Mostrar mensagens com a etiqueta amuleto. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta amuleto. Mostrar todas as mensagens

sábado, 13 de outubro de 2018

As Pedras Grandes (Final)



- Claro que ele sabia o nome. Nós vínhamos gritando o nome do bicho pela praia afora!

- Mas ele o chamou de Mefós.

- Pesquisei sobre isso. Segunda consta, é grego e significa ‘ausência de luz’. Está na explicação da origem do nome Mefistófeles, na história do Fausto. Faz sentido, quando fazemos referência à cor do bichano.

- Ele era um homem muito estranho. Ainda bem que não nos levou nosso amiguinho.

- Não era a intenção. Ele queria que ficássemos assustados.

- Eu fiquei!

- Sei que sim, mas não adianta nada parecer assustador, sem dizer a que veio. Tenho a impressão que ainda nos vamos ver uma outra vez.

- Tomara que Mefisto esteja por perto. Ele me dá tranquilidade.

- Ele estava bastante agitado… agressivo… E é um animal tão dócil.

- Por isso eu o quero por perto.

***

- Descobri umas coisas sobre nosso amiguinho de quatro patas. Ele pertencia à uma mulher, muito velha. Já está na vida dela há algumas décadas.

- Como assim? Eles não vivem tanto…

- São várias gerações. O que me disseram, e eu não confirmo, foi que quando o gato ficava velho, ela escolhia um dos filhotes mais parecido com o pai, das ninhadas de sete gatinhos e dava-lhe o mesmo nome. Era como a reencarnação do gato-pai e era o protector da mulher. Dizem que um enviado do diabo anda atrás do bichano…

- Será que isso faz sentido?

- Acho que há bastante de lenda nesta história, pois foi contada pelos pescadores e pelas mulheres deles. Vamos voltar ao Ribeirão da Ilha.

- A sério? Vamos mesmo?

- Precisamos investigar umas coisas, sobre uma certa mulher, muito velha e seu animal de estimação… e, mais alguma coisa , talvez…

***

- Vocês chegaram tarde demais. Ela faleceu no dia da tempestade. Foi logo ao entardecer, quando a chuva começou. Deitou-se para descansar e não acordou mais.

- Oh! Que pena!

Eu olhei para minha filha e ela logo percebeu o que eu não ia querer dizer em voz alta. Foi aproximadamente na mesma hora que o gato entrou em nossa casa… e em nossas vidas.

- Há uns dias, um homem estranho apareceu aqui perguntando por ela. Ele era… assustador, para não dizer pior, mas não conseguiu nada de mim.

A moça descreveu o estranho e nós percebemos que era o mesmo homem que havíamos visto na praia. Fizera muitas perguntas sobre a velha mulher e sobre um gato, que deveria pertencer à ela. O que ele poderia querer, afinal?

- Ela deixou uma coisa para vocês. Pediu-me que entregasse somente a vocês dois. Parece que sabia que viriam atrás dela, uma vez mais.

A moça, então, deu-me uma caixinha de madeira, que trouxe do quarto onde a velha senhora costumava dormir. Nela havia umas fotografias muito antigas. Numa delas, apareciam três pessoas. No verso, uma data, escrita a tinta permanente: 1916. A semelhança era incrível.

- Meu Deus! Como é que pode?

- Isso é uma coincidência muito grande!

A moça sorriu, ante a nossa surpresa.

- O Universo conspira de uma maneira muito única e específica, para determinados fins! Quem poderia questionar o inquestionável?

Eu observei melhor a fotografia.

- Olhe ao pé dos três. 

- Não é possível! É um gato preto! 

***

- Algo não está certo.

- O quê?

- Não sei. Sinto uma tristeza tão grande… Fiquei mesmo chateada com a notícia da morte!

- Eu sei. Eu também fiquei muito triste.

- Fico pensando no que ela disse. O amuleto vai-me proteger…

- Cuidado! Ainda vais ficar impressionada com isso e ficar imaginando coisas. 

- Aquela foto impressionou-me muito. Além de sermos muito parecidos com aquelas pessoas, havia mais algo. O gato aos pés deles era, certamente, o nosso Mefisto! Fiquei com um aperto no peito...



-Não podia ser, por razões óbvias. Ainda tens o amuleto contigo?

- Sim. Por quê?

- Joga fora. Atira-o ao mar.

- Mas ela disse…

- Sabes muito bem que as pessoas são impressionáveis. E tu te estás deixando afectar. Já não me interessa o que ela disse. Joga-o fora. É isso que te está deixando assim. É o poder da sugestão.

- Nós a ajudamos e ela deu-mo de presente, em retribuição. Não posso fazer isso.

- Então faço eu. Foi um presente que revelou-se envenenado, isso sim. São apensas coincidências. Ela te encheu a cabeça com sandices e isso está a ficar incontrolável. Aquela conversa de protecção, de um futuro muito cheio de sucesso e amor… tu sabes que só acontece em sonhos e não se realiza sem muito trabalho.

Ela tirou o cordão do pescoço e ficou a olhar, com pena de separar-se dele.

Arranquei-lhe o amuleto da mão e, indo até a beira d’água, atirei-o mar adentro, com força suficiente para além da zona de formação das ondas. Voltei para dentro, com um ar de satisfação estampado no rosto.

- Não foi justo. Não foi nada justo…

- O quê?

Olhou-me de uma maneira estranha e balançou a cabeça de forma desconsolada, olhando através de mim, com o corpo levemente encurvado para a frente.

- Nada justo… nada justo…

Eu levantei o tom da voz.

- Não brinques com isso! Nunca!

- O quê? Não é brincadeira.

- Não voltes a fazer isso! Nem de brincadeira!

***

Os pescadores estavam a retirar os peixes das redes, com o gato sentado por perto, a espera que sobrasse algum para si. Ele era a diversão dos homens do mar, quando chegavam da lida matutina e recolhiam o produto da pesca de suas pequenas embarcações.

Umas pequenas sardinhas sempre sobravam para o gato, que já estava a ficar arredondado com tanto mimo. Como ele se exercitava bastante, não nos preocupava o aumento de peso.

O tempo havia passado e ele estava cada vez mais confortável connosco. Já conhecíamos um pouco de suas manias e seus hábitos e muitos deles eram bem-vindos, pois mais nos divertiam que incomodavam. O gato já era parte da nossa família e nós nos considerávamos felizes.

Eu ficava a observar, de longe, a afinidade que ele tinha com o pessoal da região, sem me incomodar em estar, necessariamente, por perto. Ele sempre voltava para nós, quando os homens caminhavam de volta para casa a conversar animadamente. Mefisto saudava-me, ganhava um mimo, deitava na varanda e ficava a dormitar.

Um dos pescadores sempre levava mais tempo a brincar com o gato, afagava-lhe a cabeça e oferecia um peixe, que era aceite com alegria. O homem, o mesmo que me havia alertado sobre a tempestade há algum tempo atrás, tinha um carinho especial pelo animalzinho, que retribuía as festinhas que recebia com um pseudo aperto de mãos. Era engraçado, pois ele fazia aquilo com uma pessoa somente: aquele homem simples do mar. Naquela manhã, pareceu ocupar-se mais tempo com Mefisto.

Algo chamou-me a atenção, enquanto observava, distraidamente o movimento na praia.

Não muito adiante, uma silhueta vinha caminhando, na direção do agrupamento de pescadores. De longe, eu só via que era alguém vestido com roupas escuras. Pelo porte e caminhar, eu tinha certeza que era um homem.

O gato pareceu perceber o mesmo que eu e mudou sua atenção do grupo, para o estranho que se aproximava. Alguém saudou aquele homem, que retribuiu o cumprimento e, em seguida, abaixou-se para afagar o gato. Este recusou a carícia, ficando teso e com os pelos eriçados, em posição de ataque. O estranho levou a mão até o animal, mas recuou rapidamente, levantando-se e dando um passo atrás. O gato avançou. O homem vestido de negro, um velho conhecido, retirou-se rapidamente, caminhando na direção de onde havia vindo.

De onde eu estava, não conseguia ouvir a conversa, se é que houve alguma.

O velho pescador tirou o chapéu e coçou a cabeça. Chamou o bichano, mas ele não veio, até ver que o homem de negro estava fora de seu campo de visão. Depois voltou-se e esfregou-se na perna do amigo, que abaixando-se, pegou o gato no colo e veio na minha direcção.

Eu já estava descendo a escada, caminhando ligeiro até eles. O homem saudou-me.

- O que foi que aconteceu?

- Não sei se entendi direito. O homem quis conversar com o gato, chamando-o de Mefós, mas o bichinho parece que não gostou da conversa.

- Eu vi que ele ficou agressivo.

-Foi quando o homem disse que queria levá-lo, mas não conseguiu tocá-lo…

- O quê?

- Pois foi. E nem sei porque saiu daquele jeito, pois o gato não o atacou. Só ameaçou, mas algo deixou o homem com uma expressão de pavor estampada na cara e ele foi embora, ligeiro e sem olhar para trás.

- Que estranho.

- Sem dúvida.

O homem simples do mar entregou-me o gato, que passou de seus braços aos meus, sem protestar. Despediu-se com um afago na cabeça do nosso Mefisto e saiu.

Eu acariciei o bichinho, que já ronronava com tranquilidade. Foi quando eu notei uma estranha peculiaridade: o gato trazia um artefacto bastante conhecido, pendurado num cordão negro em volta do pescoço, junto à coleira vermelha. Eu sabia que era o mesmo que eu havia atirado ao mar, com tanta raiva, uns dias antes.

Teria sido aquele pequeno objecto que afastara o forasteiro, daquele jeito estranho e com tanto pavor?

Minha filha chegou naquele momento e aproximou-se, apanhando o gato de meus braços e abraçando-o com carinho. Ao passar a mão pela cabeça do bichinho notou o cordão enrolado no pescoço dele. Ela franziu o cenho e olhou-me, com uma expressão esquisita, como se a perguntar de onde viera aquilo.

- Afinal isso serviu para alguma coisa...

Dei de ombros. Existem coisas que eu não sei explicar, nem vou tentar entender.

***

sábado, 25 de fevereiro de 2017

Revisitando Dragões (Parte final: A Batalha)


O sol nasceu como que por encanto. Não que fosse uma coisa inesperada, mas a tensão do momento, pareceu fazer os guardiães esquecerem que o nascer do dia não era a coisa mais natural do mundo. Era como se tivessem tido um lapso de tempo entre a espera e aquele momento, quando um verdadeiro caos se instalou no laranjal.

 A chegada do guerreiro de negro e seu fiel dragão causou uma correria geral.

 Os sete dragões alinharam-se à volta do grande animal pardo, quando este pousou. Era parte da estratégia de distração, mostrar-se mais suscetível, para que sua contraparte estivesse mais liberta, para trazer o terceiro elemento para a batalha, que estava apenas a iniciar-se.

Em seu caminho, porém, o guerreiro encontrava um pai protetor e disposto a tudo para ter o filho do seu lado e um velho cavaleiro, disposto a sacrificar a vida para derrotar o senhor de todo o mal.

 Os dois homens acorreram, tentando impedir a ação do guerreiro inimigo, quando perceberam que ele veio para libertar seu protegido e fazê-lo cumprir sua missão, antes de voltar para o gélido norte.

A investida do guerreiro loiro, entretanto, foi tão violenta, que os homens foram jogados para o lado, como se fossem crianças desajeitadas, quando ele abriu seu caminho para a entrada da caverna, onde seu pupilo estava preso ainda.

A espada do senhor de todo o mal partiu a porta da caverna com um golpe só. O rapaz saiu imediatamente e, apanhando sua própria espada, que estava do lado de fora, tomou lugar ao lado de seu senhor, numa batalha que teria um inevitável e único final.

Por mais que estivessem em vantagem de número, o pai e o amigo estavam, todavia, em evidente desvantagem, tanto pela força e violência dos ataques, quanto pelo treinamento que os dois guerreiros possuíam, bem diferente deles.

Os dragões avançaram contra o pardo, tentando imobilizar seus movimentos, mas sabiam o quão perigoso e poderoso aquele animal era, pois além de ser superior em tamanho e força, era também mais bem preparado que eles, em batalhas contra homens e animais, desde há muito tempo. 

O caçador e o velho retomaram suas posições e a verdadeira luta começou. Nem um nem outro podia antecipar a força com que seus contendores iam atacá-los, mas não foi pouca e, por conseguinte, difícil de segurar por muito tempo. Viram, logo, que estavam em desvantagem e aquela consciência deixou-os, de certa forma, amedrontados.

Os adversários perceberam a fraqueza e, mesmo sem falarem nada, usaram suas forças e habilidades contra os dois homens, que foram derrubados com facilidade.

O tirano ocupou-se do pai do rapaz, enquanto aquele estava a lutar contra o velho cavaleiro. As forças eram praticamente incomparáveis, mas a resistência e o instinto de sobrevivência eram maiores que eles podiam imaginar, por isso tentavam, pelo menos, defender-se. Mas o velho não tinha mais a mesma força de antes e caiu.

O dragão verde-azulado foi em socorro do velho.

O dragão pardo, usando sua habilidade e vigor, logo conseguiu libertar-se, aproveitando a oportunidade e a quebra do círculo de força que os sete mantinham, quando estavam juntos.

Ao chegar perto, o verde-azulado empurrou o rapaz de cima de seu amigo, com uma violência a que ele não era acostumado, de modo a livrar o velho da ponta da espada do outro.

O rapaz caiu de frente, com sua arma na mão. Mesmo com o golpe violento, ele apenas ficou meio atordoado, mas não o suficiente para sentir-se derrotado. Era forte e robusto, muito bem treinado e disposto.

Quando tentou levantar-se, porém, ele sentiu a pressão da garra no seu braço e não teve dúvidas. Agarrou a espada com muita força e desferiu um golpe na pata do dragão, que ficou seriamente ferida, esguichando sangue em grande volume. O guerreiro levantou-se rapidamente, disposto a acabar com o animal, que urrava de dor.

O dragão verde-azulado estava com os olhos arregalados a olhar a cena, de longe, tão surpreso quanto o velho, que erguia-se do chão, um tanto desajeitado.

O guerreiro negro vinha correndo em sua direção com a espada em punho, soltando imprecativos em alta voz, ao ver o dragão pardo seriamente ferido, por engano, quando tentava ajudar o jovem protegido. O homem na armadura negra avançou contra o rapaz, com todo seu ódio afluindo para a arma em suas duas mãos.

O rapaz tentou afastar-se, mas não foi bem-sucedido. O outro foi muito rápido. O impacto foi grande e ele perdeu o equilíbrio, caindo de costas no chão, tentando, com sua espada e com toda a sua força, segurar a ira de seu tutor. Espada contra espada, ele sentiu que começava a perder espaço e a sentir a lâmina afiada quase a tocar-lhe a pele.

O homem estava irascível. O dragão era parte dele e feri-lo seria o mesmo que ferir ao senhor dele. O rapaz nem conseguia dizer nada, apenas tentava conter a força extraordinária do homem, mesmo sabendo que ia perder.

No meio do esforço descomunal que fazia para conter a ira do seu tutor, o rapaz balbuciou o que pode, tentando redimir-se.  

- Eu sinto muito! Pensei que fosse o outro dragão…

- Tua missão era destruir os dragões… aqueles sete dragões! Eliminá-los completamente! Não era para ferir o grande dragão pardo, rapaz estúpido!

 - Eu sinto muito!

 De repente, o homem, que estava com o rosto muito próximo do rapaz, impelindo a espada contra seu pescoço, arregalou os olhos e afrouxou a força que estava fazendo. O rapaz empurrou-o para o lado e levantou-se, deixando o outro a cair pesadamente sobre o solo.

 De pé, o pai olhava os dois, com o cajado firmemente seguro em suas mãos, após haver batido com aquele na cabeça do guerreiro de negro, seu poderoso inimigo e tutor do filho que, então, mostrava-se completamente confuso, como se não compreendesse perfeitamente o que acabara de acontecer.

Mas o guerreiro de negro não era um páreo fácil, nem desistia sem conseguir o que queria. Rapidamente levantou-se e, com a espada em riste, avançou contra o pai e o filho.

Ambos prepararam-se, quase sem ter muito tempo para voltar a reagir, antes que a arma do homem loiro cortasse o ar com velocidade e violência, atingindo o cajado e a espada, ao mesmo tempo, destruindo o primeiro e fragmentando o metal da segunda, como se fosse feito de material extremamente frágil. O rapaz ficou sem ação. O pai caiu de lado, ao ser empurrado com os pés, pelo homem tomado de fúria combativa.

Sem o cajado e sem poder defender-se propriamente, o homem, mesmo assim, partiu para cima do guerreiro loiro, que desviou-se facilmente, deixando o outro a abraçar o ar e perder o equilíbrio. O senhor de todo o mal voltou-se e partiu para cima do rapaz, que já havia levantado, mas estava desarmado. Ao aproximar-se, ouviu um grito atrás de si e viu que o velho trazia uma espada em sua mão e atirava ao rapaz, que agarrou-a com destreza de um bom e bem treinado guerreiro.

O ato foi apenas em tempo suficiente para defender-se, ainda que mal defendido. O rapaz e seu tutor lutavam um contra o outro com violência, mas o primeiro sabia que estava em desvantagem. Quando aproximaram-se a forçar as espadas, uma contra a outra, o rapaz falou:

- Por que lutamos? Estamos ambos do mesmo lado.

 - Nunca estivemos do mesmo lado! Eu usei-te para conseguir o que queria, mas tu não foste destro suficiente para cumprir a missão e, ainda assim, feriste o dragão errado.

 - Mas não foi de propósito!

O guerreiro de negro empurrou o rapaz e voltou à carga com mais violência, tentando atingir e exterminar seu concorrente.

O jovem estava confuso. Fez o que pode para satisfazer os desígnios de seu tutor, foi-lhe fiel e um exímio aluno e, via-se sendo atacado pelo mesmo, como se fosse um inimigo.

O velho, percebendo o perigo, acudiu o pai do rapaz. Ambos partiram para cima do senhor de todo o mal, juntos e dispostos a morrer para salvar o filho e amigo. Com a atenção desviada da luta contra seu pupilo, o guerreiro loiro voltou-se à sua própria defesa, mas percebendo que os atacantes vinham sem armas, tratou de avançar contra os dois, derrubando-os imediatamente, um sobre o outro, e posicionando a espada no pescoço do caçador, de modo que se trespassasse um, atingiria o que estava por baixo. O rapaz percebeu que tinha que fazer algo e partiu para cima, mas o homem gritou:

- Se chegares mais perto, eu mato os dois. Eu posso morrer, mas, antes, eles vão comigo. 

 O rapaz parou a meio caminho. Tinha que fazer algo, mas estava em desvantagem. Não estava sendo bem recebido do lado de seu tutor e estava sendo defendido pelo seu pai e o velho amigo, os quais haviam abandonado a busca, há muito tempo atrás, deixando-o à mercê do inimigo e senhor de todo o mal.

Sentia-se só, abandonado e enganado, mas algo queimava seu peito, com o calor de um estranho fogo. A espada em sua mão tremeu. O amuleto pendurado em seu pescoço e tocando seu jovem peito ardia como se estivesse fervente. O rapaz, então, parou e percebeu que os dragões haviam-se aproximado.

O grande dragão pardo, ferido gravemente, não conseguia ter forças para atacar. Alguns dos dragões, incluindo o verde-azulado, mantinham a vigília sobre a fera ferida. 

Os três dragões mais jovens, o negro, o dourado e o albino colocaram-se à volta do grupo, mas sem mostrar quaisquer formas de ameaça.

O dragão negro fez um sinal com a cabeça, olhando o rapaz. Este não percebeu imediatamente o gesto, mantendo os olhos firmes nos animais e nos homens, que formavam um grupo bizarro à sua frente. O amuleto queimava sua pele. Ele passou a mão no peito e sentiu-se estranhamente diferente. Olhou todos, aproximou-se dos três homens e falou, baixando a espada e deixando-a cair aos seus pés.

- Deixa-os ir. Eu me entrego no lugar deles. Vou lutar ao teu lado até os fins dos meus dias, mas deixa-os viver! Tens a minha palavra de honra.

O guerreiro ficou tão surpreso quanto o pai e o velho amigo.

O dragão negro acedeu com a cabeça. Ele sabia por qual razão o rapaz havia tomado aquela atitude. Era necessário ter muita força de espírito e caráter para tomar uma decisão daquelas, no meio daquela confusão de personagens, de sentimentos e de atitudes contraditórias.

O rapaz baixou os braços e aproximou-se. O guerreiro de negro ainda hesitou um pouco e então, levantando-se lentamente, mostrou que aceitava a oferta.

 Os dois homens levantaram-se e tentaram, ainda, defender aquela atitude com um ataque ao senhor de todo o mal, mas o rapaz gritou com eles e disse-lhes:

- Eu dei minha palavra. E ela foi dada em troca das vossas vidas. Não vou voltar atrás. Ajudem-me a acudir o dragão pardo, que está ferido. Nós partimos assim que ele recuperar suas forças.

Seu tutor, mesmo estando entre estar desconfiado e acreditar na honra do rapaz, afastou-se, mantendo-se de frente, enquanto o grupo acudia a fera ensanguentada. O pobre dragão estava com a pata bastante cortada e precisou de um torniquete e umas bandagens, mas a não ser por um certa fraqueza causada pela perda de sangue, não estava impedido de voar.

Os dois guerreiros passaram a noite a vigiar, para terem certeza que não iam ser surpreendidos e prepararam-se para partir ao amanhecer, sem se despedir de ninguém.

O dragão negro, entretanto, aproximou-se do rapaz e fez um aceno com a cabeça, numa demonstração de afeto e de aceitação daquele destino, mas, ao mesmo tempo de apoio. De uma forma muito discreta, transmitia a mensagem de que estava disponível, se necessário fosse.

O rapaz passou a mão à volta do pescoço e retirou o amuleto que ali estava pendurado e estendeu-o ao dragão, mas este não aceitou, empurrando a mão do rapaz de volta ao seu pescoço. Este percebeu o que a animal quis traduzir.

O amuleto era seu por direito. Era o único vínculo que ficaria vivo entre os dois lados – o bem e o mal – a lembrar que não há um lado sem o outro e que mesmo o mal precisa do bem para equilibrar-se no Universo.

O rapaz repôs o amuleto à volta do pescoço e foi de encontro ao seu mentor e ao dragão pardo, que estava pronto a partir. Deu uma última olhada para trás e fez um aceno com a cabeça, que foi repetido pelo jovem dragão negro.

 Quando o pai e o velho amigo despertaram, o trio já ia alto no céu, viajando contra a luz do sol da manhã.

Um aperto nos corações dos dois foi, também, compartilhado pelos sete dragões.

Todos os personagens sentiram que aquele não era um fim definitivo, mas sabiam que aquela decisão tinha consequências graves no futuro de todos.

Lá longe, no alto do azul cerúleo da manhã, sobre as costas largas do dragão pardo, o rapaz mantinha seus olhos à frente, tentando não deixar que aquelas lágrimas que inundavam seus olhos, sua mente e seu coração, fossem percebidas pelo seu mentor, que sentara-se no dorso do grande animal, um pouco à sua frente.

A viagem para o extremo norte ia ser longa. Também ia ser muito fria, como o coração do senhor de todo o mal…

O guerreiro loiro esboçou um leve sorriso. Havia ganho mais uma batalha. Aquela era uma das mais importantes que ele travara, mas a guerra não estava terminada…

domingo, 22 de janeiro de 2017

Revisitando Dragões (Parte 5 - Amuleto)


Nos olhos do rapaz, aquela mistura de ódio e mágoa deixavam claras as suas intenções. Ele tinha uma missão – uma tarefa a cumprir, para concluir seu rito de passagem, que havia iniciado com uma batalha sangrenta, não muito antes de chegar ao seu último destino.

Não era apenas uma transição para a idade adulta. Era mais uma confirmação de que havia passado, definitivamente, para o lado do guerreiro de negro. Uma vez que ele estivesse do lado de lá, não haveria volta e ele sabia. Era com isso que seu mentor e senhor de todo o mal contava.

Avançando contra o velho, que mantinha-se impávido, sem demonstrar nenhuma intenção de mover-se, ainda com o dragão verde-azulado desacordado a seus pés, o jovem guerreiro descarregava seu desgosto contra a injustiça que acreditava ter sido feita, quando seus antigos amigos deixaram de procurá-lo.

Ele havia sacrificado sua infância e boa parte de sua adolescência, para proteger seu pai, sua família e seus amigos que, afinal, deixaram-no à mercê do mal e de seus mais poderosos asseclas. Agora, passado tanto tempo, sentia que o sacrifício havia sido em vão, pois nunca existira uma contrapartida. O mal o havia acolhido e adotado, como quem o faz à uma criança órfã.

Felizmente ele era, agora, um guerreiro bem treinado em batalhas contra grandes e poderosos inimigos, sem medo de nada e dominado pelas forças do mal. Aquelas características tornavam-no, não somente poderoso, mas, também, totalmente temerário por onde passava.

O mais perigoso tipo de guerreiro não é o que sabe melhor empunhar uma espada ou outra arma qualquer nas lutas, mas aquele que não respeita as regras, não teme a morte, nem sente pesar por quem quer que seja. Estes são capazes de tudo, pois não têm nada a perder.

Ele não tinha nada a perder e nem temia a nada… nem a ninguém.

O velho fechou os olhos e esperou. Chegou a sentir a ponta da lâmina a tocar seu peito, no mesmo lugar onde uma antiga cicatriz ainda latejava, por vezes. Mas a espada não penetrou seu corpo. Ele sentiu o frio contacto do metal na pele e esperou pelo golpe fatal. No fundo, quase desejava por aquele destino. Sentia-se culpado por não haver procurado o rapaz, mais insistentemente, até conseguir trazê-lo de volta para o mundo ao qual pertencia. No fundo achava-se merecedor de um castigo e sentia que não devia lutar contra aquela sentença. Era sua conta a pagar…

O homem abriu os olhos e fitou os daquele que outrora havia sido seu protegido, mas que agora agia como seu carrasco. Eles tinham um brilho estranho. A face trazia um misto de rancor e angústia. A boca estava estranhamente contorcida. Mas a mão do guerreiro tremia, como se hesitasse ou fosse impedido de dar o empuxo final. Ele sentia a lâmina a arranhar sua pele e um pequeno corte abrir-se, deixando um estreito fio de sangue quente e viscoso a escorrer-lhe vagarosamente pelo torso abaixo.

Foi então que o mundo pareceu-lhe revirar completamente ante seus olhos. A espada foi atirada para cima com tamanha violência, que o rapaz perdeu o equilíbrio e caiu para trás. Uma grande e escamosa pata verde-azulada pousou sobre seu peito, imobilizando-o completamente, com um peso descomunal e causando-lhe sufocamento, por falta de ar.

O velho olhou para o lado, já prevendo a reação do grande dragão pardo, mas aquele estava cercado por seis outros dragões, cada um de uma cor distinta. Atrás dos mesmos, uma face conhecida surgia, com armas de combate nas mãos e correndo em sua direção.

O recém-chegado olhou o rapaz caído no chão e perguntou ao velho:

- Quem é este, afinal?

O velho respirou fundo e disse:

- Aquele que pensávamos estar morto, mas que nunca devíamos ter desistido de procurar: teu filho mais novo!

***

Apesar de amarrado e de estar sob cuidadosa vigilância, o rapaz não parecia sentir-se derrotado. Havia nele uma certa arrogância, como se soubesse de algo que os outros não sabiam. Que trunfo ele possuía, era um mistério que os dois homens não conseguiam perceber.

O pai estava com sentimentos divididos entre a culpa e o amor, tentando perdoar a investida do filho e arranjar desculpas para aquela mudança tão radical. Tinha esperança que o amor que o abandonara fosse mais forte que o mal que o acolhera, mas também sabia que teria muito trabalho para convencer o rapaz a entender seus motivos. Os filhos e os pais quase nunca conseguem entender as razões que movem as ações de um e do outro.

O velho estava assustado. Tinha medo que a imprevisibilidade do rapaz colocasse as vidas dos outros dragões em risco. O verde-azulado já havia sofrido seu tanto e não era merecedor daquilo. O pobre animal precisava apenas de alguma paz, naquela fase de sua longa e atribulada vida, não de mais conflitos e sofrimento.

O rapaz havia mudado profundamente e aquela transformação era extremamente perigosa… para todos.

Os devaneios dos dois homens foram interrompidos por uma grande barulheira do lado de fora. Os dois correram até a clareira, onde o grande dragão pardo havia sido acorrentado firmemente.

Não foi nenhuma surpresa que o dragão aprisionado houvesse escapado e que os outros estivessem tão estupefactos quanto os dois homens. Dois dos dragões, o prateado e o vermelho, haviam sido feridos pela grande fera e estavam a ser acudidos pelos outros, que decidiram ser uma melhor atitude do que perseguir o inimigo, pois sabiam não ter a mínima hipótese de alcançá-lo.

- Isso complica, demasiadamente, as coisas…

- Muito mesmo! Melhor nós verificarmos o nosso ‘prisioneiro’. Eu sabia que algo estava errado.

O rapaz sorria. Era um sorriso estranho. Malicioso. Triunfante.

Embora não tivesse presenciado o que ocorrera lá fora, tinha consciência da fuga do dragão e das consequências que aquele acontecimento teria. Ao chegar sozinho ao seu destino, o animal seria porta-voz das más notícias ao seu senhor. Era de esperar que houvesse uma reação imediata, por parte do guerreiro de negro, um homem extremamente poderoso e vingativo.

Era premente, entretanto, tratar dos animais feridos, antes que o outro voltasse com reforços. Todas as forças do bem tinham que estar preparadas para a retaliação do mal, o que não seria um combate fácil de travar.

***

Não era de estranhar que o rapaz parecesse tão fora de contexto como naquela ocasião. Sabia que estava preso, mas mantinha uma atitude presunçosa e longe de parecer derrotista. Ele tinha uma missão, afinal, que somente ele e seu protetor sabiam. A esperança de ser liberto e salvo pelo guerreiro de negro era grande e quase uma certeza de sua parte. Se ele o fosse, porém, todos sabiam que ele estaria total e definitivamente voltado para o lado do mal.

Para o pai e também para seu velho amigo, ele era instável e perigoso como um animal selvagem, aprisionado e prestes a enfrentar a tudo e a todos para salvar sua pele. Ainda severamente magoado pelos acontecimentos do passado, era capaz de tudo.

Veio a noite e, com ela, a densa e imprevisível escuridão. Toda e cada hora, minuto e segundo, eram preciosos e imponderáveis. Tudo podia acontecer de um momento para o outro, por isso uma cuidadosa vigília era indispensável.

Os dragões tomaram turnos à porta da caverna, onde o rapaz era mantido prisioneiro.

A madrugada demorava a chegar e ele era atormentado por expectativas, como as que tinha quando esteve prisioneiro do senhor de todo o mal. Ele não dormia um sono tranquilo. Era acordado muitas vezes por qualquer ruído mínimo que atingisse seus ouvidos treinados. Ele levantou a cabeça e olhou para fora, tentando focar a vista na entrada da caverna, onde uma silhueta recortou-se contra a faixa muito ténue de luz que subia por trás do laranjal, anunciando a chegada do dia. À aquela, juntaram-se outras duas, muito semelhantes.

Ele sentou-se e ficou quieto a observar. Quando conseguiu acostumar a visão à pouca luz, percebeu que os três dragões mais jovens, encarregados da vigília daquela noite, estavam ocupados a bicar um objeto conhecido dele. O dragão negro, conseguiu quebrar o pequeno lacre de cera que havia na empunhadura da espada que pertencia ao jovem guerreiro, revelando um pequeno objeto oculto por baixo daquele, numa pequena cavidade feita com o propósito de esconder, de tudo e de todos, um amuleto, que eles lhe haviam dado, ao que parecia haver sido há uma eternidade atrás.

Com a ponta da unha, o dragão recolheu o pequeno amuleto e estendeu ao rapaz, através da grade à porta da caverna. O rapaz segurou-o na palma da mão e lembrou, pela primeira vez, desde muito, por qual razão havia escondido o presente recebido para sua proteção. Ele fechou os olhos e ficou em silêncio por uns momentos. Depois abriu os olhos e a mão, novamente, olhou para fora e atirou o minúsculo objeto para longe de si. O dragão recolheu o amuleto do chão e devolveu-o ao seu legítimo dono, mais uma vez. Por mais que tentasse negar ou refutar, aquele pequeno presente era seu. Por mais que ele quisesse acreditar que odiava aqueles personagens e tudo o que vinha deles, não podia negar seu passado.

O jovem guerreiro atirou o objeto mais uma vez para longe e mais vez o dragão recolheu-o e devolveu-o a ele. Ele percebeu que o animal não desistiria enquanto ele não ficasse com o que lhe pertencia. Então, para evitar repetir a ação, pendurou-o no pescoço. O dragão negro acedeu com a cabeça e afastou-se um pouco da porta.

A luz da madrugada já fazia a paisagem mais visível, especialmente o céu. O rapaz olhou para cima e seus olhos avistaram, muito ao longe, uma estranha figura vindo, por detrás das brancas nuvens, pouco iluminadas pelo sol da manhã.  

Ele sorriu. Faltava pouco, agora.


***