Agarrado à mão da mocinha de olhos verdes muito claros, o homem tentava não
perder o contacto com ela, enquanto mergulhavam, num imenso e escuro vazio,
para além do fundo do baú. Os dois caíram por uns milésimos de segundos e,
depois, como se sugados por um poderoso aspirador, foram arrebatados para cima,
com uma violência extraordinária, na direção de uma luz muito fraca, à uma boa
distância de onde estavam.
A ‘queda’, porém, foi amenizada, após
uns poucos segundos, como se houvesse um campo de força que controlasse,
convenientemente, a velocidade com que viajavam. Ele logo percebeu que estavam a
chegar perto do seu destino. Olhou para cima e deu-se conta que uma grande
sombra surgia sobre as cabeças deles, por trás da ténue luminosidade.
A sombra definiu-se melhor e ele percebeu que, acima deles, erguia-se uma
cidade completa, totalmente invertida. Sentiu-se com se estivessem caindo, em
câmera lenta, no meio da mesma.
Ao atingir o solo, num amplo pátio de formato retangular, teve a impressão
que todas as coisas invertiam, como se fosse normal aquela mudança na órbita. Talvez,
se pudessem ser vistos de fora, eles ainda estivessem de cabeça para baixo, mas
ele já não tinha certeza de nada…
- O que aconteceu?
A mocinha riu.
- É assim mesmo. Não há explicação plausível e coerente, do ponto de vista
do mundo onde vives, mas tens que abrir a mente, porque o que vais ver por
aqui, vai contra muitas coisas em que acreditas…
Ele não tinha ideia do que ela
estava a dizer, mas tinha a forte impressão que devia preparar-se para muito
mais surpresas. Ajudava-lhe o facto de ser imaginativo, mas ele sabia que sua natureza
não seria suficiente firme e forte para o que viria a seguir.
Os dois atravessaram o pátio e chegaram
a um edifício, que tinha uma fachada ladeada por dois grupos de colunas em
formato clássico grego, no rebuscado estilo coríntio, no alto de uma série de
degraus de pedra bege polida. Um grande portal exibia uma pesada e escura porta,
que abriu-se automaticamente com a chegada deles, mas sem escancarar mais que o
suficiente para passarem. Ele mal havia percebido que a moça trazia um pingente,
de pedra azul, talvez de lápis-lazúli,
no pescoço e que este exibiu uma luz – um flash
momentâneo, que apagou-se muito discretamente.
- Daqui para frente tu deves seguir sozinho. Já não sou mais necessária por
cá. Eu ainda sou uma aprendiz de guardiã. Tenho outras tarefas a executar,
agora.
Ela virou-se e deixou-o no grande hall minimalista também da mesma pedra
bege da escada do lado de fora, praticamente sem nenhuma decoração, a não ser
as figuras esculpidas na porta ainda entreaberta, pela qual saiu
silenciosamente. O homem olhou à volta e avaliou o local com olhos curiosos,
tentando captar algum detalhe, que pudesse passar despercebido, mas não via
nenhum. À sua frente, no fundo do hall, havia uma outra porta, com os mesmos
detalhes esculpidos, incrustada num pequeno portal de passagem, como se fosse a
entrada de um corredor. Devia ser por lá que ele tinha que passar.
Deixado sozinho, ao caminhar, seus
passos ecoaram como se estivesse num grande templo. Sentiu um súbito desconforto
no estômago, mas continuou com firmeza. Quando chegou à porta, percebeu que não
havia maçaneta, nem batedor. Esquadrinhou, à procura de uma abertura, um ponto
onde percebesse uma chave ou coisa parecida, mas não havia nada. Resolveu que o
melhor deveria ser bater, para fazer-se anunciar.
Estava com a mão levantada e
fechada, pronto a bater com os nós dos dedos na madeira esculpida, mas um leve sibilo
chamou-lhe a atenção e ele deu um passo para trás. Foi então que percebeu que a
sala toda, ao redor dele parecia ter o chão coberto por uma fina névoa branca. Seus
pés já estavam escondidos pela estranha nuvem de vapor, que começava a ganhar o
ambiente por completo. Ele não sentia cheiro de qualquer composto químico, mas
sabia que aquilo poderia ser muito mais perigoso que ele pudesse prever. À sua
volta pouco se via claramente e a temperatura havia baixado momentaneamente. Seu
coração estava acelerado e ele deu-se conta que havia caído numa armadilha.
Decidiu
que tinha de voltar pela porta por onde entrara. Começou a percorrer o caminho
de volta, com passos ligeiros e sentindo que a nuvem espessava cada vez mais.
Já não via mais nada à sua frente, mas seu instinto dizia que tinha que
alcançar aquela porta, a todo custo. Ouviu outro sibilo atrás de si e teve medo.
Acelerou o passo, tentando controlar o desespero que crescia de maneira
exponencial dentro de seu peito. Apurou os ouvidos e desconfiou que alguma
coisa arrastava-se pelo chão, como se estivesse ao seu encalço. Ele estava em
perigo e não conseguia ver a porta, no meio da névoa na qual estava imerso.
Alguma coisa passou por ele, movendo
a névoa e formando um redemoinho ao seu lado. Seu coração deu um salto. Ele já
devia ter alcançado a porta…
Parou.
Tateou o espaço à sua frente, com
medo que fosse chocar-se contra a parede sólida. Ouviu, então, o sibilo mais
alto, só que desta vez bem à sua frente. Algo muito frio roçou a ponta dos seus
dedos e ele, encolhendo-se, deu um passo atrás. Já não era somente impressão sua.
Havia alguma coisa a mover-se bem próximo dele. Virou-se e pôs-se a correr, na
direção oposta e como se sua até então insossa vida dependesse somente daquilo
- o que era a mais pura verdade...
Correu desesperadamente, mesmo sem
conseguir ver nada à sua frente. De repente, bateu com a ponta do pé em alguma
coisa e caiu para a frente, sentindo o chão faltar-lhe completamente por baixo
de si e ele a cair num imenso vazio.
***
Caiu por uns longos segundos, sem
conseguir ver muito à sua volta, até que sentiu o impacto contra o que pareceu-lhe
ser a superfície da água e seu corpo ser envolvido completamente por uma fria
sensação. Como não caiu com os pés juntos, mas com o corpo meio de frente, o choque
na água foi bastante doloroso e ele sentiu-se a afundar. Entrou em desespero. Sabia
que tinha de voltar à tona, o quanto antes, por isso começou a debater-se para
ir na direção da luz que via por cima de si.
Por sorte, não pareceu-lhe haver-se machucado…
mas sentia-se todo dolorido. Um gosto estranho invadiu-lhe a boca, como há
muito não sentia. Lembrou-se de uma ocasião, na sua infância, quando caiu da
janela da sala, sobre o cimento da calçada. O gosto que sentiu e aquela
sensação de confusão e atordoamento, eram os mesmos. Devia ser sabor a sangue
ou outra defesa qualquer do corpo. Tinha que apressar-se a sair dali. O
oxigênio em seus pulmões já praticamente não existia.
Quando alcançou a superfície, sua aflição
era evidente e ele inspirou com força e com um brado de desespero. Teve mesmo
muito medo de não conseguir sair da água com vida.
- (A queda foi grande...)
O pensamento era quase ingênuo.
De repente sentiu-se puxado pelos
braços e ser largado no piso de granito, ao lado de um poço, de boca bastante
larga, no meio de uma estranha e enorme sala, ladeada por uma série de colunas,
no mesmo estilo daquelas que já havia visto. A luz era muito parca naquele
lugar.
- (Lugar estranho para ter-se um poço...)
Ao fundo via o que parecia ser uma
abertura para um longo corredor.
Ainda estava a tentar localizar-se,
quando ouviu um murmúrio. Era uma voz calma, mas aparentemente conhecida. Pensou
estar delirando…
- Podes levantar-te sozinho?
- Ahn? Acho que sim…
Respondeu por instinto, tentando
focar seus olhos na figura agachada à sua frente, que estendeu a mão, para ajudá-lo,
mas o homem levantou-se, devagar, sem auxílio.
O homenzinho sorriu. O outro reconheceu
os detalhes do rosto e da boca, assim que conseguiu vê-lo bem. Era o personagem
que havia visto anteriormente no bar, no incidente com a borboleta.
- Eu já devia saber.
Ele balançou a cabeça,
afirmativamente, ainda sorrindo.
- Não esperava outra coisa de ti. Tivemos que dar uma volta grande, para
trazer-te cá, mas acreditamos que foi para o melhor e para levantar menos desconfianças.
O homem ainda estava meio confuso.
Não tinha a mínima ideia do que o estranho homenzinho quereria dizer, mas
lembrava-se bem porque cruzara o portal. Ou o Universo brincava consigo, ou o
acaso havia sido muito bem manipulado por alguém ou alguma coisa, para trazê-lo
até aquele lugar. Um quase profano e paranoico pensamento formou-se em sua
mente e ele apressou-se em expressá-lo.
- Foi tudo uma grande artimanha, para trazer-me cá, não foi? Nada do que
aconteceu foi por acaso, não é mesmo? Vocês plantaram estas pistas todas,
propositalmente, para conseguir com que eu viesse cá e trouxesse o que vocês
queriam, afinal, não foi? Até aquela entrada estranha e a perseguição na sala
cheia de névoa…
- Não exatamente. Quase tudo foi proposital. Não contávamos com a névoa e a
perseguição, mas por sorte, caíste no poço. Assim estás a salvo, por enquanto.
Mas ela não vai descansar enquanto não vier ao teu encalço. Temos que tentar
proteger-te…
- Ela? Ela quem?
- A Sibila. Ela sabia que tu vinhas e estava mais preparada que pensamos. E
ela quer o mesmo que nós. Conseguiste trazer o que te foi pedido?
Ele olhou o homenzinho, sem
responder e a pensar na conversa que havia tido com outros dois personagens, há
uns dias atrás.
***
Sua curiosidade costumava colocá-lo
em situações inconvenientes, quando era mais jovem. Por uns tempos, achou que
havia controlado sua tendência, mas pelo jeito tinha tido uma recaída, pois não
conseguia controlar-se e afastar-se, antes de meter-se em complicações – o que
fatalmente acontecia…
- O preço pode parecer baixo, mas vais ter que levar pessoalmente, pois nós
não podemos chegar até aquele lado... ainda mais com isso...
O homem de casaco cinzento e olhos
azul-acinzentados apontou para a mão do outro que, na hora, pensou que a tarefa
seria fácil, afinal não ia custar-lhe mais que alguns minutos da sua vida. E
ainda ia poder fazer uma viagem, no mínimo, inusitada. Já havia decidido tirar
uns dias de férias e não tinha grandes planos. Pensou que a “aventura” ia ser
providencial e aceitou o desafio, quase sem pensar.
- A viagem pode não ser tão breve e nós não podemos fazê-la agora. Não
estamos totalmente seguros. Corremos sério perigo e podemos star sendo vigiados.
Tem que ser alguém que não levante suspeitas...e que nos permita controlar o
tempo entre a saída e a entrega...
- Mas eu também não estou totalmente seguro… Ou pelo menos acho que não. Eu
não tenho a mínima ideia de como chegar lá. Como posso estar pronto para fazer
uma viagem destas, afinal?
Eles se entreolharam e sorriram.
Desta vez não havia sido impressão sua. Foi quando ele percebeu que seu destino
estava a ser manipulado.
- O mapa servirá bem para mostrar a entrada. Nós temos que garantir que
chegas até lá e que ninguém.. ou nada... interfira até que seja feita a entrega.
Algo não estava bem explicado
naquela história. Ele sentiu um incômodo no estômago.
***
O homenzinho parecia exultante.
Estendeu a mão na direção do outro, à espera que lhe desse o que o trouxera a
aquele lugar. O homem meteu a mão no bolso da calça e tirou dali uma pequena
caixa metálica, decorada com detalhes de prata batida, que entregou ao seu
anfitrião.
- Espero que não se tenha perdido nada. Não contava com a queda no poço…
Disse-lhe aquilo e olhou para suas
roupas completamente molhadas. Sentia-se desconfortável e com o nariz a pingar.
Deu um espirro e disse que precisava livrar-se daquelas roupas molhadas ou
aquecer-se, urgentemente. O homenzinho assentiu e conduziu-o para um corredor,
até onde havia uma série de portas, uma das quais dava para uma espécie de
quarto de hóspedes.
Ele deixou-o só, por tempo
suficiente para trocar de roupas por outras que haviam sido deixadas no
aposento, numa espécie de armário. Havia ainda uma cama e uma casa de banho com
banheira. Parecia um pequeno apartamento de hotel: limpo, confortável, mas
bastante simples. O homem despiu-se das roupas molhadas, pendurou-as na casa de
banho, secou-se e saiu de volta para o quarto. Sentiu-me subitamente cansado. A
cama convidava-o, mas ele tinha que resistir.
Um click na direção da porta fê-lo voltar à realidade. O homenzinho
entrou, com a caixinha na mão. Estava sorridente e com os olhos a brilhar.
- Está em perfeito estado…. E o conteúdo também. A água, felizmente, não
estragou nada.
- Fico feliz em saber. Minha parte do acordo está cumprida.
Ele sorriu.
- Gostaste do aposento? Estás mais confortável?
O homem percebeu que o outro não
respondeu e desviou do assunto, mas fingiu entrar no jogo dele, ao invés de
mostrar-se incomodado.
- Sim. Se não tivesse passado pelo que passei há uns minutos atrás, diria
que estava num hotel comum, mas sei que as coisas aqui podem não ser o que
aparentam à primeira vista.
Olhou para a caixinha na mão do seu
anfitrião, que não desviou os olhos dos seus.
- É assim mesmo. Não há explicação para tudo, mas tens que abrir a mente,
porque o que vais ver por aqui, vai contra muitas coisas em que acreditas…
- Dèja vu?
O homem pensou na frase que já
ouvira quando teve o primeiro contacto com aquele mundo. Mas o homenzinho foi
um pouco mais adiante e continuou.
- …Mas podes ter certeza que teu
cérebro logo habitua-se com esta nova realidade… Nem tudo é o que aparenta ser…
Por incrível que pudesse parecer,
aquela era uma verdade incontestável. O homenzinho abriu a tampa da caixinha e,
com as pontas dos dedos, tomou um dos pequenos objetos contidos nela.
O outro preparava-se para aceitar, quase
de bom grado, algumas coisas que pareceriam absurdas, anteriormente, no mundo
de onde viera.
***
Quando saíram de volta ao corredor,
o homenzinho vestido de castanho-escuro tinha um sorriso largo na face e os
olhos a brilhar, de satisfação. A parte principal da tarefa havia sido cumprida
e ele exultava.
Faltava ainda a contraparte, que o
outro homem esperava que também fosse cumprida pelo seu anfitrião.
Viraram para
o lado oposto de onde inicialmente havia chegado e ele foi conduzido por um
outro grande hall que não tinha
nenhuma decoração, além de mais colunas num estilo grego e que abriam-se para
uma espécie de jardim, na parte de trás. Ele tinha a impressão que havia passado
por um lapso de tempo. O minimalismo na decoração do edifício contrastava com a
pulcritude e a riqueza diversificada e pujante do jardim.
Havia uma espécie de
trilha, que fazia uma curva pelo lado esquerdo e que conduzia até uma área
coberta, que lembrava uma estufa erguida no centro de um horto botânico.
Uma vez lá, o homenzinho depositou a
caixinha sobre uma mesa e, sem olhar para o outro, abriu-a e despejou o
conteúdo da mesma sobre a madeira nua. Sua satisfação era evidente.
Um ruido por trás da vegetação
chamou-lhes a atenção e o homem de cabelos castanhos voltou-se, bastante
assustado.
- São mangustos. Não há nada a temer.
- Mangustos? Aqui?
Ele riu, um tanto sem jeito, depois
disse, com ar mais sério:
- Servem de guardiães deste local. Esta área é protegida, mas nunca se sabe
os perigos que podemos enfrentar. Já foram encontrados muitos destes
completamente destruídos e o equilíbrio depende deles. Os seguidores da Sibila
são perigosos e traiçoeiros.
- Foi por esta razão que eu tive que trazê-los?
- A devastação coloca em risco nossa espécie e nosso mundo. Olhe aquilo.
O homenzinho puxou a folhagem para o
lado e mostrou uma área bastante devastada, para a surpresa do outro, à uma
distância muito próxima de onde estavam. Um outro ruído assustou-o. No meio da
vegetação à volta deles, algo pareceu arrastar-se e ele ouviu um silvo já
conhecido seu.
Os mangustos correram para o meio da área e pareceram atacar alguma
coisa. Seguiu-se um guincho mais alto, como se fosse de dor e ele viu os olhos
do homenzinho apertarem. Um dos guardiães foi jogado perto dos pés dos dois
homens, com um ferimento a sangrar no pescoço. O homenzinho recolheu os
pequenos casulos e retornou-os à caixinha metálica, puxando o outro pelo braço
e correndo por dentro do horto, na direção do edifício, com a esperança na
palma da mão e apertando-os contra o peito.
- A segurança foi violada. Estamos em perigo. Corra!
O homenzinho era mais rápido que o
homem da cidade e tinha mais motivos para correr. O outro foi atrás, tentando
manter-se o mais próximo dele que pode. Antes que chegasse de volta ao jardim
do edifício, ouviu o silvo muito próximo de si e olhou para trás. Uma sombra
pareceu esconder-se na folhagem. Ele virou-se e correu, desesperadamente.
Aqueles poucos segundos em que distraiu-se foram suficientes para perder seu
anfitrião de vista.
- (Ele devia estar bem aqui à minha frente...)
Mas ele estava enganado em seu
pensamento.
Ouviu muitos ruídos misturados no
meio da vegetação e começou a entrar em pânico. Tropeçou numa raiz e caiu, com
as mãos na sua frente, a tentar proteger o rosto. Levantou-se o mais rápido que
pode e pôs-se a correr, mas já era tarde.
Alguma coisa enlaçou-se nas suas
pernas e ele caiu novamente, desta vez com o rosto contra o chão e perdeu toda
a noção do que acontecia, quando a luz apagou-se completamente à sua volta.
***