A porta destrancada não pareceu bom presságio ao pescador, ainda ressabiado pelo sonho que tivera algumas semanas antes. Ele vestiu o casaco e saiu correndo pela porta afora, num ímpeto desesperado, que nem conseguia distinguir se era protetor ou auto defensivo; um medo de perder ou, ao mesmo tempo, de ficar sozinho...
Quase nem sentia os pés, a pisar, ligeiros, a areia
molhada, nem, ao menos, percebia a carga de adrenalina, que circulava veloz em
seu corpo, enquanto corria pela praia, sentindo a angústia aumentar,
exponencialmente, dentro de si. Em sua mente, só conseguia pensar no pior. E o
pior era-lhe mesmo inconcebível, naquele momento.
O dia mal raiara e a brisa fresca, misturada a uma densa
névoa, bastante comum naquela época do ano, passavam quase despercebidos pela
mente preocupada do homem, cujo olhar, mais atento que seus pés, escrutinava a
orla, com extrema e minuciosa atenção. A visibilidade estava comprometida pela
pouca luz e pela neblina, mas ele era movido por uma força que o levava a não
desistir, enquanto não encontrasse o rapaz.
Mais à frente, viu delinear-se a silhueta conhecida do
amigo, sentado sobre o rochedo. Um alívio e uma urgência misturam-se em seu
peito e ele correu naquela direção.
- Deste-me um susto enorme, rapaz. Pensei que havia acontecido o pior.
- Eu precisava refletir um pouco sobre tudo o que aconteceu recentemente.
Estar aqui dá-me uma sensação de segurança e amplia-me os horizontes. Tento
pensar fora da caixa… e não é fácil... Minha vida vai tomar um novo rumo, muito
em breve e eu tenho que tomar as decisões mais acertadas.
- Eu percebo. Fomos surpreendidos, não fomos?
- Com certeza. É tudo um pouco fantasioso demais para mim, neste momento e
eu tenho que pensar bem no que fazer.
- Sabe? Naquela noite em que tive um sonho estranho, fiquei bastante
apreensivo. Sonhei que tentavas cometer suicídio, afogando-te no mar. Não
consegui engolir a seco aquela história da testemunha, que viu-te ser assaltado
e jogado num carro. Quando vi que a porta estava aberta e não estavas deitado
no sofá, só consegui lembrar do meu sonho… ou pesadelo… e pensar que ele
tornava-se real. Confesso que tive medo…
- Não tão rápido, amigo... Eu também tive um sonho muito peculiar, naquela
mesma noite, como sabes…
O rapaz contou, com detalhes, o sonho que tivera,
semanas antes. O pescador achou aquilo bem mais credível que as
"evidências" informadas pela Polícia. De uma certa forma, corroborava
a presença do homem de fato escuro.
- Será que, de alguma forma, minha memória trouxe de volta aquele facto? Ou
foi mesmo muita coincidência?
- Tudo é possível, meu amigo. Tudo é muito possível nessa história.
Gostaria que tua memória recuperasse, para acabarmos com este mistério, mas, ao
mesmo tempo, tenho receio do que vais lembrar e do que vai acontecer em
seguida. Mas tens que ir adiante, não importa o que vais descobrir.
- Não temas. Não vamos deixar de ser amigos, não importa o que eu lembre...
Não vou poder desligar minha vida do que aconteceu neste tempo em que estive a
conviver nesta ilha. Eu posso ser jovem... bem mais jovem que tu, para dizer a
verdade, mas não serei ingrato, nem estúpido.
- Jamais pensaria algo neste sentido. Gosto muito de ti, meu amigo.
O rapaz olhou o homem sentado ao seu lado, no rochedo
de frente ao mar e sorriu. Deu uma palmadinha na mão de seu protetor e disse:
- Vamos voltar? Temos muito o que fazer. O mar nos espera...
- Já não precisas ajudar-me nas lides do mar. Sabes disso.
- Mas eu quero… uma vez mais, pelo menos. Amanhã devo voltar ao continente
e, a partir de então, não sei o que pode acontecer comigo. Mas é necessário…
***
- Ainda bem que chegaste. Estás pronto? Devemos ir logo...
O homem, vestido de preto e usando uma gravata de seda
azul-escura, muito discreta, com um pequeno logotipo impresso, possivelmente da
firma onde trabalhava, aparentava estar na casa dos quarenta anos. Era alto e
claro, com o corpo de quem passava muitas horas no ginásio, a fazer musculação.
Provavelmente também era perito em defesa pessoal ou artes marciais. Não seria
surpresa nenhuma que também tivesse uma arma, afinal era o chefe da segurança
de uma empresa, cujo filho bastardo do fundador desaparecera misteriosamente,
havia já algum tempo, não muito depois de o pai reconhecê-lo como tal.
O Chefe da Segurança havia chegado à ilha, junto com o
doutor, no ferry da manhã e, como na semana anterior, viera com um interesse
único: levar o rapaz consigo para o continente, para ser submetido a um novo e
revolucionário tratamento de recuperação da memória, especialmente criado e
desenvolvido para aqueles sujeitos que tiveram-na perdida em estados traumáticos.
Segundo constava, o jovem tinha um Q.I. muito acima da
média e uma capacidade sensitiva muito grande, além de um tino excecional para análise
de investimentos e imensa habilidade com computadores. Suas aptidões haviam
trazido muito lucro aos empresários e investidores. Por essas e outras razões,
era interesse da firma investir na recuperação dele e na volta ao mundo dos
negócios.
O combinado era o rapaz estar pronto ao fim de uma
semana da primeira visita do Segurança.
Ele fora encarregado de identificar o "náufrago",
que havia sido reconhecido pelos panfletos que a polícia distribuíra pelo país
afora. Trazia documentos e uma série de fotografias, que suportavam a autenticação.
Quando o rapaz entrou, acompanhado pelo pescador, ele estava a mostrar as
evidências documentais ao médico, que admitia serem muito bem suportadas e
incontestáveis.
- Não consigo reconhecer-me nestas fotos. Aquele não sou eu. Ou melhor… já
não tem nada a ver comigo. Estive pensando em estudar, formar-me e fazer minha
vida. Quero aprender Oceanografia e aprofundar meus conhecimentos de Informática,
que parece ser minha expertise. Quero associar os dois campos em uma
carreira...
- Deves voltar a trabalhar connosco. Terás tudo o que quiseres, suportado
pela firma e pelo teu pai. Ele te espera, ansiosamente. A empresa precisa dos
teus serviços... e, o quanto antes, melhor.
- Mas eu não quero voltar à empresa, desta forma... Quero recuperar a
memória, sim, mas tenho outros planos. Se a empresa não quiser investir em mim,
nestes termos - o que é compreensível - não há problema. Minha vida já não está
voltada naquela direção. Eu quero decidir por mim...
- E como vais sustentar esta decisão? Não tens condições financeiras para tal.
Nós podemos prover-te de tudo que desejares. Pelo menos até que possas ter o
suficiente para suportares uma mudança. Até lá, tens que ter um emprego
decente. Não creio que um velho barco de pesca possa ser a tua fonte de
sustento. Teu pai jamais te perdoaria...
- Eu não conheço o homem que dizem ser meu pai. Não conheço a empresa. Não
conheço nada além do velho barco de pesca... que, afinal, deu-me o que eu tenho
agora... Eu não quero voltar para a vida
que eu tinha e da qual nada conheço, nem tenho qualquer lembrança.
- Eu já vi este filme... Antes do teu desaparecimento, já andavas com
intenções de deixar a firma. Foi uma decepção muito grande ao teu pai, meu
patrão, e um problema para todos nós. Vamos deixar de conversas e vamos embora,
antes que o ferry parta e nos deixe aqui.
O homem de preto segurou o braço do rapaz, com
firmeza, o que causou uma distinta estranheza aos outros dois homens. O rapaz
puxou o braço, com força, libertando-se da mão do outro.
- Não. Se meu pai estivesse, mesmo, preocupado comigo, teria vindo, ele
próprio, buscar-me. Não teria mandado um segurança...
O homem ficou lívido. Sabia que tinha uma missão a executar.
As consequências do não cumprimento da sua tarefa, ele conhecia muito bem. Adiantou-se,
de encontro ao rapaz, que esquivou-se. Ele pôs a mão dentro do paletó e puxou
uma pequena pistola, para assombro de todos.
O rapaz olhou o homem com a arma apontada em sua
direção e foi como se um flash passasse
pelos seus olhos, trazendo-lhe memórias há muito perdidas.
Ele lembrou-se de estar sendo perseguido pelas ruas da
cidade e de esconder-se nas vielas da ribeira. Viu que havia um barco preparando-se
para sair do cais, naquele exato momento. Procurou ouvir atentamente os sons
próximos de si, para poder tomar uma ação, mesmo tendo que arriscar-se demais. Aquele mesmo
homem, vestido de preto, procurava por ele, atentamente e armado com uma
pistola, provavelmente, com a intenção única de trazê-lo de volta a qualquer
custo e de qualquer forma...
A qualquer custo, ou de qualquer forma, porém, não era
sua intenção voltar para qualquer lugar... menos ainda para aquela empresa...
O rapaz manteve os olhos fixos na pistola apontada para
si e disse, fingindo uma serenidade que não sentia:
- Agora eu lembro o que aconteceu...
***
- Foi praticamente um milagre minha memória voltar, tão nítida, diante
daquela situação de choque. Eu quase paralisei…
- Normalmente, situações em que há uma grande descarga de adrenalina despoletam
este tipo de reação. Se ele não tivesse dito que tu não escapavas dele uma
segunda vez, apontando aquela arma, daquele jeito, para ti, não teríamos razão
para atacá-lo, nem bases para a polícia prendê-lo. Ainda bem que a nossa reação
foi rápida, mas ainda tenho a marca da bala que raspou meu braço, quando eu e o
doutor corremos e pulamos nele. As más intenções do homem ficaram claras a
partir daquele momento.
- Mas podia ter sido muito pior. Vocês podiam ter sido mortos a tiros.
Depois que a arma foi tirada da mão dele, foi mais fácil. Ainda lembro das fortes
cadeiradas que a matrona deu nas costas do homem, derrubando-o de vez. Arrancar
a confissão, depois daquela confusão toda, no meio de um rompante de raiva, quando
ele podia negar tudo, se fosse mais esperto, foi sorte nossa... mas estava completamente
tomado pela cólera....
- Sim. Tivemos muita sorte. Foi um grande trabalho de equipa. Ele seria
capaz de fazer qualquer coisa. Só não contava que tu fosses sobreviver, depois
de teres sido golpeado, despido e jogado ao mar. Só não entendi porque ele
preferiu bater na tua cabeça e livrar-se do corpo, sem certificar-se que
estavas mesmo morto.
- Ele deve ter pensado que a pancada poderia ser mais fácil de explicar,
caso o corpo fosse encontrado. Queria que parecesse um infeliz acidente. O toque de
mestre foi achar que por estar sem roupas eu seria mais difícil de ser
identificado… e tinha certa razão, afinal...
- Felizmente tudo terminou bem, principalmente porque eu te achei na praia, no momento certo. Jamais hesitaria em defender-te de quaisquer perigos que aparecessem. Eu faria tudo outra vez, se precisasse. Podes ter
certeza disso.
- Sabes o que penso? Tu és como a chuva: às vezes cai e refresca; às vezes,
simplesmente, inunda. Tu és um homem bom. Não me interessa o que fizeste no
passado ou o que o teu passado fez contigo. Já viveste teu inferno particular.
Tua dívida já foi paga e não tem nada a ver comigo. Não me conhecias e fizeste
o impossível para ajudar-me, mesmo sem saber quem eu era. Não tinhas obrigação
nenhuma e foste meu melhor mentor e protetor. Foste a única pessoa que
realmente importou-se comigo, sem jamais pensar em segundas intenções. Seguiste
tão-somente o teu coração e eu sou-te muito grato pelo que fizeste. Minha
dívida contigo é eterna.
- Bobagem. Não me deves nada!
O rapaz abraçou o velho mentor e amigo, com verdadeiro
afeto e gratidão e falou-lhe, ao ouvido.
- Devo, sim. Devo-te a minha vida!
Por alguma razão inexplicável, aquele abraço
causou-lhe um efeito muito peculiar. Sentiu-se leve e cheio de vida, com o
coração a pulsar de emoção, como há muito não acontecia...
- Eu já não lembrava que era capaz de sentir este tipo de emoções. Nem sabia
que era possível, ainda, sentir, além das minhas necessidades mais básicas,
alguma emoção deste género...
- Tu pensas demais. Parece que tens medo de demonstrar sentimentos, como se
fosse um sinal de fraqueza. Eu posso ser jovem, ainda, mas posso garantir que
só os fortes vivem, verdadeiramente, os seus sentimentos… e não têm vergonha,
nem medo disso.
***
Alguns meses depois, o homem do mar recebeu, pelo
correio, dois envelopes.
No menor havia uma carta simples, vindo de longe, escrita
em uma caligrafia que ele reconheceu logo. As notícias eram confortantes. O
rapaz havia conseguido uma bolsa de estudos, depois de algumas tentativas, no
curso de Oceanografia. O dinheiro que usara no início, para poder sustentar-se,
enquanto fazia os testes de admissão, havia sido muito bem empregado e a carta
trazia a promessa da devolução do mesmo ao seu mentor e amigo, num prazo
razoável.
O homem sorriu. Havia investido, com o coração, na
certeza do sucesso de seu jovem amigo e sentia que já obtivera os lucros de seu
empreendimento. Não estava preocupado com o seu dinheiro, na realidade, mas com
o progresso que seu protegido vinha alcançando desde que voltara à cidade. A
vida havia sido, finalmente, boa para o rapaz, em resposta aos seus esforços e
às suas capacidades.
Ele colocou a carta de lado, ainda sorrindo e
direcionou sua atenção ao envelope pardo, maior que o outro, onde havia um
logotipo conhecido, impresso no canto esquerdo. Vinha de uma firma conhecida na
cidade, cujo nome trazia-lhe algumas lembranças.
Dentro daquele, havia uma mensagem e um relatório de
uma firma de advocacia da cidade. Pelo que constava, um inquérito havia sido
aberto, para investigar o acidente/incidente da cirurgia da mulher e sua
consequente morte, durante o procedimento. Uma nota, no rodapé, revelava a
razão da reabertura do processo investigatório. Haviam motivos para crer-se que
a morte não fora uma simples e infeliz contingência, visto que algumas
testemunhas haviam-no ouvido a discutir com a esposa, no restaurante, durante o
jantar, na noite do acidente, a respeito da infidelidade dela. Aparentemente o
médico havia saído do local, bastante alterado, emocionalmente. Apesar de já haver
cumprido pena por homicídio culposo, ele ainda podia ser condenado, se fosse
confirmado o dolo.
O homem pousou o documento na mesa. Uma tristeza
profunda comprimiu-lhe o peito, como se fosse uma camisa de força, amarrada com
eficaz crueldade, tolhendo-lhe os movimentos da alma. A ventania e a chuva fina
a cair lá fora, naquele dia tão cinzento e quase friorento demais, só
aumentaram sua melancolia e trouxeram vívidas lembranças, adormecidas há
bastante tempo. Duas lágrimas quentes escorreram-lhe pela face fria e caíram
sobre o papel timbrado que jazia sobre a mesa, com notícias tão pouco
bem-vindas.
***
Um homem de meia-idade caminhava pela praia,
completamente absorto em seus pensamentos. Aqueles fantasmas, que estavam muito
bem escondidos, resolviam, vez em quando, manifestar-se e atormentá-lo. Havia
dias em que sentia-se mais só que nos outros e aquele era, definitivamente, um
deles. Sentia-se triste e uma sensação de vazio parecia aumentar dentro de si.
Naquele momento, ele era, apenas, uma carga emocional de lembranças, que
faziam-no sentimental e um tanto fragilizado, a ponto de render-se ao choro,
mas forte o suficiente para querer manter-se vivo.
As circunstâncias colocam
pessoas e situações em nossos caminhos, para testar-nos, às vezes, ou para chacoalhar
nossos equilíbrios e tirar-nos de nossas zonas de conforto. O Universo tem seus
próprios meios e seus planos, que a própria vida desconhece. A beleza do viver
está, exatamente, nas surpresas e na imprevisibilidade do que nos acontece dia
após dia. O pescador sabia que a vida nos põe à prova, todo o tempo, testando
nossos limites. É a forma de tornar-nos mais fortes e tolerantes, aumentando
nossa resistência às circunstâncias. Viver é, verdadeiramente, uma prova
constante de adaptação e resistência. A parte boa é que, muitas vezes, no
percorrer do longo caminho, encontra-se pessoas, animais, momentos e ocasiões
que, real e efetivamente valem toda a pena.
O vento de outono soprava, ainda ameno, contra seu
corpo e seu rosto arredondado, emoldurado pela barba castanho-avermelhada,
desalinhando mais ainda os cabelos castanho-claros, que já rareavam no topo da
cabeça. Apesar de não estar frio, ele sentia que o inverno estava próximo.
Olhou o mar e sentiu o ímpeto de deixar-se levar por um convite silencioso.
Despiu-se e entrou na água fria, sem pensar muito. A baixa temperatura da água
fê-lo sentir-se mais vivo que há muito tempo atrás. Olhou para o horizonte, deu
mais uns passos e mergulhou, sentindo a água fresca a envolver-lhe, completamente,
o corpo nu…
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