Ela era gordinha. Considerando-se que
uma mulher acha-se gorda se tiver mais que cinquenta quilos e ela estava lá
pelos oitenta e tantos, nos seus míseros um metro e sessenta de altura… ou
menos: ela era gorda. O rosto redondo transmitia benevolência e simpatia; as
faces rosadas, um certo ar de juventude. Não era fácil precisar a idade. A
impressão que se tinha era que devia haver passado recentemente dos trinta, mas
podia-se enganar facilmente.
A cartomante tinha, porém, uma
característica que outras talvez não tivessem: uma capacidade de percepção além
do normal. Se era mediunidade ou percepção aguçada, não importava. A lei das
coincidências jogava muito a seu favor. Mesmo os mais desconfiados balançavam
diante da precisão das previsões da pequena mulher e era isso que o levou até
ao pequeno estúdio onde ela atendia.
Curiosidade e cepticismo andavam
de mãos dadas na mente do homem de meia idade… e uma boa dose de falta de bom
senso…
- Uma cartomante! Onde é que estou com a cabeça? Só pode ser desespero,
mesmo…
Os pensamentos vinham em
contradição, uns com os outros, lutando entre si, mas a curiosidade estava
levando uma boa vantagem. Já havia chegado até aquele lugar. Agora era só
relaxar, tentar não levar nada muito a sério e ver onde a coisa toda ia dar. No
mínimo, era uma diversão, para um homem que estava à beira de uma crise de
nervos.
Os cabelos castanho-claros começavam
a tingir-se naturalmente de grisalho, nas têmporas, na cabeleira ainda farta, mas
entradas no alto da testa mostravam que a calvície viria logo em seguida. Ainda
assim, possuía um certo charme, que somente a maturidade traz, aos homens que
sabem o valor que a vida tem. A dele andava um tanto descorada e insípida, sem
muita alegoria, além da sequência palidamente bicolor casa-trabalho e
trabalho-casa… e não muito mais.
Já não tinha vida social, desde
há muito e os fins-de-semana eram passados solitariamente a percorrer os
corredores do supermercado, lavar e passar as roupas da semana e cozinhar algo
mais elaborado que nos dias comuns. Nem ao cinema ia mais. Limitava-se a ouvir
música, ler e assistir TV ou vídeo, quando invariavelmente adormecia encolhido
no sofá.
A única companhia que desfrutava
era um gato rafeiro, que adoptara de uma sociedade protectora, para não ficar
completamente só. Escolhera um gato, não só pela independência e pouco trabalho
que dava, mas por admirar a personalidade dos felinos e a pouca disposição para
parecerem estar sempre prontos, quando realmente não estavam ou não lhes
apetecia… e era assim que ele também sentia-se, às vezes…
Ele olhou a mulher, de frente, quando sentou-se. Ela fez algumas perguntas - que ele respondeu, quase automaticamente - para situar-se, antes de começar a deitar as cartas sobre a mesa.
O velho e amarelado baralho já estava a postos, num lado da mesa, prontinho para entrar em acção, assim que ela achasse que a hora era a certa. Parecia haver sido muito manipulado por aquelas mãos pequenas e gorduchas, que agora moviam-se com uma agilidade digna de um grande e hábil jogador de cartas.
A mulher procurou e escolheu uma
carta do meio do monte, antes de começar o ritual. Retirou um Rei de Copas e colocou-o no centro da
mesa.
- Este é você. O jogo começa a partir desta carta: o significador. O
Rei de Copas representa um homem maduro, de cabelos castanhos, pele clara,
generoso e elegante.
Ela piscou o olho e sorriu. Embora
não fosse realmente bonita, o sorriso caía-lhe muito bem e tornava-lhe o rosto
até um tanto atraente. Ela havia feito uma espécie de elogio, quase subtil e
descomprometido. Ele olhou a figura no pequeno cartão colorido e marcado com um
grande K impresso em vermelho, no
canto esquerdo superior e outro no canto oposto, com olhos de avaliação, como
nunca havia feito, quando jogava cartas com os irmãos, em dias de chuva e
noites de sábado, em tempos há muito passados.
Então era assim que ela o via…. Ele
sentiu-se estranhamente lisonjeado.
Devolveu-lhe um leve sorriso e analisou o desenho: os cabelos e a barba claros, os olhos um tanto perdidos e a mirar, neutros, um nada à frente. A coroa de ouro, decorada com rubis, provavelmente, devido à cor vermelha, escondia o alto da cabeça e parte da testa. Ele sentiu vontade de rir. O rei trazia ainda uma espada numa mão e a outra a segurar a gola de arminho do casaco…
O homem avaliou bem a situação,
sem envolver-se demais e concluiu que o desenho da carta já esteve sobre um
fundo imaculadamente branco. Agora, as bordas acastanhadas, o fundo amarelo e a
figura quase a querer desaparecer no meio de tanta história contada sobre
aquele tampo de mesa, pareciam querer gritar-lhe algo, que ele ainda não
conseguia perceber. Um pensamento veio como um raio à mente, sem sair-lhe um
som pelos lábios.
- …E o nome do jogo? Vida?...
Reteve o pensamento, sem zombar do
que não conhecia e sem deixar transparecer qualquer tipo de emoção.
- Vamos ver o que virá agora… vamos ver…
A reflexão não o distraiu, nem
fê-lo mudar a feição. Era apenas uma curiosidade aguçada, que ele sentia, então.
Ele olhou as pálidas mãos a
embaralharem, com desenvoltura, as cartas gastas por tanto uso, até que ela
parou e pediu-lhe para partir o maço em três, com a mão esquerda, a partir do
centro da mesa, indo para a direita.
Ele obedeceu.
Ela recolheu os três montes, numa sequência que ia primeiro no monte da esquerda, da direita e, por fim, no monte do meio. A partir dali, começou a deitar as cartas, uma a uma, num desenho muito bem estudado pelo tempo e por uma rotina estranhamente destra: a cruz celta…
Ele obedeceu.
Ela recolheu os três montes, numa sequência que ia primeiro no monte da esquerda, da direita e, por fim, no monte do meio. A partir dali, começou a deitar as cartas, uma a uma, num desenho muito bem estudado pelo tempo e por uma rotina estranhamente destra: a cruz celta…
Ela começou por colocar a
primeira carta em cima da mesa, sobre a que representava o significador: um Valete de Espadas - um homem jovem, moreno, sincero no amor, na
posição da situação presente.
Um jovem homem de cabelos escuros movimenta-se com desenvoltura, num
ambiente onde sente-se confortavelmente à vontade. Está onde devia estar, tanto
no tempo quanto no espaço. Vários pares de olhos o seguem, magnetizados pela
graça felina daquele indivíduo. Ele quase ouve os pensamentos dos
frequentadores do bar, instalado no último andar de um edifício moderno no
centro da cidade.
Uma grande sacada proporciona uma vista ímpar das luzes da
cidade, tornando o lugar bastante frequentado, não só pela qualidade do
ambiente, mas também pelo típico e tradicional cardápio de bebidas locais, da
mais alta qualidade. Os vinhos mais nobres estão no topo da lista. A noite
estava morna e convidativa.
Ele dirige-se à sacada, com uma taça de vinho
branco, fresco, na mão. O outro homem vira-se ao senti-lo aproximar-se. Tem os
cabelos castanho-claros, levemente arruivados. Aparentemente os dois homens se
conhecem de longa data.Com um aperto de mão e uma troca de sorrisos começam
logo uma conversa amigável.
Por cima das duas cartas já deitadas no
centro da mesa e formando uma cruz com a anterior, outra foi colocada.
Representava as influências imediatas e ocultas. Desta vez era um Valete de Copas - amigo ou amante, nem sempre confiável.
Um certo par de olhos observa os dois homens a conversar
descontraidamente na varanda. Eles levantam as taças que trazem nas mãos,
brindam e bebem, imediatamente, dando risadas altas, logo em seguida.
- Aquela alegria vai durar muito pouco…muito pouco mesmo…
O pensamento saiu quase
espontaneamente, na mente do jovem de cabelos e olhos claros a observar os dois
homens a socializarem espontânea e divertidamente. O rosto afilado e o bigode e
pêra, cuidadosamente aparados, davam-lhe uma aparência atraente, mas os olhos
causavam uma certa intriga a quem os olhasse.
Que mistério ocultava-se atrás
daquelas lentes naturais de um verde tão incomum e cristalino?
Acima, onde o topo da cruz devia
estar, outra carta foi colocada. Representava o consulente perante o problema e
as raízes do mesmo. Oito de Espadas: más notícias, desapontamento, crises,
conflito, traição.
O rapaz de cabelos e olhos claros aproximou-se da mesa onde os outros dois conversavam, então, após fazerem o pedido ao garção. Os dois sorriram ao vê-lo aproximar-se e saudaram o recém-chegado com um forte aperto de mão, tapinhas nas costas e um convite para sentar-se junto a eles. Ele sentou-se, com um sorriso nos lábios, enquanto iniciavam uma conversa evidentemente amigável.
Mal sabiam que o rapaz que convidaram a sentar com eles trazia mais que uma conversa meramente inocente e amigável…
... E o nome do jogo? Vida?
ResponderEliminar- É. Vida!