Um vento agradavelmente
refrescante soprou forte contra os dois rapazes, assim que a porta de saída do
aeroporto abriu-se e eles viram-se do lado de fora, onde os táxis
enfileiravam-se e partiam com os passageiros e suas bagagens, num ritmo frenético
e praticamente constante.
Um homem de cabelos
escuros e fartos e estatura normal, aparentando cerca de pouco mais de trinta
anos, aproximou-se e perguntou para onde eles iam, mas os rapazes estavam
apenas preocupados em procurar por uma cabeça conhecida, entre as tantas que
por ali estavam. O homem insistiu, mas os dois disseram que esperavam por
alguém, dando-lhe menos importância que ele queria.
A porta de saída do
prédio do aeroporto abria-se e fechava-se a cada poucos segundos, mas eles não
viam quem esperavam a sair por ela.
- Vou voltar lá dentro. Pode ter acontecido algo...
- Vais nada! Achas que, no meio desta confusão, vais
encontrar alguém? Vamos é embora daqui, antes que seja tarde. Chega desta
história e desta gente estranha.
O homem, que não
havia saído de perto, voltou a insistir com eles, oferecendo-lhes um serviço de
transporte, mais barato que o dos táxis. Eles tentaram descartá-lo, mas ele era
mesmo insistente. Os rapazes perceberam que se fossem tomar um táxi normal,
teriam que esperar numa longa fila, que parecia aumentar conforme os minutos
passavam e os carros já começavam a escassear, por isso decidiram ir com o tal
motorista.
- OK. Ok. Onde está o carro?
- Logo ali, senhor, no estacionamento. Não posso parar
aqui, se não estiver cadastrado nesta ‘máfia’ de táxis do aeroporto.
Ele fez uma cara de
descontentamento com o sistema existente e seguiu em frente, com os dois a
seguirem-no, até onde o carro deveria estar.
O rapaz de óculos
ainda deu uma última olhada para trás, para certificar-se que não via a moça,
mas, em meio ao tumultuoso vai-e-vem de pessoas na calçada, seria impossível
distinguir a cabeça dela, entre tantas outras. O outro puxou-o pelo braço.
- Vamos! Esquece isso. É hora de voltar à base e à nossa
vida normal. Parece que nem nas férias conseguimos ficar longe destas
enrascadas!
Balançando a cabeça
desconsoladamente, o rapaz cruzou a rua e entrou no parque de estacionamento,
onde o motorista já esperava junto ao carro, uma ‘van’ preta, de aspeto comum, mas a brilhar muito, de tão bem encerada
que estava. Alguém havia caprichado na aparência, ao contrário do que eles
esperavam. Os vidros tinham película escura, que era o padrão de uso nos carros
de transporte da segunda maior cidade do país.
O homem vestia-se
como um motorista particular, com um fato preto e camisa branca. A gravata era em
padrões de riscas de giz, inclinadas em ângulo à direita e muito fininhas, com diferentes
tons de azul, variando entre o celeste e o cobalto, sobre um fundo azul-marinho.
Ele abriu o bagageiro
e tomou as mochilas dos dois, acomodando-as com cuidado. Os dois entraram pelas
portas traseiras, afivelaram os cintos de segurança e disseram para onde iam. O
homem girou a chave na ignição e as travas das portas foram automaticamente
acionadas. Ele contornou, passou pela cancela, que levantou automaticamente e
seguiu para fora do parque.
Ao virar à direita,
na rua paralela à avenida principal, diminuiu a marcha e encostou junto à
calçada. A porta de passageiros, ao lado dele, na frente, foi aberta e uma
moça, com os cabelos arranjados em uma longa trança negra, entrou e sentou-se.
Ela afivelou o cinto e disse, sem olhar para trás:
- Vamos… depressa!
Os dois passageiros
praticamente perderam a fala. O motorista acelerou e foi só então que eles perceberam
que, por baixo dos fartos cabelos escuros, na parte de trás da cabeça, surgia a
ponta de uma tatuagem que eles conheciam bem e que causou-lhes, não somente
espanto, mas também um certo receio.
***
O carro, parado
numa região quase deserta de um grande parque de ‘containers’, passava incógnito naquele local apropriado para um
encontro quase insuspeito. O homem, que passara-se por motorista, estava parado
em frente ao carro, a falar com a moça. Os dois rapazes estavam trancados
dentro do carro, sem poder sair ou ouvir a conversa, mas conseguiam perceber
que havia um conflito qualquer entre eles.
Um outro carro,
também preto, aproximou-se e parou à frente ao primeiro. Dele saltou um homem
grandalhão, com a cabeça rapada, vestido com uma ‘t-shirt’ preta bem justa, a evidenciar-lhe os músculos dos braços e
torso. Era o personagem que faltava e que eles já haviam visto antes, em várias
outras ocasiões.
O homem trocou umas
poucas palavras com os colegas e veio na direção do outro carro, onde os dois rapazes
estavam presos.
- Quem são vocês, afinal? Alguma seita maluca ou um grupo
terrorista? O que vocês querem de nós?
O rapaz de óculos
estava impaciente e irritado. Aquela história parecia estar indo longe demais
e, até aquele momento, completamente incompreensível. Seu amigo, ainda quieto,
começava a temer pelas vidas dos dois, mas não comentou nada. Esperou que o
homem de cabeça rapada, que parecia ser o líder deles, falasse.
- Não. Não somos de nenhuma seita maluca. Assim como
vocês, nós somos soldados treinados.
- Soldados? Como assim? Soldados treinados para a
batalha? Alguma guerra?
A moça respondeu.
- Não exatamente. Antes, mais pelo contrário… para
impedir uma...
- Que guerra?
- Uma guerra estúpida e silenciosa: a autodestruição da
humanidade…
- Só faltava essa. Isso é de loucos! E por que estamos
envolvidos nisso, afinal?
- Não era suposto que a nossa presença fosse percebida.
Julgávamos que estávamos sendo o mais insuspeitos possível, até que vocês
começaram a seguir-nos. A interferência de vocês poderia colocar em risco o
sucesso do que viemos fazer… e isso poderia ter consequências bastante graves
no futuro.
- No futuro? Essa conversa está cada vez mais sem
sentido. Vocês não podem ser levados a sério. Isto é uma insanidade.
O rapaz de óculos
julgava que estava diante de um grupo de fanáticos, nos quais foi executada uma
estranha lavagem cerebral, tornando-os terroristas perigosos e destemidos, com
propósitos homicidas e, provavelmente, também, suicidas.
- E foram enviados por quem, pelo amor de Deus?
- A pergunta correta não é: ‘por quem?’ Mais adequadamente,
deveria ser: ‘de onde?’… ou, talvez, melhor ainda: ‘de quando?’.
Os dois rapazes se
entreolharam.
- Nós viemos do futuro. Nossa missão é impedir o
crescimento descontrolado da população, antes que seja tarde demais.
O soldado tentou
manter a calma, já sabendo que aquelas pessoas estavam completamente dementes
e, para piorar as coisas, acreditavam naquilo que diziam. Ele, todavia, tinha
que fazer uma pergunta, que no momento pareceu-lhe crucial.
- E como vão fazer isso?
- Usando um método contraceptivo mais eficaz e mais
definitivo. Na verdade, o objetivo é esterilizar mais de sessenta por cento da
humanidade.
- Mas isso é uma loucura! Como poder ser humanamente possível?
- Esta é, apenas, uma medida preventiva, como tantas
outras que já aconteceram na vossa e na nossa história. As pessoas não
perceberão que o objetivo é muito mais profundo. A esterilização é só uma parte
do plano e é para um bem maior.
- Castrar mais da metade da população é um bem maior? Vocês
não sentem um peso na consciência?
- Na verdade, não! Nós, no futuro, somos desprovidos de
uma série de fraquezas que esta época possui. São consideradas comportamentos
de risco. Esta medida é necessária, para o avanço da ciência. Ninguém perceberá
nada, porque o efeito não será evidente. Até que os cientistas deem-se conta de
que a humanidade foi, de certa forma, envenenada, demorará um certo tempo.
Quando os responsáveis perceberem, será quase tarde demais. A terra estará com
uma população envelhecida, estéril e com o crescimento demográfico em acelerada
decadência. A ciência terá que apressar as ações de controlo e de refrear o inevitável
declínio da raça. A clonagem será a única saída… e o mal necessário… Já nos
encarregamos de plantar uma ténue semente na cabeça dos pesquisadores de um certo
laboratório, aplicando dinheiro e investindo na biotecnologia. Precisamos que
seja levado mais a sério e em menor prazo, para ajudar-nos a ajudar o futuro…
- Nós mesmos fomos produzidos em uma série controlada, do
melhor material genético possível, cientificamente manipulado, para sermos livres
de falhas, de vulnerabilidades físicas e de dúvidas, por este mesmo laboratório.
Somos marcados com códigos de barras, não temos nomes e, no nosso caso, temos
uma missão a cumprir e tempo de vida pré-determinado. Nenhum de nós existe há
mais de um ano, a não ser…
A moça olhou para o
‘motorista’ que, até então,
mantinha-se calado, mas não pode concluir a frase, diante do olhar fulminante
que recebeu do homem de cabeça rapada.
Um dos jovens
soldados não percebeu a sutileza do que se passou naquele momento. Apesar de
ainda em dúvida, ele tinha que explorar todas as possibilidades de compreender aquela
história. Será que aqueles seres eram, mesmo, soldados enviados do futuro? O
discurso era, de certa forma, bastante credível, embora extremamente fantástico.
- E o resto do planeta vai continuar intocado? O que vai
acontecer, no futuro, com os animais, as plantas, o mar, essa beleza toda?
- Já não existirá nada disso, se deixarmos as coisas como
estão. O descontrolo no crescimento demográfico resultará em um gravíssimo
problema, com efeitos exponenciais e uma grande falta de sustentabilidade, o
que levará à uma consequente crise mundial. A fome vai criar o caos e o desespero.
Consequentemente, a destruição também será exponencial. Mesmo o dinheiro e as
riquezas não terão valor, já que não haverá o que comprar e a produção será
deficiente para suprir todas as necessidades. É por isso que fomos enviados,
para tomar uma ação urgente, antes que fosse tarde demais. Aliás, já é bastante
tarde e o próprio laboratório está em grande perigo…
- O processo, agora, porém, já foi iniciado. Já não há
tempo para desfazer. É impossível voltar atrás…
- Como assim? Já começou? De que forma?
- Em vários pontos do mundo, os nossos soldados já seguiram
as ordens recebidas, à risca, despoletando um processo calculadamente eficiente
e efetivo. Os efeitos disto serão percebidos tarde demais. Não haverá como
reverter o que foi desencadeado nestes últimos dias. Nossa missão aqui está
concluída. Agora só temos que voltar para o tempo de onde viemos.
- Então por que nos trouxeram para cá?
- Para impedir que interferissem ou espalhassem o pânico.
Quando vocês começaram a seguir-nos, ficamos com receio que pusessem a operação
a perder. Ao nos separamos, criamos uma necessária distração e garantimos que o
plano seguisse, sem que houvesse qualquer intromissão.
- Mas nós podemos boicotar esse vosso plano. Isso ainda pode
dar muito errado…
- Vocês acham que têm alguma hipótese? Vocês nem saberão
por onde começar. Não conhecem o procedimento, nem o que foi iniciado. Se
quiserem nos denunciar, como se isso fosse possível, que provas teriam para
apresentar? Serão tomados por loucos ou drogados. Tudo parecerá um sonho distante
ou um delírio esquizofrénico qualquer… Além do mais, já não estaremos por cá...
O homem de cabeça
rapada olhou para o outro, que se havia passado por motorista e calou-se.
O rapaz de óculos
logo percebeu que havia uma mensagem subliminar naquela parada, mas não
perguntou nada. O que poderia, aquele homem, aparentemente inofensivo, ter, que
importunava os outros?
***
- Temos que voltar. Resta-nos muito pouco tempo, agora.
Um telefone tocou. O
homem atendeu, com o cenho franzido.
- Mas isso não estava nos planos!
Ouviu-se uma voz bastante
alterada, do outro lado da linha. O homem calou-se, ouviu e, finalmente, cedeu.
- OK. Assim será!
Ao desligar, ele caminhou,
em silêncio, até o carro parado. De lá, voltou, dentro de poucos segundos, com
uma arma automática na mão. Os soldados perceberam que o cano tinha um
silenciador…
Antes que alguém
sequer expressasse qualquer reação, ele apontou a arma e disparou, sem
pestanejar, para surpresa de todos.
A moça caiu, com um
buraco de bala na cabeça e um largo fio de sangue a escorrer, como um riacho
espesso e rubro, sobre a relva.
O homem, então,
virou-se e apontou para o motorista, pressionando o gatilho, mais uma vez.
O motorista, num
gesto inesperado e desesperado, jogou-se contra ele e os dois começaram uma
luta estranha, diante dos dois jovens soldados, que acorreram imediatamente,
para ajudar a imobilizar o assassino, derrubando-o ao chão.
Na confusão, como
sempre acontece quando se disputa a posse de uma arma carregada, ouviu-se o som
de um tiro abafado. E, então, o grupo parou de lutar…
***
O homem que havia-se
feito passar por motorista e que foi ferido segundos antes de começar a lutar, estava
caído de costas, desacordado, com a cabeça ensanguentada, um pouco atrás dos
dois rapazes. O homenzarrão de cabeça rapada, que teve a arma disparada contra
seu próprio corpo, durante a luta, tinha uma mancha escura e húmida crescendo do
meio de seu peito e tingindo o chão de vermelho, quase ao lado do corpo da moça
assassinada. A arma ainda estava em sua mão e seu dedo, ainda no gatilho...
Os dois jovens
soldados, levantaram-se e começaram a caminhar, ligeiros, na direção dos dois
automóveis pretos. O motorista, porém, moveu-se, assim que eles passaram. Ele passou
a mão na cabeça e gemeu, ao tocar a ferida que ainda sangrava. Os dois rapazes
abaixaram-se e, sem pensar muito, carregaram-no junto deles, até o carro em que
estiveram antes, ajeitando-o no banco de trás e saindo em alta velocidade.
***
O mar estava calmo,
como se todas as tempestades, de todos os tempos, houvessem passado de vez e
como se as ondas e o movimento das águas fossem somente os acordes de uma suave
cantiga de ninar, ou de um mantra repetitivo e tranquilizante.
Os três homens
estavam de pé, lado a lado, cada qual com seus próprios pensamentos, a olhar o
mar a movimentar-se e a ver umas poucas pessoas passarem, sem dar-se conta do
que acontecia nos bastidores da vida, sem que tivessem qualquer noção e que
poderia colocá-las em perigo. O rapaz de óculos quebrou o silêncio.
- Nós ainda não decidimos o que vamos fazer com a
informação que nos foi dada…
- Não vamos fazer nada. Aquilo não pode ser levado a
sério. Foi uma loucura… Nunca saberemos a verdade…
Os dois jovens
soldados olharam para o outro homem, que manteve-se impávido, sem esboçar
nenhuma reação ao comentário deles. Sua vida havia sido salva pelos dois e ele
devia-lhes mais do que um simples obrigado. O homem deu um longo suspiro, como
se quisesse absorver o iodado e salino ar do oceano, como se fosse por uma
última vez. Ele fechou os olhos por uns instantes, depois falou, calmamente.
- Nós evitamos falar sobre este assunto por muito tempo…
- Talvez seja hora de falarmos, mesmo.
- Já não há muito o que falar. Não lembro de muita coisa
antes do incidente… acidente… fosse lá o que fosse…
- Grande! Que bela história! E nunca vamos poder
confirmar nada…
- Eu lembro de ter participado de um treinamento militar bastante
árduo… de ter sido enviado antes deste grupo… da introdução do fármaco nos
abastecimentos de água… depois é tudo um pouco confuso…
- O fármaco na água? Então foi assim que a esterilização
foi executada? Que loucura…
- Era necessário. Foi para isso que fomos enviados. O
laboratório estava sob pressão e a invasão era iminente… Engraçado que eu não lembro
de nada, antes do treinamento… como se nunca houvesse acontecido…
- Ou como se tivesse sido apagado…por alguma razão…
O homem parou de
falar e fechou, novamente, os olhos, apoiando-se no metal de proteção do passadiço,
em frente à praia, com a cabeça baixa.
Os dois soldados
não sabiam o que pensar, dizer, ou fazer… Aqueles fragmentos de memória
contavam uma história absurdamente convincente e descabida, ao mesmo tempo, mas
que não fazia conexão com qualquer tipo de realidade.
Treinamentos militares,
laboratório secreto, viajantes do tempo… que sentido poderiam fazer?
Se a história era
real e aconteceu mesmo, ficou perdida na lembrança de um soldado ferido e com
problemas de memória. E como saber o que fazer?
***
- Eu não entendo. Se os soldados nunca voltaram e se tudo o que aconteceu não foi mesmo
um delírio em massa, como os cientistas irão saber se o plano funcionou?
- A explicação é, até, bem simples. Se nós mudarmos o
passado, não existirá o mesmo futuro que nos enviou a ele… Para todos os
efeitos, na verdade, eles nunca existiram… Eles não poderiam voltar para um
futuro que já não existirá… pelo menos não da maneira que eles viram!
- E por mais assustador que possa parecer, nós nunca
saberemos se o plano funcionou, porque nunca chegaremos a aquele futuro… É um
beco sem saída!
- Oh, meu Deus! Que loucura!
O rapaz de óculos tirou-os
e passou as mãos no rosto, parecendo completamente confuso.
Um homem aproximou-se e perguntou se eles tinham lume para acender o cigarro. Eles disseram que não e o estranho agradeceu e continuou a caminhar, sem olhar para trás. Ele passou os dedos pelos cabelos e ajeitou a gola do casaco.
Só não foi a tempo suficiente de esconder uma pequena tatuagem na parte de trás do pescoço... um código de barras...