quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Homens do Mar (Epílogo)


A porta destrancada não pareceu bom presságio ao pescador, ainda ressabiado pelo sonho que tivera algumas semanas antes. Ele vestiu o casaco e saiu correndo pela porta afora, num ímpeto desesperado, que nem conseguia distinguir se era protetor ou auto defensivo; um medo de perder ou, ao mesmo tempo, de ficar sozinho...
Quase nem sentia os pés, a pisar, ligeiros, a areia molhada, nem, ao menos, percebia a carga de adrenalina, que circulava veloz em seu corpo, enquanto corria pela praia, sentindo a angústia aumentar, exponencialmente, dentro de si. Em sua mente, só conseguia pensar no pior. E o pior era-lhe mesmo inconcebível, naquele momento.
O dia mal raiara e a brisa fresca, misturada a uma densa névoa, bastante comum naquela época do ano, passavam quase despercebidos pela mente preocupada do homem, cujo olhar, mais atento que seus pés, escrutinava a orla, com extrema e minuciosa atenção. A visibilidade estava comprometida pela pouca luz e pela neblina, mas ele era movido por uma força que o levava a não desistir, enquanto não encontrasse o rapaz.
Mais à frente, viu delinear-se a silhueta conhecida do amigo, sentado sobre o rochedo. Um alívio e uma urgência misturam-se em seu peito e ele correu naquela direção.
- Deste-me um susto enorme, rapaz. Pensei que havia acontecido o pior.
- Eu precisava refletir um pouco sobre tudo o que aconteceu recentemente. Estar aqui dá-me uma sensação de segurança e amplia-me os horizontes. Tento pensar fora da caixa… e não é fácil... Minha vida vai tomar um novo rumo, muito em breve e eu tenho que tomar as decisões mais acertadas.
- Eu percebo. Fomos surpreendidos, não fomos?
- Com certeza. É tudo um pouco fantasioso demais para mim, neste momento e eu tenho que pensar bem no que fazer.
- Sabe? Naquela noite em que tive um sonho estranho, fiquei bastante apreensivo. Sonhei que tentavas cometer suicídio, afogando-te no mar. Não consegui engolir a seco aquela história da testemunha, que viu-te ser assaltado e jogado num carro. Quando vi que a porta estava aberta e não estavas deitado no sofá, só consegui lembrar do meu sonho… ou pesadelo… e pensar que ele tornava-se real. Confesso que tive medo…
- Não tão rápido, amigo... Eu também tive um sonho muito peculiar, naquela mesma noite, como sabes…
O rapaz contou, com detalhes, o sonho que tivera, semanas antes. O pescador achou aquilo bem mais credível que as "evidências" informadas pela Polícia. De uma certa forma, corroborava a presença do homem de fato escuro.
- Será que, de alguma forma, minha memória trouxe de volta aquele facto? Ou foi mesmo muita coincidência?
- Tudo é possível, meu amigo. Tudo é muito possível nessa história. Gostaria que tua memória recuperasse, para acabarmos com este mistério, mas, ao mesmo tempo, tenho receio do que vais lembrar e do que vai acontecer em seguida. Mas tens que ir adiante, não importa o que vais descobrir.
- Não temas. Não vamos deixar de ser amigos, não importa o que eu lembre... Não vou poder desligar minha vida do que aconteceu neste tempo em que estive a conviver nesta ilha. Eu posso ser jovem... bem mais jovem que tu, para dizer a verdade, mas não serei ingrato, nem estúpido.
- Jamais pensaria algo neste sentido. Gosto muito de ti, meu amigo.
O rapaz olhou o homem sentado ao seu lado, no rochedo de frente ao mar e sorriu. Deu uma palmadinha na mão de seu protetor e disse:
- Vamos voltar? Temos muito o que fazer. O mar nos espera...
- Já não precisas ajudar-me nas lides do mar. Sabes disso.
- Mas eu quero… uma vez mais, pelo menos. Amanhã devo voltar ao continente e, a partir de então, não sei o que pode acontecer comigo. Mas é necessário…
***
- Ainda bem que chegaste. Estás pronto? Devemos ir logo...
O homem, vestido de preto e usando uma gravata de seda azul-escura, muito discreta, com um pequeno logotipo impresso, possivelmente da firma onde trabalhava, aparentava estar na casa dos quarenta anos. Era alto e claro, com o corpo de quem passava muitas horas no ginásio, a fazer musculação. Provavelmente também era perito em defesa pessoal ou artes marciais. Não seria surpresa nenhuma que também tivesse uma arma, afinal era o chefe da segurança de uma empresa, cujo filho bastardo do fundador desaparecera misteriosamente, havia já algum tempo, não muito depois de o pai reconhecê-lo como tal.
O Chefe da Segurança havia chegado à ilha, junto com o doutor, no ferry da manhã e, como na semana anterior, viera com um interesse único: levar o rapaz consigo para o continente, para ser submetido a um novo e revolucionário tratamento de recuperação da memória, especialmente criado e desenvolvido para aqueles sujeitos que tiveram-na perdida em estados traumáticos.
Segundo constava, o jovem tinha um Q.I. muito acima da média e uma capacidade sensitiva muito grande, além de um tino excecional para análise de investimentos e imensa habilidade com computadores. Suas aptidões haviam trazido muito lucro aos empresários e investidores. Por essas e outras razões, era interesse da firma investir na recuperação dele e na volta ao mundo dos negócios.
O combinado era o rapaz estar pronto ao fim de uma semana da primeira visita do Segurança.
Ele fora encarregado de identificar o "náufrago", que havia sido reconhecido pelos panfletos que a polícia distribuíra pelo país afora. Trazia documentos e uma série de fotografias, que suportavam a autenticação. Quando o rapaz entrou, acompanhado pelo pescador, ele estava a mostrar as evidências documentais ao médico, que admitia serem muito bem suportadas e incontestáveis.
- Não consigo reconhecer-me nestas fotos. Aquele não sou eu. Ou melhor… já não tem nada a ver comigo. Estive pensando em estudar, formar-me e fazer minha vida. Quero aprender Oceanografia e aprofundar meus conhecimentos de Informática, que parece ser minha expertise. Quero associar os dois campos em uma carreira...
- Deves voltar a trabalhar connosco. Terás tudo o que quiseres, suportado pela firma e pelo teu pai. Ele te espera, ansiosamente. A empresa precisa dos teus serviços... e, o quanto antes, melhor.
- Mas eu não quero voltar à empresa, desta forma... Quero recuperar a memória, sim, mas tenho outros planos. Se a empresa não quiser investir em mim, nestes termos - o que é compreensível - não há problema. Minha vida já não está voltada naquela direção. Eu quero decidir por mim...
- E como vais sustentar esta decisão? Não tens condições financeiras para tal. Nós podemos prover-te de tudo que desejares. Pelo menos até que possas ter o suficiente para suportares uma mudança. Até lá, tens que ter um emprego decente. Não creio que um velho barco de pesca possa ser a tua fonte de sustento. Teu pai jamais te perdoaria...
- Eu não conheço o homem que dizem ser meu pai. Não conheço a empresa. Não conheço nada além do velho barco de pesca... que, afinal, deu-me o que eu tenho agora...  Eu não quero voltar para a vida que eu tinha e da qual nada conheço, nem tenho qualquer lembrança.
- Eu já vi este filme... Antes do teu desaparecimento, já andavas com intenções de deixar a firma. Foi uma decepção muito grande ao teu pai, meu patrão, e um problema para todos nós. Vamos deixar de conversas e vamos embora, antes que o ferry parta e nos deixe aqui.
O homem de preto segurou o braço do rapaz, com firmeza, o que causou uma distinta estranheza aos outros dois homens. O rapaz puxou o braço, com força, libertando-se da mão do outro.
- Não. Se meu pai estivesse, mesmo, preocupado comigo, teria vindo, ele próprio, buscar-me. Não teria mandado um segurança...
O homem ficou lívido. Sabia que tinha uma missão a executar. As consequências do não cumprimento da sua tarefa, ele conhecia muito bem. Adiantou-se, de encontro ao rapaz, que esquivou-se. Ele pôs a mão dentro do paletó e puxou uma pequena pistola, para assombro de todos. 
O rapaz olhou o homem com a arma apontada em sua direção e foi como se um flash passasse pelos seus olhos, trazendo-lhe memórias há muito perdidas.
Ele lembrou-se de estar sendo perseguido pelas ruas da cidade e de esconder-se nas vielas da ribeira. Viu que havia um barco preparando-se para sair do cais, naquele exato momento. Procurou ouvir atentamente os sons próximos de si, para poder tomar uma ação, mesmo tendo que arriscar-se demais. Aquele mesmo homem, vestido de preto, procurava por ele, atentamente e armado com uma pistola, provavelmente, com a intenção única de trazê-lo de volta a qualquer custo e de qualquer forma...
A qualquer custo, ou de qualquer forma, porém, não era sua intenção voltar para qualquer lugar... menos ainda para aquela empresa...
O rapaz manteve os olhos fixos na pistola apontada para si e disse, fingindo uma serenidade que não sentia:
- Agora eu lembro o que aconteceu...
***
- Foi praticamente um milagre minha memória voltar, tão nítida, diante daquela situação de choque. Eu quase paralisei…
- Normalmente, situações em que há uma grande descarga de adrenalina despoletam este tipo de reação. Se ele não tivesse dito que tu não escapavas dele uma segunda vez, apontando aquela arma, daquele jeito, para ti, não teríamos razão para atacá-lo, nem bases para a polícia prendê-lo. Ainda bem que a nossa reação foi rápida, mas ainda tenho a marca da bala que raspou meu braço, quando eu e o doutor corremos e pulamos nele. As más intenções do homem ficaram claras a partir daquele momento.
- Mas podia ter sido muito pior. Vocês podiam ter sido mortos a tiros. Depois que a arma foi tirada da mão dele, foi mais fácil. Ainda lembro das fortes cadeiradas que a matrona deu nas costas do homem, derrubando-o de vez. Arrancar a confissão, depois daquela confusão toda, no meio de um rompante de raiva, quando ele podia negar tudo, se fosse mais esperto, foi sorte nossa... mas estava completamente tomado pela cólera....
- Sim. Tivemos muita sorte. Foi um grande trabalho de equipa. Ele seria capaz de fazer qualquer coisa. Só não contava que tu fosses sobreviver, depois de teres sido golpeado, despido e jogado ao mar. Só não entendi porque ele preferiu bater na tua cabeça e livrar-se do corpo, sem certificar-se que estavas mesmo morto.
- Ele deve ter pensado que a pancada poderia ser mais fácil de explicar, caso o corpo fosse encontrado. Queria que parecesse um infeliz acidente. O toque de mestre foi achar que por estar sem roupas eu seria mais difícil de ser identificado… e tinha certa razão, afinal...
- Felizmente tudo terminou bem, principalmente porque eu te achei na praia, no momento certo. Jamais hesitaria em defender-te de quaisquer perigos que aparecessem. Eu faria tudo outra vez, se precisasse. Podes ter certeza disso.
- Sabes o que penso? Tu és como a chuva: às vezes cai e refresca; às vezes, simplesmente, inunda. Tu és um homem bom. Não me interessa o que fizeste no passado ou o que o teu passado fez contigo. Já viveste teu inferno particular. Tua dívida já foi paga e não tem nada a ver comigo. Não me conhecias e fizeste o impossível para ajudar-me, mesmo sem saber quem eu era. Não tinhas obrigação nenhuma e foste meu melhor mentor e protetor. Foste a única pessoa que realmente importou-se comigo, sem jamais pensar em segundas intenções. Seguiste tão-somente o teu coração e eu sou-te muito grato pelo que fizeste. Minha dívida contigo é eterna.
- Bobagem. Não me deves nada!
O rapaz abraçou o velho mentor e amigo, com verdadeiro afeto e gratidão e falou-lhe, ao ouvido.
- Devo, sim. Devo-te a minha vida!
Por alguma razão inexplicável, aquele abraço causou-lhe um efeito muito peculiar. Sentiu-se leve e cheio de vida, com o coração a pulsar de emoção, como há muito não acontecia...
- Eu já não lembrava que era capaz de sentir este tipo de emoções. Nem sabia que era possível, ainda, sentir, além das minhas necessidades mais básicas, alguma emoção deste género...
- Tu pensas demais. Parece que tens medo de demonstrar sentimentos, como se fosse um sinal de fraqueza. Eu posso ser jovem, ainda, mas posso garantir que só os fortes vivem, verdadeiramente, os seus sentimentos… e não têm vergonha, nem medo disso.
***
Alguns meses depois, o homem do mar recebeu, pelo correio, dois envelopes.
No menor havia uma carta simples, vindo de longe, escrita em uma caligrafia que ele reconheceu logo. As notícias eram confortantes. O rapaz havia conseguido uma bolsa de estudos, depois de algumas tentativas, no curso de Oceanografia. O dinheiro que usara no início, para poder sustentar-se, enquanto fazia os testes de admissão, havia sido muito bem empregado e a carta trazia a promessa da devolução do mesmo ao seu mentor e amigo, num prazo razoável.
O homem sorriu. Havia investido, com o coração, na certeza do sucesso de seu jovem amigo e sentia que já obtivera os lucros de seu empreendimento. Não estava preocupado com o seu dinheiro, na realidade, mas com o progresso que seu protegido vinha alcançando desde que voltara à cidade. A vida havia sido, finalmente, boa para o rapaz, em resposta aos seus esforços e às suas capacidades. 
Ele colocou a carta de lado, ainda sorrindo e direcionou sua atenção ao envelope pardo, maior que o outro, onde havia um logotipo conhecido, impresso no canto esquerdo. Vinha de uma firma conhecida na cidade, cujo nome trazia-lhe algumas lembranças.
Dentro daquele, havia uma mensagem e um relatório de uma firma de advocacia da cidade. Pelo que constava, um inquérito havia sido aberto, para investigar o acidente/incidente da cirurgia da mulher e sua consequente morte, durante o procedimento. Uma nota, no rodapé, revelava a razão da reabertura do processo investigatório. Haviam motivos para crer-se que a morte não fora uma simples e infeliz contingência, visto que algumas testemunhas haviam-no ouvido a discutir com a esposa, no restaurante, durante o jantar, na noite do acidente, a respeito da infidelidade dela. Aparentemente o médico havia saído do local, bastante alterado, emocionalmente. Apesar de já haver cumprido pena por homicídio culposo, ele ainda podia ser condenado, se fosse confirmado o dolo.
O homem pousou o documento na mesa. Uma tristeza profunda comprimiu-lhe o peito, como se fosse uma camisa de força, amarrada com eficaz crueldade, tolhendo-lhe os movimentos da alma. A ventania e a chuva fina a cair lá fora, naquele dia tão cinzento e quase friorento demais, só aumentaram sua melancolia e trouxeram vívidas lembranças, adormecidas há bastante tempo. Duas lágrimas quentes escorreram-lhe pela face fria e caíram sobre o papel timbrado que jazia sobre a mesa, com notícias tão pouco bem-vindas.
***
Um homem de meia-idade caminhava pela praia, completamente absorto em seus pensamentos. Aqueles fantasmas, que estavam muito bem escondidos, resolviam, vez em quando, manifestar-se e atormentá-lo. Havia dias em que sentia-se mais só que nos outros e aquele era, definitivamente, um deles. Sentia-se triste e uma sensação de vazio parecia aumentar dentro de si. Naquele momento, ele era, apenas, uma carga emocional de lembranças, que faziam-no sentimental e um tanto fragilizado, a ponto de render-se ao choro, mas forte o suficiente para querer manter-se vivo. 
As circunstâncias colocam pessoas e situações em nossos caminhos, para testar-nos, às vezes, ou para chacoalhar nossos equilíbrios e tirar-nos de nossas zonas de conforto. O Universo tem seus próprios meios e seus planos, que a própria vida desconhece. A beleza do viver está, exatamente, nas surpresas e na imprevisibilidade do que nos acontece dia após dia. O pescador sabia que a vida nos põe à prova, todo o tempo, testando nossos limites. É a forma de tornar-nos mais fortes e tolerantes, aumentando nossa resistência às circunstâncias. Viver é, verdadeiramente, uma prova constante de adaptação e resistência. A parte boa é que, muitas vezes, no percorrer do longo caminho, encontra-se pessoas, animais, momentos e ocasiões que, real e efetivamente valem toda a pena.

O vento de outono soprava, ainda ameno, contra seu corpo e seu rosto arredondado, emoldurado pela barba castanho-avermelhada, desalinhando mais ainda os cabelos castanho-claros, que já rareavam no topo da cabeça. Apesar de não estar frio, ele sentia que o inverno estava próximo. Olhou o mar e sentiu o ímpeto de deixar-se levar por um convite silencioso. Despiu-se e entrou na água fria, sem pensar muito. A baixa temperatura da água fê-lo sentir-se mais vivo que há muito tempo atrás. Olhou para o horizonte, deu mais uns passos e mergulhou, sentindo a água fresca a envolver-lhe, completamente, o corpo nu…

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