sábado, 28 de dezembro de 2013

A Cruz Celta (Parte 1)


Ela era gordinha. Considerando-se que uma mulher acha-se gorda se tiver mais que cinquenta quilos e ela estava lá pelos oitenta e tantos, nos seus míseros um metro e sessenta de altura… ou menos: ela era gorda. O rosto redondo transmitia benevolência e simpatia; as faces rosadas, um certo ar de juventude. Não era fácil precisar a idade. A impressão que se tinha era que devia haver passado recentemente dos trinta, mas podia-se enganar facilmente.

A cartomante tinha, porém, uma característica que outras talvez não tivessem: uma capacidade de percepção além do normal. Se era mediunidade ou percepção aguçada, não importava. A lei das coincidências jogava muito a seu favor. Mesmo os mais desconfiados balançavam diante da precisão das previsões da pequena mulher e era isso que o levou até ao pequeno estúdio onde ela atendia.

Curiosidade e cepticismo andavam de mãos dadas na mente do homem de meia idade… e uma boa dose de falta de bom senso… 

- Uma cartomante! Onde é que estou com a cabeça? Só pode ser desespero, mesmo…

Os pensamentos vinham em contradição, uns com os outros, lutando entre si, mas a curiosidade estava levando uma boa vantagem. Já havia chegado até aquele lugar. Agora era só relaxar, tentar não levar nada muito a sério e ver onde a coisa toda ia dar. No mínimo, era uma diversão, para um homem que estava à beira de uma crise de nervos.

Os cabelos castanho-claros começavam a tingir-se naturalmente de grisalho, nas têmporas, na cabeleira ainda farta, mas entradas no alto da testa mostravam que a calvície viria logo em seguida. Ainda assim, possuía um certo charme, que somente a maturidade traz, aos homens que sabem o valor que a vida tem. A dele andava um tanto descorada e insípida, sem muita alegoria, além da sequência palidamente bicolor casa-trabalho e trabalho-casa…  e não muito mais.

Já não tinha vida social, desde há muito e os fins-de-semana eram passados solitariamente a percorrer os corredores do supermercado, lavar e passar as roupas da semana e cozinhar algo mais elaborado que nos dias comuns. Nem ao cinema ia mais. Limitava-se a ouvir música, ler e assistir TV ou vídeo, quando invariavelmente adormecia encolhido no sofá.

A única companhia que desfrutava era um gato rafeiro, que adoptara de uma sociedade protectora, para não ficar completamente só. Escolhera um gato, não só pela independência e pouco trabalho que dava, mas por admirar a personalidade dos felinos e a pouca disposição para parecerem estar sempre prontos, quando realmente não estavam ou não lhes apetecia… e era assim que ele também sentia-se, às vezes…                   

Ele olhou a mulher, de frente, quando sentou-se. Ela fez algumas perguntas - que ele respondeu, quase automaticamente - para situar-se, antes de começar a deitar as cartas sobre a mesa.

O velho e amarelado baralho já estava a postos, num lado da mesa, prontinho para entrar em acção, assim que ela achasse que a hora era a certa. Parecia haver sido muito manipulado por aquelas mãos pequenas e gorduchas, que agora moviam-se com uma agilidade digna de um grande e hábil jogador de cartas.

A mulher procurou e escolheu uma carta do meio do monte, antes de começar o ritual. Retirou um Rei de Copas e colocou-o no centro da mesa.

- Este é você. O jogo começa a partir desta carta: o significador. O Rei de Copas representa um homem maduro, de cabelos castanhos, pele clara, generoso e elegante.

Ela piscou o olho e sorriu. Embora não fosse realmente bonita, o sorriso caía-lhe muito bem e tornava-lhe o rosto até um tanto atraente. Ela havia feito uma espécie de elogio, quase subtil e descomprometido. Ele olhou a figura no pequeno cartão colorido e marcado com um grande K impresso em vermelho, no canto esquerdo superior e outro no canto oposto, com olhos de avaliação, como nunca havia feito, quando jogava cartas com os irmãos, em dias de chuva e noites de sábado, em tempos há muito passados.

Então era assim que ela o via…. Ele sentiu-se estranhamente lisonjeado.

Devolveu-lhe um leve sorriso e analisou o desenho: os cabelos e a barba claros, os olhos um tanto perdidos e a mirar, neutros, um nada à frente. A coroa de ouro, decorada com rubis, provavelmente, devido à cor vermelha, escondia o alto da cabeça e parte da testa. Ele sentiu vontade de rir. O rei trazia ainda uma espada numa mão e a outra a segurar a gola de arminho do casaco…

O homem avaliou bem a situação, sem envolver-se demais e concluiu que o desenho da carta já esteve sobre um fundo imaculadamente branco. Agora, as bordas acastanhadas, o fundo amarelo e a figura quase a querer desaparecer no meio de tanta história contada sobre aquele tampo de mesa, pareciam querer gritar-lhe algo, que ele ainda não conseguia perceber. Um pensamento veio como um raio à mente, sem sair-lhe um som pelos lábios.

- …E o nome do jogo? Vida?...

Reteve o pensamento, sem zombar do que não conhecia e sem deixar transparecer qualquer tipo de emoção.

- Vamos ver o que virá agora… vamos ver…

A reflexão não o distraiu, nem fê-lo mudar a feição. Era apenas uma curiosidade aguçada, que ele sentia, então.

Ele olhou as pálidas mãos a embaralharem, com desenvoltura, as cartas gastas por tanto uso, até que ela parou e pediu-lhe para partir o maço em três, com a mão esquerda, a partir do centro da mesa, indo para a direita.

Ele obedeceu.

Ela recolheu os três montes, numa sequência que ia primeiro no monte da esquerda, da direita e, por fim, no monte do meio. A partir dali, começou a deitar as cartas, uma a uma, num desenho muito bem estudado pelo tempo e por uma rotina estranhamente destra: a cruz celta…

Ela começou por colocar a primeira carta em cima da mesa, sobre a que representava o significador: um Valete de Espadas - um homem jovem, moreno, sincero no amor, na posição da situação presente.

Um jovem homem de cabelos escuros movimenta-se com desenvoltura, num ambiente onde sente-se confortavelmente à vontade. Está onde devia estar, tanto no tempo quanto no espaço. Vários pares de olhos o seguem, magnetizados pela graça felina daquele indivíduo. Ele quase ouve os pensamentos dos frequentadores do bar, instalado no último andar de um edifício moderno no centro da cidade. 

Uma grande sacada proporciona uma vista ímpar das luzes da cidade, tornando o lugar bastante frequentado, não só pela qualidade do ambiente, mas também pelo típico e tradicional cardápio de bebidas locais, da mais alta qualidade. Os vinhos mais nobres estão no topo da lista. A noite estava morna e convidativa. 

Ele dirige-se à sacada, com uma taça de vinho branco, fresco, na mão. O outro homem vira-se ao senti-lo aproximar-se. Tem os cabelos castanho-claros, levemente arruivados. Aparentemente os dois homens se conhecem de longa data.Com um aperto de mão e uma troca de sorrisos começam logo uma conversa amigável.

Por cima das duas cartas já deitadas no centro da mesa e formando uma cruz com a anterior, outra foi colocada. Representava as influências imediatas e ocultas. Desta vez era um Valete de Copas - amigo ou amante, nem sempre confiável.

Um certo par de olhos observa os dois homens a conversar descontraidamente na varanda. Eles levantam as taças que trazem nas mãos, brindam e bebem, imediatamente, dando risadas altas, logo em seguida.

- Aquela alegria vai durar muito pouco…muito pouco mesmo…

 O pensamento saiu quase espontaneamente, na mente do jovem de cabelos e olhos claros a observar os dois homens a socializarem espontânea e divertidamente. O rosto afilado e o bigode e pêra, cuidadosamente aparados, davam-lhe uma aparência atraente, mas os olhos causavam uma certa intriga a quem os olhasse. 

Que mistério ocultava-se atrás daquelas lentes naturais de um verde tão incomum e cristalino?

Acima, onde o topo da cruz devia estar, outra carta foi colocada. Representava o consulente perante o problema e as raízes do mesmo. Oito de Espadas: más notícias, desapontamento, crises, conflito, traição.


O rapaz de cabelos e olhos claros aproximou-se da mesa onde os outros dois conversavam, então, após fazerem o pedido ao garção. Os dois sorriram ao vê-lo aproximar-se e saudaram o recém-chegado com um forte aperto de mão, tapinhas nas costas e um convite para sentar-se junto a eles. Ele sentou-se, com um sorriso nos lábios, enquanto iniciavam uma conversa evidentemente amigável. 

Mal sabiam que o rapaz que convidaram a sentar com eles trazia mais que uma conversa meramente inocente e amigável… 


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