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sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Um Animal de Sorte



Eu, decididamente, não gosto de viajar de carro. Não gosto de ficar preso dentro de uma caixa de transporte, mesmo que seja por uns poucos instantes e para minha própria segurança. Sei que é necessário e, provavelmente, ainda não acharam uma forma melhor, mas eu, simplesmente, abomino aquelas experiências.

No dia em que eu fui transportado para fora da casa de onde estava, temporariamente, depois de haver sido recolhido da rua, não foi diferente. Apesar de tudo, eu não queria deixar a casa de minhas madrinhas. Não tinha a mínima ideia do que iria acontecer e não estava nada voltado para uma nova mudança. Já tinha passado por uns maus bocados e não estava com intenção de passar outros. Meus passeios anteriores não haviam sido marcantes pela positiva.

Quando levaram-me para dentro e abriram a pequena caixa de transporte, ele estava inquieto e apreensivo, apesar de nos haver recebido com um sorriso no rosto. Talvez até estivesse mais receoso que eu… não sei direito. A minha madrinha colocou a caixa sobre um tapete que havia no hall de entrada do apartamento.

Ele sentou-se no chão e eu percebi que estava bastante tenso… ou talvez fosse uma demonstração de cuidado excessivo. Quando vi-me livre, olhei à minha volta e esperei uns segundos. Ele esperou também. Não invadiu meu espaço, o que pareceu-me uma boa estratégia. Aquele sinal de respeito indicou que minha sorte estava por mudar. Antes, eu estava assustado e desconfiado, mas senti-me abrigado e seguro, perto daquele homem desconhecido, cujos olhos tinham uma tristeza tocante e pareciam carregados de dor. Naquele momento, senti o impulso de aproximar-me dele e deixá-lo saber que eu apreciei sua consideração. Dei um passo adiante e inclinei meu corpo para perto dele, que levantou a mão e tocou-me a cabeça, com muito cuidado. Eu retribuí com uma leve turra.

Lembro que ouvi a madrinha perguntar à colega: o que foi que aconteceu aqui? Ele riu e disse: não sei, mas pareceu-me um bom sinal...

Eles trocaram informações sobre meu estado de saúde e as indicações médicas. Eu estava a curar uma infeção urinária, decorrente do stress que tive, no meu primeiro lar. Ele disse que achava esquisito o nome que me deram. Eu também, mas não tinha como dizer-lhes. Mas foi graças ao tal nome esquisito que ele teve ciência da minha história e resolveu conhecer-me.

Quando elas saíram e a porta foi fechada, deixando-nos a sós, o meu novo lar temporário pareceu-me um imenso campo a ser explorado… nas minúcias. Já sabia onde ficava minha comida e água e também a caixa de areia, portanto o básico estava sob controlo. Fui-me habituando, aos poucos, tanto ao lugar, quanto ao homem que cuidava de mim, inicialmente como FAT… uma família de uma pessoa só.

Duas semanas depois ele disse que havia decidido adotar-me. Eu já desconfiava, pela maneira que havia-se apegado e como parecia contente com minha presença na sua rotina de vida. Levaram-me, ele e minha madrinha, ao veterinário, para avaliar o estado da minha saúde. Eu estava bem. Ainda assustava-me com muitas coisas e ruídos desconhecidos, mas estava a adaptar-me bem ao meu novo lar, graças à paciência dele.

Burocracias ultrapassadas e compromissos assumidos, um novo nome foi-me escolhido, por ele, para combinar com minha nova vida. O passado tinha que, definitivamente, ficar para trás, junto com meu antigo nome e a dor eu já havia sofrido. Ele passou a chamar-me Thomas. Um novo nome, um novo lar e uma nova vida. Não sei porque, mas às vezes chama-me de “tigre”, além de muitos outros estranhos e carinhosos cognomes. Não acho que sejam os nomes ou as alcunhas que me fazem o que eu sou. Aliás, meu nome oficial é bonito e caiu-me muito bem.

Dois anos já decorreram desde o dia em que entrei por aquela porta. Engraçado como o tempo passa rápido, quando está-se bem. Agora eu ando livre pela nossa casa, conheço as rotinas e os horários e sei quando ele chega, de volta do trabalho, pelo som de seus passos nas escadas e corredor. Eu corro para a porta e fico à espera do barulhinho da chave na fechadura, para dizer-lhe olá, assim que entra. Ele chama-me de “meu menino”, faz festinhas e conversa comigo, como se eu fosse uma criança, perguntando-me se estou bem, se tenho fome e se quero um carinho.

Nós não recebemos muitas visitas. O tocar da campainha da porta ainda causa-me uma certa desconfiança. A mulher da limpeza reclamou que eu era muito arisco, mas eu tinha que certificar-me que ela estava livre de qualquer suspeita, antes de deixá-la aproximar-se. No dia em que ele chegou mais cedo e que trouxe-me, ao colo, para perto dela, percebi que, afinal, a mulher não ia fazer-me mal.

Melhor assim… para o bem dela…

Gostei da reviravolta que minha vida deu. Gosto da tranquilidade que ele me proporciona e do cuidado que demonstra para comigo. Ele cuida bem de mim e faz de tudo para proteger-me. Tenho mimos, conforto, comida e água, a caixa de areia sempre limpa e, ainda, companhia e segurança. Não preciso muito mais que isso, afinal.

Ele não perde a paciência comigo, nem quando eu apronto alguma. Na verdade, ele acha engraçado que eu arranje, da minha maneira, um lugar para ficar em cima do roupeiro, derrubando as incómodas caixas que lá foram deixadas. Eu sou um bichano grande e preciso de espaço… e gosto de lugares altos e quietos…

Ele sempre diz que eu sou muito amado e eu sei o que isso significa. Basta reparar no jeito que me trata e a forma como me olha. Não tenho quaisquer dúvidas em relação ao sentido daquelas palavras, ditas com tamanha afeição. É fácil compreender as intenções explícitas por elas. É bom saber que sou amado. Dá-me uma sensação boa saber que eu faço parte da vida dele e que ele faz da minha.

Ouvi uma conversa, dia desses, quando um amigo disse a ele que eu era um gatinho de sorte. Apesar de ele ter dito que eu já sofri o suficiente na minha vida e que mereço um pouco de paz e tranquilidade, reconheço que muitos animais não têm a mesma sorte que eu. Alguns continuam a sofrer maus tratos e acabam por ter uma vida infeliz, sujeita a muitos perigos e, consequentemente, com baixas expectativas de vida longa. Eu, pelo menos, estou seguro e sou bem tratado e respeitado, o que é uma coisa que nem todos conseguem ser.

Sim. Eu sou, mesmo, um gato de sorte!

Sinto que, às vezes, a rotina dele precisa de um pouco de ação… e eu, claro, faço questão de proporcionar-lhe alguma.

Vou lá dentro, agora, fazer minha cara de santo e inocente para ele. Acabo de ouvi-lo chamar meu nome e perguntar quem foi que bagunçou o armário e derrubou as t-shirts no chão do quarto...

…Não sei porque fazer qualquer drama. Nem foi no chão… Foi no tapete!