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domingo, 12 de julho de 2020

Viajante do Tempo. Parte 1. O Farol.



- Sabe, às vezes eu sinto que não pertenço a este lugar e a este tempo. E é mais do que apenas algumas vezes.

- E tu és, agora, um viajante do tempo?

Ele fez a pergunta, sorrindo.

- Tu também não te sentes, às vezes, fora do tempo e do lugar?

Ele sorriu de novo, de uma maneira engraçada, como se soubesse mais do que estava dizendo ao amigo.

- Sinto, sim.

- Então me entendes, quando eu digo isso... É tão...

Dessa vez, ele ficou pensativo, como se algo mais sério lhe ocorresse.

- Tu não tens ideia do quanto eu te entendo...

***

- Nós não deveríamos estar aqui. Se alguém nos vê...

- Calado! Ninguém vai-nos ver. Nós estamos seguros. Já passa muito da meia-noite.

- E se a polícia aparecer?

- Seremos rápidos. Eu só quero ter certeza de que está realmente aqui.

- E como nós vamos saber?

- Eu vou saber, acredite em mim...

- Está bem.

- Deveria estar por aqui em algum lugar, mas é tão trivial que ninguém jamais notaria. Ou, se o fizerem, nunca teriam uma ideia do que realmente é. Cá está. Eu sabia!

- Pronto. Já achamos, agora vamos embora daqui! É apenas um ‘geocache’!

- É assim que pode parecer, mas é mais do que isso. Não é uma caixa. Vês? Tenho certeza que é um portal.

- O que nós vamos fazer?

- Nada. Não vamos fazer nada. É mais seguro que fique aqui, do jeito que está.

- Achas que há mais?

- Portais?

- Viajantes?

Ele olhou para o jovem de óculos, em silêncio. Seu rosto estava protegido pela sombra, mas houve uma súbita mudança na sua forma de respirar.

- Vamos sair daqui, agora. Não tarda a amanhecer.

- Espera. Alguém se aproxima. Ouves?

- Rápido! Faz alguns alongamentos. Finge que estamos exercitando.

O som dos passos ficou mais alto. Alguém vinha correndo a caminho do cais e se aproximava de onde eles estavam.

O rapaz de óculos virou-se e descansou a perna no parapeito inferior, esticando-se devagar com as mãos, tentado alcançar os pés, como se estivesse fazendo alongamentos. Seu companheiro segurava um pé com uma das mãos, suportado por uma perna, apenas.

Eles não conseguiam ver se o rosto do corredor recém-chegado, no interior do capuz do casaco de treino escuro, era jovem ou velho, mas pela maneira como ele se movia, podia-se dizer que era um homem atlético. Ele passou pela pista e deu a volta ao redor do farol, voltou ao cais e saiu pelo mesmo caminho que veio, entrando no calçadão. Logo ganhou a rua e desapareceu na escuridão novamente. O som de seus passos foi desaparecendo ao longe.

Os dois homens se entreolharam, aliviados.

- Essa foi por pouco!

- Que nada! Pare de ter tanto medo de tudo. Vamos voltar. Já tivemos mais que o suficiente esta madrugada.

Eles saíram rapidamente para onde o jipe ​​estava estacionado e entraram, não sem antes olharem a volta.

Não viram o homem vestindo um casaco de treino, escuro e com capuz, parado do outro lado da área do estacionamento, protegido da vista, pela penumbra.

Assim que o carro saiu, ele atravessou o parque e voltou a se aproximar do farol, correndo...

***

Os dois chegaram em casa em alguns minutos, já que não havia tráfego àquela hora da manhã. Ainda tinham algumas coisas para discutir.

- Que porra era aquela? Era mesmo um portal? A sério? Eu pensei que havíamos ido procurar um ‘geocache’…

- Tu sabes muito bem que era um portal e não um ‘cache’. Tu viste os detalhes…

O homem de óculos estava totalmente confuso, pois sabia que aquelas coisas eram difíceis de entender e acreditar.

Seu amigo parecia mais à vontade com a existência de um portal, embora desde que eles haviam deixado o farol, parecia bastante distraído, como se estivesse em outro mundo… ou época.

- Tu achas que nós deveríamos...?

- Eu acho.

- Quando?

- Quanto mais cedo melhor. Vamos arrumar algumas coisas nas mochilas. Talvez não voltemos hoje.

***

O sol mal acabava de nascer e eles já estavam na estrada para o norte. A A28 estava silenciosa, mas logo estaria movimentada, devido ao tráfego para as zonas industriais e às pessoas que iam para as praias.

- Um portal? Não é possível! Mas aquele último foi totalmente destruído!

- Eu sei. Mas tudo aponta para um novo e nós o localizamos. Está lá, tão à vista quanto um ‘geocache’ normal… mas com detalhes muito característicos.

- Como isso pode ser possível? A menos que... Espera!... Não, não, não... Isso é improvável...

- O quê? Espera aí! Tu estás sugerindo que eles voltaram para cá?

- Do que vocês dois estão falando? Isto não faz nenhum sentido.

- Mas por que aqui e por que agora? O que há aqui, nesta era, que poderia ser de algum interesse para eles?

- Eu não faço ideia. Se tivéssemos alguma indicação do que aconteceu, quando...

Eles olharam para o homem de óculos.

- ‘Oblívio’, o ‘Esquecimento’...

- OK! Vamos parar aqui e agora. Quero saber tudo sobre este incidente com ‘Oblívio’... Passou-se bastante tempo. Já está mais que na hora de falarmos sobre isso. E não me tentem enganar mais, por favor!

Os dois homens olharam para aquele que usava óculos. Ele estava lívido.

- OK. É melhor sentar. Vou-te trazer um pouco de água. Relaxe um pouco, sim?

- Eu não quero e nem vou relaxar. Tudo isso parece estar relacionado. Digam-me já o que aconteceu... Quero saber agora!

- Ok, mas agora, sente-se, por favor. Beba a água. Eu vou explicar... Ou, pelo menos, vou tentar esclarecer-te esta história, de uma vez por todas.

***



sábado, 1 de dezembro de 2018

Obliviar (Parte 2: A Volta)


- É impossível!

- Leia outra vez. Tente ler nas entrelinhas. É pequeno, a superfície é reflectora e não pode ser detectado pelos telescópios, até o momento em que estava muito perto, mas também muito rápido para ser seguido pelas câmaras dos satélites… Olhe a figura. Não achas que…?

- Pode parar! Não acho nada! Aquilo não pode ter vindo de um planeta alienígena…

- Mas pode ter vindo do nosso planeta, duma outra era, muito adiante do nosso tempo, não pode?

- Começas a confundir-me.

- Estou a tentar achar um jeito, uma teoria, uma resposta, uma saída…

- Tu sabes que eu não sou um cientista. Quantas vezes preciso lembrar-te disso?

- Tu és feito do melhor material genético que já houve… que há… que haverá… Nunca pensei que isso iria ser tão difícil de ser colocado numa conversa.

- Não tente. Desista.

 - Pensa comigo. Tente pensar como um cientista. Tu sobreviveste porque tu és um dos seres mais preparados e habilitados. Usa teu cérebro da maneira mais prática que houver.

- Eu sobrevivi, porque fui enviado ao passado, uns pouquíssimos segundos antes da explosão. E eu não fui o único, como vocês já sabem.

- Pensa comigo! Por favor?

Aquele homem de pele pálida olhou muito seriamente para os dois jovens soldados e falou o que passava na sua mente.

- Na era de onde eu vim não havia aquele tipo de transportes. Nós viajávamos usando terminais de transporte tempo-espaço, que eram mais eficientes. O único veículo que eu conheci foi aquele que me trouxe para cá, quando o planeta explodiu. Era antiquado, mas eficiente para o propósito, pois não usava os terminais e não seria detectado pelo sistema, nem colocaria em causa a operação que o homem, que destruiu o planeta, planeou. Foi enviado ao passado através de uma fenda deliberadamente aberta no tempo, por ele, no momento da explosão. A cápsula nunca poderia ser comparada ao vosso “Oumuamua”. Este poderia ter vindo do passado, não do futuro e deve provavelmente estar a viajar por centenas, talvez até milhares de anos.

- Então tu concordas que tenha vindo de outro planeta.

- Eu não concordo, nem discordo. Nós temos muito pouca informação sobre ele, quase nada além de teorias, para tirar conclusões. Se nem os cientistas mais especializados conseguem ter certeza de nada, imagina se eu ia poder. O que é certo, e que eu quis dizer foi que não veio do mesmo tempo e espaço de onde eu vim…

O homem de pele pálida encarou os dois jovens soldados. Seus olhos mostravam uma tristeza nostálgica profunda, quando concluiu a frase.

- …E para onde eu nunca vou poder voltar. A única forma de entrar em contacto com o futuro seria se alguém de lá quisesse entrar em contacto com o passado. Não há outra forma. E nós sabemos que isso já não é mais possível.

***

- Eu te disse para parar com esta besteira.

- Eu sei. Mas era uma hipótese a ser considerada. E agora?

- Agora voltamos para nossas vidas, como sempre. Deixemos o passado lá onde ele pertence.

- Talvez haja ainda uma forma…

- Não recomeces!

Os dois se olharam. O rapaz de óculos tinha uma expressão distante e um leve sorriso a esboçar-se, discretamente, na face jovem e jovial.

***

- O quê? Por que tu ainda queres voltar para lá? Ainda não basta disto?

- Eu tenho que voltar lá. Eu gostaria que tu viesses comigo, se não te importares.

- Claro que eu me importo, mas vou contigo, sim. Aquela área ainda é proibida. Sabes muito bem disso. Só espero que não entremos numa fria.

- Ninguém vai saber que estivemos lá, de toda forma.

- Bom, é melhor termos cuidado, mesmo assim. Tenho certeza que está sendo monitorizada de alguma forma.

- Vai dar tudo certo.

- Ah. Tá…

***

O rapaz de óculos parecia estar tão distante, no meio da desolação daquele campo imenso em que se tornou a vila, onde moravam, antes da grande explosão. Seus olhos estavam cheios de lágrimas de nostalgia.

O outro olhava à volta, não tão absorto, mas também envolvido em suas memórias de infância, quando brincavam da redondeza até o riacho, ou subiam a montanha e acampavam por lá, nas férias de verão.

Era estranho estarem ali, no meio do que havia sido seus lares, contemplando o vazio e o deserto que a terra havia-se transformado. A montanha virara um monte, apenas, com uma enorme cratera, aberta onde havia sido a base nuclear, agora completamente soterrada e inactiva. A desolação do local mostrava que havia, ainda, actividade radioactiva, o que impedia qualquer coisa de crescer por ali. Os soldados haviam tomado as precauções, mas sabiam que não podiam ficar no local por muito pouco tempo, por razões mais que óbvias.

- Temos que ir. Já não há nada que ainda possamos ver. Como era de se esperar, não sobrou nada para contar a história…foi-se tudo…

- OK. Vamos embora. Podíamos ir até a montanha, antes de irmos de vez?

- Para quê?

- Foi lá que tudo aconteceu. Acho que preciso ir até lá e resolver isso tudo na minha cabeça. Sinto que nem tudo foi-se…ainda…

- Eu não gosto disso, mas OK. Se é para ir, vamos logo. Temos que nos apressar.

Subiram pela antiga estrada que levava à base, até quase a cratera, quando uma grande fenda na estrada os impediu de passar. Os dois saltaram do Jeep e começaram a caminhar, tentando contornar a grande rachadura e achar um lugar onde pudessem atravessar. A fenda ainda era muito profunda e larga. Eles teriam que saltar para o outro lado, onde a distância não fosse tão grande.

Quase no topo, a sudeste da base principal, onde os dois lados do barranco pareciam mais próximos, o rapaz de óculos tomou impulso e saltou para o outro lado. O amigo fez o mesmo. Chegaram à borda da cratera, que era profunda e tinha diâmetro de, pelo menos, uns oitenta metros. A base estava totalmente soterrada. Não havia vestígio aparente do que havia sido antes, para quem desconhecesse o local, mas não para eles.

- Não há mais nada aqui, como vês. Nem parece o que já foi, há tempos. Está tudo soterrado em baixo desta terra estéril, assim como o passado. Temos que ir embora. É arriscado ficar muito tempo aqui.

O rapaz de óculos deu um longo suspiro.

- OK. Vamos.

Os dois começaram a descer, até onde haviam saltado. O primeiro fez impulso e saltou. Quando seus pés bateram firmes no chão, do outro lado, sentiu que a terra tremeu sob eles. Olhou para trás e viu a cara de pavor do rapaz de óculos.

- Salta! Depressa!

Ele saltou, mas quando tocou o outro lado, a terra tremeu novamente e a fenda cedeu um pouco. Ele perdeu o equilíbrio e começou a escorregar para dentro da enorme rachadura, lentamente, junto com a terra seca e solta, sem poder agarrar-se a nada.

- Oh, não! Não outra vez!

- Aguenta firme. Tenta achar uma raiz, ou coisa que o valha, para agarrar-te, que eu vou buscar o gancho e a corda do Jeep.

O rapaz de óculos não respondeu. Apenas olhou para baixo, tentando localizar qualquer coisa que o fizesse parar de descer, mas a fenda parecia abrir uma enorme boca e tentar engoli-lo lentamente.

Ele não gritou. Tentou parar, usando os dedos das mãos e os pés, mas não conseguiu mais que esfolar-se todo. Ele avistou o que parecia ser o resto de uma tubulação metálica e tentou dirigir sua rota para aquela saída. Seu corpo escorregava mais rápido e ele virou-se, tomou impulso e saltou sobre o tal tubo.

Foi, então, que aquilo, que era apenas um pedaço do que poderia ter sido um velho encanamento, desprendeu-se da parede de terra seca e começou a cair, junto com ele, para o fundo escuro do largo buraco.

***

domingo, 28 de agosto de 2016

Código de Barras (Final)


Um vento agradavelmente refrescante soprou forte contra os dois rapazes, assim que a porta de saída do aeroporto abriu-se e eles viram-se do lado de fora, onde os táxis enfileiravam-se e partiam com os passageiros e suas bagagens, num ritmo frenético e praticamente constante.

Um homem de cabelos escuros e fartos e estatura normal, aparentando cerca de pouco mais de trinta anos, aproximou-se e perguntou para onde eles iam, mas os rapazes estavam apenas preocupados em procurar por uma cabeça conhecida, entre as tantas que por ali estavam. O homem insistiu, mas os dois disseram que esperavam por alguém, dando-lhe menos importância que ele queria.

A porta de saída do prédio do aeroporto abria-se e fechava-se a cada poucos segundos, mas eles não viam quem esperavam a sair por ela.

- Vou voltar lá dentro. Pode ter acontecido algo...

- Vais nada! Achas que, no meio desta confusão, vais encontrar alguém? Vamos é embora daqui, antes que seja tarde. Chega desta história e desta gente estranha.

O homem, que não havia saído de perto, voltou a insistir com eles, oferecendo-lhes um serviço de transporte, mais barato que o dos táxis. Eles tentaram descartá-lo, mas ele era mesmo insistente. Os rapazes perceberam que se fossem tomar um táxi normal, teriam que esperar numa longa fila, que parecia aumentar conforme os minutos passavam e os carros já começavam a escassear, por isso decidiram ir com o tal motorista.

- OK. Ok. Onde está o carro?

- Logo ali, senhor, no estacionamento. Não posso parar aqui, se não estiver cadastrado nesta ‘máfia’ de táxis do aeroporto.

Ele fez uma cara de descontentamento com o sistema existente e seguiu em frente, com os dois a seguirem-no, até onde o carro deveria estar.

O rapaz de óculos ainda deu uma última olhada para trás, para certificar-se que não via a moça, mas, em meio ao tumultuoso vai-e-vem de pessoas na calçada, seria impossível distinguir a cabeça dela, entre tantas outras. O outro puxou-o pelo braço.

- Vamos! Esquece isso. É hora de voltar à base e à nossa vida normal. Parece que nem nas férias conseguimos ficar longe destas enrascadas!

Balançando a cabeça desconsoladamente, o rapaz cruzou a rua e entrou no parque de estacionamento, onde o motorista já esperava junto ao carro, uma ‘van’ preta, de aspeto comum, mas a brilhar muito, de tão bem encerada que estava. Alguém havia caprichado na aparência, ao contrário do que eles esperavam. Os vidros tinham película escura, que era o padrão de uso nos carros de transporte da segunda maior cidade do país.

O homem vestia-se como um motorista particular, com um fato preto e camisa branca. A gravata era em padrões de riscas de giz, inclinadas em ângulo à direita e muito fininhas, com diferentes tons de azul, variando entre o celeste e o cobalto, sobre um fundo azul-marinho.

Ele abriu o bagageiro e tomou as mochilas dos dois, acomodando-as com cuidado. Os dois entraram pelas portas traseiras, afivelaram os cintos de segurança e disseram para onde iam. O homem girou a chave na ignição e as travas das portas foram automaticamente acionadas. Ele contornou, passou pela cancela, que levantou automaticamente e seguiu para fora do parque.

Ao virar à direita, na rua paralela à avenida principal, diminuiu a marcha e encostou junto à calçada. A porta de passageiros, ao lado dele, na frente, foi aberta e uma moça, com os cabelos arranjados em uma longa trança negra, entrou e sentou-se. Ela afivelou o cinto e disse, sem olhar para trás:

- Vamos… depressa!

Os dois passageiros praticamente perderam a fala. O motorista acelerou e foi só então que eles perceberam que, por baixo dos fartos cabelos escuros, na parte de trás da cabeça, surgia a ponta de uma tatuagem que eles conheciam bem e que causou-lhes, não somente espanto, mas também um certo receio.

***

O carro, parado numa região quase deserta de um grande parque de ‘containers’, passava incógnito naquele local apropriado para um encontro quase insuspeito. O homem, que passara-se por motorista, estava parado em frente ao carro, a falar com a moça. Os dois rapazes estavam trancados dentro do carro, sem poder sair ou ouvir a conversa, mas conseguiam perceber que havia um conflito qualquer entre eles.

Um outro carro, também preto, aproximou-se e parou à frente ao primeiro. Dele saltou um homem grandalhão, com a cabeça rapada, vestido com uma ‘t-shirt’ preta bem justa, a evidenciar-lhe os músculos dos braços e torso. Era o personagem que faltava e que eles já haviam visto antes, em várias outras ocasiões.

O homem trocou umas poucas palavras com os colegas e veio na direção do outro carro, onde os dois rapazes estavam presos.

- Quem são vocês, afinal? Alguma seita maluca ou um grupo terrorista? O que vocês querem de nós?

O rapaz de óculos estava impaciente e irritado. Aquela história parecia estar indo longe demais e, até aquele momento, completamente incompreensível. Seu amigo, ainda quieto, começava a temer pelas vidas dos dois, mas não comentou nada. Esperou que o homem de cabeça rapada, que parecia ser o líder deles, falasse.

- Não. Não somos de nenhuma seita maluca. Assim como vocês, nós somos soldados treinados.

- Soldados? Como assim? Soldados treinados para a batalha? Alguma guerra?

A moça respondeu.

- Não exatamente. Antes, mais pelo contrário… para impedir uma...

- Que guerra?

- Uma guerra estúpida e silenciosa: a autodestruição da humanidade…

- Só faltava essa. Isso é de loucos! E por que estamos envolvidos nisso, afinal?

- Não era suposto que a nossa presença fosse percebida. Julgávamos que estávamos sendo o mais insuspeitos possível, até que vocês começaram a seguir-nos. A interferência de vocês poderia colocar em risco o sucesso do que viemos fazer… e isso poderia ter consequências bastante graves no futuro.

- No futuro? Essa conversa está cada vez mais sem sentido. Vocês não podem ser levados a sério. Isto é uma insanidade.

O rapaz de óculos julgava que estava diante de um grupo de fanáticos, nos quais foi executada uma estranha lavagem cerebral, tornando-os terroristas perigosos e destemidos, com propósitos homicidas e, provavelmente, também, suicidas.

- E foram enviados por quem, pelo amor de Deus?

- A pergunta correta não é: ‘por quem?’ Mais adequadamente, deveria ser: ‘de onde?’… ou, talvez, melhor ainda: ‘de quando?’.

Os dois rapazes se entreolharam. 

- Nós viemos do futuro. Nossa missão é impedir o crescimento descontrolado da população, antes que seja tarde demais.

O soldado tentou manter a calma, já sabendo que aquelas pessoas estavam completamente dementes e, para piorar as coisas, acreditavam naquilo que diziam. Ele, todavia, tinha que fazer uma pergunta, que no momento pareceu-lhe crucial.

- E como vão fazer isso?

- Usando um método contraceptivo mais eficaz e mais definitivo. Na verdade, o objetivo é esterilizar mais de sessenta por cento da humanidade.

- Mas isso é uma loucura! Como poder ser humanamente possível?

- Esta é, apenas, uma medida preventiva, como tantas outras que já aconteceram na vossa e na nossa história. As pessoas não perceberão que o objetivo é muito mais profundo. A esterilização é só uma parte do plano e é para um bem maior.

- Castrar mais da metade da população é um bem maior? Vocês não sentem um peso na consciência?

- Na verdade, não! Nós, no futuro, somos desprovidos de uma série de fraquezas que esta época possui. São consideradas comportamentos de risco. Esta medida é necessária, para o avanço da ciência. Ninguém perceberá nada, porque o efeito não será evidente. Até que os cientistas deem-se conta de que a humanidade foi, de certa forma, envenenada, demorará um certo tempo. Quando os responsáveis perceberem, será quase tarde demais. A terra estará com uma população envelhecida, estéril e com o crescimento demográfico em acelerada decadência. A ciência terá que apressar as ações de controlo e de refrear o inevitável declínio da raça. A clonagem será a única saída… e o mal necessário… Já nos encarregamos de plantar uma ténue semente na cabeça dos pesquisadores de um certo laboratório, aplicando dinheiro e investindo na biotecnologia. Precisamos que seja levado mais a sério e em menor prazo, para ajudar-nos a ajudar o futuro…

- Nós mesmos fomos produzidos em uma série controlada, do melhor material genético possível, cientificamente manipulado, para sermos livres de falhas, de vulnerabilidades físicas e de dúvidas, por este mesmo laboratório. Somos marcados com códigos de barras, não temos nomes e, no nosso caso, temos uma missão a cumprir e tempo de vida pré-determinado. Nenhum de nós existe há mais de um ano, a não ser…

A moça olhou para o ‘motorista’ que, até então, mantinha-se calado, mas não pode concluir a frase, diante do olhar fulminante que recebeu do homem de cabeça rapada.

Um dos jovens soldados não percebeu a sutileza do que se passou naquele momento. Apesar de ainda em dúvida, ele tinha que explorar todas as possibilidades de compreender aquela história. Será que aqueles seres eram, mesmo, soldados enviados do futuro? O discurso era, de certa forma, bastante credível, embora extremamente fantástico.

- E o resto do planeta vai continuar intocado? O que vai acontecer, no futuro, com os animais, as plantas, o mar, essa beleza toda?

- Já não existirá nada disso, se deixarmos as coisas como estão. O descontrolo no crescimento demográfico resultará em um gravíssimo problema, com efeitos exponenciais e uma grande falta de sustentabilidade, o que levará à uma consequente crise mundial. A fome vai criar o caos e o desespero. Consequentemente, a destruição também será exponencial. Mesmo o dinheiro e as riquezas não terão valor, já que não haverá o que comprar e a produção será deficiente para suprir todas as necessidades. É por isso que fomos enviados, para tomar uma ação urgente, antes que fosse tarde demais. Aliás, já é bastante tarde e o próprio laboratório está em grande perigo…

- O processo, agora, porém, já foi iniciado. Já não há tempo para desfazer. É impossível voltar atrás…

- Como assim? Já começou? De que forma?

- Em vários pontos do mundo, os nossos soldados já seguiram as ordens recebidas, à risca, despoletando um processo calculadamente eficiente e efetivo. Os efeitos disto serão percebidos tarde demais. Não haverá como reverter o que foi desencadeado nestes últimos dias. Nossa missão aqui está concluída. Agora só temos que voltar para o tempo de onde viemos.

- Então por que nos trouxeram para cá?

- Para impedir que interferissem ou espalhassem o pânico. Quando vocês começaram a seguir-nos, ficamos com receio que pusessem a operação a perder. Ao nos separamos, criamos uma necessária distração e garantimos que o plano seguisse, sem que houvesse qualquer intromissão. 

- Mas nós podemos boicotar esse vosso plano. Isso ainda pode dar muito errado…

- Vocês acham que têm alguma hipótese? Vocês nem saberão por onde começar. Não conhecem o procedimento, nem o que foi iniciado. Se quiserem nos denunciar, como se isso fosse possível, que provas teriam para apresentar? Serão tomados por loucos ou drogados. Tudo parecerá um sonho distante ou um delírio esquizofrénico qualquer… Além do mais, já não estaremos por cá...

O homem de cabeça rapada olhou para o outro, que se havia passado por motorista e calou-se.

O rapaz de óculos logo percebeu que havia uma mensagem subliminar naquela parada, mas não perguntou nada. O que poderia, aquele homem, aparentemente inofensivo, ter, que importunava os outros?

***

- Temos que voltar. Resta-nos muito pouco tempo, agora.

Um telefone tocou. O homem atendeu, com o cenho franzido.

- Mas isso não estava nos planos!

Ouviu-se uma voz bastante alterada, do outro lado da linha. O homem calou-se, ouviu e, finalmente, cedeu.

- OK. Assim será!

Ao desligar, ele caminhou, em silêncio, até o carro parado. De lá, voltou, dentro de poucos segundos, com uma arma automática na mão. Os soldados perceberam que o cano tinha um silenciador…

Antes que alguém sequer expressasse qualquer reação, ele apontou a arma e disparou, sem pestanejar, para surpresa de todos.

A moça caiu, com um buraco de bala na cabeça e um largo fio de sangue a escorrer, como um riacho espesso e rubro, sobre a relva.

O homem, então, virou-se e apontou para o motorista, pressionando o gatilho, mais uma vez.

O motorista, num gesto inesperado e desesperado, jogou-se contra ele e os dois começaram uma luta estranha, diante dos dois jovens soldados, que acorreram imediatamente, para ajudar a imobilizar o assassino, derrubando-o ao chão.

Na confusão, como sempre acontece quando se disputa a posse de uma arma carregada, ouviu-se o som de um tiro abafado. E, então, o grupo parou de lutar…

***

O homem que havia-se feito passar por motorista e que foi ferido segundos antes de começar a lutar, estava caído de costas, desacordado, com a cabeça ensanguentada, um pouco atrás dos dois rapazes. O homenzarrão de cabeça rapada, que teve a arma disparada contra seu próprio corpo, durante a luta, tinha uma mancha escura e húmida crescendo do meio de seu peito e tingindo o chão de vermelho, quase ao lado do corpo da moça assassinada. A arma ainda estava em sua mão e seu dedo, ainda no gatilho...

Os dois jovens soldados, levantaram-se e começaram a caminhar, ligeiros, na direção dos dois automóveis pretos. O motorista, porém, moveu-se, assim que eles passaram. Ele passou a mão na cabeça e gemeu, ao tocar a ferida que ainda sangrava. Os dois rapazes abaixaram-se e, sem pensar muito, carregaram-no junto deles, até o carro em que estiveram antes, ajeitando-o no banco de trás e saindo em alta velocidade. 

***

O mar estava calmo, como se todas as tempestades, de todos os tempos, houvessem passado de vez e como se as ondas e o movimento das águas fossem somente os acordes de uma suave cantiga de ninar, ou de um mantra repetitivo e tranquilizante.

Os três homens estavam de pé, lado a lado, cada qual com seus próprios pensamentos, a olhar o mar a movimentar-se e a ver umas poucas pessoas passarem, sem dar-se conta do que acontecia nos bastidores da vida, sem que tivessem qualquer noção e que poderia colocá-las em perigo. O rapaz de óculos quebrou o silêncio.

- Nós ainda não decidimos o que vamos fazer com a informação que nos foi dada…

- Não vamos fazer nada. Aquilo não pode ser levado a sério. Foi uma loucura… Nunca saberemos a verdade…

Os dois jovens soldados olharam para o outro homem, que manteve-se impávido, sem esboçar nenhuma reação ao comentário deles. Sua vida havia sido salva pelos dois e ele devia-lhes mais do que um simples obrigado. O homem deu um longo suspiro, como se quisesse absorver o iodado e salino ar do oceano, como se fosse por uma última vez. Ele fechou os olhos por uns instantes, depois falou, calmamente.

- Nós evitamos falar sobre este assunto por muito tempo…

- Talvez seja hora de falarmos, mesmo.

- Já não há muito o que falar. Não lembro de muita coisa antes do incidente… acidente… fosse lá o que fosse…

- Grande! Que bela história! E nunca vamos poder confirmar nada…

- Eu lembro de ter participado de um treinamento militar bastante árduo… de ter sido enviado antes deste grupo… da introdução do fármaco nos abastecimentos de água… depois é tudo um pouco confuso…

- O fármaco na água? Então foi assim que a esterilização foi executada? Que loucura…

- Era necessário. Foi para isso que fomos enviados. O laboratório estava sob pressão e a invasão era iminente… Engraçado que eu não lembro de nada, antes do treinamento… como se nunca houvesse acontecido…

- Ou como se tivesse sido apagado…por alguma razão…

O homem parou de falar e fechou, novamente, os olhos, apoiando-se no metal de proteção do passadiço, em frente à praia, com a cabeça baixa.

Os dois soldados não sabiam o que pensar, dizer, ou fazer… Aqueles fragmentos de memória contavam uma história absurdamente convincente e descabida, ao mesmo tempo, mas que não fazia conexão com qualquer tipo de realidade.

Treinamentos militares, laboratório secreto, viajantes do tempo… que sentido poderiam fazer?

Se a história era real e aconteceu mesmo, ficou perdida na lembrança de um soldado ferido e com problemas de memória. E como saber o que fazer?

***

- Eu não entendo. Se  os soldados nunca voltaram e se tudo o que aconteceu não foi mesmo um delírio em massa, como os cientistas irão saber se o plano funcionou?

- A explicação é, até, bem simples. Se nós mudarmos o passado, não existirá o mesmo futuro que nos enviou a ele… Para todos os efeitos, na verdade, eles nunca existiram… Eles não poderiam voltar para um futuro que já não existirá… pelo menos não da maneira que eles viram!

- E por mais assustador que possa parecer, nós nunca saberemos se o plano funcionou, porque nunca chegaremos a aquele futuro… É um beco sem saída!

- Oh, meu Deus! Que loucura!

O rapaz de óculos tirou-os e passou as mãos no rosto, parecendo completamente confuso.

Um homem aproximou-se e perguntou se eles tinham lume para acender o cigarro. Eles disseram que não e o estranho agradeceu e continuou a caminhar, sem olhar para trás. Ele passou os dedos pelos cabelos e ajeitou a gola do casaco. 

Só não foi a tempo suficiente de esconder uma pequena tatuagem na parte de trás do pescoço... um código de barras...