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quinta-feira, 25 de julho de 2019

Voltar para Casa (Parte 1)



Quando eu saí pela porta da frente, com a cabeça tão distraída com um milhão e meio de pequenos problemas, quase esbarrei no homem que vinha passando pela calçada. Ele me olhou por menos de um segundo, como se me estivesse amaldiçoando ou me quisesse matar, mas não disse nada. Eu também não disse nada além de murmurar um envergonhado “desculpe” e continuei o meu caminho.

Havia algo de familiar naquele homem. Seu rosto pálido e a barba loira quase ruiva chamaram minha atenção, por algum motivo. Ele era um jovem alto, talvez por volta dos trinta e poucos anos, o cabelo loiro ficando ralo no alto da cabeça, um corpo bonito, sem ser atlético, mas muito longe de estar acima do peso.

Estava muito ocupado com seu telefone, por isso não me deu mais atenção que eu merecia: não mais que uns poucos milissegundos.

Havia uma parada de ônibus bem em frente ao prédio e foi ali que ele ficou.

Se eu não estivesse quase na hora de um compromisso importante, arranjaria uma desculpa qualquer para voltar e olhar para ele, apenas uma vez mais e um pouco mais longamente que eu consegui naquele curto espaço de tempo. Mas havia o compromisso e eu não costumava atrasar-me...

***

- Tenho vontade de chorar.

- Por quê?

- Não tenho certeza…

- Então quem poderia ter?

Ele me olhou, como se eu estivesse dizendo o maior absurdo de todos. Tentei segurar minhas lágrimas, mas não consegui. Meu coração estava, por algum motivo, tão pesado, que eu perdia o controlo das minhas emoções. Ele não disse mais nada. Ele me conhecia muito bem.

- Levas-me para casa? Por favor?

- Para casa? "Lar é onde teu coração está"…

- Tu sempre dizes isso.

- Eu sei... Digo, porque sei que tu gostas.

- E gosto. Mas hoje eu só preciso de um abrigo… e de um abraço apertado.

E ele me abraçou. Eu deixei cair todas as minha defesas e chorei desatinadamente.

***

- Vais-me dizer o que está acontecendo?

- Não sei se consigo.

Ele ficou de frente para mim e olhou-me nos olhos. Como eu poderia explicar que o que eu estava sentindo era, realmente, inexplicável? Será que ele alguma vez entenderia que às vezes meu próprio passado me assombrava sobremaneira?

- Queres ficar só? Por algum tempo?

- Não, não mesmo.

- Então vem comigo.

- Para onde?

- Para a praia. Eu sei como o mar te faz sentir bem. Acho que é disto que precisas agora.

Sorri e segui o homem, que nem esperou pela minha resposta. Ele tinha tanta certeza que eu o seguiria, que apenas assumiu que era a coisa mais certa a fazer... E então nós fomos até a praia, quase completamente longe da maioria das pessoas, para recarregar nossas baterias... ou melhor dizendo: para tentar recarregar as minhas baterias.

Caminhamos a certa distância ao longo da praia, com os pés nas águas frias. O ar estava fresco e, à medida que o tempo passava, a temperatura baixava lentamente. Era final de tarde.

Nós nos debruçamos sobre o parapeito do píer por um tempo, em silêncio, apenas observando o sol se pôr, apreciando a paisagem e absorvidos por nossos pensamentos mais íntimos. Minha mente vagou no tempo.

Lá estava eu, há muitos anos atrás, a observar, por um longo tempo, aquele movimento das ondas que iam e vinham, continuamente, acabar na areia branca da praia, em uma explosão de som e espuma. Minha mente estava em outro lugar, tão distante dali.

***

O tempo passou tão rápido. Eu via algumas pessoas a caminhar pela praia, distraidamente, enquanto os pescadores lançavam suas linhas ao mar, todos ocupados com suas próprias vidas e agindo como se eu fosse apenas parte de todo o cenário, como a areia, as rochas e o mar. Na verdade, para eles, eu era apenas aquilo: parte da paisagem. Olhei em volta e decidi que deveria ir para casa antes que escurecesse.

Algumas gaivotas ainda tentavam pegar alguns peixes, diretamente do mar ou de alguns pescadores mais descuidados. Um daqueles grandes pássaros, de repente, mergulhou no ar, quase me atingindo na cabeça, enquanto eu passava, brincando com meus pés nas águas frescas. Eu me abaixei o mais rápido que pude, mas perdi o equilíbrio. Fechei os olhos enquanto caía, na certeza de que ia terminar meu dia com as roupas todas encharcadas.

Por alguma razão inesperada, não aconteceu nem uma coisa, nem outra: nem eu caí, nem me molhei. Meu corpo ficou a meio caminho entre o ar e o mar.

- O que aconteceu?

- Eu vi que ias cair e vim em teu auxílio.

- Hã?

O homem, um loiro alto e bonito, segurava-me com as duas mãos. Senti suas pernas fortes entre as minhas e seus braços musculosos ao redor do meu corpo. Eu recuperei meu equilíbrio e ele aliviou o abraço.

- Eu sinto muito.

- Oh, não se preocupe. Eu já estava-me vendo indo para casa num estado lastimável. Agradeço mesmo… de coração!

Ele sorriu. Eu olhei para aqueles olhos. E eram tão azuis.

- Oh meu Deus!

- O que foi?

- Nada. Eu sinto muito.

- Está tudo bem?

- Eu estou bem. Não se preocupe. Desculpe se eu perturbei a tua pescaria.

- Sem problemas. Eu estava apenas passando alguns momentos sozinho, depois de um dia longo no escritório.

- Tens horas?

- Eu tenho… algumas… talvez… para que?

Eu ri.

- Eu quis dizer: que horas são agora?

- Quase oito da noite.

- Oh. Tão tarde. Não havia percebido que era tão tarde. Tenho que ir.

Ele segurou minha mão. Eu fiquei sem palavras. Por alguma razão, senti um calafrio na espinha.

- Não vá… ainda… Vamos tomar um café? Um dia? Hoje? Agora?

- Erm... eu... não... sei...

- Bem, então apenas diga que sim!

***

Eu senti seus braços em volta da minha cintura. Ele me puxou para perto dele e beijou meu rosto, de uma maneira muito espontânea. Por alguma razão, pensei que ele estivesse se lembrando da mesma ocasião que eu. Nossas mentes podem ser engraçadas, às vezes. Eu sorri e beijei aquele rosto amigo.

***

Decidimos jantar juntos em um restaurante chique, no centro da cidade. Ficava quase no alto da rua, em uma casa antiga, restaurada e modernizada para atender às necessidades de uma clientela ansiosa pela nova moda de alimentação vegan e vegetariana.

As paredes eram cobertas por decorações em gesso, onde folhas e frutos de videiras brancas em fundo azul, subiam do chão até o teto da sala dos fundos. O chão de madeira parecia ainda ser o original. As portas de duas folhas davam vista para um pátio iluminado por postes de luz, cuidadosamente escolhidos, em estilo do início do século passado. Uma grande buganvília fúcsia, um tom forte de cor-de-rosa quase púrpura, coloria o lado direito do jardim, perto de uma linha de móveis de ferro fundido, pintados de branco e provavelmente usados ​​em dias ensolarados, ou no começo das noites de verão.

O risoto de cogumelos havia sido primorosamente preparado e cuidadosamente decorado, sendo servido com exuberância exagerada. Eu detetei um toque de balsâmico no sabor daquele prato extravagante. Não havia saboreado nada parecido antes. Um vinho branco frutado, bem fresco, foi escolhido para acompanhar o prato e nós compartilhamos uma sobremesa delicada, chamada “Decadência de Chocolate”, seguida de café preto.

Pagamos a conta e descemos os degraus da escadaria na entrada, que dava para a larga rua. O vento soprava mais fresco e achamos que a noite estava agradável para um passeio a dois. Nós apreciávamos caminhar lado a lado, sem falar muito. A vida pode ser tão simples e boa ao mesmo tempo.

Pensei em gatos vivendo suas vidas simples, com prazeres simples e desejando não muito mais que aquilo. Mas nós somos apenas humanos, vivendo como humanos, da melhor maneira que conseguimos. Para que desejar mais que um bom prato, uma cama quente e um abraço?

O ribombar de um trovão, muito perto, fez-me estremecer um pouco.

- Tens medo?

- Não, não mesmo.

- Boa. Então precisamos ir mais rápido. Parece que vai chover muito em breve.

Antes mesmo de alcançarmos o estacionamento, a chuva caía pesada e fria sobre nossos corpos quentes. Quando chegamos ao carro, estávamos muito encharcados e quase congelando. Liguei o aquecedor e me livrei da camisa e dos sapatos molhados, antes que começasse a espirrar.

Foi então que nós o vimos, de pé, em frente ao portão, tendo a chuva pesada servindo de pano de fundo à sua silhueta...

***

sábado, 19 de outubro de 2013

Em Paz com os Fantasmas... (Parte 2)




Era cedo na manhã quando o rapaz entrou no quarto e abriu as cortinas e a janela. Uma fina chuva caía sobre o monte, acentuando as cores da paisagem, em um fundo pintado com diferentes e sombrios tons de cinza. O ruído do riacho a correr ali perto, pareceu-lhe, por um momento, melancolicamente mais alto e mais pungente.

Quando a luz baça da manhã iluminou o aposento, ele percebeu que não foi recebido pelo mesmo sorriso de sempre e sentiu um súbito desconforto a apertar-lhe o peito.

Havia algo bastante diferente no semblante cansado da criança. A pele e os lábios pareciam mais descorados e o olhar estava distante, a vaguear para algum ponto, localizado bem além do limiar da janela…

Ele tentou não transparecer sua preocupação, ao encarar o irmãozinho. Falou com a voz mais calma que pode compor, naquele instante, procurando esconder o alarme, que acendeu uma berrante luz encarnada na sua mente:

- Chove…

O pequeno suspirou, desanimado e olhou o irmão, com olhos visivelmente fatigados e sem o usual brilho de vida. Não parecia haver dormido muito bem naquela noite. O outro aproximou-se, aprumou dois grandes travesseiros de penas de ganso às costas do menor e arrumou a coberta sobre as pernas dele, tentando parecer o mais natural possível.

- Vou trazer alguma coisinha para comeres.

- Não...

A voz soou fraca e baixa; quase inaudível.

- Mas tu precisas comer, criança.

- Não agora…

- Ok, então. Depois eu trago-te um chocolate quente…

O mais velho, então, sentou-se na cama, ao lado do irmão e passou o braço a volta do seu ombro, trazendo-o mais para próximo de si. Era extremamente paciente e atencioso com aquele ser que tornara-se, em pouco tempo, tão frágil e indefeso e que passara a necessitar de grande e dedicada atenção. O pequeno estendeu o bracinho magro sobre o peito do mais velho e deitou, ali, a cabeça, de ruiva e macia cabeleira. Parecia demasiadamente esgotado.

Os olhos do rapaz encheram-se de lágrimas, quando sentiu a respiração da criança ficar mais fraca. Apertou o corpinho mirrado do menino contra o seu, pousou-lhe os lábios na testa e deixou-se tomar por um pranto angustiado e impotente, embora silencioso.

Ter o corpo frágil do menino, no seu abraço morno, era como segurar o volátil corpo de um anjo, cujas asas estavam irremediavelmente quebradas e o impediam de voar novamente.

Para o pequeno, entretanto, estar seguro naquele abraço, sentindo-se incondicionalmente amado e protegido, era como ter suas asinhas, finalmente, curadas e prontas para permitir-lhe voar novamente. Rendeu seu espírito ao quente aconchego daquele momento de tranquilidade e afecto, exalou profundamente e sorriu, de leve, como se sentisse que toda sua silenciosa aflição estivesse, finalmente, aplacada.

A bem-vinda paz que invadiu-lhe o corpo e a alma, apagava, naquele momento, todos os vestígios de dor e desconforto que vinha sentindo ultimamente. Estava livre, como um pássaro de plumagem avermelhada, que preparava-se para levantar um apoteótico voo. Fechou, então, as pálpebras, com a expressão de alívio decorando-lhe a face abatida e, ao mesmo tempo, angelical.

Aquele foi seu derradeiro suspiro em vida. Seus sofridos olhinhos verdes, dantes tão vivos e divertidos, nunca mais voltaram a abrir-se…

***

O rapaz, parado de pé, no alto do ‘cliff’, tinha o olhar perdido em um ponto muito além da linha do mar. Uma tristeza e uma revolta imensas assolavam-lhe o espírito. Sentia-se, de alguma forma, culpado pela perda do irmão, embora houvesse feito tudo ao seu alcance, para prover o pequeno com toda a atenção e o carinho que aquele merecia. Mas não havia sido o suficiente para salvar aquela jovem alma sofrida e tomada pela impiedosa doença.

A vida havia sido injusta com ambos, pensou ele.

Sentiu que aquele lugar, agora, exercia sobre ele, uma pesada opressão e resolveu, naquele instante, partir dali, para sempre. Decidiu, ali e então, que jamais tornaria a pisar naquela terra, onde perdera parte de si, na figura do irmãozinho, que amou e que tanto tentou proteger, mesmo que em vão. Era uma decisão firme, à qual jamais tencionava reconsiderar, enquanto vivesse.

Havia sido derrotado. Perdera a difícil e longa batalha. Devia partir o quanto antes… sem olhar para trás… jamais…

***

À beira do rochedo, uma gaivota solitária pairava no ar, quase imóvel, segura pela acção do vento e por sua técnica de aerodinâmica instintivamente perfeita. De pé, em frente ao mar, um homem de meia-idade e cabelos castanho-claros, observava, absorto, o movimento do pássaro, que parecia usufruir daquele momento de destreza, como se estivesse suspenso por invisíveis fios, pendentes do claro e azul firmamento. Sua cabeça movia-se suavemente para um lado e outro, com seus olhos atentos, como se procurasse vestígios de algo, no meio do mar, entre os curtos espaços de tempo.

Movido por um inaudível e estranho sinal de alerta, o pássaro abriu o bico e emitiu um grito agudo e sensivelmente angustiado. Moveu, então, as asas e a cabeça num ângulo diferente e mergulhou no ar, destemidamente, até atingir o frio e azul oceano lá em baixo, deixando à vista, apenas, uma pequena mancha branca, de espuma, sobre a superfície das ondas.

Ao que pareceu, ao homem, infinitos segundos depois, emergiu das águas com um abanão de cabeça. Abriu suas amplas asas e tornou a voar, atingindo, sem esforço, as alturas, já em perfeita harmonia com o vento e o espaço.

Inclinou a cabeça levemente para o oceano azul e frio, como se fizesse as pazes com o que acabara de deixar atrás de si. Voltou-se para frente, ergueu sua cabeça e seu olhar e mirou firmemente o que via diante de si, voando decidido naquela direcção.

O homem ainda observava, com atenção, o pássaro distanciar-se daquela fria imensidão em que estivera submerso, mas que ficara, definitivamente, para trás. Foi como se ele mesmo acordasse de seu melancólico devaneio. Sentiu-se como se um pesado e amargurado véu, que havia encoberto a visão clara das coisas do passado, houvesse finalmente sido levantado, definitivamente, de diante de seus olhos.

Caminhou de volta até o topo do morro, virou à esquerda e começou sua descida à casa de pedra, onde estivera horas antes. Seus passos estavam, agora, seguros e decididos.

***

A cama vazia ainda trazia vestígios de um passado mais vivo que ele alguma vez imaginara haver. O vaso, sobre a mesa da cabeceira, jazia vazio… limpo… assim como sua alma. A roupa de cama ainda tinha cheiro de amaciador e estava impecavelmente arrumada sobre o antigo leito. O homem passou a mão sobre a colcha, o travesseiro, a dobra do lençol… Quase conseguia ouvir a risada divertida e solta do irmão, quando lhe dizia que ia levá-lo ao cais, à margem do riacho.

Da janela, os verdes campos, salpicados de pequenos pontinhos vermelhos e avioletados, pareciam uma suave e bucólica aquarela. Sua face ainda demonstrava uma certa tristeza nostálgica, mas ele sentiu-se, enfim, profundamente sereno e confortado. Trancou a janela com cuidado, deu uma última olhada à volta e saiu do quarto, fechando a porta atrás de si. Enquanto caminhava pelo corredor mal iluminado, sentiu-se como se deixasse aquele local, o passado e suas angústias, para sempre e para trás.

Duas lágrimas mornas ainda escorriam por sua face, quando ele chegou ao lado de fora da casa. Uma leve brisa soprou contra seu corpo e levou, para longe, a fria e amarga revolta que tanto pesou-lhe sobre os ombros, por uma boa parte de sua vida.


Não muito longe, outro homem, verosimilmente mais velho, olhou na direcção da casa e percebeu uma firmeza diferente, na forma do amigo caminhar. Sentiu uma espécie de alívio e sorriu. Os ombros do outro pareciam estar mais aprumados que de costume e a expressão em sua face, inegavelmente mais leve. Até parecia mais jovem… rejuvenescido…

Pelo jeito, os fantasmas podiam, final e peremptoriamente, gozar de sua devida paz.


Tendo percebido que as pendências do passado estavam devidamente conciliadas, o homem concluiu que já era mais que hora de viajarem de volta para a casa da praia…