim e um grupo de homens atravessou o pátio. Dois deles, vestidos com trajes escuros, carregavam, visível e ostensivamente, poderosas armas automáticas.


sábado, 2 de setembro de 2017

O Décimo-Terceiro (Parte 3)


Era tarde da noite, no subúrbio da cidade. As silhuetas de duas pessoas, com aparências muito dissimilares, moviam-se em meio às sombras, por entre as ruelas e os becos. Algumas pessoas ainda caminhavam na rua, outras conversavam alegremente, dentro dos bares e restaurantes. Estava uma perfeita noite de Outono, sem ser fria e até bastante agradável. Ao homem mais forte, aquela temperatura era ideal, porém o seu companheiro estava desconfortável, sentindo seu corpo pálido e frágil tremer de frio.

- Vamos por ali. Não devemos estar longe, agora. Só espero não dar um susto demasiadamente grande ao velho.

O outro olhou para ele, sem perceber muito bem o que aquilo, realmente, significava e continuou seguindo ao seu lado, por trás de uma grande casa, que cobria um quarteirão inteiro, na parte mais afastada da vila. Atrás dela, havia um parque com brinquedos e, depois, um grande pátio.

Quando atravessavam uma área bastante arborizada, o movimento que fizeram para afastar os galhos das árvores provocou um efeito surpreendente em alguns dos moradores temporários do bosque. Um farfalhar colorido impressionou o clone, mas irritou o homem que o conduzia, por aqueles caminhos obscuros, na noite fresca de Outono.

- Oh! O que é isso?

- São borboletas. Monarcas, mais especificamente…

- Que interessante… São tão…

Faltaram-lhe palavras. Não conseguia, com seu pouco tempo de vida, dizer o que sentia, em relação à beleza, uma das poucas coisas que o impressionaram.

- … irritantes, quando voam assim à nossa volta. Não devemos fazer muitos movimentos, pois qualquer coisa pode levantar suspeitas e nos colocar em perigo. Temos que manter nossa presença a mais discreta possível.

O clone olhou o homem, que se irritava com tamanha beleza e não compreendeu a razão dele não apreciar aquele momento incomum. O rapaz puxou-o pelo braço, sussurrando, irritado.

- Vamos! Cada minuto que perdermos é precioso demais e vai-nos fazer falta. Ainda vais saber mais sobre as Monarcas, se tiveres tempo… Agora vamos!

Chegarem, finalmente, à entrada de um túnel, escondida na parte de baixo de um edifício. Dali, após passarem por outra série de túneis, emaranhados numa rede bastante intrincada, chegaram, finalmente, a um pequeno e velho galpão, construído nas traseiras de uma casa comum.

Uma luz acesa mostrava que havia alguém dentro da casa. Os dois tiveram o cuidado de manter-se nas sombras, até que tivessem certeza que ninguém os via. O silêncio deu-lhes a certeza que não havia perigo. Os dois avançaram e foram até a porta. O homem mais forte deu uma batida na porta, com os nós dos dedos. Depois, uma parada e, a seguir, duas outras batidas, seguidas de um curto espaço. Era o código que havia sido combinado. Ao ouvir o som de passos, no lado de dentro, ele sentiu uma apreensão esquisita.

Um homem de meia-idade abriu a porta, mas sua expressão logo mudou, para um misto de preocupação e medo. O que aqueles dois estranhos faziam ali à sua porta, usando o código combinado, era uma incógnita. O homem mais forte lembrava-lhe alguém conhecido, mas ele não conseguia saber quem.

- Em que posso ajudá-los?

O homem mantinha a porta meio aberta, tentando controlar a situação. Percebia que estava em desvantagem, mas tinha que tentar intimidar os visitantes, que mantinham-se, um pouco, à sombra da noite.

- Podemos entrar? É importante.

- Não. Não podem, sem dizer-me quem são e o que querem.

 O rapaz avançou um passo e o homem agarrou a porta, tentado fechá-la, antes que perdesse o controlo, mas sua força nem se comparava à daquele jovem.

- Pai?

O homem arregalou os olhos. Não contava com aquela. Ele não tinha nenhum filho daquela idade, com certeza absoluta. Os olhos do rapaz, porém, quando foram atingidos pela luz de dentro da casa, mostraram-se tão verdes quanto os do filho, mas ele refutou aquela característica comum, de imediato.

- Meu filho é mais jovem e eu tenho certeza absoluta que nunca tive outro. Não sei quem tu és e nem o que tu queres, mas não vais conseguir nada comigo.

- Eu sei que parece inacreditável, mas se eu puder explicar… Deixa-nos entrar, por favor. Todos nós corremos perigo.

O homem ficou muito sério. O rapaz tentou uma última cartada.

- Olha isso! Acreditas em mim, agora?

O homem puxou a porta, abrindo-a com cuidado, de modo a deixar os dois visitantes entrarem. Até então, mal havia notado as características do homenzinho, que ele agora observava, com cuidado. Ele era extremamente pálido, jovem, muito longilíneo e parecia ter a cabeça desproporcionalmente maior do que aqueles com quem ele costumava estar. Sua pele parecia muito fina. Os olhos verdes faziam-no lembrar de alguém, mas ele não percebeu bem, no início. Estava, agora, mais ocupado em poder examinar a anomalia que o outro mostrou naquele ser estranho e que ele já havia visto antes, em seu próprio filho.

- Como isso pode ser possível?

- Eu acredito que a resposta esteja aqui, neste tempo. Por isso precisamos de sua ajuda.

Os três voltaram-se para um ponto na sombra, atrás do velho homem, de onde veio a voz feminina.

- Leona? O que aconteceu contigo? Estás tão diferente…

- Todos nós estamos, pai, mas…

- Tu não devias ter vindo.

- E deixar-te causar uma catástrofe? Este teu comportamento intempestivo já nos colocou em problemas… Nós temos que interferir o mínimo possível com este tempo e lugar. Tudo o que nós fizermos aqui, vai interferir naquele mundo, com toda certeza.

- Que mundo? Alguém pode explicar-me esta confusão toda?

Antes que o irmão começasse com verdades impróprias, Leona adiantou-se. Ela teve mais cuidado em usar as palavras e dizer apenas o que não fosse mudar, muito, o curso dos acontecimentos, mas o pai tinha que saber o que aconteceu… ou ia acontecer…

O cientista ouviu, calado, mas não sem deixar de impressionar-se.  Nunca iria imaginar quão importantes suas pesquisas se tornariam no futuro. Na sua modéstia e simplicidade, por trás de toda a genialidade, ele não anteviu que seu trabalho traria tanto benefício à humanidade… ou pelo menos à uma parcela dela…

***

- Pai, o chefe dos cientistas, que é um homem muito experiente e competente, não conseguiu descobrir o que causou aquela anomalia no clone. A preocupação é que ela seja grave e que coloque em risco uma boa parte dos que vierem a nascer, como se fosse uma epidemia, difícil de controlar. Algum elemento na vacina deixou de fazer efeito, ou houve uma mutação qualquer.

- Eu trouxe uma amostra da nova vacina, que está em teste, para analisar. Quando aconteceu comigo, como foi que o pai reverteu o efeito? Não foi encontrada nenhuma anotação sobre isso nos dados de registos existentes no futuro.

- Eu sei. Eu nunca deixei nada disso escrito nos registos oficiais. Fiz apenas umas poucas anotações no meu diário, que mantenho longe das vistas de todos. Mas eu sei o que fazer… Não faz tanto tempo assim que eu lidei com isso. Mas vamos ter que ir ao laboratório da Universidade, fazer uns testes. Nós já havíamos eliminado a… err… Não sei se vai resultar com um clone, cujo ADN já deve ter sofrido muitas mutações, nem sei que tipos de reações podem ocorrer, mas temos que tentar.

Antes de saírem, porém, o homem olhou os três visitantes e, franzindo o cenho, perguntou, com ingenuidade de criança.

- Para que são criados os clones, afinal?

Os três olharam para o velho cientista, como se ele tivesse dito um impropério. Leona riu, com ternura e disse-lhe:

- Eu tento explicar a caminho…

***

- O que é isso? É tão agradável…

- É música. Vamos.

- De onde vem?

- Ora, vamos! Depressa! Não temos tempo para isso.

O pai, bem mais paciente que o filho, tentou explicar de uma maneira mais ou menos coerente:

- A música é a linguagem com a qual as almas dos homens conversam com as dos deuses. Ela é capaz de tocar o mais intangível ser. Existem muitas formas e muitos estilos diferentes. Essa, que tu ouves, é de um artista famoso, que já não caminha nesta terra.

- Não? Onde ele caminha, agora?

- Está morto. Chamava-se David Bowie. Vem do bar do clube ali na frente, mas devemos evitar passar por lá. Não podemos levantar suspeitas…

- Temos que arranjar um nome para ti. Se alguém nos abordar, será a maneira mais conveniente… e apropriada. Não devemos correr riscos desnecessários.

- Eu sou o Décimo-Terceiro.

- Mas isso não é um nome decente, para este lugar. Temos que arranjar outro; mais comum e adequado…

- Pode ser David Bowie?

Leona riu alto.

- Pode ser David. Esquece o Bowie. Vai levantar mais suspeitas, se for usado aqui.

***

O campus da universidade estava praticamente deserto, quando eles chegaram. Havia, na entrada, uma carrinha branca, parada, próximo à área de pesquisa, onde o laboratório ficava localizado. As letras N. M. E., pintadas em vermelho, nas laterais, não levantaram suspeitas, quando os quatro personagens desceram o lance de escadas, que os levava ao seu destino. Assim que o cientista tirou a chave do bolso e girou na fechadura da estreita porta metálica, ouviu-se um silvo e uma marca profunda ficou gravada acima de sua cabeça, no duro metal, pintado de cinza claro. Eles se jogaram para dentro, fechando a porta, em seguida, para ganhar tempo, e foram, correndo, para o Laboratório Principal.

- Quem são esses? Estamos a ser atacados por armas de fogo. Temos que fugir e tentar chegar de volta ao terminal. Vamos todos. Corram!

Ao entrar no laboratório, apressaram-se a arrastar um grande armário e bloquear a porta.

- Temos que usar a saída de emergência, que fica no fundo do laboratório. Vou mostrar-lhes o caminho. Vocês apressem-se, depois que passarem e vão em frente, até o fim do corredor. Entrem pela porta onde está escrito “Para o telhado” e, ao invés de subir, passem por baixo das escadas. Há uma outra porta lá, no fundo do depósito de vassouras e materiais de limpeza, pintada da mesma cor das paredes, para dificultar ser encontrada. Eu tenho que pegar minhas anotações.

Naquele momento ouviram um grande estrondo. A porta da frente havia sido arrombada com explosivos. Os sons de passos, a correrem pelo corredor, muito próximo deles, fê-los entrar em pânico e imaginarem um apressado plano de fuga.

- Não há tempo para voltar. Temos que sair daqui, o quanto antes. Eles já estão vindo atrás de nós…

- Mas é extremamente importante… está mesmo na gaveta da escrivaninha…

O rapaz sabia que o pai tinha razão. Era extremamente importante buscar as informações, para cumprir o objetivo da viagem no tempo, que acabaram por fazer. Sem pensar muito, ele dispôs:

- Eu volto. Sou mais rápido e mais forte. Posso defender-me melhor e, além do mais, quando chegarmos ao terminal, não podemos voltar os quatro, ao mesmo tempo. A programação estará feita para três, somente…

- Nós podemos mudar a programação.

- Se tivermos tempo… Melhor nos apressarmos. Eu saio e, depois, volto pela frente. Não esperem por mim. Deixem, que eu dou um jeito. Se o portal não estiver aberto, eu espero por um sinal.

- Nós mandamos um, assim que chegarmos, programando o terminal para um passageiro, somente… Assim, ele fecha quando tu passares e não trazemos mais perigo junto connosco.

- OK. Agora, vamo-nos separar.

Leona sentiu um aperto no peito. As coisas haviam saído fora do controlo. Toda a operação ficara arriscada demais e, agora, lutavam por manter-se vivos. Eles tinham a dianteira e sabiam o caminho, mas tinham que ser rápidos e insuspeitos, até atingir o terminal.

Ouviram uma série de tiros. Que forma mais eficiente e perigosa de apressar as coisas e os passos…

domingo, 22 de novembro de 2015

Espirais (Epílogo)


O rapaz, que fora apreendido em flagrante, numa área à qual não deveria sequer ter tido acesso, em princípio, foi agressivamente retirado do local pelos seguranças do sumo-sacerdote. Os dois foram, então, levados de volta e mantidos no quarto da porta sem maçaneta e sem nenhum direito de acesso às outras instalações do grande edifício. Estavam encarcerados outra vez... e desta vez tinham plena consciência da razão pela qual voltavam àquela prisão.

- Aonde tinhas a cabeça? Sabes muito bem que foste extrema e completamente imprudente e negligente. Se antes nós corríamos perigo, agora o risco será muito maior. Temos que sair daqui o quanto antes… antes que nos façam mal maior…

O rapaz de óculos sabia que o outro tinha razão e não respondeu. Ele odiava quando aquilo acontecia, porque ficava sem contra-argumentos. Pôs as duas mãos na cabeça, sentindo-se cair num poço sem fundo, frio e escuro. Jogou-se de costas sobre a cama e fechou os olhos. Uma dormência tomou conta dele, quase que imediatamente. O outro também sentiu seus olhos pesarem e quase não teve tempo de sentar-se, antes de perder a consciência. Haviam sido drogados.

***
- Aquilo foi uma infeliz coincidência. Um acidente, que acabou salvando nossas vidas. Não somos nada especiais… apenas tivemos a sorte de não estar na superfície, quando as explosões ocorreram. Foi a estrutura do ‘bunker’ que nos manteve a salvo, fora da área de radiação.

- Eu não acredito.

- Pode acreditar. Nós somos dois comuns mortais. Nada além disso. Isso tudo não passou de um grande engano. Nós nem devíamos estar lá, naquele momento…ou aqui… agora…

- Amanhã, assim que o sol nascer, serão sacrificados. Se for verdade o que dizem, não haverá consequência…. Além da vossa morte, é claro. Se estiverem mentindo, vosso poder será meu. De todas as formas, eu saio ganhando e vocês perdem…


Em meio ao medo e à raiva que sentia, o rapaz de óculos gritou um imprecativo, mas em vão. O homem da cabeça rapada já havia saído, ignorando qualquer súplica e divertindo-se com o que acabara de dizer aos dois soldados prisioneiros. Eles já não tinham nenhum uso. Pelo menos serviriam de comida aos grandes animais, que eles usavam como farejadores de caça…

- Ora, ora… Que grande ideia… tornar o sacrifício de dois inúteis soldados num jogo de caçadores e caçados…

O homem sorriu, satisfeito por haver tido aquele lampejo de imaginação. Tinha que fazer uns arranjos para a manhã seguinte. Aquilo ia ser, mesmo, muito divertido…

Quando a porta foi trancada, um suave e conhecido perfume começou a impregnar o quarto e os dois começaram a sentir-se sonolentos.

Desta vez, porém, protegeram os narizes e as bocas com a almofada, levantaram as cobertas das camas, formando uma grossa camada protetora, como uma cabana e ficaram quietos, na esperança que o opiáceo não penetrasse entre as fibras das cobertas. Tinham que manter-se alertas, sem perder a consciência. Sabiam o perigo que corriam e não podiam deixar mais nenhuma ponta solta, ou seriam vítimas muito fáceis dos soldados a serviço do insano sumo-sacerdote.

O tempo parecia não passar. Algumas horas depois, ouviram o barulho de alguém a mexer no ferrolho da porta e entrar no quarto.

Os dois jovens soldados fingiram estar a dormir, tentando não respirar muito profundamente, para não absorver a droga que havia sido lançada no ambiente. Uma lufada de ar fresco entrou no quarto, assim que dois homens armados cruzaram a porta. Estavam acompanhados pela mocinha, filha do sumo-sacerdote, aquela que havia encantado o jovem soldado, que ainda fingia dormir.

Ela aproximou-se da cama e olhou-o bem de perto. Ele sentia o perfume da pele e dos cabelos dela, quase a roçar em suas narinas. Ele não resistiu e abriu os olhos, enquanto ela dava um gritinho nervoso, que chamou a atenção dos dois seguranças. O outro soldado percebeu a deixa e empurrou os dois seguranças contra a parede, com toda a força que conseguiu e gritou:

- Corre!

O rapaz de óculos agarrou a mão da mocinha e saiu correndo pelo corredor, logo atrás do outro, aproveitando-se da confusão deixada, enquanto os seguranças tentavam, sem sucesso, sair do quarto que fora trancado pelo lado de fora.

Os dois jovens soldados correram pelos labirintos que levavam ao andar de baixo, sabendo que tinham que achar, urgentemente, uma saída daquele lugar. Passaram por uma série de corredores até alcançarem um hall, que levava, através de um pórtico, ao lado de fora, onde uma varanda com muros muito altos impedia-os de sair. Voltaram para dentro, correndo.

Ao retornarem, depararam com outro corredor, que levava até uma outra sala, completamente desprovida de móveis, com o piso de mármore puro e muito limpo. No centro daquela, uma enorme árvore erguia-se, imponente, como se fosse senhora do lugar e passando por uma abertura no teto, ainda crescia, como se não tivesse limites, até quase perder-se de vista. Um par de círculos concêntricos estavam pintados no imaculado chão de mármore, como se decorassem, em vermelho (a vida) e dourado (a realeza), o início da vida que ela representava.

Uma grossa liana subia em espiral por toda a extensão do tronco, das raízes até muito acima do teto do edifício.

Ao perceberem que os seguranças aproximavam-se rapidamente, os fugitivos utilizaram-se daquela improvisada escada, para escaparem pela abertura acima deles, mas a mocinha foi alcançada pelos homens do sumo-sacerdote, sem sequer conseguir subir atrás deles…

***

- Não se assustem. Não vos queremos mal. Não é sempre que alguém escapa da grande fortaleza.

Os homens, vestidos de uma forma mais comum, apressavam-se a tirar os dois jovens soldados da água do rio. Tentavam tranquilizá-los, já que um dos rapazes parecia bastante assustado e não demonstrava confiança cega em ninguém. O outro parecia mais aliviado. Deviam ter passado por uns maus bocados na fortaleza, rio acima, com os homens do sumo-sacerdote ou com o próprio…

Os dois foram levados para uma base, no meio da floresta, fortemente protegida e guardada por homens armados. Depois de trocarem as roupas molhadas, em aposentos militares, desprovidos de qualquer luxo, como o anterior, onde eram prisioneiros, os jovens soldados foram apresentados ao comandante, um homem com ar distinto e que os recebeu com um largo sorriso.

- Folgo em saber que dois homens bravos conseguiram escapar da fortaleza e da insanidade daquele homem. Sinceramente, não esperava que fossem tão jovens, mas vejo que estão bem.

- Nós somos soldados de elite, treinados pelo exército…

- Soldados treinados, hein? Não parece-me que sejam mais que dois jovens aventureiros. E como vieram parar aqui neste buraco, no meio do nada, a mercê de um louco como aquele?


Os dois mostraram as plaquetas de identificação do exército que traziam, ainda, penduradas nos pescoços, em correntes de aço e contaram, brevemente o que lhes acontecera.

- Fomos sequestrados, na saída do aeroporto. Estávamos numa viagem de férias.

O comandante ouviu-os com atenção, sem fazer perguntas. Quando terminaram, disse-lhes que descansassem, que ele ia verificar com seus contactos para tirá-los de lá, antes mesmo que os homens do sumo-sacerdote dessem conta que eles estavam naquela base. A presença deles poderia desencadear um conflito entre os dois lados.

- Por favor, entretanto, estejam à vontade, mas não saiam da área do acampamento, por ser mais prudente. Eu vou tentar ser o mais breve possível. 

Ele tomou nota dos números de identificação dos dois soldados e saiu.

O jovem, que perdera os óculos na queda contra o rio, mantinha um ar bastante preocupado. O outro compartilhou a inquietação do amigo, quando os olhos dos dois encontraram-se. Algo parecia estar fora do lugar…

***

Naquela noite, o comandante mandou acender uma fogueira no meio do acampamento e eles tiveram uma refeição ali mesmo, sentados em improvisados assentos de troncos, e mesas feitas de pedaços de madeira cortada a facão. Tudo muito rústico, mas interessante, ao mesmo tempo. Os soldados lembraram-se de quando acampavam juntos, antes de a tragédia acontecer. Os homens contavam histórias sobre o que acontecia por ali, das pessoas que haviam sido mortas e jogadas às feras, das quedas no rio - quase todas fatais - e dos mutilados corpos que iam dar às margens do rio, perto do acampamento. Eles comeram e beberam como se estivessem de férias, com os amigos à volta de uma fogueira, num acampamento de verão.

Pela primeira vez em dias, os rapazes dormiram bem, sem estarem drogados. No dia seguinte, assim que amanheceu, um estranho silêncio colocou os guardas em estado de alerta. Algo não ia bem. Os pássaros costumavam estar sempre em algazarra, assim que o sol nascia, anunciando que a vida continuava normal, não importando o que havia acontecido no dia anterior. Um dos cães, que estava sentado junto ao dormitório, levantou-se e correu para o meio do mato, a latir ferozmente. Os homens seguiram o animal, de armas nas mãos e sem muito pensar. Agiam por puro reflexo.

Um berro, um estranho urro e um curto ganido foi tudo o que conseguiram ouvir, antes do céu vir abaixo, dentro do acampamento. No meio da correria, da confusão e dos tiros, os rapazes perderam-se. Não tinham armas, estavam completamente alheios ao que acontecia, quando uma cabeça apareceu na entrada da tenda e gritou:

- Venham! Depressa!

O comandante pulou num jeep e girou a chave na ignição. Os rapazes mal tiveram tempo de entrar no veículo, que não demorou uma fração de segundo para sair pelo meio do mato, numa trilha mal aberta, em alta velocidade, sem cuidar muito por onde passava. Atrás deles ouviam-se tiros e berros, como se grandes animais estivessem em luta com humanos. Eles não queriam imaginar quem iria vencer aquela estranha batalha.

- Mantenham as cabeças baixas. Vamos sair daqui sem demora. Os homens e as feras do louco invadiram o acampamento. Devem ter sabido que vocês estavam lá.

E pela densa mata o jeep rumava, sem parar, com os três homens mudos e concentrados apenas no que viam pela frente. Só parou, muitos quilómetros à frente, depois de atravessar uma longa trilha e de chegar à uma cidade. O comandante entregou os dois ao quartel-general, deixando-os sob a proteção do exército local. Deu instruções para serem escoltados até o aeroporto e só retornarem quando o avião houvesse partido. Os dois iam embarcar como soldados a serviço do exército, com passaportes arranjados às pressas. O comandante deixou-os, praticamente sem despedir-se e voltou para a base.

***

- Eu nunca mais saio da base militar… para nada! Não adianta tentar convencer-me do contrário. Eu nunca mais saio de lá!

- Não digas isso… Não estás sendo coerente.


Ao passar pelo hall do aeroporto, já em território natal, uma moça de grandes olhos muito azuis, que vinha pelo corredor, fixa o olhar no do rapaz que sentia falta de seus óculos, para poder enxergar melhor… Ele se distrai, tropeça na mala e quase cai. Quando levanta a cabeça, não vê ninguém com aquelas características. O amigo olha-o com uma expressão questionadora, mas ele ficou com vergonha de mencionar o que vira. Ele volta a olhar em todas as direções, à procura da moça, mas em vão. Sacode a cabeça, convencido estar enganado, resmungando para si mesmo.

- Deve ter sido impressão minha…

Por trás de uma banca de venda de comida, dois grandes olhos muito azuis observavam, enquanto os dois soldados dirigiam-se para a saída. Um deles vinha à frente, com o passo firme e pesado, enquanto o outro seguia-o, balançando a cabeça, desconsolado.

Na calçada, do lado de fora do aeroporto, uma van escura vinha chegando, sem ser percebida pelos dois jovens, que já iam a caminhar um tanto longe, na direção oposta.

Um par de soldados entrava naquele momento, ainda vestindo seus uniformes de gala, onde traziam insígnias do exército especial e medalhas de bravura, recentemente agraciadas, ostensivamente reluzindo em seus peitos. Não perceberam que a porta lateral da van abriu-se naquele momento e um homem vestido de negro saiu de lá, mantendo os olhos fixos nos soldados, que dirigiam-se à área de ‘check in’, subindo as escadas em espiral, erguidas no centro do movimentado hall do aeroporto…

***

sábado, 7 de novembro de 2015

Espirais (Parte 3)


Uma mocinha, aparentando não mais que uns dezoito anos, vestida com uma simples túnica azul celeste de tonalidade muito clara, adornada apenas por um cordão dourado, amarrado à cintura, entrou, logo atrás de dois homens, que portavam nada discretas pistolas militares nas mãos, quando a pesada porta de madeira maciça foi aberta. Vinha com o propósito de servir de intérprete e traduzir a intenção por trás da presença dos dois homens armados a aqueles jovens prisioneiros. 

Ela pousou seus grandes olhos azuis nos dois, mas demorou-se uma fração de tempo mais longa no rapaz de óculos, que a observava com genuíno interesse e com a boca semiaberta. O amigo percebeu a reação do outro e sorriu discretamente. 

Poucos minutos depois, o grupo seguia pelo longo corredor, cujo piso de pedra polida amplificava o som dos passos, ecoando pelas altas paredes pintadas de bege. Iam em direção à uma sala aberta, no outro extremo do edifício. 

Um homem alto e corpulento, com a cabeça raspada e ar muito sério os aguardava, de pé e descalço. Estava vestido com uma túnica muito clara e uma espécie de calça feita de uma peça única de tecido liso amarrado à volta da cintura e dobrado, de modo a deixar as pernas cobertas até a altura dos joelhos, sem entretanto tolher-lhe os movimentos. Era tingida de um tom de azul bem mais escuro. 

Ele adiantou-se e recebeu-os com a mão estendida, ainda com o semblante bastante sério e falou-lhes, praticamente sem sotaque. 

- É uma enorme satisfação receber os dois homens que sobreviveram, incólumes, a uma explosão nuclear. 

Ele abriu bem os olhos, exibindo um sorriso um tanto estranho.

- Esse poder interessa-me muito…

O rapaz de óculos levantou o sobrolho, desconfiado, sem mover-se mais que o necessário. Estava, também, surpreso que o homem falasse a mesma língua. O outro soldado respondeu mais positivamente ao cumprimento daquele homem estranho, vestido com uma indumentária igualmente incomum, cujo aperto de mão, muito firme, mostrava uma força bastante evidente, a emanar dele, com uma naturalidade espantosa. 

Os dois olharam-se firmemente nos olhos, como se desafiassem um ao outro.

***

- Por que não dormes? Quase consigo ouvir teus pensamentos daqui…

- Não consigo… parar de pensar…

- Naqueles olhos azuis? Achas que eu não percebi?

- Bobagem. Não é nada disso. Estou preocupado. Nós estamos como hóspedes, neste quarto de luxo, depois de termos sido sequestrados. Há algo muito errado aqui…

- Pois há. Mas é melhor dormir, agora. Amanhã temos que arranjar uma forma de sair daqui. Agora descansa.

- Se fossemos hóspedes, mesmo, a porta teria uma maçaneta pelo lado de dentro. Estamos presos aqui.

- Eu sei. Mas de nada adianta tentarmos sair agora. Nossa saída tem que ser mais estratégica, quando estivermos fora daqui. O quarto é à prova de fuga. Nem janela tem…

- Estamos aprisionados por um louco. Viste os olhos dele? Ele é completamente louco… O que ele espera de nós? 

- Não sei ao certo. Mas ele quer mais poderes… se é que tem algum, além daquela insanidade doentia… Ele é muito, muito perigoso…

Os dois ficaram em silêncio, cada um imerso em seus próprios pensamentos. A quietude da noite, naquela ala do grande edifício onde estavam, pesava sobre os dois jovens soldados, perigosamente, como se fosse uma sentença de morte. 

O rapaz, cujos óculos repousavam ao lado do travesseiro, olhou o teto e viu, por um instante, num estranho lampejo de memória ou delírio, dois grandes e conhecidos olhos a olharem para si. Ele sorriu, virou-se para o lado e cerrou as pálpebras. Uma sensação agradável tomou conta dele, como se estivesse sendo embalado pelos braços e colo da mocinha de magnéticos olhos azuis. 

O outro sentiu, também, suas pálpebras pesarem, foi tomado por uma agradável sensação e não tardou a adormecer. 

Nenhum dos dois percebeu que um silvo muito subtil, quase imperceptível, num canto, instilava um poderoso opiáceo no ambiente, fazendo-os cair em sono profundo e pesado, fazendo-os sentir que estavam a flutuar, agradavelmente, sobre as camas dispostas em lados opostos do espaçoso quarto.

***

Depois de uma leve e breve refeição, à base de frutas, chá e sumos naturais, já a meio da manhã seguinte, os rapazes foram levados por um corredor, que seguia acima de uma grande sala, que cruzava uma larga parte aberta do edifício, onde aglomeravam-se muitas pessoas, vestindo túnicas soltas sobre seus corpos e as cabeças totalmente cobertas por capuzes, que escondiam boa parte de seus rostos. Entravam em grupos separados por cores das vestes, descendo por sete escadas em espiral, uma em cada um dos sete cantos da sala heptagonal e juntavam-se no grande hall, numa sequência que lembrava um arco-íris. Vinham participar de uma espécie de ritual, dirigido e controlado pelo homem da cabeça raspada, que os aguardava, num pedestal construído no centro do hall. 

O sumo-sacerdote estava vestido com uma longa e larga túnica dourada, mas não usava o capuz sobre a cabeça. Ele esperou até os grupos tomarem o espaço, por completo, à sua volta, em completo silêncio.

A mocinha conduziu os dois jovens soldados até uma sala com uma sacada fechada, num mezanino, donde podiam ver o ritual, por completo, mas sem o direito de participar ou interferir. 

Quando o homem da túnica dourada começou a falar, eles perceberam a perfeição da acústica da grande sala. Ele não usou nenhum artifício para amplificar sua voz, a qual soou clara e poderosa, para a surpresa dos dois amigos.

***

- Vê só como ele manipula estas pessoas. Consegue o que quiser destas criaturas tão carentes e a necessitar de esperança. Ele sabe disso e usa deste conhecimento contra elas. 

- São como ovelhas perdidas a seguir um mau pastor, por ignorância ou por medo… Mal percebem que estão sendo conduzidas à própria exploração e condenação, por escolha delas mesmas. Não percebem, nem sabem pensar por si próprias. Buscam um paraíso que não existe, onde os seus pecados possam ser redimidos, para poderem sentir-se menos miseráveis ou para terem algo a que apegar-se. Como se diz: o pior cego é, com certeza, aquele que não quer ver.

- O fanatismo sempre levou as pessoas a cometerem as maiores barbaridades, em nome de suas crendices. As religiões são quase tão antigas quanto a humanidade. Os mitos e os deuses foram criados pelos homens, para explicar o inexplicável ou para controlar o comportamento dos mais comuns e menos esclarecidos. 

- As massas sempre necessitaram de líderes. É natural que sigam seus profetas e hierofantes, sem questionar. Facilita-lhes viver e diminui-lhes a culpa e o sofrimento. As pessoas precisam apegar-se a algo para terem razões para viver. Procuram fora delas o que não encontram dentro de suas fracas e desesperançadas almas: paz e, talvez, fé.

- É mais fácil apegar-se a algo externo do que trabalhar a paz internamente. Também é mais conveniente, pois uma viagem ao exterior é menos complicada e dolorosa que para o interior das nossas mentes. 

- E gera menos questionamentos. Os antigos profetas e os sumo-sacerdotes nada mais eram que indivíduos com um grande poder de persuasão e controlo dos homens através das palavras e, muitas vezes, por conta de delírios esquizofrênicos. Em algumas tribos indígenas, até recentemente, as profecias e visões eram geradas por alucinantes poderosos a fazer efeitos em mentes complexas, depois de participarem em rituais mais complexos ainda e eram respeitadas como visões iluminadas de homens iluminados. O mesmo acontecia com os rituais pagãos, que mais tarde foram condenados e perseguidos pela igreja. Que diferença existe, afinal, entre um nórdico, que acreditava que o som do trovão era gerado pelo bater do martelo do deus Thor numa bigorna, no reino divino de Asgard, um índio que chamava a Tupã o deus do trovão ou um homem que guia-se por uma tábua escrita por um dedo invisível de um deus todo-poderoso, com uma dezena de mandamentos de conduta, mas que não respeita as manifestações religiosas de outros povos?

- O ser humano, quando está carente ou desorientado, é mais manipulável que um gato com fome. São como cegos em busca de luz. Os mais espertos, manipuladores e sem escrúpulos aproveitam-se da fragilidade emocional destas pessoas. Nestas ocasiões as novas seitas e religiões nascem e proliferam, para conforto dos pobres fiéis e enriquecimento dos ditos pastores e líderes. Isso sempre foi e sempre será assim.

- Sabes muito bem que as pessoas não questionam as religiões, as tradições ou os ensinamentos dos ancestrais, por conformismo ou medo de colocar sua fé em cheque. Por trás de boas intenções, existem, sempre, entretanto, muitas más ações.

A mocinha, que até então estava quieta a ouvir os dois rapazes discorrendo sobre um assunto muito complexo, olhou para os dois, firmemente e disse:

- Cuidado com ele ou a falar mal dele. O nosso povo confia cegamente e não medirá esforços a protegê-lo. Qualquer palavra em falso poderá causar-vos um problema bastante grave… e uma complicação das grossas... Ou mesmo a vossa condenação e morte. 

***

O rapaz de óculos vinha saindo do lavatório, quando ouviu uma música muito suave, vindo de algum ponto, no fim do corredor. Curioso e intrigado, ele resolveu que tinhas de descobrir de onde aquela melodia vinha. 

Numa saleta desprovida de decoração, uma moça dançava com movimentos muito lentos, como se fizesse yoga ou alongamento. O rapaz ficou a olhar a moça, completamente encantado pelo que via. A luz, que entrava por uma pequena janela, no alto da parede, batia na cabeça da moça, dando, ao rapaz, a impressão que estava diante de uma cena tanto surreal quanto angelical. Uma estranha sensação brotou em seu estômago, como se fossem borboletas a baterem suas frágeis asas, num voo suave e certeiro, atingindo-o em cheio e deixando-o, ao mesmo tempo, fascinado e confuso. 

Ela abraçava seu próprio colo e dançava sozinha, com os olhos fechados, como estivesse tomada por uma alucinação qualquer. Seu rosto era sereno e, assim, iluminado pela luz que entrava pela janela, parecia refletir os raios do sol.

Quando a música parou, ela abriu os olhos e viu o rapaz parado na porta a observá-la. 

Ele corou imediatamente, sem saber o que fazer. 

Ela não disse nada. Limitou-se a olhar na direção da porta, com aqueles olhos muito grandes e azuis, que tanto enfeitiçavam o jovem soldado, que de repente, teve seus dois braços agarrados por trás e puxados com uma força tão grande e descomunal, que deixaram-no totalmente inerte e imobilizado…

***