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sábado, 9 de março de 2019

Uma noite a mais (Parte 2)




- Não sei.

- Nem eu… Mas devias saber, afinal foste tu que vieste para cá, assim, depois de tanto tempo.

- Não me julgues, por favor. Já nem sei o que pensar. Tive saudades e uma sensação estranha que devia vir até este lugar… Foi aqui que nós…

 - Não achas que é estranho sentires saudades?

- Não faças isso. Não é justo para nenhum de nós.

Um gritinho de excitação, do lado de fora, chamou a nossa atenção, momentaneamente. Aquela pequena distração era mais que oportuna, para atenuar o clima.

- Olha para ela, lá fora, a brincar com o mar… Algumas coisas não mudam… desde pequena que é fascinada pelo mar!

- Ela cresceu tanto…

- É uma mulher, quase. Um presente dos céus.

- Ora. E desde quando tu acreditas em “céus”? Ela é um presente, sim… da vida… do Universo. Sinto vossa falta, sabias?

Senti uma nostalgia… tinha certeza que ele também. Via a tristeza naqueles olhos. Minha alma estava dolorida, assim como minha cabeça. Olhei para fora e vi que ela vinha caminhando na direção do restaurante, onde bebíamos café, quase distraidamente, na esplanada.

- Olha isso! Molhei as pernas das calças quando o mar pegou-me de surpresa. Tenho que tentar secar isso… e preciso de uma água!

Nós rimos.

- Pede lá dentro, no balcão, meu amor. Não há muita gente para atenderem…

Ela correu para dentro. Acompanhei seus passos, com os olhos. Senti que era observado e virei-me. Olhava-me com uma expressão que eu conhecia bem.

- Que foi?

- Sinto falta de nós…

Meu peito doeu. Minha alma doeu. Meus olhos arderam. Não consegui dizer nada, mas senti lágrimas a me descerem pelo rosto.

- Não chores.

- Eu? Chorar? Claro que não! Não sejas ridículo!

Ele riu. Claro que não acreditava no que eu dizia.

- Pai? Está tudo bem?

- Está tudo bem, meu amor! Senta aqui, connosco.

- Então? Como estão as coisas, na escola?

Ela aprumou-se. Gostava de falar da escola e dos planos que tinha para a faculdade.

***

O mar estava sempre daquele jeito. Parecia um leão a rugir, insistente, mas nunca me conseguia amedrontar, por mais que o tempo passasse, por mais que, na minha cabeça, eu imaginasse que ele, de alguma forma, até tentava. Aquele bramir, ao contrário do que podia ser esperado, me deixava calmo e fazia-me pensar... Fazia minhas viagens na mente… nas lembranças… no passado.

Eu gostava daquele lugar. Tinha boas e, também, más memórias dali, mas as boas sobrepunham as outras. Naquele penhasco, acima da minha cabeça, eu me via, há um bom tempo atrás…

- Precisa de algo?

- Hã? Não. Estou bem, obrigado.

Aquela pele pálida não combinava com o lugar. Nem aqueles olhos. Ele parecia um estrangeiro.

- Posso perguntar uma coisa? Não quero ser atrevido. É uma curiosidade.

- Pode, mas não prometo responder.

- Claro.

A intromissão havia sido um tanto brusca, mas o homem estava, provavelmente, aborrecido por não ter com quem conversar. Eu não estava acostumado a falar com estranhos, especialmente nesta terra, mas vinha tantas vezes a aquele mesmo restaurante, que já conhecia o gerente, que sempre me atendia com cortesia e um sorriso e já não o considerava, de facto, um desconhecido. Ele não era, entretanto, um amigo… ainda…

- Quer que eu peça para trazer uma nata, para acompanhar o café?

- Era esta a pergunta? Se era, a resposta é sim, mas quero uma somente…

Ele riu. Sabia que eu havia percebido que ele estava tentando ganhar confiança, ou coragem, para fazer a pergunta verdadeira. Pediu para a empregada ao balcão trazer-me duas natas, apesar do meu protesto.

- Já faz algum tempo que tenho observado que vem, sempre, aos sábados à tarde, traz o bebé, pede um café, senta-se na esplanada, sozinho e em silêncio, a olhar o mar, e depois vai embora.

- E… ?

- E pergunto-me por que não vem com a mãe da criança. Estão separados?

- Estamos… por assim dizer…

- OK. Já percebi. Desculpe a intromissão e a curiosidade.

- Não há problema.

Ele não havia percebido o que eu quis dizer. Por alguma razão, eu tive vontade de contar-lhe mais, o que não era comum, mas não vi problema em falar ao estranho, que desculpava-se por haver talvez ultrapassado a fronteira da curiosidade.

- Ela faleceu. Éramos grandes amigos. Este lugar me traz boas recordações.

O homem olhou-me, sério, meio sem graça. A criança dormia, na cadeirinha, ao meu lado.

- Eu sinto muito. Não quis ser intrometido.

- Sem problemas. Foi um acidente. Não há nada que ainda possa ser feito.

- Pode-se viver. É o melhor para ela, que está aí, com uma vida inteira pela frente.

- Pois. É uma grande verdade. Ela é o meu bem mais precioso.

- Eu acredito.

Ele olhou-me nos olhos, por uma fração de segundos. Eu mantive o meu olhar no dele. Ele enrubesceu de imediato, como uma criança que é flagrada fazendo alguma peraltice.

-Vou deixá-los a sós.

Saiu, quase às pressas. Eu acompanhei com o olhar, enquanto ele entrava no restaurante. Na porta, deu uma paradinha e virou-se pra trás. Daquela vez, quem ficou vermelho foi eu.

Resmunguei, entre dentes.

- Ora, ora… o que foi aquilo, afinal?

***

Eu estava deitado na espreguiçadeira, com a camisa semiaberta, tomando um pouco de sol. Ele tocou, com os dedos pálidos, a estranha cicatriz, mal desenhada no meu peito. Eu tremi.

- Não tenha medo. Não tenho intenções de machucar.

- Não tenho medo.

- É uma grande cicatriz.

- Foi um acidente: um estúpido acidente, de um homem desajeitado.

- Não acredito que tenha sido estúpido. Tem a ver com o que aconteceu à esposa?

- Ela estava muito doente. O tumor foi detetado após a gravidez estar bastante adiantada. Não podia fazer tratamento químico, sob pena de afetar a criança. Mas a doença enfraqueceu sua saúde. Estávamos a descer a trilha que desce o penhasco, quando ela sentiu-se mal e caiu. Eu vinha atrás e tentei impedir a queda, mas foi tudo muito brusco e eu não tive forças para segurar. Escorreguei e caí de peito na rocha, ao lado dela. Não foi aquele acidente que a matou. Ela foi hospitalizada, após a queda, mas foi enfraquecendo, com o passar do tempo. Optamos por retirar o bebé e fazer o tratamento químico, mas era tarde demais. A menina sobreviveu, mas a mãe não conseguiu. Não foi uma morte súbita, mas foi muito dolorosa… para todos nós.

- Ainda dói?

- Um pouco… às vezes…

- Pois eu nunca casei. Não encontrei a pessoa certa, acho…

- Nós só casamos por causa da gravidez. Era o mais certo, para a criança, na época.

- Eu compreendo. Achas que farias tudo outra vez?

- Eu nunca me arrependi. Mas isso não é um jogo. É a vida. Não se volta a fazer as mesmas coisas, ou cometer os mesmos erros, por opção ou por vontade. O tempo muda as pessoas… as circunstâncias também…

- Vocês se amavam?

Aquela pergunta, mais uma vez, e que eu respondia, sempre, da mesma forma.

- Nós éramos grandes amigos. Sempre havíamos sido um tanto cúmplices, desde o tempo em que estudávamos juntos. Fomos para a mesma universidade, nos formamos na mesma época, saímos de casa na mesma ocasião, dividimos um apartamento e partilhamos nossa liberdade.

- Mas não era amor…

- Mas não era amor, no sentido físico. Era uma coisa mais fraternal, acho.

- Eu compreendo.

Teria eu percebido um leve sorriso, naquela resposta quase inofensiva? Ou teria sido somente uma inocente impressão minha?

***

…”For a taste of your love and 
     I need to taste some more 
    Wave goodbye to heaven for me 
    I've thrown it all away 
    Just to spend one more night with you”…(*)

(*) One more night with you : Ged McMahon



- Gosto desta versão. Não tem o mesmo poder da voz feminina, mas é muito boa também. Parece-me tanto com uma história que eu conheço tão bem…

Olhei para ela e imitei seu jeito de falar.

- Se eu contasse tudo que sei…

- Hah! Melhor não contar nada.

- Pois.

Rimos. Ela levantou-se de onde estava e veio deitar-se no sofá, com a cabeça no meu colo.

- Pai?

- Hum?

- Não seria problema se ele viesse morar novamente connosco, seria?

- Como assim?

- Eu sei que é isso que ele quer. Acho que não é problema, não achas? Ele gosta de nós… e nós gostamos dele…

- Como sabes? Ele não falou nada.

- Ainda… mas é o que eu sinto.

- Foi ele quem se afastou… sabe Deus se foi pelo motivo que alegou. Pareceu-me um tanto covarde…

- As pessoas mudam, pai. Ele deve ter sofrido.

- Só ele?

Ela beijou minhas mãos. Seus olhos fixaram-se na minha face séria. Esboçou um sorriso, tentando ser complacente com o pai emotivo e que ela conhecia tão bem. Tentei não chorar…

***

sábado, 1 de dezembro de 2018

Obliviar (Parte 2: A Volta)


- É impossível!

- Leia outra vez. Tente ler nas entrelinhas. É pequeno, a superfície é reflectora e não pode ser detectado pelos telescópios, até o momento em que estava muito perto, mas também muito rápido para ser seguido pelas câmaras dos satélites… Olhe a figura. Não achas que…?

- Pode parar! Não acho nada! Aquilo não pode ter vindo de um planeta alienígena…

- Mas pode ter vindo do nosso planeta, duma outra era, muito adiante do nosso tempo, não pode?

- Começas a confundir-me.

- Estou a tentar achar um jeito, uma teoria, uma resposta, uma saída…

- Tu sabes que eu não sou um cientista. Quantas vezes preciso lembrar-te disso?

- Tu és feito do melhor material genético que já houve… que há… que haverá… Nunca pensei que isso iria ser tão difícil de ser colocado numa conversa.

- Não tente. Desista.

 - Pensa comigo. Tente pensar como um cientista. Tu sobreviveste porque tu és um dos seres mais preparados e habilitados. Usa teu cérebro da maneira mais prática que houver.

- Eu sobrevivi, porque fui enviado ao passado, uns pouquíssimos segundos antes da explosão. E eu não fui o único, como vocês já sabem.

- Pensa comigo! Por favor?

Aquele homem de pele pálida olhou muito seriamente para os dois jovens soldados e falou o que passava na sua mente.

- Na era de onde eu vim não havia aquele tipo de transportes. Nós viajávamos usando terminais de transporte tempo-espaço, que eram mais eficientes. O único veículo que eu conheci foi aquele que me trouxe para cá, quando o planeta explodiu. Era antiquado, mas eficiente para o propósito, pois não usava os terminais e não seria detectado pelo sistema, nem colocaria em causa a operação que o homem, que destruiu o planeta, planeou. Foi enviado ao passado através de uma fenda deliberadamente aberta no tempo, por ele, no momento da explosão. A cápsula nunca poderia ser comparada ao vosso “Oumuamua”. Este poderia ter vindo do passado, não do futuro e deve provavelmente estar a viajar por centenas, talvez até milhares de anos.

- Então tu concordas que tenha vindo de outro planeta.

- Eu não concordo, nem discordo. Nós temos muito pouca informação sobre ele, quase nada além de teorias, para tirar conclusões. Se nem os cientistas mais especializados conseguem ter certeza de nada, imagina se eu ia poder. O que é certo, e que eu quis dizer foi que não veio do mesmo tempo e espaço de onde eu vim…

O homem de pele pálida encarou os dois jovens soldados. Seus olhos mostravam uma tristeza nostálgica profunda, quando concluiu a frase.

- …E para onde eu nunca vou poder voltar. A única forma de entrar em contacto com o futuro seria se alguém de lá quisesse entrar em contacto com o passado. Não há outra forma. E nós sabemos que isso já não é mais possível.

***

- Eu te disse para parar com esta besteira.

- Eu sei. Mas era uma hipótese a ser considerada. E agora?

- Agora voltamos para nossas vidas, como sempre. Deixemos o passado lá onde ele pertence.

- Talvez haja ainda uma forma…

- Não recomeces!

Os dois se olharam. O rapaz de óculos tinha uma expressão distante e um leve sorriso a esboçar-se, discretamente, na face jovem e jovial.

***

- O quê? Por que tu ainda queres voltar para lá? Ainda não basta disto?

- Eu tenho que voltar lá. Eu gostaria que tu viesses comigo, se não te importares.

- Claro que eu me importo, mas vou contigo, sim. Aquela área ainda é proibida. Sabes muito bem disso. Só espero que não entremos numa fria.

- Ninguém vai saber que estivemos lá, de toda forma.

- Bom, é melhor termos cuidado, mesmo assim. Tenho certeza que está sendo monitorizada de alguma forma.

- Vai dar tudo certo.

- Ah. Tá…

***

O rapaz de óculos parecia estar tão distante, no meio da desolação daquele campo imenso em que se tornou a vila, onde moravam, antes da grande explosão. Seus olhos estavam cheios de lágrimas de nostalgia.

O outro olhava à volta, não tão absorto, mas também envolvido em suas memórias de infância, quando brincavam da redondeza até o riacho, ou subiam a montanha e acampavam por lá, nas férias de verão.

Era estranho estarem ali, no meio do que havia sido seus lares, contemplando o vazio e o deserto que a terra havia-se transformado. A montanha virara um monte, apenas, com uma enorme cratera, aberta onde havia sido a base nuclear, agora completamente soterrada e inactiva. A desolação do local mostrava que havia, ainda, actividade radioactiva, o que impedia qualquer coisa de crescer por ali. Os soldados haviam tomado as precauções, mas sabiam que não podiam ficar no local por muito pouco tempo, por razões mais que óbvias.

- Temos que ir. Já não há nada que ainda possamos ver. Como era de se esperar, não sobrou nada para contar a história…foi-se tudo…

- OK. Vamos embora. Podíamos ir até a montanha, antes de irmos de vez?

- Para quê?

- Foi lá que tudo aconteceu. Acho que preciso ir até lá e resolver isso tudo na minha cabeça. Sinto que nem tudo foi-se…ainda…

- Eu não gosto disso, mas OK. Se é para ir, vamos logo. Temos que nos apressar.

Subiram pela antiga estrada que levava à base, até quase a cratera, quando uma grande fenda na estrada os impediu de passar. Os dois saltaram do Jeep e começaram a caminhar, tentando contornar a grande rachadura e achar um lugar onde pudessem atravessar. A fenda ainda era muito profunda e larga. Eles teriam que saltar para o outro lado, onde a distância não fosse tão grande.

Quase no topo, a sudeste da base principal, onde os dois lados do barranco pareciam mais próximos, o rapaz de óculos tomou impulso e saltou para o outro lado. O amigo fez o mesmo. Chegaram à borda da cratera, que era profunda e tinha diâmetro de, pelo menos, uns oitenta metros. A base estava totalmente soterrada. Não havia vestígio aparente do que havia sido antes, para quem desconhecesse o local, mas não para eles.

- Não há mais nada aqui, como vês. Nem parece o que já foi, há tempos. Está tudo soterrado em baixo desta terra estéril, assim como o passado. Temos que ir embora. É arriscado ficar muito tempo aqui.

O rapaz de óculos deu um longo suspiro.

- OK. Vamos.

Os dois começaram a descer, até onde haviam saltado. O primeiro fez impulso e saltou. Quando seus pés bateram firmes no chão, do outro lado, sentiu que a terra tremeu sob eles. Olhou para trás e viu a cara de pavor do rapaz de óculos.

- Salta! Depressa!

Ele saltou, mas quando tocou o outro lado, a terra tremeu novamente e a fenda cedeu um pouco. Ele perdeu o equilíbrio e começou a escorregar para dentro da enorme rachadura, lentamente, junto com a terra seca e solta, sem poder agarrar-se a nada.

- Oh, não! Não outra vez!

- Aguenta firme. Tenta achar uma raiz, ou coisa que o valha, para agarrar-te, que eu vou buscar o gancho e a corda do Jeep.

O rapaz de óculos não respondeu. Apenas olhou para baixo, tentando localizar qualquer coisa que o fizesse parar de descer, mas a fenda parecia abrir uma enorme boca e tentar engoli-lo lentamente.

Ele não gritou. Tentou parar, usando os dedos das mãos e os pés, mas não conseguiu mais que esfolar-se todo. Ele avistou o que parecia ser o resto de uma tubulação metálica e tentou dirigir sua rota para aquela saída. Seu corpo escorregava mais rápido e ele virou-se, tomou impulso e saltou sobre o tal tubo.

Foi, então, que aquilo, que era apenas um pedaço do que poderia ter sido um velho encanamento, desprendeu-se da parede de terra seca e começou a cair, junto com ele, para o fundo escuro do largo buraco.

***

domingo, 15 de outubro de 2017

O Décimo-Terceiro (Epílogo)


Uma estrela e dois pequenos planetas podiam ser vistos no céu, pela janela da Sala do Conselho, no Edifício Principal. Um homem sozinho contempla, sério e pensativo, a imensa escuridão, decorada com minúsculos pontículos de luz, brilhando no lado de fora, alheios ao seu pesar.

“Este mundo já está condenado pela mesmice e pela rotina. Vive-se por tempo longo demais, mas não é necessariamente uma existência com prazer. Não há um real objectivo em viver longamente, preservar a espécie, ou até mesmo o planeta. Se houvesse um acidente que destruísse esta civilização, que diferença o universo iria sentir? Qual a diferença que o passado poderia fazer? E se o tal acidente for em algum lugar do passado, antes mesmo da grande destruição? Será que fará mesmo alguma diferença?

Aqui, neste momento, não há nada que possa nos dar qualquer razão para orgulho ou para querermos viver. A existência é vazia. É tudo muito cinza e sem beleza. Não existem sentimentos. Para que manter essa coisa a funcionar?”

***

- Chega de ser mais um experimento. Chega de servir de cobaia para a criação de uma vacina estéril. Eu já não quero ser mudado. É isso que me faz um ser único, no meio desta multidão de iguais.

- Mas a mutação está bastante acelerada. Tuas costas estão cobertas destas manchas negras e brancas, que já se espalham pelo resto do corpo e tuas defesas estão em baixa. Não vais resistir muito tempo.

- É uma opção minha.

- Tu não tens esta opção, pelas regras… Nenhum clone tem… nestas circunstâncias…

- Eu sou David, o Décimo-Terceiro… Se as coisas tivessem sido diferentes, eu seria escolhido para ser o próximo Supremo, por ser mais forte e resistente, ou para viajar pelo Universo. Agora sou apenas uma aberração. É melhor deixar que a vida siga seu curso normal. … e vou viver com isso… enquanto for possível…

- O que pode ser por muito pouco tempo, agora.

- Que seja. A vacina não funciona, de qualquer maneira.

***

- Nós vivemos num complexo de planetas, que gira em torno de uma pequena estrela, que possui luz natural limitada, mas mantém o sistema a funcionar equilibradamente. A órbita do planeta em torno de si mesmo ocorre por um período menos longo que na terra, por razões óbvias. O tempo passou, então, a ter um conceito diferente. Como o dia tem menos horas, a contagem dos anos é, portanto, diferente. O controlo da vida neste sistema de planetas pertence a um grupo de cientistas, que formam uma elite intelectual.

- Por que usam a contagem dos anos como A.D.?

- Porque os fundadores quiseram homenagear a Terra, o planeta de onde vieram, originalmente.

- E para que servem os clones, afinal?

- Este pequeno planeta fica ao centro de um grupo de outros planetóides de menor tamanho, cada qual com sua própria particularidade. O que o faz habitável é a característica única e pouco comum de possuir oxigénio, embora em quantidade muito menor que no planeta Terra. O elemento, vital para vida humana, é tratado, filtrado e usado dentro das estruturas protegidas, que chamamos de Estações. Esta característica não é a única coisa que temos em comum com o nosso distante antecessor da outra galáxia. Um manancial de líquido, com composição semelhante à da água, que corre por rios subterrâneos, é colhido, reprocessado e transformado em água potável e, então, disponibilizada aos habitantes, de forma natural. Mas estamos a enfrentar um novo problema: o manancial é limitado e está escasseando rapidamente. Equipas de pesquisa já foram enviadas em busca de alternativas, pela galáxia, mas até agora, nada real. Estas pequenas equipas, são, na sua maioria, compostas por clones seleccionados e treinados especialmente para isso. Uma unidade robótica avançada acompanha a tripulação de cada nave que parte. No momento, temos umas poucas, porque não conseguimos criar clones em quantidades suficientes.

- A clonagem é, na verdade, uma realidade e é inevitável, sendo praticamente a única forma de reprodução, neste momento. O processo é interrompido, a partir do momento em que verificamos que a resistência do corpo a qualquer tipo de problemas, físicos ou mentais, está praticamente garantida. Depois de aplicada a vacina, deixa-se que algumas características amadureçam sozinhas, formando indivíduos diferentes, dentro dos casulos, como crisálidas, nas incubadoras. Não usamos úteros humanos. Nem todos chegam ao fim do processo e sobrevivem, porque a vacina é bastante agressiva, mas é necessário que assim seja. Quando estão prontos, os mais fortes são seleccionados e reportados ao Supremo, que os inspecciona, juntamente com o Conselho, para mandá-los para o Edifício Principal. O planeta é habitado por uma raça única, que fala uma língua única. Os novos humanos são praticamente desprovidos de pelos, tendo sua caixa craniana aumentado em tamanho e seus corpos diminuído em proporção. Depois de bem treinados, farão parte das equipas seleccionadas pelo Conselho, para explorar a galáxia. Os outros, de uma linhagem mais regular, porém resistente, são enviados para a produção de Oxigénio. A densidade demográfica é mantida sob estrito controlo. Os nossos recursos são limitados, por isso temos que usá-los com eficácia.

- Isso é incrível. E tudo começou com base na minha pesquisa, num passado tão remoto…

O chefe dos cientistas riu, meio sem graça. O homem parecia não ter plena consciência da importância que sua pesquisa teve no desenvolver daquela raça, que representava, de uma forma ou de outra, o futuro da humanidade. Não se podia condená-lo, afinal, levando-se em consideração que mais de vinte e cinco séculos se haviam passado desde então.

- Sim, doutor. Tudo isso com base na sua preciosa pesquisa… num passado remoto e num planeta um bocado diferente deste.

***

- Leona! Preciso que vocês venham até o laboratório imediatamente. Aconteceu uma coisa muito estranha.

- Que coisa?

- Melhor virem ver… eu não sei o que dizer…

Ao chegarem constataram que o laboratório estava vazio, exceto por uma Monarca, pousada na parede.

- Como isso veio parar aqui?

Leona riu.

- Eu não sei, ao certo, mas tenho uma ideia de onde possa ter vindo… Um certo clone… que viajou ao passado e que se encantou com uma revoada de borboletas…

***

- O surto está incontrolável. Os clones perecem muito rapidamente e a linha já não dá conta de produzi-los, para suprir as necessidades, devido ao período de incubação. A continuação da vida está condenada.

- Tive uma ideia. Ainda temos a Monarca connosco?

- Sim. Mas para que serve uma borboleta, agora?

- Foi como o estudo começou. Talvez tenhamos uma hipótese…. Vamos ter que recomeçar o processo todo. Isolamos o ADN e produzimos uma nova vacina. A original não funciona mesmo. Temos que começar do nada. Houve alguma coisa neste meio tempo, que deixou de funcionar e não temos mais tempo para tentar reparar. Temos que fazer tudo novo.

- Deixemos de tentar recuperar o irrecuperável e fazer tudo, do começo, outra vez.

- OK. Mas pode levar muito tempo, até conseguirmos chegar ao ponto em que estávamos, antes do incidente.

- Talvez. Pelo menos saberemos o que fazer…

***

O Supremo olhava para as manchas negras e brancas a cobrir seu corpo magro e pálido. Elas pareciam cobertas de uma densa camada de pelos, muito suaves ao toque. Sentiu uma pontada de dor na cabeça. Sabia que suas defesas estavam comprometidas, por consequência da anomalia e por já não tomar as vacinas.

Ele suspirou e olhou para o céu daquele planeta desolado, tão insignificante, no meio do infindo Universo, tão pouco conhecido, apesar de todas as evoluções, após o Caos Primeiro, e decidiu que estava em tempo de tomar uma decisão radical.

“Não era isso que eu queria. Eles estão muito perto de chegar à uma solução. Se desconfiarem de alguma coisa, vão-se voltar contra mim. Mas nunca vou deixar que eles saibam o que eu fiz. Agora vou ter que dar um jeito, em definitivo, nesta situação, antes que seja tarde demais.”

Programou o computador principal, que comandava todas as unidades, para duas acções. A destruição era absolutamente necessária. Concluiu o comando e sentou-se, relaxadamente, como nunca havia feito, desde que se havia tornado o Supremo.

“Genocídio e suicídio. Fiz bem em sabotar a produção das vacinas, desde que descobri que a anomalia podia ser uma grande oportunidade, para o extermínio desta raça. Isso tudo vai parecer um acidente, mas para quem terei que explicar algo, afinal? Não sobrará nada! Que grande plano!”

Ele fechou os olhos e esperou. Em poucos segundos, o planeta implodia e, em seguida, explodia completamente, numa sequência predeterminada, tonando-se uma imensa nuvem de detritos, já desprovida de qualquer sinal de vida, viajando em alta velocidade pelo espaço, em todas as direcções.

Uma cápsula solitária vagava, à deriva, não muito distante de onde o asteróide existia, poucos momentos antes. Em seu interior, um tubo de metal trazia informações preciosas sobre uma raça de humanóides, que viveu em um pequeno e árido planeta e que deixara de existir. A cápsula é lançada, juntamente com os detritos do planeta destruído, pelo vazio silencioso e escuro do espaço, sendo puxada para dentro de uma fenda no meio do caos, em meio a um clarão e, a seguir, desaparecendo completamente.

***

Numa praia quase deserta, dois rapazes caminhavam lado a lado, cada um com uma lata de cerveja na mão e conversando tranquilamente. Um clarão riscou o céu, vindo da frente deles, chamando-lhes a atenção, especialmente porque o céu parecia limpo, estrelado e sem previsão de chuva. O som de algo grande, caindo no mar, bem atrás de onde vinham, fê-los parar e voltar.

O estranho objecto metálico boiava na água salgada, balançando ao sabor das ondas, ainda fumegando.

Era um dia quente de Verão, no Anno Domini 2018.


***

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Homens do Mar (Epílogo)


A porta destrancada não pareceu bom presságio ao pescador, ainda ressabiado pelo sonho que tivera algumas semanas antes. Ele vestiu o casaco e saiu correndo pela porta afora, num ímpeto desesperado, que nem conseguia distinguir se era protetor ou auto defensivo; um medo de perder ou, ao mesmo tempo, de ficar sozinho...
Quase nem sentia os pés, a pisar, ligeiros, a areia molhada, nem, ao menos, percebia a carga de adrenalina, que circulava veloz em seu corpo, enquanto corria pela praia, sentindo a angústia aumentar, exponencialmente, dentro de si. Em sua mente, só conseguia pensar no pior. E o pior era-lhe mesmo inconcebível, naquele momento.
O dia mal raiara e a brisa fresca, misturada a uma densa névoa, bastante comum naquela época do ano, passavam quase despercebidos pela mente preocupada do homem, cujo olhar, mais atento que seus pés, escrutinava a orla, com extrema e minuciosa atenção. A visibilidade estava comprometida pela pouca luz e pela neblina, mas ele era movido por uma força que o levava a não desistir, enquanto não encontrasse o rapaz.
Mais à frente, viu delinear-se a silhueta conhecida do amigo, sentado sobre o rochedo. Um alívio e uma urgência misturam-se em seu peito e ele correu naquela direção.
- Deste-me um susto enorme, rapaz. Pensei que havia acontecido o pior.
- Eu precisava refletir um pouco sobre tudo o que aconteceu recentemente. Estar aqui dá-me uma sensação de segurança e amplia-me os horizontes. Tento pensar fora da caixa… e não é fácil... Minha vida vai tomar um novo rumo, muito em breve e eu tenho que tomar as decisões mais acertadas.
- Eu percebo. Fomos surpreendidos, não fomos?
- Com certeza. É tudo um pouco fantasioso demais para mim, neste momento e eu tenho que pensar bem no que fazer.
- Sabe? Naquela noite em que tive um sonho estranho, fiquei bastante apreensivo. Sonhei que tentavas cometer suicídio, afogando-te no mar. Não consegui engolir a seco aquela história da testemunha, que viu-te ser assaltado e jogado num carro. Quando vi que a porta estava aberta e não estavas deitado no sofá, só consegui lembrar do meu sonho… ou pesadelo… e pensar que ele tornava-se real. Confesso que tive medo…
- Não tão rápido, amigo... Eu também tive um sonho muito peculiar, naquela mesma noite, como sabes…
O rapaz contou, com detalhes, o sonho que tivera, semanas antes. O pescador achou aquilo bem mais credível que as "evidências" informadas pela Polícia. De uma certa forma, corroborava a presença do homem de fato escuro.
- Será que, de alguma forma, minha memória trouxe de volta aquele facto? Ou foi mesmo muita coincidência?
- Tudo é possível, meu amigo. Tudo é muito possível nessa história. Gostaria que tua memória recuperasse, para acabarmos com este mistério, mas, ao mesmo tempo, tenho receio do que vais lembrar e do que vai acontecer em seguida. Mas tens que ir adiante, não importa o que vais descobrir.
- Não temas. Não vamos deixar de ser amigos, não importa o que eu lembre... Não vou poder desligar minha vida do que aconteceu neste tempo em que estive a conviver nesta ilha. Eu posso ser jovem... bem mais jovem que tu, para dizer a verdade, mas não serei ingrato, nem estúpido.
- Jamais pensaria algo neste sentido. Gosto muito de ti, meu amigo.
O rapaz olhou o homem sentado ao seu lado, no rochedo de frente ao mar e sorriu. Deu uma palmadinha na mão de seu protetor e disse:
- Vamos voltar? Temos muito o que fazer. O mar nos espera...
- Já não precisas ajudar-me nas lides do mar. Sabes disso.
- Mas eu quero… uma vez mais, pelo menos. Amanhã devo voltar ao continente e, a partir de então, não sei o que pode acontecer comigo. Mas é necessário…
***
- Ainda bem que chegaste. Estás pronto? Devemos ir logo...
O homem, vestido de preto e usando uma gravata de seda azul-escura, muito discreta, com um pequeno logotipo impresso, possivelmente da firma onde trabalhava, aparentava estar na casa dos quarenta anos. Era alto e claro, com o corpo de quem passava muitas horas no ginásio, a fazer musculação. Provavelmente também era perito em defesa pessoal ou artes marciais. Não seria surpresa nenhuma que também tivesse uma arma, afinal era o chefe da segurança de uma empresa, cujo filho bastardo do fundador desaparecera misteriosamente, havia já algum tempo, não muito depois de o pai reconhecê-lo como tal.
O Chefe da Segurança havia chegado à ilha, junto com o doutor, no ferry da manhã e, como na semana anterior, viera com um interesse único: levar o rapaz consigo para o continente, para ser submetido a um novo e revolucionário tratamento de recuperação da memória, especialmente criado e desenvolvido para aqueles sujeitos que tiveram-na perdida em estados traumáticos.
Segundo constava, o jovem tinha um Q.I. muito acima da média e uma capacidade sensitiva muito grande, além de um tino excecional para análise de investimentos e imensa habilidade com computadores. Suas aptidões haviam trazido muito lucro aos empresários e investidores. Por essas e outras razões, era interesse da firma investir na recuperação dele e na volta ao mundo dos negócios.
O combinado era o rapaz estar pronto ao fim de uma semana da primeira visita do Segurança.
Ele fora encarregado de identificar o "náufrago", que havia sido reconhecido pelos panfletos que a polícia distribuíra pelo país afora. Trazia documentos e uma série de fotografias, que suportavam a autenticação. Quando o rapaz entrou, acompanhado pelo pescador, ele estava a mostrar as evidências documentais ao médico, que admitia serem muito bem suportadas e incontestáveis.
- Não consigo reconhecer-me nestas fotos. Aquele não sou eu. Ou melhor… já não tem nada a ver comigo. Estive pensando em estudar, formar-me e fazer minha vida. Quero aprender Oceanografia e aprofundar meus conhecimentos de Informática, que parece ser minha expertise. Quero associar os dois campos em uma carreira...
- Deves voltar a trabalhar connosco. Terás tudo o que quiseres, suportado pela firma e pelo teu pai. Ele te espera, ansiosamente. A empresa precisa dos teus serviços... e, o quanto antes, melhor.
- Mas eu não quero voltar à empresa, desta forma... Quero recuperar a memória, sim, mas tenho outros planos. Se a empresa não quiser investir em mim, nestes termos - o que é compreensível - não há problema. Minha vida já não está voltada naquela direção. Eu quero decidir por mim...
- E como vais sustentar esta decisão? Não tens condições financeiras para tal. Nós podemos prover-te de tudo que desejares. Pelo menos até que possas ter o suficiente para suportares uma mudança. Até lá, tens que ter um emprego decente. Não creio que um velho barco de pesca possa ser a tua fonte de sustento. Teu pai jamais te perdoaria...
- Eu não conheço o homem que dizem ser meu pai. Não conheço a empresa. Não conheço nada além do velho barco de pesca... que, afinal, deu-me o que eu tenho agora...  Eu não quero voltar para a vida que eu tinha e da qual nada conheço, nem tenho qualquer lembrança.
- Eu já vi este filme... Antes do teu desaparecimento, já andavas com intenções de deixar a firma. Foi uma decepção muito grande ao teu pai, meu patrão, e um problema para todos nós. Vamos deixar de conversas e vamos embora, antes que o ferry parta e nos deixe aqui.
O homem de preto segurou o braço do rapaz, com firmeza, o que causou uma distinta estranheza aos outros dois homens. O rapaz puxou o braço, com força, libertando-se da mão do outro.
- Não. Se meu pai estivesse, mesmo, preocupado comigo, teria vindo, ele próprio, buscar-me. Não teria mandado um segurança...
O homem ficou lívido. Sabia que tinha uma missão a executar. As consequências do não cumprimento da sua tarefa, ele conhecia muito bem. Adiantou-se, de encontro ao rapaz, que esquivou-se. Ele pôs a mão dentro do paletó e puxou uma pequena pistola, para assombro de todos. 
O rapaz olhou o homem com a arma apontada em sua direção e foi como se um flash passasse pelos seus olhos, trazendo-lhe memórias há muito perdidas.
Ele lembrou-se de estar sendo perseguido pelas ruas da cidade e de esconder-se nas vielas da ribeira. Viu que havia um barco preparando-se para sair do cais, naquele exato momento. Procurou ouvir atentamente os sons próximos de si, para poder tomar uma ação, mesmo tendo que arriscar-se demais. Aquele mesmo homem, vestido de preto, procurava por ele, atentamente e armado com uma pistola, provavelmente, com a intenção única de trazê-lo de volta a qualquer custo e de qualquer forma...
A qualquer custo, ou de qualquer forma, porém, não era sua intenção voltar para qualquer lugar... menos ainda para aquela empresa...
O rapaz manteve os olhos fixos na pistola apontada para si e disse, fingindo uma serenidade que não sentia:
- Agora eu lembro o que aconteceu...
***
- Foi praticamente um milagre minha memória voltar, tão nítida, diante daquela situação de choque. Eu quase paralisei…
- Normalmente, situações em que há uma grande descarga de adrenalina despoletam este tipo de reação. Se ele não tivesse dito que tu não escapavas dele uma segunda vez, apontando aquela arma, daquele jeito, para ti, não teríamos razão para atacá-lo, nem bases para a polícia prendê-lo. Ainda bem que a nossa reação foi rápida, mas ainda tenho a marca da bala que raspou meu braço, quando eu e o doutor corremos e pulamos nele. As más intenções do homem ficaram claras a partir daquele momento.
- Mas podia ter sido muito pior. Vocês podiam ter sido mortos a tiros. Depois que a arma foi tirada da mão dele, foi mais fácil. Ainda lembro das fortes cadeiradas que a matrona deu nas costas do homem, derrubando-o de vez. Arrancar a confissão, depois daquela confusão toda, no meio de um rompante de raiva, quando ele podia negar tudo, se fosse mais esperto, foi sorte nossa... mas estava completamente tomado pela cólera....
- Sim. Tivemos muita sorte. Foi um grande trabalho de equipa. Ele seria capaz de fazer qualquer coisa. Só não contava que tu fosses sobreviver, depois de teres sido golpeado, despido e jogado ao mar. Só não entendi porque ele preferiu bater na tua cabeça e livrar-se do corpo, sem certificar-se que estavas mesmo morto.
- Ele deve ter pensado que a pancada poderia ser mais fácil de explicar, caso o corpo fosse encontrado. Queria que parecesse um infeliz acidente. O toque de mestre foi achar que por estar sem roupas eu seria mais difícil de ser identificado… e tinha certa razão, afinal...
- Felizmente tudo terminou bem, principalmente porque eu te achei na praia, no momento certo. Jamais hesitaria em defender-te de quaisquer perigos que aparecessem. Eu faria tudo outra vez, se precisasse. Podes ter certeza disso.
- Sabes o que penso? Tu és como a chuva: às vezes cai e refresca; às vezes, simplesmente, inunda. Tu és um homem bom. Não me interessa o que fizeste no passado ou o que o teu passado fez contigo. Já viveste teu inferno particular. Tua dívida já foi paga e não tem nada a ver comigo. Não me conhecias e fizeste o impossível para ajudar-me, mesmo sem saber quem eu era. Não tinhas obrigação nenhuma e foste meu melhor mentor e protetor. Foste a única pessoa que realmente importou-se comigo, sem jamais pensar em segundas intenções. Seguiste tão-somente o teu coração e eu sou-te muito grato pelo que fizeste. Minha dívida contigo é eterna.
- Bobagem. Não me deves nada!
O rapaz abraçou o velho mentor e amigo, com verdadeiro afeto e gratidão e falou-lhe, ao ouvido.
- Devo, sim. Devo-te a minha vida!
Por alguma razão inexplicável, aquele abraço causou-lhe um efeito muito peculiar. Sentiu-se leve e cheio de vida, com o coração a pulsar de emoção, como há muito não acontecia...
- Eu já não lembrava que era capaz de sentir este tipo de emoções. Nem sabia que era possível, ainda, sentir, além das minhas necessidades mais básicas, alguma emoção deste género...
- Tu pensas demais. Parece que tens medo de demonstrar sentimentos, como se fosse um sinal de fraqueza. Eu posso ser jovem, ainda, mas posso garantir que só os fortes vivem, verdadeiramente, os seus sentimentos… e não têm vergonha, nem medo disso.
***
Alguns meses depois, o homem do mar recebeu, pelo correio, dois envelopes.
No menor havia uma carta simples, vindo de longe, escrita em uma caligrafia que ele reconheceu logo. As notícias eram confortantes. O rapaz havia conseguido uma bolsa de estudos, depois de algumas tentativas, no curso de Oceanografia. O dinheiro que usara no início, para poder sustentar-se, enquanto fazia os testes de admissão, havia sido muito bem empregado e a carta trazia a promessa da devolução do mesmo ao seu mentor e amigo, num prazo razoável.
O homem sorriu. Havia investido, com o coração, na certeza do sucesso de seu jovem amigo e sentia que já obtivera os lucros de seu empreendimento. Não estava preocupado com o seu dinheiro, na realidade, mas com o progresso que seu protegido vinha alcançando desde que voltara à cidade. A vida havia sido, finalmente, boa para o rapaz, em resposta aos seus esforços e às suas capacidades. 
Ele colocou a carta de lado, ainda sorrindo e direcionou sua atenção ao envelope pardo, maior que o outro, onde havia um logotipo conhecido, impresso no canto esquerdo. Vinha de uma firma conhecida na cidade, cujo nome trazia-lhe algumas lembranças.
Dentro daquele, havia uma mensagem e um relatório de uma firma de advocacia da cidade. Pelo que constava, um inquérito havia sido aberto, para investigar o acidente/incidente da cirurgia da mulher e sua consequente morte, durante o procedimento. Uma nota, no rodapé, revelava a razão da reabertura do processo investigatório. Haviam motivos para crer-se que a morte não fora uma simples e infeliz contingência, visto que algumas testemunhas haviam-no ouvido a discutir com a esposa, no restaurante, durante o jantar, na noite do acidente, a respeito da infidelidade dela. Aparentemente o médico havia saído do local, bastante alterado, emocionalmente. Apesar de já haver cumprido pena por homicídio culposo, ele ainda podia ser condenado, se fosse confirmado o dolo.
O homem pousou o documento na mesa. Uma tristeza profunda comprimiu-lhe o peito, como se fosse uma camisa de força, amarrada com eficaz crueldade, tolhendo-lhe os movimentos da alma. A ventania e a chuva fina a cair lá fora, naquele dia tão cinzento e quase friorento demais, só aumentaram sua melancolia e trouxeram vívidas lembranças, adormecidas há bastante tempo. Duas lágrimas quentes escorreram-lhe pela face fria e caíram sobre o papel timbrado que jazia sobre a mesa, com notícias tão pouco bem-vindas.
***
Um homem de meia-idade caminhava pela praia, completamente absorto em seus pensamentos. Aqueles fantasmas, que estavam muito bem escondidos, resolviam, vez em quando, manifestar-se e atormentá-lo. Havia dias em que sentia-se mais só que nos outros e aquele era, definitivamente, um deles. Sentia-se triste e uma sensação de vazio parecia aumentar dentro de si. Naquele momento, ele era, apenas, uma carga emocional de lembranças, que faziam-no sentimental e um tanto fragilizado, a ponto de render-se ao choro, mas forte o suficiente para querer manter-se vivo. 
As circunstâncias colocam pessoas e situações em nossos caminhos, para testar-nos, às vezes, ou para chacoalhar nossos equilíbrios e tirar-nos de nossas zonas de conforto. O Universo tem seus próprios meios e seus planos, que a própria vida desconhece. A beleza do viver está, exatamente, nas surpresas e na imprevisibilidade do que nos acontece dia após dia. O pescador sabia que a vida nos põe à prova, todo o tempo, testando nossos limites. É a forma de tornar-nos mais fortes e tolerantes, aumentando nossa resistência às circunstâncias. Viver é, verdadeiramente, uma prova constante de adaptação e resistência. A parte boa é que, muitas vezes, no percorrer do longo caminho, encontra-se pessoas, animais, momentos e ocasiões que, real e efetivamente valem toda a pena.

O vento de outono soprava, ainda ameno, contra seu corpo e seu rosto arredondado, emoldurado pela barba castanho-avermelhada, desalinhando mais ainda os cabelos castanho-claros, que já rareavam no topo da cabeça. Apesar de não estar frio, ele sentia que o inverno estava próximo. Olhou o mar e sentiu o ímpeto de deixar-se levar por um convite silencioso. Despiu-se e entrou na água fria, sem pensar muito. A baixa temperatura da água fê-lo sentir-se mais vivo que há muito tempo atrás. Olhou para o horizonte, deu mais uns passos e mergulhou, sentindo a água fresca a envolver-lhe, completamente, o corpo nu…