Era cedo na manhã quando o rapaz entrou no quarto e abriu as cortinas e a janela. Uma fina chuva caía sobre o monte, acentuando as cores da paisagem, em um fundo pintado com diferentes e sombrios tons de cinza. O ruído do riacho a correr ali perto, pareceu-lhe, por um momento, melancolicamente mais alto e mais pungente.
Quando a luz baça da manhã
iluminou o aposento, ele percebeu que não foi recebido pelo mesmo sorriso de
sempre e sentiu um súbito desconforto a apertar-lhe o peito.
Havia algo bastante diferente no
semblante cansado da criança. A pele e os lábios pareciam mais descorados e o
olhar estava distante, a vaguear para algum ponto, localizado bem além do
limiar da janela…
Ele tentou não transparecer sua
preocupação, ao encarar o irmãozinho. Falou com a voz mais calma que pode
compor, naquele instante, procurando esconder o alarme, que acendeu uma
berrante luz encarnada na sua mente:
- Chove…
O pequeno suspirou, desanimado e
olhou o irmão, com olhos visivelmente fatigados e sem o usual brilho de vida.
Não parecia haver dormido muito bem naquela noite. O outro aproximou-se, aprumou
dois grandes travesseiros de penas de ganso às costas do menor e arrumou a coberta
sobre as pernas dele, tentando parecer o mais natural possível.
- Vou trazer alguma coisinha para comeres.
- Não...
A voz soou fraca e baixa; quase
inaudível.
- Mas tu precisas comer, criança.
- Não agora…
- Ok, então. Depois eu trago-te um chocolate quente…
O mais velho, então, sentou-se na
cama, ao lado do irmão e passou o braço a volta do seu ombro, trazendo-o mais
para próximo de si. Era extremamente paciente e atencioso com aquele ser que
tornara-se, em pouco tempo, tão frágil e indefeso e que passara a necessitar de
grande e dedicada atenção. O pequeno estendeu o bracinho magro sobre o peito do
mais velho e deitou, ali, a cabeça, de ruiva e macia cabeleira. Parecia
demasiadamente esgotado.
Os olhos do rapaz encheram-se de lágrimas,
quando sentiu a respiração da criança ficar mais fraca. Apertou o corpinho
mirrado do menino contra o seu, pousou-lhe os lábios na testa e deixou-se tomar
por um pranto angustiado e impotente, embora silencioso.
Ter o corpo frágil do menino, no
seu abraço morno, era como segurar o volátil corpo de um anjo, cujas asas
estavam irremediavelmente quebradas e o impediam de voar novamente.
Para o pequeno, entretanto, estar
seguro naquele abraço, sentindo-se incondicionalmente amado e protegido, era
como ter suas asinhas, finalmente, curadas e prontas para permitir-lhe voar
novamente. Rendeu seu espírito ao quente aconchego daquele momento de
tranquilidade e afecto, exalou profundamente e sorriu, de leve, como se
sentisse que toda sua silenciosa aflição estivesse, finalmente, aplacada.
A bem-vinda paz que invadiu-lhe o
corpo e a alma, apagava, naquele momento, todos os vestígios de dor e
desconforto que vinha sentindo ultimamente. Estava livre, como um pássaro de
plumagem avermelhada, que preparava-se para levantar um apoteótico voo. Fechou,
então, as pálpebras, com a expressão de alívio decorando-lhe a face abatida e, ao
mesmo tempo, angelical.
Aquele foi seu derradeiro suspiro
em vida. Seus sofridos olhinhos verdes, dantes tão vivos e divertidos, nunca
mais voltaram a abrir-se…
***
O rapaz, parado de pé, no alto do
‘cliff’, tinha o olhar perdido em um
ponto muito além da linha do mar. Uma tristeza e uma revolta imensas
assolavam-lhe o espírito. Sentia-se, de alguma forma, culpado pela perda do
irmão, embora houvesse feito tudo ao seu alcance, para prover o pequeno com
toda a atenção e o carinho que aquele merecia. Mas não havia sido o suficiente
para salvar aquela jovem alma sofrida e tomada pela impiedosa doença.
A vida havia sido injusta com
ambos, pensou ele.
Sentiu que aquele lugar, agora, exercia
sobre ele, uma pesada opressão e resolveu, naquele instante, partir dali, para
sempre. Decidiu, ali e então, que jamais tornaria a pisar naquela terra, onde
perdera parte de si, na figura do irmãozinho, que amou e que tanto tentou
proteger, mesmo que em vão. Era uma decisão firme, à qual jamais tencionava
reconsiderar, enquanto vivesse.
Havia sido derrotado. Perdera a difícil
e longa batalha. Devia partir o quanto antes… sem olhar para trás… jamais…
***
À beira do rochedo, uma gaivota solitária
pairava no ar, quase imóvel, segura pela acção do vento e por sua técnica de
aerodinâmica instintivamente perfeita. De pé, em frente ao mar, um homem de
meia-idade e cabelos castanho-claros, observava, absorto, o movimento do
pássaro, que parecia usufruir daquele momento de destreza, como se estivesse
suspenso por invisíveis fios, pendentes do claro e azul firmamento. Sua cabeça
movia-se suavemente para um lado e outro, com seus olhos atentos, como se
procurasse vestígios de algo, no meio do mar, entre os curtos espaços de tempo.
Movido por um inaudível e
estranho sinal de alerta, o pássaro abriu o bico e emitiu um grito agudo e sensivelmente
angustiado. Moveu, então, as asas e a cabeça num ângulo diferente e mergulhou
no ar, destemidamente, até atingir o frio e azul oceano lá em baixo, deixando à
vista, apenas, uma pequena mancha branca, de espuma, sobre a superfície das
ondas.
Ao que pareceu, ao homem,
infinitos segundos depois, emergiu das águas com um abanão de cabeça. Abriu
suas amplas asas e tornou a voar, atingindo, sem esforço, as alturas, já em
perfeita harmonia com o vento e o espaço.
Inclinou a cabeça levemente para o
oceano azul e frio, como se fizesse as pazes com o que acabara de deixar atrás
de si. Voltou-se para frente, ergueu sua cabeça e seu olhar e mirou firmemente
o que via diante de si, voando decidido naquela direcção.
O homem ainda observava, com
atenção, o pássaro distanciar-se daquela fria imensidão em que estivera submerso,
mas que ficara, definitivamente, para trás. Foi como se ele mesmo acordasse de
seu melancólico devaneio. Sentiu-se como se um pesado e amargurado véu, que
havia encoberto a visão clara das coisas do passado, houvesse finalmente sido levantado,
definitivamente, de diante de seus olhos.
Caminhou de volta até o topo do morro,
virou à esquerda e começou sua descida à casa de pedra, onde estivera horas
antes. Seus passos estavam, agora, seguros e decididos.
***
A cama vazia ainda trazia
vestígios de um passado mais vivo que ele alguma vez imaginara haver. O vaso,
sobre a mesa da cabeceira, jazia vazio… limpo… assim como sua alma. A roupa de
cama ainda tinha cheiro de amaciador e estava impecavelmente arrumada sobre o
antigo leito. O homem passou a mão sobre a colcha, o travesseiro, a dobra do
lençol… Quase conseguia ouvir a risada divertida e solta do irmão, quando lhe
dizia que ia levá-lo ao cais, à margem do riacho.
Da janela, os verdes campos,
salpicados de pequenos pontinhos vermelhos e avioletados, pareciam uma suave e
bucólica aquarela. Sua face ainda demonstrava uma certa tristeza nostálgica,
mas ele sentiu-se, enfim, profundamente sereno e confortado. Trancou a janela
com cuidado, deu uma última olhada à volta e saiu do quarto, fechando a porta
atrás de si. Enquanto caminhava pelo corredor mal iluminado, sentiu-se como se
deixasse aquele local, o passado e suas angústias, para sempre e para trás.
Duas lágrimas mornas ainda
escorriam por sua face, quando ele chegou ao lado de fora da casa. Uma leve
brisa soprou contra seu corpo e levou, para longe, a fria e amarga revolta que tanto
pesou-lhe sobre os ombros, por uma boa parte de sua vida.
Não muito longe, outro homem, verosimilmente
mais velho, olhou na direcção da casa e percebeu uma firmeza diferente, na forma
do amigo caminhar. Sentiu uma espécie de alívio e sorriu. Os ombros do outro pareciam
estar mais aprumados que de costume e a expressão em sua face, inegavelmente mais
leve. Até parecia mais jovem… rejuvenescido…
Pelo jeito, os fantasmas podiam,
final e peremptoriamente, gozar de sua devida paz.
Tendo percebido que as pendências
do passado estavam devidamente conciliadas, o homem concluiu que já era mais
que hora de viajarem de volta para a casa da praia…