sábado, 19 de outubro de 2013

Em Paz com os Fantasmas... (Parte 2)




Era cedo na manhã quando o rapaz entrou no quarto e abriu as cortinas e a janela. Uma fina chuva caía sobre o monte, acentuando as cores da paisagem, em um fundo pintado com diferentes e sombrios tons de cinza. O ruído do riacho a correr ali perto, pareceu-lhe, por um momento, melancolicamente mais alto e mais pungente.

Quando a luz baça da manhã iluminou o aposento, ele percebeu que não foi recebido pelo mesmo sorriso de sempre e sentiu um súbito desconforto a apertar-lhe o peito.

Havia algo bastante diferente no semblante cansado da criança. A pele e os lábios pareciam mais descorados e o olhar estava distante, a vaguear para algum ponto, localizado bem além do limiar da janela…

Ele tentou não transparecer sua preocupação, ao encarar o irmãozinho. Falou com a voz mais calma que pode compor, naquele instante, procurando esconder o alarme, que acendeu uma berrante luz encarnada na sua mente:

- Chove…

O pequeno suspirou, desanimado e olhou o irmão, com olhos visivelmente fatigados e sem o usual brilho de vida. Não parecia haver dormido muito bem naquela noite. O outro aproximou-se, aprumou dois grandes travesseiros de penas de ganso às costas do menor e arrumou a coberta sobre as pernas dele, tentando parecer o mais natural possível.

- Vou trazer alguma coisinha para comeres.

- Não...

A voz soou fraca e baixa; quase inaudível.

- Mas tu precisas comer, criança.

- Não agora…

- Ok, então. Depois eu trago-te um chocolate quente…

O mais velho, então, sentou-se na cama, ao lado do irmão e passou o braço a volta do seu ombro, trazendo-o mais para próximo de si. Era extremamente paciente e atencioso com aquele ser que tornara-se, em pouco tempo, tão frágil e indefeso e que passara a necessitar de grande e dedicada atenção. O pequeno estendeu o bracinho magro sobre o peito do mais velho e deitou, ali, a cabeça, de ruiva e macia cabeleira. Parecia demasiadamente esgotado.

Os olhos do rapaz encheram-se de lágrimas, quando sentiu a respiração da criança ficar mais fraca. Apertou o corpinho mirrado do menino contra o seu, pousou-lhe os lábios na testa e deixou-se tomar por um pranto angustiado e impotente, embora silencioso.

Ter o corpo frágil do menino, no seu abraço morno, era como segurar o volátil corpo de um anjo, cujas asas estavam irremediavelmente quebradas e o impediam de voar novamente.

Para o pequeno, entretanto, estar seguro naquele abraço, sentindo-se incondicionalmente amado e protegido, era como ter suas asinhas, finalmente, curadas e prontas para permitir-lhe voar novamente. Rendeu seu espírito ao quente aconchego daquele momento de tranquilidade e afecto, exalou profundamente e sorriu, de leve, como se sentisse que toda sua silenciosa aflição estivesse, finalmente, aplacada.

A bem-vinda paz que invadiu-lhe o corpo e a alma, apagava, naquele momento, todos os vestígios de dor e desconforto que vinha sentindo ultimamente. Estava livre, como um pássaro de plumagem avermelhada, que preparava-se para levantar um apoteótico voo. Fechou, então, as pálpebras, com a expressão de alívio decorando-lhe a face abatida e, ao mesmo tempo, angelical.

Aquele foi seu derradeiro suspiro em vida. Seus sofridos olhinhos verdes, dantes tão vivos e divertidos, nunca mais voltaram a abrir-se…

***

O rapaz, parado de pé, no alto do ‘cliff’, tinha o olhar perdido em um ponto muito além da linha do mar. Uma tristeza e uma revolta imensas assolavam-lhe o espírito. Sentia-se, de alguma forma, culpado pela perda do irmão, embora houvesse feito tudo ao seu alcance, para prover o pequeno com toda a atenção e o carinho que aquele merecia. Mas não havia sido o suficiente para salvar aquela jovem alma sofrida e tomada pela impiedosa doença.

A vida havia sido injusta com ambos, pensou ele.

Sentiu que aquele lugar, agora, exercia sobre ele, uma pesada opressão e resolveu, naquele instante, partir dali, para sempre. Decidiu, ali e então, que jamais tornaria a pisar naquela terra, onde perdera parte de si, na figura do irmãozinho, que amou e que tanto tentou proteger, mesmo que em vão. Era uma decisão firme, à qual jamais tencionava reconsiderar, enquanto vivesse.

Havia sido derrotado. Perdera a difícil e longa batalha. Devia partir o quanto antes… sem olhar para trás… jamais…

***

À beira do rochedo, uma gaivota solitária pairava no ar, quase imóvel, segura pela acção do vento e por sua técnica de aerodinâmica instintivamente perfeita. De pé, em frente ao mar, um homem de meia-idade e cabelos castanho-claros, observava, absorto, o movimento do pássaro, que parecia usufruir daquele momento de destreza, como se estivesse suspenso por invisíveis fios, pendentes do claro e azul firmamento. Sua cabeça movia-se suavemente para um lado e outro, com seus olhos atentos, como se procurasse vestígios de algo, no meio do mar, entre os curtos espaços de tempo.

Movido por um inaudível e estranho sinal de alerta, o pássaro abriu o bico e emitiu um grito agudo e sensivelmente angustiado. Moveu, então, as asas e a cabeça num ângulo diferente e mergulhou no ar, destemidamente, até atingir o frio e azul oceano lá em baixo, deixando à vista, apenas, uma pequena mancha branca, de espuma, sobre a superfície das ondas.

Ao que pareceu, ao homem, infinitos segundos depois, emergiu das águas com um abanão de cabeça. Abriu suas amplas asas e tornou a voar, atingindo, sem esforço, as alturas, já em perfeita harmonia com o vento e o espaço.

Inclinou a cabeça levemente para o oceano azul e frio, como se fizesse as pazes com o que acabara de deixar atrás de si. Voltou-se para frente, ergueu sua cabeça e seu olhar e mirou firmemente o que via diante de si, voando decidido naquela direcção.

O homem ainda observava, com atenção, o pássaro distanciar-se daquela fria imensidão em que estivera submerso, mas que ficara, definitivamente, para trás. Foi como se ele mesmo acordasse de seu melancólico devaneio. Sentiu-se como se um pesado e amargurado véu, que havia encoberto a visão clara das coisas do passado, houvesse finalmente sido levantado, definitivamente, de diante de seus olhos.

Caminhou de volta até o topo do morro, virou à esquerda e começou sua descida à casa de pedra, onde estivera horas antes. Seus passos estavam, agora, seguros e decididos.

***

A cama vazia ainda trazia vestígios de um passado mais vivo que ele alguma vez imaginara haver. O vaso, sobre a mesa da cabeceira, jazia vazio… limpo… assim como sua alma. A roupa de cama ainda tinha cheiro de amaciador e estava impecavelmente arrumada sobre o antigo leito. O homem passou a mão sobre a colcha, o travesseiro, a dobra do lençol… Quase conseguia ouvir a risada divertida e solta do irmão, quando lhe dizia que ia levá-lo ao cais, à margem do riacho.

Da janela, os verdes campos, salpicados de pequenos pontinhos vermelhos e avioletados, pareciam uma suave e bucólica aquarela. Sua face ainda demonstrava uma certa tristeza nostálgica, mas ele sentiu-se, enfim, profundamente sereno e confortado. Trancou a janela com cuidado, deu uma última olhada à volta e saiu do quarto, fechando a porta atrás de si. Enquanto caminhava pelo corredor mal iluminado, sentiu-se como se deixasse aquele local, o passado e suas angústias, para sempre e para trás.

Duas lágrimas mornas ainda escorriam por sua face, quando ele chegou ao lado de fora da casa. Uma leve brisa soprou contra seu corpo e levou, para longe, a fria e amarga revolta que tanto pesou-lhe sobre os ombros, por uma boa parte de sua vida.


Não muito longe, outro homem, verosimilmente mais velho, olhou na direcção da casa e percebeu uma firmeza diferente, na forma do amigo caminhar. Sentiu uma espécie de alívio e sorriu. Os ombros do outro pareciam estar mais aprumados que de costume e a expressão em sua face, inegavelmente mais leve. Até parecia mais jovem… rejuvenescido…

Pelo jeito, os fantasmas podiam, final e peremptoriamente, gozar de sua devida paz.


Tendo percebido que as pendências do passado estavam devidamente conciliadas, o homem concluiu que já era mais que hora de viajarem de volta para a casa da praia… 


4 comentários:

  1. E assim, concluo a historinha... espero que agrade...tornei-me muito emocional, acredito...

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  2. Emocional mas verdadeiro.... retenho o emergir das águas...
    Ocasionalmente todos precisamos de o fazer, para renovar forças e enfrentar o presente com um sorriso!!
    Muito Bom!

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