Era tarde da noite,
no subúrbio da cidade. As silhuetas de duas pessoas, com aparências muito
dissimilares, moviam-se em meio às sombras, por entre as ruelas e os becos. Algumas
pessoas ainda caminhavam na rua, outras conversavam alegremente, dentro dos bares
e restaurantes. Estava uma perfeita noite de Outono, sem ser fria e até
bastante agradável. Ao homem mais forte, aquela temperatura era ideal, porém o seu
companheiro estava desconfortável, sentindo seu corpo pálido e frágil tremer de
frio.
- Vamos por ali. Não devemos estar longe, agora. Só
espero não dar um susto demasiadamente grande ao velho.
O outro olhou para
ele, sem perceber muito bem o que aquilo, realmente, significava e continuou
seguindo ao seu lado, por trás de uma grande casa, que cobria um quarteirão
inteiro, na parte mais afastada da vila. Atrás dela, havia um parque com
brinquedos e, depois, um grande pátio.
Quando atravessavam
uma área bastante arborizada, o movimento que fizeram para afastar os galhos
das árvores provocou um efeito surpreendente em alguns dos moradores
temporários do bosque. Um farfalhar colorido impressionou o clone, mas irritou
o homem que o conduzia, por aqueles caminhos obscuros, na noite fresca de
Outono.
- Oh! O que é isso?
- São borboletas. Monarcas, mais especificamente…
- Que interessante… São tão…
Faltaram-lhe
palavras. Não conseguia, com seu pouco tempo de vida, dizer o que sentia, em
relação à beleza, uma das poucas coisas que o impressionaram.
- … irritantes, quando voam assim à nossa volta. Não
devemos fazer muitos movimentos, pois qualquer coisa pode levantar suspeitas e
nos colocar em perigo. Temos que manter nossa presença a mais discreta possível.
O clone olhou o
homem, que se irritava com tamanha beleza e não compreendeu a razão dele não
apreciar aquele momento incomum. O rapaz puxou-o pelo braço, sussurrando,
irritado.
- Vamos! Cada minuto que perdermos é precioso demais e
vai-nos fazer falta. Ainda vais saber mais sobre as Monarcas, se tiveres tempo…
Agora vamos!
Chegarem,
finalmente, à entrada de um túnel, escondida na parte de baixo de um edifício.
Dali, após passarem por outra série de túneis, emaranhados numa rede bastante intrincada,
chegaram, finalmente, a um pequeno e velho galpão, construído nas traseiras de
uma casa comum.
Uma luz acesa
mostrava que havia alguém dentro da casa. Os dois tiveram o cuidado de
manter-se nas sombras, até que tivessem certeza que ninguém os via. O silêncio
deu-lhes a certeza que não havia perigo. Os dois avançaram e foram até a porta.
O homem mais forte deu uma batida na porta, com os nós dos dedos. Depois, uma
parada e, a seguir, duas outras batidas, seguidas de um curto espaço. Era o
código que havia sido combinado. Ao ouvir o som de passos, no lado de dentro, ele
sentiu uma apreensão esquisita.
Um homem de
meia-idade abriu a porta, mas sua expressão logo mudou, para um misto de
preocupação e medo. O que aqueles dois estranhos faziam ali à sua porta, usando
o código combinado, era uma incógnita. O homem mais forte lembrava-lhe alguém
conhecido, mas ele não conseguia saber quem.
- Em que posso ajudá-los?
O homem mantinha a
porta meio aberta, tentando controlar a situação. Percebia que estava em
desvantagem, mas tinha que tentar intimidar os visitantes, que mantinham-se, um
pouco, à sombra da noite.
- Podemos entrar? É importante.
- Não. Não podem, sem dizer-me quem são e o que querem.
O rapaz avançou um passo e o homem agarrou a
porta, tentado fechá-la, antes que perdesse o controlo, mas sua força nem se
comparava à daquele jovem.
- Pai?
O homem arregalou
os olhos. Não contava com aquela. Ele não tinha nenhum filho daquela idade, com
certeza absoluta. Os olhos do rapaz, porém, quando foram atingidos pela luz de
dentro da casa, mostraram-se tão verdes quanto os do filho, mas ele refutou
aquela característica comum, de imediato.
- Meu filho é mais jovem e eu tenho certeza absoluta que
nunca tive outro. Não sei quem tu és e nem o que tu queres, mas não vais
conseguir nada comigo.
- Eu sei que parece inacreditável, mas se eu puder
explicar… Deixa-nos entrar, por favor. Todos nós corremos perigo.
O homem ficou muito
sério. O rapaz tentou uma última cartada.
- Olha isso! Acreditas em mim, agora?
O homem puxou a
porta, abrindo-a com cuidado, de modo a deixar os dois visitantes entrarem. Até
então, mal havia notado as características do homenzinho, que ele agora observava,
com cuidado. Ele era extremamente pálido, jovem, muito longilíneo e parecia ter
a cabeça desproporcionalmente maior do que aqueles com quem ele costumava
estar. Sua pele parecia muito fina. Os olhos verdes faziam-no lembrar de
alguém, mas ele não percebeu bem, no início. Estava, agora, mais ocupado em poder
examinar a anomalia que o outro mostrou naquele ser estranho e que ele já havia
visto antes, em seu próprio filho.
- Como isso pode ser possível?
- Eu acredito que a resposta esteja aqui, neste tempo.
Por isso precisamos de sua ajuda.
Os três voltaram-se
para um ponto na sombra, atrás do velho homem, de onde veio a voz feminina.
- Leona? O que aconteceu contigo? Estás tão diferente…
- Todos nós estamos, pai, mas…
- Tu não devias ter vindo.
- E deixar-te causar uma catástrofe? Este teu comportamento
intempestivo já nos colocou em problemas… Nós temos que interferir o mínimo
possível com este tempo e lugar. Tudo o que nós fizermos aqui, vai interferir
naquele mundo, com toda certeza.
- Que mundo? Alguém pode explicar-me esta confusão toda?
Antes que o irmão
começasse com verdades impróprias, Leona adiantou-se. Ela teve mais cuidado em
usar as palavras e dizer apenas o que não fosse mudar, muito, o curso dos
acontecimentos, mas o pai tinha que saber o que aconteceu… ou ia acontecer…
O cientista ouviu,
calado, mas não sem deixar de impressionar-se.
Nunca iria imaginar quão importantes suas pesquisas se tornariam no
futuro. Na sua modéstia e simplicidade, por trás de toda a genialidade, ele não
anteviu que seu trabalho traria tanto benefício à humanidade… ou pelo menos à
uma parcela dela…
***
- Pai, o chefe dos cientistas, que é um homem muito
experiente e competente, não conseguiu descobrir o que causou aquela anomalia
no clone. A preocupação é que ela seja grave e que coloque em risco uma boa
parte dos que vierem a nascer, como se fosse uma epidemia, difícil de controlar.
Algum elemento na vacina deixou de fazer efeito, ou houve uma mutação qualquer.
- Eu trouxe uma amostra da nova vacina, que está em
teste, para analisar. Quando aconteceu comigo, como foi que o pai reverteu o
efeito? Não foi encontrada nenhuma anotação sobre isso nos dados de registos
existentes no futuro.
- Eu sei. Eu nunca deixei nada disso escrito nos registos
oficiais. Fiz apenas umas poucas anotações no meu diário, que mantenho longe
das vistas de todos. Mas eu sei o que fazer… Não faz tanto tempo assim que eu
lidei com isso. Mas vamos ter que ir ao laboratório da Universidade, fazer uns
testes. Nós já havíamos eliminado a… err… Não sei se vai resultar com um clone,
cujo ADN já deve ter sofrido muitas mutações, nem sei que tipos de reações
podem ocorrer, mas temos que tentar.
Antes de saírem,
porém, o homem olhou os três visitantes e, franzindo o cenho, perguntou, com
ingenuidade de criança.
- Para que são criados os clones, afinal?
Os três olharam
para o velho cientista, como se ele tivesse dito um impropério. Leona riu, com
ternura e disse-lhe:
- Eu tento explicar a caminho…
***
- O que é isso? É tão agradável…
- É música. Vamos.
- De onde vem?
- Ora, vamos! Depressa! Não temos tempo para isso.
O pai, bem mais
paciente que o filho, tentou explicar de uma maneira mais ou menos coerente:
- A música é a linguagem com a qual as almas dos homens conversam
com as dos deuses. Ela é capaz de tocar o mais intangível ser. Existem muitas
formas e muitos estilos diferentes. Essa, que tu ouves, é de um artista famoso,
que já não caminha nesta terra.
- Não? Onde ele caminha, agora?
- Está morto. Chamava-se David Bowie. Vem do bar do clube
ali na frente, mas devemos evitar passar por lá. Não podemos levantar
suspeitas…
- Temos que arranjar um nome para ti. Se alguém nos
abordar, será a maneira mais conveniente… e apropriada. Não devemos correr riscos
desnecessários.
- Eu sou o Décimo-Terceiro.
- Mas isso não é um nome decente, para este lugar. Temos
que arranjar outro; mais comum e adequado…
- Pode ser David Bowie?
Leona riu alto.
- Pode ser David. Esquece o Bowie. Vai levantar mais
suspeitas, se for usado aqui.
***
O campus da
universidade estava praticamente deserto, quando eles chegaram. Havia, na
entrada, uma carrinha branca, parada, próximo à área de pesquisa, onde o
laboratório ficava localizado. As letras N.
M. E., pintadas em vermelho, nas laterais, não levantaram suspeitas, quando
os quatro personagens desceram o lance de escadas, que os levava ao seu
destino. Assim que o cientista tirou a chave do bolso e girou na fechadura da
estreita porta metálica, ouviu-se um silvo e uma marca profunda ficou gravada
acima de sua cabeça, no duro metal, pintado de cinza claro. Eles se jogaram
para dentro, fechando a porta, em seguida, para ganhar tempo, e foram, correndo,
para o Laboratório Principal.
- Quem são esses? Estamos a ser atacados por armas de
fogo. Temos que fugir e tentar chegar de volta ao terminal. Vamos todos. Corram!
Ao entrar no
laboratório, apressaram-se a arrastar um grande armário e bloquear a porta.
- Temos que usar a saída de emergência, que fica no fundo
do laboratório. Vou mostrar-lhes o caminho. Vocês apressem-se, depois que
passarem e vão em frente, até o fim do corredor. Entrem pela porta onde está
escrito “Para o telhado” e, ao invés de subir, passem por baixo das escadas. Há
uma outra porta lá, no fundo do depósito de vassouras e materiais de limpeza,
pintada da mesma cor das paredes, para dificultar ser encontrada. Eu tenho que pegar
minhas anotações.
Naquele momento
ouviram um grande estrondo. A porta da frente havia sido arrombada com explosivos.
Os sons de passos, a correrem pelo corredor, muito próximo deles, fê-los entrar
em pânico e imaginarem um apressado plano de fuga.
- Não há tempo para voltar. Temos que sair daqui, o
quanto antes. Eles já estão vindo atrás de nós…
- Mas é extremamente importante… está mesmo na gaveta da
escrivaninha…
O rapaz sabia que o
pai tinha razão. Era extremamente importante buscar as informações, para
cumprir o objetivo da viagem no tempo, que acabaram por fazer. Sem pensar
muito, ele dispôs:
- Eu volto. Sou mais rápido e mais forte. Posso
defender-me melhor e, além do mais, quando chegarmos ao terminal, não podemos
voltar os quatro, ao mesmo tempo. A programação estará feita para três,
somente…
- Nós podemos mudar a programação.
- Se tivermos tempo… Melhor nos apressarmos. Eu saio e,
depois, volto pela frente. Não esperem por mim. Deixem, que eu dou um jeito. Se
o portal não estiver aberto, eu espero por um sinal.
- Nós mandamos um, assim que chegarmos, programando o
terminal para um passageiro, somente… Assim, ele fecha quando tu passares e não
trazemos mais perigo junto connosco.
- OK. Agora, vamo-nos separar.
Leona sentiu um
aperto no peito. As coisas haviam saído fora do controlo. Toda a operação ficara
arriscada demais e, agora, lutavam por manter-se vivos. Eles tinham a dianteira
e sabiam o caminho, mas tinham que ser rápidos e insuspeitos, até atingir o
terminal.
Ouviram uma série
de tiros. Que forma mais eficiente e perigosa de apressar as coisas e os passos…