sábado, 24 de outubro de 2015

Espirais (Parte 2)

- Férias?
- Sim. Férias. Nós nunca tiramos férias. Desde que…
- Mas nem sabemos o que fazer… Não sei se é uma boa ideia.
- Lembras dos nossos acampamentos? Aquilo era divertido.
- Lembro. Lembro muito bem do último acampamento e dos problemas que tivemos… muito embora isso já tenha acontecido há tanto tempo…
- Pois então. Nós estamos vivos por causa do incidente. Vamos ficar longe de problemas. Não vai acontecer nada de mal desta vez. Eu prometo. OK?
- Não prometa. Ficar na base é que significa ficar longe de problemas.
- Vamos lá. Eu já consegui autorização para sairmos por três semanas.
- Como assim? Conseguiste autorização? Quer dizer que eu fui traído, então!
O rapaz riu e deu um leve soco no braço do amigo. Sabia que ele tinha, ainda, reticências sobre aquele programa, mas estava praticamente convencido a tirar as tais férias, depois de estarem tanto tempo reclusos naquela base militar.
***
- Temos que passar num lugar, primeiro.
- Que lugar? Não era esse o plano…
- Vamos ver como está a área, depois desse tempo todo.
O rapaz de óculos calou-se. Embora não tivesse previsto aquela aparente mudança de planos, também tinha curiosidade em saber. Um súbito desconforto no estômago e peito deu sinal de apreensão, mas ele só fechou os olhos e respirou fundo.
O local, como era de esperar, ainda estava cercado e tinha muitas placas de advertência, indicando proibição ao acesso e entrada de todos. O jeep alugado cortou caminho pela lateral, onde havia uma brecha na cerca de arame farpado e entrou no vasto campo destruído pela explosão nuclear, muitos anos atrás. O coração do rapaz de óculos acelerou. O outro, ao volante, conduzia com o cenho franzido e o semblante fechado e com uma seriedade e silêncio que já lhe eram peculiares. Cerca de cinquenta quilómetros adiante e meia hora depois, chegaram ao que parecia ser o centro da área. O rapaz consultou o GPS, para confirmar se estava certo. Saltou do carro e olhou à volta. O deserto estendia-se, a perder de vista, em um círculo de provavelmente bem mais que o dobro dos cinquenta quilómetros que já haviam viajado.
- Eu tinha que ter esta certeza… Eu só precisava ter mesmo certeza absoluta… Nunca nos deixaram voltar, depois daquele dia.
O outro estava de pé ao seu lado, com os olhos fixos num ponto à esquerda, onde um dia houvera uma mata e onde ficaram soterradas muitas lembranças. Uma imensa fenda estendia-se pelo campo até abrir-se numa grande cratera. Os dois soldados aproximaram-se da borda e olharam para baixo. Terra seca e não fértil escorreu para dentro da fenda, por baixo dos pés deles, até desaparecer da vista, na escuridão.
O vento assobiou na borda do precipício aberto. Um arrepio correu-lhes pela espinha acima.
Os dois viraram-se e voltaram ao jeep, em meio à uma angústia silenciosa e com o propósito tácito de nunca mais retornar a aquele árido, vazio e infecundo deserto, onde o passado havia sido enterrado para todo o sempre. Estavam definitivamente convencidos que já não pertenciam a aquele lugar. Era o destino a colocar uma pedra no passado e a abrir novos horizontes, provavelmente cheios de novas oportunidades.
O tempo encarregar-se-ia de transformá-los, aos poucos… ou não… mas constantemente.
Aqueles dois rapazes eram, agora, soldados de elite, treinados numa base militar, que lhes servia de lar, desde que o dia em que foram resgatados pelo exército, há bastante tempo atrás.
***
Sentados no hall do aeroporto, à espera da chamada para o voo, os dois jovens homens não conversavam. Tinham as faces sérias e os olhares distantes, ambos a olharem para fora, onde aeronaves de várias companhias e localidades subiam e desciam, umas após as outras, de e para os mais variados destinos.
Gentes de todas as raças, nacionalidades e origens misturavam-se, arrastando malas de todos os tamanhos, cores e formas, pelos corredores afora e em todas as possíveis direções.
Os fortes aromas das caras fragrâncias francesas exalavam das perfumarias do ‘Duty Free’, misturando-se com tantos outros, nem todos tão nobres, pela longa avenida, repleta de viajantes e seus pequenos grandes mundos. Vozes de diversas tonalidades e em vários idiomas misturavam-se às chamadas para os voos, provenientes dos altifalantes, em múltiplos e diferentes pontos do aeroporto internacional, caracterizando uma verdadeira e moderna torre de Babel.
O monitor exibiu, finalmente, a mensagem esperada com bastante aflição. O embarque estava autorizado. Os dois levantaram-se, ajeitaram as mochilas às costas e entraram na fila, em frente ao balcão de controlo. Alguns metros atrás deles, dois olhos observaram seus movimentos, com cuidadosa atenção e com discrição exemplar, certificando-se que não os perdia de vista.
Os dois soldados passaram pela funcionária uniformizada, cruzaram a porta de vidro, desceram a rampa e desapareceram na curva do corredor móvel, que levava até a pequena porta da aeronave.
Poucos minutos depois, acomodando-se nos assentos próximos às asas e ocupados em ajeitar as mochilas nos apertados compartimentos acimas das cabeças, não perceberam quando um dos passageiros passou e tomou o assento no lado oposto, algumas fileiras atrás, assegurando-se que os dois eram mantidos sob constante e criteriosa observação.
***
- Onde é que nós estamos?
- Não sei.
- Como é que nós viemos parar neste lugar?
- Não tenho ideia. Não sei o que aconteceu…
O rapaz de óculos olhou à volta e não viu a mochila com seus pertences. Sua face manifestava uma visível preocupação. O outro compreendeu sua confusão com genuína empatia. Era evidente que estavam numa grande enrascada, mesmo sem saber a razão pela qual estavam naquela sala trancada e muito mal iluminada. As paredes eram altas e nuas, pintadas de um tom impessoal, provavelmente de bege, pouco distinto na penumbra. O teto era apenas um borrão na escuridão. A sala era totalmente desprovida de móveis, mas estava muitíssimo limpa, ainda com cheiro de detergente no ar. A porta era de madeira lisa e escura, pesada e maciça e não tinha fechadura, pelo lado de dentro. Como estava muito firmemente trancada, provavelmente tinha um fecho com cadeado ou algo similar.
O chão, feito de um bloco único de cerâmica polida, era de um pardo monocromático. Havia uma impessoalidade muito fria e marcante no aposento e que dava-lhes a impressão que servia para fins não muito dignos.
- Temos que repassar os últimos acontecimentos a limpo e com cuidado, para tentar resgatar alguma memória. Qual é a última coisa que tu lembras? Lembras de termos saído do avião? Lembras de chegarmos até a saída?
- Sim. Lembro bem. Até acenarmos para o táxi, já do lado de fora do aeroporto. Disso eu lembro claramente...
- Mas uma 'van' escura parou antes... e alguém esbarrou em mim.
- Em mim também… Depois tudo ficou confuso… Não consigo lembrar de nada direito. Acho que fomos drogados e assaltados.
- Ou sequestrados…
Os dois rapazes chegaram à aquela conclusão com alarme nos olhos e com um aperto no coração.
Um estranho silêncio instalou-se no meio dos dois, quando ouviram o som de passos a reverberar no piso do lado de fora do aposento onde estavam aprisionados. O ruído de metal roçando contra metal e batendo solto na madeira deixou-os em posição de alerta. Alguém mexia no ferrolho, abria a porta e entrava, sem ser anunciado, nem convidado...

***

sábado, 17 de outubro de 2015

Espirais (Parte 1)

Os dois jovens homens atravessaram, correndo, o grande hall, a procura de uma saída. O som de seus passos ecoava pelas paredes e pelo teto alto, em forma de abóbada com arcos góticos, que sustentavam a pesada estrutura, num desenho arquitetónico bastante rebuscado. Atrás deles, uma moça, um pouco mais nova que eles seguia, descalça e vestida com uma espécie de túnica azul celeste, amarrada na cintura com um cordão da espessura aproximada de um dedo, feito de fibra dourada e trançada à mão. 
Os rapazes viram um pórtico, também em arco, que dava para fora do edifício e seguiram por lá. A moça ainda tentou avisá-los, mas já era tarde. A tal passagem levava a um pátio murado, mas sem portões de saída, como se fosse uma varanda fechada. As paredes de pedra lisa não permitiam que subissem e não havia nada à volta que pudesse sugerir uma saída ou passagem que pudesse ser usada para chegar a qualquer lado, ou para atravessar para o outro lado do muro. A única alternativa era voltar para dentro. Eles subiram os três degraus de um pequeno lance de escadas e correram na direção de onde vieram, novamente, chegando até onde a moça os observava, sem mover-se, mas demonstrando uma certa impaciência, por eles não lhe haverem dado ouvidos. Os dois passaram e carregaram-na junto com eles, puxando-a pela mão. A moça foi junto, sem resistir. Os três seguiram pelo corredor vazio até uma grande sala, muito maior que o hall por onde vieram e muito mais impressionante.
O piso era de um mármore puro e muito alvo, praticamente sem manchas. As paredes pareciam não haver sido pintadas alguma vez, não tinham nenhuma decoração adicional, nem eram perfuradas por janelas ou quaisquer tipos de aberturas. Não haviam cadeiras ou assentos no aposento, tampouco. Dois círculos concêntricos, um vermelho e um dourado, estavam pintados no chão, à volta de onde uma árvore havia sido plantada, provavelmente há muitas dezenas de anos, no centro daquela sala. Suas muitas e longas raízes aéreas denunciavam sua idade. Seus ramos, longos e pesados, eram sustentados por muitas forquetas de metal, tão antigas, que muitas delas já faziam parte do madeiro, que as envolvia, como se quisesse que nunca deixassem de sustentá-lo. Em volta do enorme tronco, uma encorpada liana, quase sem folhas, subia em espiral, para além do limite do teto e perdia-se da visão. Eles ficaram a olhar, boquiabertos, a imensidão daquela árvore centenária, tão sóbria e respeitosamente senhora daquele lugar.
Passos pesados e ligeiros aproximavam-se pelo corredor, fazendo os três entrarem em estado de alerta, mudando o foco de sua atenção. Homens armados entraram na grande sala, aparentemente dispostos a tudo. Os rapazes apressaram-se a subir pela espiral, mas a moça, que havia ficado por último, foi logo apanhada por um dos homens. O rapaz de óculos quis voltar atrás, mas ela gritou:
- Fujam! Depressa!
Ela foi carregada para fora da sala e do campo de visão dos dois, enquanto um dos homens começava a subir atrás deles. Não foi preciso muito para decidirem para qual lado ir. Só tinham que ser mais rápidos que o seu perseguidor.
Por cima do telhado, os ramos estendiam-se para além do limiar das muralhas da grande edificação. Eles tomaram a direção do que pareceu ser a saída mais próxima, por cima do pátio murado, onde estiveram minutos antes. Este estava construído por cima de uma grande ravina rochosa. Uma névoa impedia de ver o fundo do precipício, mas dali eles podiam ouvir o som de água a correr muito abaixo de onde estavam. Vendo que aquela direção os conduziria à uma morte mais rápida, os dois resolveram voltar.
O rapaz de óculos virou-se e viu que o homem que os perseguia estava sobre o mesmo galho da árvore em que estavam e vinha aproximando-se deles. Sem saber o que fazer, ele paralisou, completamente, a meio caminho. Seu companheiro, ao ver que ele não sabia como reagir, diante daquela situação, puxou-o para trás, certificou-se que ele não caía e correu na direção do homem, que já apontava a arma contra eles. A investida contra seu corpo pegou o homem de surpresa e fê-lo perder o equilíbrio e cair por cima do telhado e rolar dali abaixo. Ainda ouviu-se um tiro, que deve ter sido a reação do homem ao tentar apegar-se a algo enquanto desabava do galho da imensa árvore.
Eles correram para o outro lado, na direção de uma densa floresta, até onde um dos galhos curvava para baixo, devido ao excesso de peso e saltaram para a mata. Tinham que sair dali a qualquer custo.
Havia uma espécie de trilha marcada, pela qual seguiram, por puro instinto. Se havia aquele caminho tão distinto, devia, certamente, levar a algum lugar para fora dali. Correram até onde a tal trilha terminava no topo do paredão da ravina. Apesar de não ver o fundo, sabiam que passava um rio por baixo. Deviam ter andado em círculos, à volta da fortificação. Uma saída era para trás, a tentar encontrar outra alternativa. A outra era para baixo… E era muito abaixo de onde estavam.
As vozes de vários homens a gritar no meio da densa vegetação e aproximando-se deles, rapidamente, fê-los entrar em pânico. Um rugido, aterrorizante e ameaçador, ouvido atrás deles, muito alto e aparentemente muito próximo de onde estavam, foi sinal suficiente para apressar-lhes a única possível decisão. A saída, naquele momento, era, definitivamente, para baixo.
Eles saltaram, antes que a fera – fosse ela qual fosse – e também os homens estivessem perto demais. O tempo pareceu-lhes bastante longo, enquanto caíam no vazio, entre o topo do paredão, a névoa do caminho e o fundo, onde esperavam haver água… muita água…
Quando a adrenalina está correndo muito rapidamente e em nível alto no corpo, a perceção de tempo e espaço, bem como as sensações, são distorcidas pelo cérebro. É como olhar pelo espelho lateral de um veículo, para certificar-se da direção, mas sem saber ao certo se as distâncias estão bem calculadas. Era necessário uma experiência maior, para certificar-se, mas não havia tempo para experimentar.
O impacto foi menor que eles imaginaram, quando chocaram-se contra a água fria do largo e profundo curso de água. As corredeiras, porém, eram mais fortes que eles esperavam e nadar era praticamente impossível. Deixaram-se ser arrastados pela correnteza, rio abaixo, na esperança de que, em algum ponto mais adiante, houvesse calmaria, para poderem sair dali, em segurança. Tentavam não afogar-se nem engolir água demais, no caminho, mantendo a atenção um no outro, para não ficarem perdidos, nem separados. Pelo menos estavam seguros, indo para longe de onde caíram e da perseguição dos homens armados.
Alguns quilômetros abaixo, quando as piores e mais violentas corredeiras já haviam ficado para trás, mas ainda deixando-se levar pela correnteza, avistaram uma região aparentemente mais virgem. Uma espécie de alívio tomou conta deles, quando perceberam que estavam vivos e a salvo, longe da ameaça na fortaleza.
A impressão foi logo desmistificada, quando viram que um grupo de homens os observava de cima de uma grande rocha, na curva do rio. Sem saber se estavam a salvo ou cada mais em perigo, deixaram-se levar, sem saudar os observantes.
Alguns homens correram pela margem, seguindo os dois, provavelmente até um ponto onde pudessem resgatá-los… ou atingi-los, de alguma forma e acabar, de vez, com a vida deles. Uma sensação esquisita de medo, apesar de haverem sido treinados pelo exército, passou pelos dois, instintivamente e ao mesmo tempo. A amizade entre eles ia além de uma comum e parcial afinidade. Havia uma sintonia maior, especialmente depois do que passaram juntos, até serem recolhidos por um soldado num jeep do exército, há muito tempo atrás.
Como daquela vez, estavam incertos se, ao serem resgatados, estariam mais a salvo ou em maior perigo.
Como a sorte gostava de brincar com os dois, a correnteza ficou mais calma. Os homens que corriam pelas margens, seguindo o trajeto deles, enquanto eram levados pelas corredeiras, no leito do rio, aproximaram-se e entraram na água, apressando-se a retirá-los de lá…

***

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Um Animal de Sorte



Eu, decididamente, não gosto de viajar de carro. Não gosto de ficar preso dentro de uma caixa de transporte, mesmo que seja por uns poucos instantes e para minha própria segurança. Sei que é necessário e, provavelmente, ainda não acharam uma forma melhor, mas eu, simplesmente, abomino aquelas experiências.

No dia em que eu fui transportado para fora da casa de onde estava, temporariamente, depois de haver sido recolhido da rua, não foi diferente. Apesar de tudo, eu não queria deixar a casa de minhas madrinhas. Não tinha a mínima ideia do que iria acontecer e não estava nada voltado para uma nova mudança. Já tinha passado por uns maus bocados e não estava com intenção de passar outros. Meus passeios anteriores não haviam sido marcantes pela positiva.

Quando levaram-me para dentro e abriram a pequena caixa de transporte, ele estava inquieto e apreensivo, apesar de nos haver recebido com um sorriso no rosto. Talvez até estivesse mais receoso que eu… não sei direito. A minha madrinha colocou a caixa sobre um tapete que havia no hall de entrada do apartamento.

Ele sentou-se no chão e eu percebi que estava bastante tenso… ou talvez fosse uma demonstração de cuidado excessivo. Quando vi-me livre, olhei à minha volta e esperei uns segundos. Ele esperou também. Não invadiu meu espaço, o que pareceu-me uma boa estratégia. Aquele sinal de respeito indicou que minha sorte estava por mudar. Antes, eu estava assustado e desconfiado, mas senti-me abrigado e seguro, perto daquele homem desconhecido, cujos olhos tinham uma tristeza tocante e pareciam carregados de dor. Naquele momento, senti o impulso de aproximar-me dele e deixá-lo saber que eu apreciei sua consideração. Dei um passo adiante e inclinei meu corpo para perto dele, que levantou a mão e tocou-me a cabeça, com muito cuidado. Eu retribuí com uma leve turra.

Lembro que ouvi a madrinha perguntar à colega: o que foi que aconteceu aqui? Ele riu e disse: não sei, mas pareceu-me um bom sinal...

Eles trocaram informações sobre meu estado de saúde e as indicações médicas. Eu estava a curar uma infeção urinária, decorrente do stress que tive, no meu primeiro lar. Ele disse que achava esquisito o nome que me deram. Eu também, mas não tinha como dizer-lhes. Mas foi graças ao tal nome esquisito que ele teve ciência da minha história e resolveu conhecer-me.

Quando elas saíram e a porta foi fechada, deixando-nos a sós, o meu novo lar temporário pareceu-me um imenso campo a ser explorado… nas minúcias. Já sabia onde ficava minha comida e água e também a caixa de areia, portanto o básico estava sob controlo. Fui-me habituando, aos poucos, tanto ao lugar, quanto ao homem que cuidava de mim, inicialmente como FAT… uma família de uma pessoa só.

Duas semanas depois ele disse que havia decidido adotar-me. Eu já desconfiava, pela maneira que havia-se apegado e como parecia contente com minha presença na sua rotina de vida. Levaram-me, ele e minha madrinha, ao veterinário, para avaliar o estado da minha saúde. Eu estava bem. Ainda assustava-me com muitas coisas e ruídos desconhecidos, mas estava a adaptar-me bem ao meu novo lar, graças à paciência dele.

Burocracias ultrapassadas e compromissos assumidos, um novo nome foi-me escolhido, por ele, para combinar com minha nova vida. O passado tinha que, definitivamente, ficar para trás, junto com meu antigo nome e a dor eu já havia sofrido. Ele passou a chamar-me Thomas. Um novo nome, um novo lar e uma nova vida. Não sei porque, mas às vezes chama-me de “tigre”, além de muitos outros estranhos e carinhosos cognomes. Não acho que sejam os nomes ou as alcunhas que me fazem o que eu sou. Aliás, meu nome oficial é bonito e caiu-me muito bem.

Dois anos já decorreram desde o dia em que entrei por aquela porta. Engraçado como o tempo passa rápido, quando está-se bem. Agora eu ando livre pela nossa casa, conheço as rotinas e os horários e sei quando ele chega, de volta do trabalho, pelo som de seus passos nas escadas e corredor. Eu corro para a porta e fico à espera do barulhinho da chave na fechadura, para dizer-lhe olá, assim que entra. Ele chama-me de “meu menino”, faz festinhas e conversa comigo, como se eu fosse uma criança, perguntando-me se estou bem, se tenho fome e se quero um carinho.

Nós não recebemos muitas visitas. O tocar da campainha da porta ainda causa-me uma certa desconfiança. A mulher da limpeza reclamou que eu era muito arisco, mas eu tinha que certificar-me que ela estava livre de qualquer suspeita, antes de deixá-la aproximar-se. No dia em que ele chegou mais cedo e que trouxe-me, ao colo, para perto dela, percebi que, afinal, a mulher não ia fazer-me mal.

Melhor assim… para o bem dela…

Gostei da reviravolta que minha vida deu. Gosto da tranquilidade que ele me proporciona e do cuidado que demonstra para comigo. Ele cuida bem de mim e faz de tudo para proteger-me. Tenho mimos, conforto, comida e água, a caixa de areia sempre limpa e, ainda, companhia e segurança. Não preciso muito mais que isso, afinal.

Ele não perde a paciência comigo, nem quando eu apronto alguma. Na verdade, ele acha engraçado que eu arranje, da minha maneira, um lugar para ficar em cima do roupeiro, derrubando as incómodas caixas que lá foram deixadas. Eu sou um bichano grande e preciso de espaço… e gosto de lugares altos e quietos…

Ele sempre diz que eu sou muito amado e eu sei o que isso significa. Basta reparar no jeito que me trata e a forma como me olha. Não tenho quaisquer dúvidas em relação ao sentido daquelas palavras, ditas com tamanha afeição. É fácil compreender as intenções explícitas por elas. É bom saber que sou amado. Dá-me uma sensação boa saber que eu faço parte da vida dele e que ele faz da minha.

Ouvi uma conversa, dia desses, quando um amigo disse a ele que eu era um gatinho de sorte. Apesar de ele ter dito que eu já sofri o suficiente na minha vida e que mereço um pouco de paz e tranquilidade, reconheço que muitos animais não têm a mesma sorte que eu. Alguns continuam a sofrer maus tratos e acabam por ter uma vida infeliz, sujeita a muitos perigos e, consequentemente, com baixas expectativas de vida longa. Eu, pelo menos, estou seguro e sou bem tratado e respeitado, o que é uma coisa que nem todos conseguem ser.

Sim. Eu sou, mesmo, um gato de sorte!

Sinto que, às vezes, a rotina dele precisa de um pouco de ação… e eu, claro, faço questão de proporcionar-lhe alguma.

Vou lá dentro, agora, fazer minha cara de santo e inocente para ele. Acabo de ouvi-lo chamar meu nome e perguntar quem foi que bagunçou o armário e derrubou as t-shirts no chão do quarto...

…Não sei porque fazer qualquer drama. Nem foi no chão… Foi no tapete!

domingo, 20 de setembro de 2015

Of Sea and Men (Epilogue)


The opened door did not seem to be a good sign to the fisherman, who was still wary by the dream he had a few weeks before. He put his coat on and ran out of the door in a desperate rush. He could not even tell if his reaction was protective or defensive; if it were either a fear of losing or at the same time, of being alone...

He could hardly feel his feet trampling the soft wet sand nor could he sense the adrenaline running fast in his body, as he hastened along the beach, feeling the anguish upsurge exponentially within. In his mind, he could only think of the worse. And the worst was inconceivable to him at the time.

It was still dawning and the cool breeze, mixed with a dense fog, quite common at that time of the year, passed almost unnoticed by the man’s troubled mind, whose eyes, more carefully than his feet, scrutinized the waterfront with extreme and meticulous attention. The visibility was precarious due to the poor daylight and fog, but he was moved by a force which led him not to give up until he found the boy.

Up ahead, he discerned the outlined silhouette of his friend, sitting on a rock by the cliff. The mixed emotions of relief and urgency blended into his chest while he ran in that direction.

- You gave me such a huge fright, young man. I thought the worst had happened.

- I’m sorry for that. I had to think a little bit about everything that happened recently. Being here gives me a sense of security and broadens the horizons. I try to think outside the box... and it's not easy... My life will take a twist very soon and I have to make the right decisions.

- I see. We were caught in surprise, were we not?

- Certainly. It's all a little too fanciful to me right now and I have to think seriously about what to do.

- That night I told you I had a strange dream, I was quite apprehensive. I dreamed you were trying to commit suicide, drowning in the sea. I could not buy that story of the witness who saw you being assaulted and thrown into a car. When I saw that the door was open and you were not lying on the couch, I could only recall my dream... or nightmare... and think that it became real somehow. I confess I was afraid...

- Not so fast, my friend... I also had a very peculiar dream that night, you know...

The boy told him, in detail, the dream he had weeks before. The fisherman found it much more credible than the "evidence" informed by the police. In a way it kind of corroborated the presence of the man dressed in black.

- Do you think my memory, by some means, brought that fact to my mind? Or was it too coincidental?

- Anything is possible, my friend. Everything is possible in this story. I wish your memory recovered to end up with this mystery, but at the same time, I am afraid of what you'll remember and what will happen next. But you have to go ahead, no matter what you'll discover.

- Don’t be afraid. We will not stop being friends, regardless of what I will remember... I will not be able to shut my life down to what happened this time I am living on this island. I may be young... much younger than you, to tell the truth, but I am not ungrateful or stupid and do not take things for granted.

- I have never thought something in this regard, my friend. You know how much I care about you.

The boy looked at the man sitting next to him, facing the sea vastness and smiled. He patted the hand of his protector and said:

- Let's go back? We have much to do. The sea awaits us...

- You do not need to help me in the sea labours anymore. You know that.

- But I want to... one more time, at least. Tomorrow I must return to the mainland, and from then on, I do not know what will happen to me. But it's necessary to go on…

***

- I'm glad you came. Are you ready? We should go soon...

The man, dressed in black and wearing a very discreet but elegant dark blue silk tie with a small logo printed, possibly of the firm where he worked at, seemed to be in his early forties. He had the body shape of whom spent many hours in the gym and weight lifting. It would not be a surprise that he was also an expert in martial arts and personal defence or carry a gun on himself. After all, he was the head of security of a company whose founder’s bastard son had mysteriously disappeared, some time before, not long after his father recognize him as such.

The Chief of Security had come to the island on the morning ferry, along with the doctor and, like the week before, with a single interest: to bring the boy to the mainland and undergo a revolutionary new treatment for memory recovery, specially developed and designed for those people who had it lost in traumatic situations.

According to him, the young man had a Q.I. well above average and an immense sensory capacity, as well as an exceptional knack for investment analysis and a flair to work with computer programs. His skills had brought much profit to the company’s entrepreneurs and investors. For these and other reasons, it was interesting for the Administration to invest in his recovery and have him return to the business world as shortly as possible.

The deal was the boy be ready in a week’s time from the first visit of the chief of Security, who had been designated responsible for identifying the "survivor", who had been recognized by pamphlets that the police had distributed across the country. He was carrying documents and a series of photographs, that supported the authentication. When the boy came in, accompanied by the fisherman, he was showing documentary evidence to the doctor, who admitted they were very well supported and evident.

- I cannot recognize myself in these photos. That's not me. Or rather... that young man has nothing to do with me whatsoever. I am thinking of studying, graduate and make my life. I want to study Oceanography and deepen my IT knowledge, which seems to be my expertise. I want to associate the two fields in a career...

- You must come back to work with us. You'll have everything you want, supported by the firm and by your father. He anxiously waits for you. The company needs your services... and the sooner the better.

- But I do not want to go back to the company this way... I want to recover the memory, yes, but I have other plans. If the company does not want to invest in me in these terms - which is understandable - no problem. My life is no longer focused in that direction. I want to decide for myself...

- And how can you support this decision? You do not have financial conditions to do so. We can provide you everything you desire. At least until you can get enough to endure a change. Until then, you need a decent job. I do not think an old fishing boat can be your source of livelihood for a long time. Your father would never forgive you...

- I don't know the man you state as being my father. I don't know the company. I know nothing beyond the old fishing boat... which, after all, gave me all I have now... I don't want to go back to the life I had and of which I know nothing about, nor do I have any recollection whatsoever.

- I've come though this previously... Before you disappeared, you had already showed intentions to leave the company. It was a great disappointment to your father, my boss, and a problem for all of us. Let's stop this chit-chat and leave before the ferry departs without us.

The man dressed in black firmly grabbed the boy's arm, which seemed quite odd to the other two men. The boy pulled his arm off the other man’s grip, freeing himself up.

- If my father was really worried about me, he would have come himself and meet me, not just sent his body guard...

The man was livid. He knew he had a mission. The consequences of not carrying out his task, he knew very well. He stepped forward, toward the boy, who dodged. He put his hand inside his jacket and pulled a small pistol out, to the astonishment of all.

The boy looked at the man with the gun pointed in his direction and it was like a flash passed through his eyes, bringing his long-lost memories back, as if the forbidden archives had been opened in his mind and he remembered.

He was being chased through the streets and hiding in the city alleys by the river. He saw that there was a boat ready to leave the dock, at that very moment. He tried to listen carefully to the sounds close to him, to be able to take some action even if he had to risk too much. That same man, dressed in black, was carefully looking for him, armed with a pistol, probably with the sole intention of bringing him back at any cost and in any case...

At any cost, or in any way, however, it was not his intention to return to anywhere... even less to that company...

The boy kept his eyes on the gun pointed at him and said, pretending a serenity he did not really feel:

- Now I remember what happened...

***

- It was almost a miracle having my memory back, so clear, before that shocking situation. I almost froze...

- Normally, situations where there is a great rush of adrenaline trigger this sort of reaction. If he had not said that you would not escape him a second time, pointing that gun, like that, at you, we would have no reason to attack him, nor grounds for the police to arrest him. Thankfully, our reaction was quick, but I still have the mark of the bullet scraped in my arm when I and the doctor ran and jumped on him. The bad intentions of the man were clear from that moment on.

- But it could have been much worse. We could have been shot dead. After the gun was taken from his hand, it was easier. I still remember the matron hitting him hard in the back, knocking him down at once. Beating the confession out of him after that whole mess and in the middle of an angry outburst, when he could deny it if he were smarter, was a lucky treat for us... but he was completely overcome with anger by then...

- Yes. We were very lucky. It was a great team effort. He could have done anything, but he just did not count that you would survive after you've been beaten, stripped and thrown overboard. What I don’t understand, however, is the reason why he chose to hit your head, although very hard and getting rid of the body, without making sure you were really dead.

- He must have thought that the blow could be easier to explain if the body was found. He wanted it to look like an unfortunate accident. The master touch was thinking that by being naked I would be more difficult to identify... and he had a good point after all...

- Fortunately it all ended up well and I found out on the beach at the right time. I would never hesitate to defend you from any dangers that could appear. I would do it all again if I needed to. You can be sure of that.

- You know what I think? You are like the rain: sometimes falls down and refreshes; sometimes simply floods. You're a good man. It doesn't matter to me what you have done in the past or what your past has done to you. You have already lived your private hell. Your debt has been paid and has nothing to do with me. You did not know me and yet you did everything possible to help me out without even knowing who I was. You had no obligation whatsoever and you were my best mentor and protector. You were the only person who really cared for me, never thinking of ulterior intentions. You simply followed your heart and I'm very grateful to you for what you did. My debt to you is eternal.

- Nonsense. You owe me nothing!

The boy hugged his old mentor and friend with true affection and gratitude and said something he would never expect to hear.

- Yes, I do. I owe you my life!

For some inexplicable reason, that hug caused him a very peculiar effect. He felt light and full of life, with his heart warmed up with long lost emotions...

- I can hardly admit I was still able to feel these kind of emotions. I did not even know that it was possible to bring them out of my most basic needs...

- You think too much. It seems that you're afraid to show your feelings, as if they were a sign of weakness. I may be young yet but I can guarantee that only the strong live, truly, their feelings... and they’re not ashamed or afraid of that.

***

A few months later, the seaman received two envelopes by mail.

The smaller one enclosed a simple letter, coming from afar, written in a calligraphy he recognized immediately. The news were comforting. After a few tries, the boy had gotten a scholarship in the College of Oceanography. The money he had used earlier in order to pay his expenses, while going through admission tests, had been very well spent and the letter held the promise of returning the amount to his mentor and friend, within a reasonable time.

The man smiled. He had invested with his heart, in the success of his young friend and felt he had already obtained the profits of that venture. He was not worried about the money, in fact, but with the progress that his protégé had been achieving since he went back to the city. Life was ultimately good for the boy, in response to his efforts and capabilities.

He put the letter aside, still smiling and turned his attention to the brown envelope, larger than the other, where there was a well-known logo, printed on the upper-left corner. It was sent from a renowned firm in the city, whose name brought him some unusual memories.

He opened it with uneasy fingers. There was a message and a report from the lawyers. The letter stated that an inquiry had been opened to investigate the accident/incident and his wife’s subsequent death during the surgery procedure. A note revealed the reason for the reopening of the investigation process. They had grounds to believe that the death was not a simple and unfortunate contingency, once some witnesses had heard him arguing with his wife, about her infidelity, during the dinner at the restaurant on the night of the accident. Apparently the doctor had left the place, quite altered, emotionally. Despite the fact that he had already served time for manslaughter, he could still be convicted if deceit could be evidenced.

The man set the document back on the table. A deep sadness pressed his chest, like a straitjacket, tied with effective cruelty, hindering the movements of his soul. The wind and drizzle falling outside the grey and almost too chilly day, only intensified his melancholy and brought long time vivid memories back to his troubled mind. Two hot tears streamed down his cold face and fell on the letterhead paper lying on the table, with so unwelcome news.

***

A middle-aged man was walking along the beach, completely immersed in his thoughts. Those ghosts, who were very well concealed for so long, had decided to come back to mind and haunt him. There were days when he felt more alone than in others and that was definitely one of them. He felt sad and a sense of emptiness seemed to grow within him. At that moment, he was sensiblly charged with memories that made him emotional and somewhat frail, about to surrender to tears, but strong enough to want to stay alive.

Circumstances put people and situations in our way to assess us or to shake our balance up and get us out of our comfort zones. The Universe has its own means and plans, which life itself is unaware of. The beauty of living is exactly the surprises and unpredictability of what happens to us every day. The fisherman knew that life puts us to test, all the time, challenging our limits. It is the way to make us stronger and more tolerant, increasing our resistance to the circumstances. Living is truly a constant exercise of adaptation, endurance and strength. The good thing is that all along the road, we often find people and even animals, moments and occasions that are effectively worth it.


The autumn wind blew fresh, yet mild, against his body and his face framed by an auburn beard, misaligning his light brown hair, which has thinned on top of the head. He stopped, looked at the horizon and felt the urge to get carried away by a silent invitation. Almost instinctively, he undressed and walked into the ocean, without thinking any much. The low temperature of the waters made him feel more alive than long ago. He took a few steps ahead and dove into the chilling sea, allowing his naked body to be completely surrounded by that welcome and cooling sensation...

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Homens do Mar (Epílogo)


A porta destrancada não pareceu bom presságio ao pescador, ainda ressabiado pelo sonho que tivera algumas semanas antes. Ele vestiu o casaco e saiu correndo pela porta afora, num ímpeto desesperado, que nem conseguia distinguir se era protetor ou auto defensivo; um medo de perder ou, ao mesmo tempo, de ficar sozinho...
Quase nem sentia os pés, a pisar, ligeiros, a areia molhada, nem, ao menos, percebia a carga de adrenalina, que circulava veloz em seu corpo, enquanto corria pela praia, sentindo a angústia aumentar, exponencialmente, dentro de si. Em sua mente, só conseguia pensar no pior. E o pior era-lhe mesmo inconcebível, naquele momento.
O dia mal raiara e a brisa fresca, misturada a uma densa névoa, bastante comum naquela época do ano, passavam quase despercebidos pela mente preocupada do homem, cujo olhar, mais atento que seus pés, escrutinava a orla, com extrema e minuciosa atenção. A visibilidade estava comprometida pela pouca luz e pela neblina, mas ele era movido por uma força que o levava a não desistir, enquanto não encontrasse o rapaz.
Mais à frente, viu delinear-se a silhueta conhecida do amigo, sentado sobre o rochedo. Um alívio e uma urgência misturam-se em seu peito e ele correu naquela direção.
- Deste-me um susto enorme, rapaz. Pensei que havia acontecido o pior.
- Eu precisava refletir um pouco sobre tudo o que aconteceu recentemente. Estar aqui dá-me uma sensação de segurança e amplia-me os horizontes. Tento pensar fora da caixa… e não é fácil... Minha vida vai tomar um novo rumo, muito em breve e eu tenho que tomar as decisões mais acertadas.
- Eu percebo. Fomos surpreendidos, não fomos?
- Com certeza. É tudo um pouco fantasioso demais para mim, neste momento e eu tenho que pensar bem no que fazer.
- Sabe? Naquela noite em que tive um sonho estranho, fiquei bastante apreensivo. Sonhei que tentavas cometer suicídio, afogando-te no mar. Não consegui engolir a seco aquela história da testemunha, que viu-te ser assaltado e jogado num carro. Quando vi que a porta estava aberta e não estavas deitado no sofá, só consegui lembrar do meu sonho… ou pesadelo… e pensar que ele tornava-se real. Confesso que tive medo…
- Não tão rápido, amigo... Eu também tive um sonho muito peculiar, naquela mesma noite, como sabes…
O rapaz contou, com detalhes, o sonho que tivera, semanas antes. O pescador achou aquilo bem mais credível que as "evidências" informadas pela Polícia. De uma certa forma, corroborava a presença do homem de fato escuro.
- Será que, de alguma forma, minha memória trouxe de volta aquele facto? Ou foi mesmo muita coincidência?
- Tudo é possível, meu amigo. Tudo é muito possível nessa história. Gostaria que tua memória recuperasse, para acabarmos com este mistério, mas, ao mesmo tempo, tenho receio do que vais lembrar e do que vai acontecer em seguida. Mas tens que ir adiante, não importa o que vais descobrir.
- Não temas. Não vamos deixar de ser amigos, não importa o que eu lembre... Não vou poder desligar minha vida do que aconteceu neste tempo em que estive a conviver nesta ilha. Eu posso ser jovem... bem mais jovem que tu, para dizer a verdade, mas não serei ingrato, nem estúpido.
- Jamais pensaria algo neste sentido. Gosto muito de ti, meu amigo.
O rapaz olhou o homem sentado ao seu lado, no rochedo de frente ao mar e sorriu. Deu uma palmadinha na mão de seu protetor e disse:
- Vamos voltar? Temos muito o que fazer. O mar nos espera...
- Já não precisas ajudar-me nas lides do mar. Sabes disso.
- Mas eu quero… uma vez mais, pelo menos. Amanhã devo voltar ao continente e, a partir de então, não sei o que pode acontecer comigo. Mas é necessário…
***
- Ainda bem que chegaste. Estás pronto? Devemos ir logo...
O homem, vestido de preto e usando uma gravata de seda azul-escura, muito discreta, com um pequeno logotipo impresso, possivelmente da firma onde trabalhava, aparentava estar na casa dos quarenta anos. Era alto e claro, com o corpo de quem passava muitas horas no ginásio, a fazer musculação. Provavelmente também era perito em defesa pessoal ou artes marciais. Não seria surpresa nenhuma que também tivesse uma arma, afinal era o chefe da segurança de uma empresa, cujo filho bastardo do fundador desaparecera misteriosamente, havia já algum tempo, não muito depois de o pai reconhecê-lo como tal.
O Chefe da Segurança havia chegado à ilha, junto com o doutor, no ferry da manhã e, como na semana anterior, viera com um interesse único: levar o rapaz consigo para o continente, para ser submetido a um novo e revolucionário tratamento de recuperação da memória, especialmente criado e desenvolvido para aqueles sujeitos que tiveram-na perdida em estados traumáticos.
Segundo constava, o jovem tinha um Q.I. muito acima da média e uma capacidade sensitiva muito grande, além de um tino excecional para análise de investimentos e imensa habilidade com computadores. Suas aptidões haviam trazido muito lucro aos empresários e investidores. Por essas e outras razões, era interesse da firma investir na recuperação dele e na volta ao mundo dos negócios.
O combinado era o rapaz estar pronto ao fim de uma semana da primeira visita do Segurança.
Ele fora encarregado de identificar o "náufrago", que havia sido reconhecido pelos panfletos que a polícia distribuíra pelo país afora. Trazia documentos e uma série de fotografias, que suportavam a autenticação. Quando o rapaz entrou, acompanhado pelo pescador, ele estava a mostrar as evidências documentais ao médico, que admitia serem muito bem suportadas e incontestáveis.
- Não consigo reconhecer-me nestas fotos. Aquele não sou eu. Ou melhor… já não tem nada a ver comigo. Estive pensando em estudar, formar-me e fazer minha vida. Quero aprender Oceanografia e aprofundar meus conhecimentos de Informática, que parece ser minha expertise. Quero associar os dois campos em uma carreira...
- Deves voltar a trabalhar connosco. Terás tudo o que quiseres, suportado pela firma e pelo teu pai. Ele te espera, ansiosamente. A empresa precisa dos teus serviços... e, o quanto antes, melhor.
- Mas eu não quero voltar à empresa, desta forma... Quero recuperar a memória, sim, mas tenho outros planos. Se a empresa não quiser investir em mim, nestes termos - o que é compreensível - não há problema. Minha vida já não está voltada naquela direção. Eu quero decidir por mim...
- E como vais sustentar esta decisão? Não tens condições financeiras para tal. Nós podemos prover-te de tudo que desejares. Pelo menos até que possas ter o suficiente para suportares uma mudança. Até lá, tens que ter um emprego decente. Não creio que um velho barco de pesca possa ser a tua fonte de sustento. Teu pai jamais te perdoaria...
- Eu não conheço o homem que dizem ser meu pai. Não conheço a empresa. Não conheço nada além do velho barco de pesca... que, afinal, deu-me o que eu tenho agora...  Eu não quero voltar para a vida que eu tinha e da qual nada conheço, nem tenho qualquer lembrança.
- Eu já vi este filme... Antes do teu desaparecimento, já andavas com intenções de deixar a firma. Foi uma decepção muito grande ao teu pai, meu patrão, e um problema para todos nós. Vamos deixar de conversas e vamos embora, antes que o ferry parta e nos deixe aqui.
O homem de preto segurou o braço do rapaz, com firmeza, o que causou uma distinta estranheza aos outros dois homens. O rapaz puxou o braço, com força, libertando-se da mão do outro.
- Não. Se meu pai estivesse, mesmo, preocupado comigo, teria vindo, ele próprio, buscar-me. Não teria mandado um segurança...
O homem ficou lívido. Sabia que tinha uma missão a executar. As consequências do não cumprimento da sua tarefa, ele conhecia muito bem. Adiantou-se, de encontro ao rapaz, que esquivou-se. Ele pôs a mão dentro do paletó e puxou uma pequena pistola, para assombro de todos. 
O rapaz olhou o homem com a arma apontada em sua direção e foi como se um flash passasse pelos seus olhos, trazendo-lhe memórias há muito perdidas.
Ele lembrou-se de estar sendo perseguido pelas ruas da cidade e de esconder-se nas vielas da ribeira. Viu que havia um barco preparando-se para sair do cais, naquele exato momento. Procurou ouvir atentamente os sons próximos de si, para poder tomar uma ação, mesmo tendo que arriscar-se demais. Aquele mesmo homem, vestido de preto, procurava por ele, atentamente e armado com uma pistola, provavelmente, com a intenção única de trazê-lo de volta a qualquer custo e de qualquer forma...
A qualquer custo, ou de qualquer forma, porém, não era sua intenção voltar para qualquer lugar... menos ainda para aquela empresa...
O rapaz manteve os olhos fixos na pistola apontada para si e disse, fingindo uma serenidade que não sentia:
- Agora eu lembro o que aconteceu...
***
- Foi praticamente um milagre minha memória voltar, tão nítida, diante daquela situação de choque. Eu quase paralisei…
- Normalmente, situações em que há uma grande descarga de adrenalina despoletam este tipo de reação. Se ele não tivesse dito que tu não escapavas dele uma segunda vez, apontando aquela arma, daquele jeito, para ti, não teríamos razão para atacá-lo, nem bases para a polícia prendê-lo. Ainda bem que a nossa reação foi rápida, mas ainda tenho a marca da bala que raspou meu braço, quando eu e o doutor corremos e pulamos nele. As más intenções do homem ficaram claras a partir daquele momento.
- Mas podia ter sido muito pior. Vocês podiam ter sido mortos a tiros. Depois que a arma foi tirada da mão dele, foi mais fácil. Ainda lembro das fortes cadeiradas que a matrona deu nas costas do homem, derrubando-o de vez. Arrancar a confissão, depois daquela confusão toda, no meio de um rompante de raiva, quando ele podia negar tudo, se fosse mais esperto, foi sorte nossa... mas estava completamente tomado pela cólera....
- Sim. Tivemos muita sorte. Foi um grande trabalho de equipa. Ele seria capaz de fazer qualquer coisa. Só não contava que tu fosses sobreviver, depois de teres sido golpeado, despido e jogado ao mar. Só não entendi porque ele preferiu bater na tua cabeça e livrar-se do corpo, sem certificar-se que estavas mesmo morto.
- Ele deve ter pensado que a pancada poderia ser mais fácil de explicar, caso o corpo fosse encontrado. Queria que parecesse um infeliz acidente. O toque de mestre foi achar que por estar sem roupas eu seria mais difícil de ser identificado… e tinha certa razão, afinal...
- Felizmente tudo terminou bem, principalmente porque eu te achei na praia, no momento certo. Jamais hesitaria em defender-te de quaisquer perigos que aparecessem. Eu faria tudo outra vez, se precisasse. Podes ter certeza disso.
- Sabes o que penso? Tu és como a chuva: às vezes cai e refresca; às vezes, simplesmente, inunda. Tu és um homem bom. Não me interessa o que fizeste no passado ou o que o teu passado fez contigo. Já viveste teu inferno particular. Tua dívida já foi paga e não tem nada a ver comigo. Não me conhecias e fizeste o impossível para ajudar-me, mesmo sem saber quem eu era. Não tinhas obrigação nenhuma e foste meu melhor mentor e protetor. Foste a única pessoa que realmente importou-se comigo, sem jamais pensar em segundas intenções. Seguiste tão-somente o teu coração e eu sou-te muito grato pelo que fizeste. Minha dívida contigo é eterna.
- Bobagem. Não me deves nada!
O rapaz abraçou o velho mentor e amigo, com verdadeiro afeto e gratidão e falou-lhe, ao ouvido.
- Devo, sim. Devo-te a minha vida!
Por alguma razão inexplicável, aquele abraço causou-lhe um efeito muito peculiar. Sentiu-se leve e cheio de vida, com o coração a pulsar de emoção, como há muito não acontecia...
- Eu já não lembrava que era capaz de sentir este tipo de emoções. Nem sabia que era possível, ainda, sentir, além das minhas necessidades mais básicas, alguma emoção deste género...
- Tu pensas demais. Parece que tens medo de demonstrar sentimentos, como se fosse um sinal de fraqueza. Eu posso ser jovem, ainda, mas posso garantir que só os fortes vivem, verdadeiramente, os seus sentimentos… e não têm vergonha, nem medo disso.
***
Alguns meses depois, o homem do mar recebeu, pelo correio, dois envelopes.
No menor havia uma carta simples, vindo de longe, escrita em uma caligrafia que ele reconheceu logo. As notícias eram confortantes. O rapaz havia conseguido uma bolsa de estudos, depois de algumas tentativas, no curso de Oceanografia. O dinheiro que usara no início, para poder sustentar-se, enquanto fazia os testes de admissão, havia sido muito bem empregado e a carta trazia a promessa da devolução do mesmo ao seu mentor e amigo, num prazo razoável.
O homem sorriu. Havia investido, com o coração, na certeza do sucesso de seu jovem amigo e sentia que já obtivera os lucros de seu empreendimento. Não estava preocupado com o seu dinheiro, na realidade, mas com o progresso que seu protegido vinha alcançando desde que voltara à cidade. A vida havia sido, finalmente, boa para o rapaz, em resposta aos seus esforços e às suas capacidades. 
Ele colocou a carta de lado, ainda sorrindo e direcionou sua atenção ao envelope pardo, maior que o outro, onde havia um logotipo conhecido, impresso no canto esquerdo. Vinha de uma firma conhecida na cidade, cujo nome trazia-lhe algumas lembranças.
Dentro daquele, havia uma mensagem e um relatório de uma firma de advocacia da cidade. Pelo que constava, um inquérito havia sido aberto, para investigar o acidente/incidente da cirurgia da mulher e sua consequente morte, durante o procedimento. Uma nota, no rodapé, revelava a razão da reabertura do processo investigatório. Haviam motivos para crer-se que a morte não fora uma simples e infeliz contingência, visto que algumas testemunhas haviam-no ouvido a discutir com a esposa, no restaurante, durante o jantar, na noite do acidente, a respeito da infidelidade dela. Aparentemente o médico havia saído do local, bastante alterado, emocionalmente. Apesar de já haver cumprido pena por homicídio culposo, ele ainda podia ser condenado, se fosse confirmado o dolo.
O homem pousou o documento na mesa. Uma tristeza profunda comprimiu-lhe o peito, como se fosse uma camisa de força, amarrada com eficaz crueldade, tolhendo-lhe os movimentos da alma. A ventania e a chuva fina a cair lá fora, naquele dia tão cinzento e quase friorento demais, só aumentaram sua melancolia e trouxeram vívidas lembranças, adormecidas há bastante tempo. Duas lágrimas quentes escorreram-lhe pela face fria e caíram sobre o papel timbrado que jazia sobre a mesa, com notícias tão pouco bem-vindas.
***
Um homem de meia-idade caminhava pela praia, completamente absorto em seus pensamentos. Aqueles fantasmas, que estavam muito bem escondidos, resolviam, vez em quando, manifestar-se e atormentá-lo. Havia dias em que sentia-se mais só que nos outros e aquele era, definitivamente, um deles. Sentia-se triste e uma sensação de vazio parecia aumentar dentro de si. Naquele momento, ele era, apenas, uma carga emocional de lembranças, que faziam-no sentimental e um tanto fragilizado, a ponto de render-se ao choro, mas forte o suficiente para querer manter-se vivo. 
As circunstâncias colocam pessoas e situações em nossos caminhos, para testar-nos, às vezes, ou para chacoalhar nossos equilíbrios e tirar-nos de nossas zonas de conforto. O Universo tem seus próprios meios e seus planos, que a própria vida desconhece. A beleza do viver está, exatamente, nas surpresas e na imprevisibilidade do que nos acontece dia após dia. O pescador sabia que a vida nos põe à prova, todo o tempo, testando nossos limites. É a forma de tornar-nos mais fortes e tolerantes, aumentando nossa resistência às circunstâncias. Viver é, verdadeiramente, uma prova constante de adaptação e resistência. A parte boa é que, muitas vezes, no percorrer do longo caminho, encontra-se pessoas, animais, momentos e ocasiões que, real e efetivamente valem toda a pena.

O vento de outono soprava, ainda ameno, contra seu corpo e seu rosto arredondado, emoldurado pela barba castanho-avermelhada, desalinhando mais ainda os cabelos castanho-claros, que já rareavam no topo da cabeça. Apesar de não estar frio, ele sentia que o inverno estava próximo. Olhou o mar e sentiu o ímpeto de deixar-se levar por um convite silencioso. Despiu-se e entrou na água fria, sem pensar muito. A baixa temperatura da água fê-lo sentir-se mais vivo que há muito tempo atrás. Olhou para o horizonte, deu mais uns passos e mergulhou, sentindo a água fresca a envolver-lhe, completamente, o corpo nu…