Aquela musiquinha irritante do
despertador acordou-me num sobressalto… e não somente a mim. Ele pulou da cama
e apanhou o telemóvel do bolso das calças, que jaziam soltas sobre as minhas
roupas, na cadeira, num canto.
- Que horas são?
- Meia-noite…
Disse aquilo com um sorriso meio
sem graça, a olhar-me ainda protegida pelas cobertas quentinhas e exibindo uma
cara de sono, tentando focar a imagem dele, de pé, na penumbra do quarto.
- Já?
- Já! Tenho que ir…
- Uh-hum…
Ele sabia que eu não ia protestar,
nem fazer um drama desnecessário. Aceitava aquela condição sem reclamar, há bem
mais que um ano e sabia o que o despertador a tocar, àquela hora, significava. Era
como se o conto famoso repetisse cada vez que ele vinha. O encanto cessava à
meia-noite, quanto as badaladas anunciavam a hora de partir…
A silhueta conhecida, recortada contra
a luz que vinha de fora e iluminava as cortinas, por trás, como num teatro de
sombras, movia-se como se estivesse num tempo e espaço presos entre o sonhar e o
acordar. Vestia-se com pressa, para evitar ficar muito tempo exposto ao frio do
ar, tão dissemelhante daquele em baixo do edredão de penas de ganso, em que se
encontrava há segundos atrás.
Aquela era para ser uma relação
simples. Mas não era. Era tudo; menos simples. Pelo menos na minha cabeça…
Eu não me permitia sentir ciúmes…
ou melhor: não me permitia demonstrar ciúmes, mesmo quando o sentia. Eu tinha
muitas dúvidas e incertezas, que não queria deixar transparecer, com medo que
ele me julgasse impertinente, dona de um sentimento descabido, já que não tinha
direito sobre a vontade ou a liberdade dele.
Levantei-me e enrolei o roupão no
corpo, quase sem pensar. Fui até a cozinha e abri uma garrafa de água com gás,
que eu mantinha sempre fresca, por saber que ele gostava. Bebemos em silêncio,
evitando olharmo-nos diretamente nos olhos um do outro.
A despedida era sempre assim: num
quase silêncio tristemente consternado. Levava-o à porta, trocávamos um beijo,
como se fosse o último e um abraço que beirava o desespero e que amargava o
desejo, nunca expresso, de que passássemos a noite juntos, abraçados, como se
não houvesse mundo maior que o nosso pequeno quarto.
Quando ele saía e eu fechava a
porta, minha vidinha solitária voltava a uma rotina anormalmente normal e completamente
desprovida de cores, a não ser a mesma sequência de variantes do mesmo tom frio
e impessoal de sépia, que eu não sabia se realmente odiava ou não.
Naquele dia, porém, quando
retornei ao quarto, não consegui dormir imediatamente. Minha cabeça começou a
trazer, à tona, todas as dúvidas e meus pensamentos vinham aos turbilhões,
fazendo-me questionar o que eu estava a viver nos últimos tempos… sem exceções.
Virava-me de um lado ao outro, sem pegar no
sono, por mais que quisesse desligar o cérebro e dormir. Queria desaparecer na
escuridão do quarto, sem nem ao menos sonhar. E, justamente por tentar tanto, a
impressão que tinha era que parecia afastar-me cada vez mais do meu intento. Não
conseguia pregar olho.
Uma mistura de sentimentos resolveu
assombrar-me, vindo de baixo da cama, subindo pelas paredes e pousando sobre
meu travesseiro, como se fossem impertinentes demonetes, dispostos a infernizar
minha noite. Por incrível que pudesse parecer, o único diabrete que não veio
sentar-se junto a mim foi o da culpa… Todos os outros, porém, brincavam com meus
cabelos, minha cabeça, minha sanidade…
Tentei os exercícios de
respiração e relaxamento que conhecia, mas não consegui muito. Eu sabia que
tinha de tomar uma atitude e tocar a vida adiante, senão aquela sensação
estranha a incomodar-me não esvanecia. Vinha evitando pensar seriamente sobre a
situação há muito tempo. Pareceu-me que minha consciência já não podia esperar
mais por uma definição de vida e dava os sinais daquela evidência.
Levantei-me.
Enrolada novamente no robe, fui
até a cozinha. Preparei um chá de maçã vermelha, que sabia tinha propriedades
calmantes, dirigi-me à sala, sentei-me confortavelmente no meio das almofadas
do sofá e deixei-me relaxar um pouco. Estava mais que evidente que minha consciência
procurava um pouco de harmonia. Eu merecia paz…tranquilidade… e uma decisão…
Eu sabia que o óbvio era a única
saída, por isso, era apenas uma questão de querer assumir e ir em frente.
Vinha evitando há muito tempo,
porque gostava dele, dos carinhos e da atenção que recebia, da generosidade e do
respeito nos gestos e da liberdade que tínhamos na relação. Não escondíamos
nossos sentimentos, nem fingíamos sentir uma paixão arrebatadora ou doentia.
Mas quando estávamos juntos, éramos
amantes no mais denso sentido da palavra…e não só…
A cumplicidade, o humor nas
entrelinhas, os jantares acompanhados de vinho, as brincadeiras e o conforto
dos braços e do corpo dele a aquecer o meu… era impossível desconsiderar a beleza da situação, mas também
a fragilidade que ela tinha.
Pus as mãos na cabeça e fechei os
olhos.
- Coragem!
Eu falava comigo mesma, na
esperança de convencer-me. Encolhi-me,
abraçada aos joelhos e recostei a cabeça na grande almofada…
Já não pensava mais… Caí num sono
profundo.
Acordei com a luz do sol a entrar
pela cortina mal fechada, sentindo dores no corpo, devido à posição em que
fiquei deitada por tanto tempo. Estava atrasada para o trabalho…
Nos dias seguintes, quanto mais
pensava, mais tinha certeza do que ia fazer. Às vezes surpreendia-me a pensar
em nós e enchia os olhos de lágrimas, mas estava cada vez mais decidida. Teria
que encarar a decisão, olhando-o nos olhos. Ia doer, mas tinha que ser feito. Era
o melhor para nós dois. No fim de semana estava totalmente decidida.
A nossa costumeira noite de
encontro chegou, finalmente. Desta vez ele não vinha para jantar. Eu não ia
conseguir engolir nada mesmo. O destino compactuava comigo. Teríamos pouco
tempo juntos.
Tentei acalmar-me. Não podia
estragar o meu plano com o nervosismo. Repassei o discurso, na minha cabeça, um
milhão de vezes. Estava pronta.
Quando a campainha tocou, estava
já à porta, mas tive que respirar fundo algumas vezes, antes de girar a chave.
Abri…
Ele estava vestido de preto.
Alinhado. Quase formal. Sorridente.
Engoli em seco. Convidei-o a
entrar. Ele disse, com o sorriso ainda aceso na face, cuja barba havia sido
aparada recentemente:
- Vamos sair.
- O que?
Devo ter feito uma cara tão pasma,
que ele soltou uma deliciosa gargalhada.
- Vamos sair. Vista um casaco, que está frio. Não pensa muito… anda
comigo…
Eu obedeci. Havia sido totalmente
surpreendida. Fiquei sem saber o que dizer. Ele percebeu, mas não disse nada. Limitou-se a conduzir-me até o carro. Abriu-me
a porta como um verdadeiro cavalheiro. Nossas músicas favoritas começaram a
tocar, assim que ele ligou o CD player.
Eu não disse nada. Apenas sorri nervosamente.
- Fica tranquila. Vamos a um sítio giro.
- OK.
Meu coração estava aos saltos. Segurei
uma mão na outra, para esconder o nervosismo. Ele pousou a mão grande sobre a
minha e deu um tapinha, como se tentasse acalmar-me.
Quinze minutos depois, estacionou
o carro junto ao passeio, num restaurante que eu já havia falado a respeito, à
beira da praia. Ele saltou, abriu-me a porta e deu-me a mão, ajudando-me a sair.
Jantamos como um casal normal,
numa noite normal, na cidade… ou na praia…
Ele estava divertido, informal, descontraído.
Brincava e conversava comigo, sem mencionar nenhuma razão, sem questionar nada,
sem explicar nada. Parecia uma rotina a que já estávamos habituados há muito. O
vinho ajudou-me a descontrair e apreciar a comida, a companhia, a noite. Do
meio do jantar para frente, esqueci completamente o discurso que havia
estudado. Estava semi-bêbada. Ele controlou-se, porque ia conduzir. O café, ao
final do jantar, deixou-me um pouco mais desperta.
Quando chegamos à casa, já
passava da meia-noite. Eu sabia que era hora dele ir-se, mas não falei nada.
Ele acompanhou-me até a porta e beijou-me, de leve, os lábios.
- Precisas ir? Já?
- Não.
Desta vez, eu estava totalmente
desperta. Tinha certeza que ele dissera não!
Ele sorriu, abriu a porta e
entrou depois de mim. Abraçou-me e beijou-me, como se fosse a primeira vez que
nos víssemos. Minhas roupas – e as dele - foram ficando pelo caminho. Quando
entramos no quarto, já estávamos completamente despidos. Eu estava totalmente
ruborizada…e sabia que não era somente o efeito do vinho.
Ele amou-me como nunca antes. Eu
entreguei-me como nunca antes.
Uma sensação de pânico e desespero
apareceu-me de repente e fez-me agarrar àquela oportunidade, como se fosse a
minha última. Deixei-me levar, como uma nau, velejando por águas densas e
escuras e conduzida por um capitão, que conhecia bem os mares por onde
navegava. A quilha cortava as águas e singrava pela escuridão, sangrando minha
alma, numa insanidade que confundia meus sentidos, deixando-me sem saber se
sentia dor ou prazer…
Perdi o controle muitas vezes
seguidas, enquanto ele ia e vinha a navegar-me, cada vez mais intensamente.
Agarrei-me ao corpo dele e deixei-me cair num precipício de deleite, que culminou
num abraço louco, num enlace de braços, pernas e pelos.
Por fim, puxou o lençol e o edredão
por cima de nossos corpos, que estavam tão juntos que pareciam um corpo único de um estranho animal, com quatro braços e quatro pernas a se enlaçarem num movimento
surreal. Adormecemos colados um ao outro…
Os acontecimentos da noite haviam
mudado a minha atitude e eu tive que reconsiderar uma mensagenzinha, que ficava
tocando sem parar, na minha mente, durante um sonho agitado, onde eu caía num
poço sem fundo, sem poder agarrar-me a nada...
Uma musiquinha irritante insistiu
em perturbar-me o sono. Eu não tinha muita consciência do que podia ser, até
que senti uma estranha sensação de frio. Abri os olhos, pensando estar em um estado
de delírio.
- O que…
- São duas da manhã. Tenho que ir…
- Oh! Já?
- Sim.
Ele já estava de pé a vestir-se.
Eu virei-me para o lado e fechei os olhos. Amanhã pensaria no que ia fazer…
Por
ora, só queria voltar a dormir…
Uma história sobre um estranho relacionamento e uma decisão a tomar...
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