Mostrar mensagens com a etiqueta amor. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta amor. Mostrar todas as mensagens

sexta-feira, 1 de maio de 2020

Dança Lenta



Uma dança lenta, com o Valete de Espadas, não estava, definitivamente, no cardápio. Eu decidi observá-lo de uma distância segura, para não ser queimado pelo fogo dele... ou por aquele que começou a arder, lentamente, no meu peito, quando o vi pela primeira vez.

Lá estava ele, de pé, por trás do pequeno grupo de convidados, olhando casualmente para mim. Eu cumprimentei a todos e caminhei até ele, com um sorriso no rosto e a mão estendida para um aperto firme. Olhei em seus olhos azul-esverdeados, por um breve momento, e me apresentei. Ele fez o mesmo.

Eu quase podia ouvir meus próprios pensamentos gritando, na minha cabeça e, até, tive medo de que ele notasse as evidências, tão claras nos meus olhos, ou conseguisse ler minha mente, de alguma forma.

Eu me perguntei se ele, algum dia, teria ciência do efeito que teve sobre mim, naquele exato momento. Pouco sabia eu do que passava em sua mente, quando ele me sorriu daquele jeito.

"Por favor, goste de mim".

Aquela primeira impressão fora bastante surpreendente, a meu ver.

***

- É bom estar aqui, assim. Me sinto tão em casa.

Ele me abraçou mais forte. Tinha minha cabeça recostada em seu peito e seus braços envolviam-me a parte superior do corpo. Suas pernas musculosas estavam enroscadas nas minhas, como se ele estivesse me segurando para que eu não caísse do estreito sofá. Estávamos ouvindo algumas das minhas músicas favoritas. A maioria delas ele estava, apenas, começando a conhecer...

“You say you had your heart broken
 What a stupid little thing to do…
 Make no mistake
 I'll do whatever it takes
 To get over these walls
 High up in the atmosphere
 If I could catapult my heart
…To where you are” …*
(*Catapult, by Jack Savoretti)

Quando a música terminou, ele se levantou e eu também. Tocou meu rosto, tão levemente, com as duas mãos, que senti como se fossem plumas caindo suavemente na minha pele nua.

Sorri, meio sem jeito. Ele me beijou e me abraçou, firmemente. Em seus braços, sentia uma proteção infinita e aquele foi um dos melhores sentimentos que tive na vida.

Eu dançava, lentamente, com o Valete de Espadas e gostava daquilo, com todo o meu corpo e alma. Tive a sensação de que ele sabia, exatamente, o que estava fazendo e isso me deixava extremamente feliz.

A sala estava quieta, as luzes baixas, mas continuamos dançando as músicas, que continuavam a tocar, silenciosamente, em nossas cabeças, por uma banda invisível... por um bom tempo... Senti o calor suave de nossas peles nuas, uma contra a outra… nossos corações a bater no mesmo ritmo.

Ele, então, pegou minha mão na sua e me conduziu...

***

Minha atenção estava totalmente voltada para como suas mãos pálidas tocavam minha pele, viajando pelo meu corpo, de maneira muito leve e calorosa.

- Adoro tuas mãos e o jeito que tu me tocas. És tão carinhoso.

- Adoro tocar em ti. Tua pele é tão macia.

- E nunca pensei que amaria alguém desse jeito...

- Então teu coração tem sido negligenciado, meu amor...

Houve uma dor repentina no meu peito. Eu me virei. Não conseguia me controlar. Fechei os olhos e deixei minhas lágrimas correrem, silenciosamente, quentes e livres. E elas queimavam, como lava. Meu corpo estremeceu um pouco.

Ele colocou os braços à minha volta e me puxou para perto dele. Seu queixo repousava no meu pescoço. Eu senti que ele cheirava meus cabelos. Senti seu corpo aquecendo o meu, enquanto soluçava, incontrolavelmente, em seu abraço forte.

***

Era uma tarde ensolarada de sábado. Fui dar um passeio na praia e sentei-me em silêncio, olhando o mar. Uma brisa fresca soprou contra meu rosto e cabelo. O céu estava tão azul que me fez lembrar dele e de seus olhos.

Perdi-me a olhar um ponto inexistente, ao longe. Minha mente vagueou no passado. Eu estremeci.

- Quanto tempo faz?

Eu me virei. Além de algumas gaivotas barulhentas, voando acima, não havia ninguém à vista. Eu pensei que minha imaginação estivesse brincando comigo.

- Há quanto tempo? Tu lembras?

Eu decidi responder em voz alta.

- Sabes muito bem há quanto tempo.

Lembrei-me do dia em que nos conhecemos, há longos anos no passado, desde o momento em que as portas deslizantes se abriram e vi seu sorriso acolhedor e o coração nas mãos, até o flagrante beijo de despedida que ele me deu, antes que eu entrasse na área restrita do aeroporto, a caminho de casa.

- Estou tão feliz que tua dor se tenha ido embora.

Não respondi, apenas me levantei e saí silenciosamente.

Lágrimas quentes insistiram em desfocar minha visão, enquanto o vento soprava mais frio, desta vez por todo o meu corpo...

***

quinta-feira, 15 de agosto de 2019

Voltar Para Casa (Parte Final)



Eu gritei. Estava em choque e com medo. A chuva forte caiu pesada e ruidosamente sobre a superfície do carro, assim que chegamos à rua.

- Está tudo bem, agora. Ele foi muito rápido em saltar para o lado.

- De onde ele veio, pelo amor de Deus? Ele nos perseguia? Há quanto tempo?

- Não sei…

- Porra! Estou com muito medo agora.

- Acalme-se. Em breve estaremos em casa.

- Nós deveríamos ter chamado a polícia... há muito tempo! Desde que ele…

- Nós não achamos que era necessário no momento. Talvez devêssemos agora.

- Definitivamente, sim. Nós temos de chamar a polícia, para o nosso bem!

***

- O que estás fazendo? Me deixa ir embora!

- Diz que vai tomar um café comigo.

- Estás me assustando. Me larga, por favor…

Ele me segurou mais forte. Seus olhos eram como os de um louco. Eu tentei afastá-lo, mas ele era muito mais forte que eu. Então ele me puxou para mais perto e me apontou uma faca. Eu podia sentir o quão forte ele era, pelo jeito firme que me segurava, mas eu não teria coragem de mover um centímetro que fosse, de qualquer maneira, sob aquela ameaça.

E foi então que tudo aconteceu, muito rapidamente...

***

- E se não tivesse acontecido?

- Tu terias morrido, ou talvez, também eu...

- Eu sei... eu te devo...

- Não me deves nada. Ainda bem que eu estava lá.

- Eu nunca serei capaz de te agradecer o suficiente. Aquilo foi muito rápido e agiste como um verdadeiro herói.

- Eu apenas agi por instinto. E estou tão feliz por estar lá, naquela hora em que o vi a forçar a barra contigo. Quando percebi que era uma faca, que ele tinha na mão, não pude deixar de interferir. Tu estavas em perigo. Mas foi meio à louca, sem pensar, embora só tenha considerado o risco, bem mais tarde. Ele poderia ter-nos matado... aos dois. Mas era um grande covarde, afinal, de qualquer maneira. Ele fugiu, assim que se viu desarmado.

- E então tu jogaste a faca tão longe, para dentro do mar. Foi como jogar a situação e o perigo para longe de nós. E agora ele volta para nossas vidas. Por quê?

- Eu não tenho ideia. Mas é sabido que ele tem estado a te seguir desde o dia em que quase esbarraste nele, na porta do prédio. Ele, provavelmente, não superou o dia em que eu lhe chutei o traseiro, também. A vingança é, talvez, o que ele queira agora. Deixemos a polícia lidar com ele a partir daqui. É o dever deles.


***

A polícia não pode fazer nada em termos de segurança, pois não havia provas de que tínhamos sido ameaçados por aquele homem. Fomos nós que tentamos atropelá-lo, afinal. Ele poderia nos ter processado pela tentativa de assassinato, se quisesse. A justiça não nos protegeria em nenhum caso.

Decidimos que teríamos de cuidar da nossa segurança, por conta própria, o que poderia levar à medidas extremas.

Mas para nossa sorte, deixamos de ser ameaçados ou perseguidos… por ele, ou por qualquer outra pessoa. Ele simplesmente desapareceu das nossas vidas. Nós ainda continuávamos a ser cuidadosos, mas já não estávamos tão paranóicos, quase relaxando e voltando à nossa rotina normal, desejando, apenas, sermos abençoados por uma vida mais tranquila.

***

- Estás fazendo fotossíntese?

Ele riu. Com o rosto voltado para o sol da manhã, ele parecia sentir um prazer inigualável naquilo. Estava sem a camisa, mostrando seu torso bem esculpido, pelas horas bem aproveitadas no ginásio. Seu cabelo brilhava, assim como a sua pele pálida. Seus olhos eram tão azuis quanto o céu acima de nós. Eu agradeci ao Universo por ser, aquele, um dia tão agradável e iluminado de verão e por aquela visão adorável. Pensei logo em um deus grego... Apolo, talvez, por causa de seus cabelos e barba cor de fogo, e…

Ele notou meu sorriso quase discreto e presumi que estivesse lendo minha mente.

- Eu acho que estou, sim. Isso é muito bom mesmo. E é tão bom estar cá em casa, assim...

- Eu concordo plenamente. Tome isto…

Ele sabia que eu estava brincando com as palavras, então aceitou, sorrindo, a xícara de café fresco que eu lhe ofereci. Sentamos do lado de fora, ouvindo os sons dos pássaros a gorjear e da água corrente do riacho, correndo, não muito longe da parte de trás da casa. Era uma relaxante manhã de domingo e estávamos desfrutando da companhia um do outro, como deveria ser, sempre.

Depois do pequeno-almoço que nós tivemos nos fundos da propriedade, decidimos dar um passeio na floresta, antes de voltar para preparar uma refeição mais consistente. Estava uma manhã agradável e queríamos aproveitar o melhor que podíamos. Passear pela floresta seria mais fresco e não estaríamos expostos ao sol direto. Sabíamos que nossas peles se queimariam facilmente, mesmo com o uso de uma boa camada de protetor solar.

Levamos cerca de duas horas para voltar. Quando nos aproximamos do portão, notei que seu rosto mudou.

- Nós deixamos o portão aberto, daquele jeito?

- Acho que não…

- Que droga! Tenha cuidado. Fique aqui. Vou conferir isto.

Eu tentei protestar, mas foi inútil. Ele estava muito sério e eu sabia o porquê.

- Fique aqui, com o telefone a postos, para chamar emergência ou a polícia. Podemos ter de pedir ajuda.

- Mas quem…?

Ele cruzou o portão e entrou, correndo, tentando não fazer muito ruído. Eu esperei do lado de fora, como ele me disse, mas minha mente estava tão apreensiva, que eu não conseguia pensar.

Eu o ouvi gritar uma… duas vezes… depois veio um silêncio e, em seguida, uns sons estranhos.

"Isso é o som de uma luta? Mas que diabos?'

Meu coração afundou quando percebi o que estava acontecendo.

- Oh, não! Isso não!

Eu ouvi um baque, como de algo pesado a cair no chão e, depois, um tiro.

- Oh, não! Não, não, não!

Eu atravessei o portão sem pensar claramente. Sentia como se meu coração fosse sair, desesperado, pela minha boca. Então eu presenciei a pior cena que poderia, naquele momento.

O sangue ainda escorria fresco e pegajoso nos ladrilhos acastanhados da varanda.

Os dois corpos ainda estavam estirados no chão. Eu conhecia o homem que estava por cima dele... Os dois corpos estavam, ambos, imóveis.

Eu gritei. O corpo que estava em cima rolou para o lado, sem sinal de vida.

- Ele saiu da casa com a minha arma na mão... e nós brigamos... e...

- O que? Como? Tu estás…?

Estava coberto de sangue, mas não era dele e, sim, do homem com o qual esteve lutando e que jazia ao seu lado, morto.

- Chame a polícia! Eu acabo de matar o sujeito!

- Ai, meu Deus. Isto é horrível! Estamos ferrados! O que fazemos agora? O que devemos fazer agora? A polícia não vai acreditar em nós…

- Não entre em pânico! Chame a polícia!

- E se…

- Pelo amor de Deus! Chame a polícia! Agora!!!

***


domingo, 24 de março de 2019

Uma Noite a Mais (Parte 3)


Κι αν ρωτήσεις πώς περνάω  … (E se me perguntares como estou
θα σου πω δυο ψέματα                Eu vou-te dizer duas mentiras
ένα πως δε σ' αγαπάω                 Uma: que eu não te amo
κι ένα πως σε ξέχασα (**)          E a outra: que eu já te esqueci) …

(**) Dyo Psemata (δυο ψέματα): Antonis Remos

- Ainda lembras?

- Claro que sim. Algumas coisas não podem ser, simplesmente, apagadas da memória.

- Pois não.

- A canção estava tão certa…

- Contra o que havia desejado. Eu sinto muito.

- Por quê?

Ele me olhou, como se fosse fazer a maior revelação da sua vida, mas não emitiu nenhum som. A oportunidade era aquela e, se fosse perdida, não haveria outra. Ele baixou os olhos.

Eu balancei a cabeça, num gesto de desânimo e frustração, levantei-me, atravessei a varanda e fui para a praia. Estava bastante desiludido.

De frente para o mar, eu me sentia pequeno demais e aquela imensidão era intimidante. O conflito interno era tão ou mais assustador que tudo à minha volta, todavia. Eu nem sabia se sentia ódio, ou vontade de matar a saudade com um longo abraço apertado, mas diante daquela falta de ação, eu decidi que não tinha que alimentar falsas expectativas. Talvez aquela história já tivesse ido longe demais e acabado, afinal, apesar de minhas malnutridas esperanças.

Fechei os olhos e respirei fundo. Aquele ar salino me fazia tão bem. Eu quase ia ao passado buscar boas memórias, para alimentar minha alma dorida.

Num lampejo de consciência, reconheci que só o fato de estar ali, vivo, já era suficientemente bom, apesar de todas as circunstâncias. Minha filha era meu maior bem; um bem maior que minha própria vida. Não era justo sentir menos que gratidão pelo que eu havia feito e plantado e pelos frutos que havia colhido.

Dei um longo suspiro e voltei-me. Tinha que cuidar da minha vida…

***

A noite estava agradável. A porta que dava para a varanda estava aberta e uma suave brisa soprava pela casa. Eu sentei-me ao piano e comecei a cantarolar a mesma canção, que tanto mexia comigo. Desta vez, eu estava redimido. Aquela tristeza na alma era uma velha companheira, mas já não tinha o poder de outrora.

Ela sentou-se ao meu lado e acompanhou-me nos vocais.

…” They say that love can move a mountain
      They say love can break your heart 
      They say love can make you forget 
      Things that happened in the past
      For I've tasted your love and
      I need to taste some more 
      So wave goodbye to heaven for me
      I've thrown it all away 
      Just to spend one more night with you”
…  (*)

      (*) One more night with you: Ged McMahon

- Continuo a achar que é um bocado triste.

- E é. Mas eu não quero reclamar. Não é justo.

Ela deitou a cabeça no meu ombro, enquanto eu continuei a dedilhar as teclas, tão de leve, que parecia acariciá-las, respeitosamente. Senti uma angústia subir até minha garganta e não consegui mais falar… ou cantar… nem pude refrear as lágrimas, que caíram livres pelo meu rosto, enquanto meu corpo estremecia por inteiro, como se estivesse em convulsões.

Ela me abraçou e, com a cabeça enterrada no meu peito, chorou junto comigo, ali, no meio da sala de estar.

***

O sol da tarde estava mesmo agradável, naquele dia de início de primavera. Não ventava, mas uma leve brisa vinha do mar, trazendo aquele ar salino e iodado para mais perto de onde eu estava. Estiquei as pernas e fechei os olhos, pensando que devia estar sentindo falta de fazer minha fotossíntese. A bebé dormia na cadeirinha ao meu lado, devidamente protegida do vento e do sol.

Uma nuvem deve ter passado na frente do sol, pois senti que já não estava tão claro. Abri os olhos e vi que aquilo que pensava ser uma nuvem, nada mais era que a silhueta de um homem, que havia-se posicionado entre o sol e eu.

- Desculpe.  

- O quê?

- Não quis importunar, mas o bebé acordou e estava a mexer-se, por isso achei que devia verificar. Pensei que havia adormecido… Quer que eu traga alguma coisa?

A menina estava apenas a olhar-me com seus olhos esverdeados, mas não chorava. Eu devia ter, realmente, adormecido, pois, normalmente, ouvia quando ela acordava. Devia estar mesmo cansado… Ou relaxara tão profundamente…

- Ah. Não. Obrigado.

Eu levantei-me e procurei a mamadeira com água, dentro da bolsa. A bolsa havia ficado ao sol e a água estava meio morna.

- Acho que vou precisar de uma garrafinha de água fresca, por favor. Esta já passou da temperatura aceitável.

- Vou pedir para trazerem. Quer um café também?

 - Bem pensado. Acho que preciso de um, na verdade.

Às vezes eu me perguntava por qual razão ele era gentil comigo, até um pouco além do esperado por um cliente normal. Era agradável, mas eu não era muito habituado a aquele tipo de coisas.

A moça trouxe a água e duas chávenas de café, que pousou sobre a mesa. Eu olhei com aquele ar inquisidor, mas logo percebi. O gerente veio e sentou-se comigo, sem muita cerimónia e disse:

- Espero que não se importe que eu sente aqui, por um momento.

- Claro que não. Fique à vontade. 

- Eu adoro esta hora do dia. Não só pela tranquilidade, mas pela luz e pelas cores. É como se o mundo desse uma trégua e parasse de girar por uns momentos, para que a gente pudesse, simplesmente, apreciar um bom café.

Eu olhei para ele, admirado, não só pela leveza e poesia do que ele dissera, mas pela forma com que se expressara, tão fluentemente e à vontade.

Ele riu.

- O que foi? Disse alguma asneira?

- Não. Ao contrário. Foi muito bem colocado.

- Então?

- Não esperava. Só isso.

Ele fingiu que não se sentiu satisfeito por haver-me surpreendido e tomou seu café, calmamente, a olhar o mar, que parecia espreguiçar-se sobre a fina areia branca. Eu fingi que estava somente a cuidar da menina, mas observei um leve sorriso, na sua face tranquila.

- Posso fazer uma pergunta?

Ele riu.

- Pode. Mas não prometo responder.

Ele usava minha fala. Que esperto!

- Por que me trata assim?

- Assim como?

- Com esta gentileza e com um tanto de familiaridade, sem ser, necessariamente, íntimo. Eu sou apenas um cliente.

- Talvez não. Eu sou um homem habituado a viver sozinho e reconheço quando vejo uma pessoa com as mesmas características. Está sempre aqui sozinho, com a menina, mas nunca entre amigos. Não se sente só?

- Nunca. Acho que sempre fui assim, introvertido e ocupado com minhas coisas, ao invés de pessoas.

- Eu compreendo. Não sente falta de ter alguém?

Fugi à questão.

- Eu tenho alguém. E ela é adorável.

Ele riu, fazendo um muxoxo. Percebeu que eu fugia à conversa.

- Pois eu sinto. Embora nunca tenha sido homem de longos relacionamentos, sinto falta de alguém.

- Curioso. Nunca falamos sobre isto.

- Eu sei. É uma demonstração de confiança, não é?

- Acho que sim. Mas por que não?

- Acho que eu demoro para acreditar nas pessoas. Passei por algumas situações, que me fizeram perder a confiança…

A frase ficou assim, meio no ar, meio incompleta, meio a deixar azo para que se imaginasse tantas situações…

- Acho que eu também. Somos parecidos nisso.

- Vejo que sim. Que dois!

Ele levantou a chávena de café e disse, com um sorriso e um piscar de olhos:

- Aos solitários!

- Aos solitários!

Tive a impressão que só naquele momento percebi que havia música vinda dos dois pequenos altifalantes, alocados na parte de cima da varanda. Era uma canção conhecida minha. Eu cantarolei o pedacinho do refrão.

Κι αν ρωτήσεις πώς περνάω      (Ki an ro̱tí̱seis pó̱s pernáo̱) (E se me perguntares como estou
θα σου πω δυο ψέματα               (ha sou po̱ dyo psémata)      Eu vou-te dizer duas mentiras  
ένα πως δε σ' αγαπάω                (éna po̱s de s ' agapáo̱)          Uma: que eu não te amo
κι ένα πως σε ξέχασα (*)           (ki éna po̱s se xéchasa)          E a outra: que eu já te esqueci) 

(**) Dyo Psemata (δυο ψέματα): Antonis Remos

- Conheces esta canção?
    
- Claro. Mas não esperava ouvi-la aqui. É uma antiga canção grega…
  
- Sabes o significado, não sabes?

- Por acaso, sei. É um tanto triste, não é?

Ele me olhou, sério. Fui pego de surpresa com a afirmação que fez, a seguir.

- É. Mas uma coisa destas não gostaria, jamais, que acontecesse connosco…

***


domingo, 24 de fevereiro de 2019

Uma noite a mais (Parte 1)



- Deve ser, pelo menos, a quinta vez que ouves esta canção.

- É, eu sei.

- O que se passa?

- Nada… que importe.

- Sei. Se precisares de alguma coisa, fala. Vou deitar-me.

- OK.

Eu não me virei. Estava com a mente ocupada demais a contemplar o imenso vazio à minha frente. Meus olhos perderam-se na escuridão, que se estendia para além da linha do horizonte, ao longo de um oceano pouco iluminado pelas luzes à beira da praia da baía.

Estava uma noite fresca e calma. Era tarde e já não havia quase nenhum movimento nas ruas. Um estranho silêncio enlaçou-me com seus braços frios, provocando um calafrio, que percorreu-me a espinha. Eu tremi, mas sabia que não era de frio.

A canção recomeçou. Eu havia ativado a função de repetição, de propósito. A voz forte e pungente da cantora penetrou-me os pensamentos, como se fosse uma estalactite de gelo, precipitada do teto rústico e sombrio de uma caverna, para dentro de uma lagoa de águas calmas, mas escuras e profundas.

Quantos mistérios e segredos podem esconder-se abaixo da quietude aparente daquela superfície praticamente intocada?

Fechei os olhos e respirei fundo, mergulhando em meus próprios pensamentos. Cada palavra da canção servia de pano de fundo para uma sequência caleidoscópica de imagens, que traziam meu passado e minhas recordações de volta ao presente, com uma nitidez cruel e carregada de emoções tão vívidas quanto aquelas memórias. 

…” They say that love can move a mountain
    They say love can break your heart 
   They say love can make you forget 
   Things that happened in the past” …  (*)

Se aquelas palavras eram verdadeiras, eu não havia experimentado nada similar… até então…

***

Acariciei a cicatriz, como se ela fosse um animal de estimação.

Incrível como nos apegamos às marcas deixadas, tanto no corpo, quanto na alma e as acariciamos sempre que nos sentimos frágeis, como se aquilo nos fosse dar alento e abreviar a solidão ou a dor. É como afagar nossos erros, dando-lhes uma visão mais condescendente. É como trazer alento ao coração, amenizar o efeito de um pecado e conceder uma hipótese de salvação à alma do pecador.  

…”So wave goodbye to heaven for me

  I've thrown it all away

 Just to spend one more night with you”…(*)


- Ainda estás assim?

- Assim como?

- Tu sabes. Eu não sou uma criança, que tu possas enganar facilmente.

- Eu sei que não…

Minhas mãos deslizaram suavemente pelas teclas do piano, talvez, procurando, instintivamente, esquecer aqueles mesmos acordes que não me saíam da cabeça ou dos dedos, já há algumas semanas.
Eu li, uma vez, em algum lugar, que as teclas do piano representam nossos sentimentos. Enquanto as brancas denotam nossas emoções positivas, as pretas representam as negativas. A harmonia, entretanto, só é conseguida com um equilíbrio entre ambas. Não se pode fazer boa música, sem usar tanto as teclas brancas quanto as pretas, assim como não se pode viver a vida verdadeira e completamente, sem um equilíbrio entre as emoções boas e as não boas.

- Toque a música até o último acorde. É melhor exorcizar esta dor de uma vez por todas!

Olhei para ela, surpreso. A menina havia-se transformado numa jovem muito perspicaz. Então eu toquei. Não exatamente para exorcizar, mas para sentir a dor, tão vívida como se estivesse sendo experimentada, pela primeira vez, naquele momento.

Começando quase como um noturno, a acariciar, as teclas brancas e a martelar, levemente, as pretas, minha dor foi aumentando numa progressão de notas e acordes, que se misturaram à minha voz baixa e fraca, no início, porém elevando o tom, como num sentido blues, até que todos os meus nervos reagiam àquela sequência de notas e palavras. Meus olhos e minha alma transbordavam.
…” They say that love can last forever
    They say love can last a day 
    They say love is like an ocean 
    For us to sail away” … (*)


Eu ia ao fundo do poço, para tomar impulso e voltar à superfície. Era necessário descer ao mais fundo do fundo, para poder voltar, com as forças redobradas.
***
- Foi aqui?

- Sim.

- Vamos descer.

- Não.

- Vamos, sim. Vem comigo.

Saiu à minha frente, antes que respondesse, descendo pelo caminho ao lado do penhasco. Meu estômago doeu. Eu segui, sem dizer nada. O caminho não era seguro e eu devia estar por perto, caso acontecesse algo, embora soubesse que estava a me preocupar sem razão.    

Quando chegamos ao fundo da trilha, a praia abria-se, convidativa, embora ainda fosse primavera. O mar rugia, como se a ameaçar, embora eu nunca tivesse medo daquele bramido. Eu havia nascido na ilha. O mar sempre fora um amigo. Não tinha por que temer um amigo.  

Caminhamos pela orla, com os pés na água fria do oceano, em silêncio, por uns momentos. Um grupo de ruidosas gaivotas voavam por sobre nossas cabeças e o vento fustigava nossos rostos.

- Foi um acidente, não foi?

- Foi. Um infeliz acidente.

- Vocês se amavam muito, não?

Eu não pensei.

- Nós éramos grandes amigos. Desde o tempo em que estudávamos juntos.

- Isso não é uma resposta.

- Não. Não é.

Olhou-me com aquele ar de quem quer saber a verdade, quando já não há verdades a saber.

- Então por que vocês decidiram que deviam ter um filho?

- Porque era a vontade dela. Era melhor termos um filho, juntos, sabendo do respeito que tínhamos um pelo outro e sabendo que era melhor isso, que esperar por um sentimento que não existia. Ela era uma mulher prática.

- Vocês nunca se arrependeram da decisão?

- Claro que não. Por que razão haveríamos de nos arrepender?

- Sei lá. Não havia amor…

- Havia um respeito e um carinho muito grande. Ela tinha medo de envelhecer, antes de poder ser mãe… coisas de mulheres!

- Haha! Até parece…

Eu ri. Um riso pálido, quase sem graça. Sabia que ia ter que contar a história toda, pela milionésima vez.

- Achas que vocês foram felizes?

- Talvez. Antes de…

- É estranho…

- O que?

- Aquela vossa relação. A doença. O acidente.

- Não é estranho. O acidente foi uma consequência da doença.

- Mas tu também podias ter morrido.

- Acho que não. Eu só tive uma queda feia, quando tentei ajudar. Falta de jeito, mesmo…

- A cicatriz é grande.

- A dor é maior!

Calou-se. O mar parecia explodir contra as rochas. Caminhou uns segundos, em silêncio, e virou-se. Franziu os olhos, como se estivesse tentando ver algo, atrás de mim, à distância. Pareceu-me que uma nuvem negra se passou pela sua face jovem.

- Pai?

- Que foi?

- É ele, lá em cima do penhasco?

- Hã? O que ele faz aqui?

***

(*) One more night with you : Ged McMahon featuring Kaz Hawkins


***