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quinta-feira, 25 de julho de 2019

Voltar para Casa (Parte 1)



Quando eu saí pela porta da frente, com a cabeça tão distraída com um milhão e meio de pequenos problemas, quase esbarrei no homem que vinha passando pela calçada. Ele me olhou por menos de um segundo, como se me estivesse amaldiçoando ou me quisesse matar, mas não disse nada. Eu também não disse nada além de murmurar um envergonhado “desculpe” e continuei o meu caminho.

Havia algo de familiar naquele homem. Seu rosto pálido e a barba loira quase ruiva chamaram minha atenção, por algum motivo. Ele era um jovem alto, talvez por volta dos trinta e poucos anos, o cabelo loiro ficando ralo no alto da cabeça, um corpo bonito, sem ser atlético, mas muito longe de estar acima do peso.

Estava muito ocupado com seu telefone, por isso não me deu mais atenção que eu merecia: não mais que uns poucos milissegundos.

Havia uma parada de ônibus bem em frente ao prédio e foi ali que ele ficou.

Se eu não estivesse quase na hora de um compromisso importante, arranjaria uma desculpa qualquer para voltar e olhar para ele, apenas uma vez mais e um pouco mais longamente que eu consegui naquele curto espaço de tempo. Mas havia o compromisso e eu não costumava atrasar-me...

***

- Tenho vontade de chorar.

- Por quê?

- Não tenho certeza…

- Então quem poderia ter?

Ele me olhou, como se eu estivesse dizendo o maior absurdo de todos. Tentei segurar minhas lágrimas, mas não consegui. Meu coração estava, por algum motivo, tão pesado, que eu perdia o controlo das minhas emoções. Ele não disse mais nada. Ele me conhecia muito bem.

- Levas-me para casa? Por favor?

- Para casa? "Lar é onde teu coração está"…

- Tu sempre dizes isso.

- Eu sei... Digo, porque sei que tu gostas.

- E gosto. Mas hoje eu só preciso de um abrigo… e de um abraço apertado.

E ele me abraçou. Eu deixei cair todas as minha defesas e chorei desatinadamente.

***

- Vais-me dizer o que está acontecendo?

- Não sei se consigo.

Ele ficou de frente para mim e olhou-me nos olhos. Como eu poderia explicar que o que eu estava sentindo era, realmente, inexplicável? Será que ele alguma vez entenderia que às vezes meu próprio passado me assombrava sobremaneira?

- Queres ficar só? Por algum tempo?

- Não, não mesmo.

- Então vem comigo.

- Para onde?

- Para a praia. Eu sei como o mar te faz sentir bem. Acho que é disto que precisas agora.

Sorri e segui o homem, que nem esperou pela minha resposta. Ele tinha tanta certeza que eu o seguiria, que apenas assumiu que era a coisa mais certa a fazer... E então nós fomos até a praia, quase completamente longe da maioria das pessoas, para recarregar nossas baterias... ou melhor dizendo: para tentar recarregar as minhas baterias.

Caminhamos a certa distância ao longo da praia, com os pés nas águas frias. O ar estava fresco e, à medida que o tempo passava, a temperatura baixava lentamente. Era final de tarde.

Nós nos debruçamos sobre o parapeito do píer por um tempo, em silêncio, apenas observando o sol se pôr, apreciando a paisagem e absorvidos por nossos pensamentos mais íntimos. Minha mente vagou no tempo.

Lá estava eu, há muitos anos atrás, a observar, por um longo tempo, aquele movimento das ondas que iam e vinham, continuamente, acabar na areia branca da praia, em uma explosão de som e espuma. Minha mente estava em outro lugar, tão distante dali.

***

O tempo passou tão rápido. Eu via algumas pessoas a caminhar pela praia, distraidamente, enquanto os pescadores lançavam suas linhas ao mar, todos ocupados com suas próprias vidas e agindo como se eu fosse apenas parte de todo o cenário, como a areia, as rochas e o mar. Na verdade, para eles, eu era apenas aquilo: parte da paisagem. Olhei em volta e decidi que deveria ir para casa antes que escurecesse.

Algumas gaivotas ainda tentavam pegar alguns peixes, diretamente do mar ou de alguns pescadores mais descuidados. Um daqueles grandes pássaros, de repente, mergulhou no ar, quase me atingindo na cabeça, enquanto eu passava, brincando com meus pés nas águas frescas. Eu me abaixei o mais rápido que pude, mas perdi o equilíbrio. Fechei os olhos enquanto caía, na certeza de que ia terminar meu dia com as roupas todas encharcadas.

Por alguma razão inesperada, não aconteceu nem uma coisa, nem outra: nem eu caí, nem me molhei. Meu corpo ficou a meio caminho entre o ar e o mar.

- O que aconteceu?

- Eu vi que ias cair e vim em teu auxílio.

- Hã?

O homem, um loiro alto e bonito, segurava-me com as duas mãos. Senti suas pernas fortes entre as minhas e seus braços musculosos ao redor do meu corpo. Eu recuperei meu equilíbrio e ele aliviou o abraço.

- Eu sinto muito.

- Oh, não se preocupe. Eu já estava-me vendo indo para casa num estado lastimável. Agradeço mesmo… de coração!

Ele sorriu. Eu olhei para aqueles olhos. E eram tão azuis.

- Oh meu Deus!

- O que foi?

- Nada. Eu sinto muito.

- Está tudo bem?

- Eu estou bem. Não se preocupe. Desculpe se eu perturbei a tua pescaria.

- Sem problemas. Eu estava apenas passando alguns momentos sozinho, depois de um dia longo no escritório.

- Tens horas?

- Eu tenho… algumas… talvez… para que?

Eu ri.

- Eu quis dizer: que horas são agora?

- Quase oito da noite.

- Oh. Tão tarde. Não havia percebido que era tão tarde. Tenho que ir.

Ele segurou minha mão. Eu fiquei sem palavras. Por alguma razão, senti um calafrio na espinha.

- Não vá… ainda… Vamos tomar um café? Um dia? Hoje? Agora?

- Erm... eu... não... sei...

- Bem, então apenas diga que sim!

***

Eu senti seus braços em volta da minha cintura. Ele me puxou para perto dele e beijou meu rosto, de uma maneira muito espontânea. Por alguma razão, pensei que ele estivesse se lembrando da mesma ocasião que eu. Nossas mentes podem ser engraçadas, às vezes. Eu sorri e beijei aquele rosto amigo.

***

Decidimos jantar juntos em um restaurante chique, no centro da cidade. Ficava quase no alto da rua, em uma casa antiga, restaurada e modernizada para atender às necessidades de uma clientela ansiosa pela nova moda de alimentação vegan e vegetariana.

As paredes eram cobertas por decorações em gesso, onde folhas e frutos de videiras brancas em fundo azul, subiam do chão até o teto da sala dos fundos. O chão de madeira parecia ainda ser o original. As portas de duas folhas davam vista para um pátio iluminado por postes de luz, cuidadosamente escolhidos, em estilo do início do século passado. Uma grande buganvília fúcsia, um tom forte de cor-de-rosa quase púrpura, coloria o lado direito do jardim, perto de uma linha de móveis de ferro fundido, pintados de branco e provavelmente usados ​​em dias ensolarados, ou no começo das noites de verão.

O risoto de cogumelos havia sido primorosamente preparado e cuidadosamente decorado, sendo servido com exuberância exagerada. Eu detetei um toque de balsâmico no sabor daquele prato extravagante. Não havia saboreado nada parecido antes. Um vinho branco frutado, bem fresco, foi escolhido para acompanhar o prato e nós compartilhamos uma sobremesa delicada, chamada “Decadência de Chocolate”, seguida de café preto.

Pagamos a conta e descemos os degraus da escadaria na entrada, que dava para a larga rua. O vento soprava mais fresco e achamos que a noite estava agradável para um passeio a dois. Nós apreciávamos caminhar lado a lado, sem falar muito. A vida pode ser tão simples e boa ao mesmo tempo.

Pensei em gatos vivendo suas vidas simples, com prazeres simples e desejando não muito mais que aquilo. Mas nós somos apenas humanos, vivendo como humanos, da melhor maneira que conseguimos. Para que desejar mais que um bom prato, uma cama quente e um abraço?

O ribombar de um trovão, muito perto, fez-me estremecer um pouco.

- Tens medo?

- Não, não mesmo.

- Boa. Então precisamos ir mais rápido. Parece que vai chover muito em breve.

Antes mesmo de alcançarmos o estacionamento, a chuva caía pesada e fria sobre nossos corpos quentes. Quando chegamos ao carro, estávamos muito encharcados e quase congelando. Liguei o aquecedor e me livrei da camisa e dos sapatos molhados, antes que começasse a espirrar.

Foi então que nós o vimos, de pé, em frente ao portão, tendo a chuva pesada servindo de pano de fundo à sua silhueta...

***

sábado, 9 de março de 2019

Uma noite a mais (Parte 2)




- Não sei.

- Nem eu… Mas devias saber, afinal foste tu que vieste para cá, assim, depois de tanto tempo.

- Não me julgues, por favor. Já nem sei o que pensar. Tive saudades e uma sensação estranha que devia vir até este lugar… Foi aqui que nós…

 - Não achas que é estranho sentires saudades?

- Não faças isso. Não é justo para nenhum de nós.

Um gritinho de excitação, do lado de fora, chamou a nossa atenção, momentaneamente. Aquela pequena distração era mais que oportuna, para atenuar o clima.

- Olha para ela, lá fora, a brincar com o mar… Algumas coisas não mudam… desde pequena que é fascinada pelo mar!

- Ela cresceu tanto…

- É uma mulher, quase. Um presente dos céus.

- Ora. E desde quando tu acreditas em “céus”? Ela é um presente, sim… da vida… do Universo. Sinto vossa falta, sabias?

Senti uma nostalgia… tinha certeza que ele também. Via a tristeza naqueles olhos. Minha alma estava dolorida, assim como minha cabeça. Olhei para fora e vi que ela vinha caminhando na direção do restaurante, onde bebíamos café, quase distraidamente, na esplanada.

- Olha isso! Molhei as pernas das calças quando o mar pegou-me de surpresa. Tenho que tentar secar isso… e preciso de uma água!

Nós rimos.

- Pede lá dentro, no balcão, meu amor. Não há muita gente para atenderem…

Ela correu para dentro. Acompanhei seus passos, com os olhos. Senti que era observado e virei-me. Olhava-me com uma expressão que eu conhecia bem.

- Que foi?

- Sinto falta de nós…

Meu peito doeu. Minha alma doeu. Meus olhos arderam. Não consegui dizer nada, mas senti lágrimas a me descerem pelo rosto.

- Não chores.

- Eu? Chorar? Claro que não! Não sejas ridículo!

Ele riu. Claro que não acreditava no que eu dizia.

- Pai? Está tudo bem?

- Está tudo bem, meu amor! Senta aqui, connosco.

- Então? Como estão as coisas, na escola?

Ela aprumou-se. Gostava de falar da escola e dos planos que tinha para a faculdade.

***

O mar estava sempre daquele jeito. Parecia um leão a rugir, insistente, mas nunca me conseguia amedrontar, por mais que o tempo passasse, por mais que, na minha cabeça, eu imaginasse que ele, de alguma forma, até tentava. Aquele bramir, ao contrário do que podia ser esperado, me deixava calmo e fazia-me pensar... Fazia minhas viagens na mente… nas lembranças… no passado.

Eu gostava daquele lugar. Tinha boas e, também, más memórias dali, mas as boas sobrepunham as outras. Naquele penhasco, acima da minha cabeça, eu me via, há um bom tempo atrás…

- Precisa de algo?

- Hã? Não. Estou bem, obrigado.

Aquela pele pálida não combinava com o lugar. Nem aqueles olhos. Ele parecia um estrangeiro.

- Posso perguntar uma coisa? Não quero ser atrevido. É uma curiosidade.

- Pode, mas não prometo responder.

- Claro.

A intromissão havia sido um tanto brusca, mas o homem estava, provavelmente, aborrecido por não ter com quem conversar. Eu não estava acostumado a falar com estranhos, especialmente nesta terra, mas vinha tantas vezes a aquele mesmo restaurante, que já conhecia o gerente, que sempre me atendia com cortesia e um sorriso e já não o considerava, de facto, um desconhecido. Ele não era, entretanto, um amigo… ainda…

- Quer que eu peça para trazer uma nata, para acompanhar o café?

- Era esta a pergunta? Se era, a resposta é sim, mas quero uma somente…

Ele riu. Sabia que eu havia percebido que ele estava tentando ganhar confiança, ou coragem, para fazer a pergunta verdadeira. Pediu para a empregada ao balcão trazer-me duas natas, apesar do meu protesto.

- Já faz algum tempo que tenho observado que vem, sempre, aos sábados à tarde, traz o bebé, pede um café, senta-se na esplanada, sozinho e em silêncio, a olhar o mar, e depois vai embora.

- E… ?

- E pergunto-me por que não vem com a mãe da criança. Estão separados?

- Estamos… por assim dizer…

- OK. Já percebi. Desculpe a intromissão e a curiosidade.

- Não há problema.

Ele não havia percebido o que eu quis dizer. Por alguma razão, eu tive vontade de contar-lhe mais, o que não era comum, mas não vi problema em falar ao estranho, que desculpava-se por haver talvez ultrapassado a fronteira da curiosidade.

- Ela faleceu. Éramos grandes amigos. Este lugar me traz boas recordações.

O homem olhou-me, sério, meio sem graça. A criança dormia, na cadeirinha, ao meu lado.

- Eu sinto muito. Não quis ser intrometido.

- Sem problemas. Foi um acidente. Não há nada que ainda possa ser feito.

- Pode-se viver. É o melhor para ela, que está aí, com uma vida inteira pela frente.

- Pois. É uma grande verdade. Ela é o meu bem mais precioso.

- Eu acredito.

Ele olhou-me nos olhos, por uma fração de segundos. Eu mantive o meu olhar no dele. Ele enrubesceu de imediato, como uma criança que é flagrada fazendo alguma peraltice.

-Vou deixá-los a sós.

Saiu, quase às pressas. Eu acompanhei com o olhar, enquanto ele entrava no restaurante. Na porta, deu uma paradinha e virou-se pra trás. Daquela vez, quem ficou vermelho foi eu.

Resmunguei, entre dentes.

- Ora, ora… o que foi aquilo, afinal?

***

Eu estava deitado na espreguiçadeira, com a camisa semiaberta, tomando um pouco de sol. Ele tocou, com os dedos pálidos, a estranha cicatriz, mal desenhada no meu peito. Eu tremi.

- Não tenha medo. Não tenho intenções de machucar.

- Não tenho medo.

- É uma grande cicatriz.

- Foi um acidente: um estúpido acidente, de um homem desajeitado.

- Não acredito que tenha sido estúpido. Tem a ver com o que aconteceu à esposa?

- Ela estava muito doente. O tumor foi detetado após a gravidez estar bastante adiantada. Não podia fazer tratamento químico, sob pena de afetar a criança. Mas a doença enfraqueceu sua saúde. Estávamos a descer a trilha que desce o penhasco, quando ela sentiu-se mal e caiu. Eu vinha atrás e tentei impedir a queda, mas foi tudo muito brusco e eu não tive forças para segurar. Escorreguei e caí de peito na rocha, ao lado dela. Não foi aquele acidente que a matou. Ela foi hospitalizada, após a queda, mas foi enfraquecendo, com o passar do tempo. Optamos por retirar o bebé e fazer o tratamento químico, mas era tarde demais. A menina sobreviveu, mas a mãe não conseguiu. Não foi uma morte súbita, mas foi muito dolorosa… para todos nós.

- Ainda dói?

- Um pouco… às vezes…

- Pois eu nunca casei. Não encontrei a pessoa certa, acho…

- Nós só casamos por causa da gravidez. Era o mais certo, para a criança, na época.

- Eu compreendo. Achas que farias tudo outra vez?

- Eu nunca me arrependi. Mas isso não é um jogo. É a vida. Não se volta a fazer as mesmas coisas, ou cometer os mesmos erros, por opção ou por vontade. O tempo muda as pessoas… as circunstâncias também…

- Vocês se amavam?

Aquela pergunta, mais uma vez, e que eu respondia, sempre, da mesma forma.

- Nós éramos grandes amigos. Sempre havíamos sido um tanto cúmplices, desde o tempo em que estudávamos juntos. Fomos para a mesma universidade, nos formamos na mesma época, saímos de casa na mesma ocasião, dividimos um apartamento e partilhamos nossa liberdade.

- Mas não era amor…

- Mas não era amor, no sentido físico. Era uma coisa mais fraternal, acho.

- Eu compreendo.

Teria eu percebido um leve sorriso, naquela resposta quase inofensiva? Ou teria sido somente uma inocente impressão minha?

***

…”For a taste of your love and 
     I need to taste some more 
    Wave goodbye to heaven for me 
    I've thrown it all away 
    Just to spend one more night with you”…(*)

(*) One more night with you : Ged McMahon



- Gosto desta versão. Não tem o mesmo poder da voz feminina, mas é muito boa também. Parece-me tanto com uma história que eu conheço tão bem…

Olhei para ela e imitei seu jeito de falar.

- Se eu contasse tudo que sei…

- Hah! Melhor não contar nada.

- Pois.

Rimos. Ela levantou-se de onde estava e veio deitar-se no sofá, com a cabeça no meu colo.

- Pai?

- Hum?

- Não seria problema se ele viesse morar novamente connosco, seria?

- Como assim?

- Eu sei que é isso que ele quer. Acho que não é problema, não achas? Ele gosta de nós… e nós gostamos dele…

- Como sabes? Ele não falou nada.

- Ainda… mas é o que eu sinto.

- Foi ele quem se afastou… sabe Deus se foi pelo motivo que alegou. Pareceu-me um tanto covarde…

- As pessoas mudam, pai. Ele deve ter sofrido.

- Só ele?

Ela beijou minhas mãos. Seus olhos fixaram-se na minha face séria. Esboçou um sorriso, tentando ser complacente com o pai emotivo e que ela conhecia tão bem. Tentei não chorar…

***

domingo, 24 de fevereiro de 2019

Uma noite a mais (Parte 1)



- Deve ser, pelo menos, a quinta vez que ouves esta canção.

- É, eu sei.

- O que se passa?

- Nada… que importe.

- Sei. Se precisares de alguma coisa, fala. Vou deitar-me.

- OK.

Eu não me virei. Estava com a mente ocupada demais a contemplar o imenso vazio à minha frente. Meus olhos perderam-se na escuridão, que se estendia para além da linha do horizonte, ao longo de um oceano pouco iluminado pelas luzes à beira da praia da baía.

Estava uma noite fresca e calma. Era tarde e já não havia quase nenhum movimento nas ruas. Um estranho silêncio enlaçou-me com seus braços frios, provocando um calafrio, que percorreu-me a espinha. Eu tremi, mas sabia que não era de frio.

A canção recomeçou. Eu havia ativado a função de repetição, de propósito. A voz forte e pungente da cantora penetrou-me os pensamentos, como se fosse uma estalactite de gelo, precipitada do teto rústico e sombrio de uma caverna, para dentro de uma lagoa de águas calmas, mas escuras e profundas.

Quantos mistérios e segredos podem esconder-se abaixo da quietude aparente daquela superfície praticamente intocada?

Fechei os olhos e respirei fundo, mergulhando em meus próprios pensamentos. Cada palavra da canção servia de pano de fundo para uma sequência caleidoscópica de imagens, que traziam meu passado e minhas recordações de volta ao presente, com uma nitidez cruel e carregada de emoções tão vívidas quanto aquelas memórias. 

…” They say that love can move a mountain
    They say love can break your heart 
   They say love can make you forget 
   Things that happened in the past” …  (*)

Se aquelas palavras eram verdadeiras, eu não havia experimentado nada similar… até então…

***

Acariciei a cicatriz, como se ela fosse um animal de estimação.

Incrível como nos apegamos às marcas deixadas, tanto no corpo, quanto na alma e as acariciamos sempre que nos sentimos frágeis, como se aquilo nos fosse dar alento e abreviar a solidão ou a dor. É como afagar nossos erros, dando-lhes uma visão mais condescendente. É como trazer alento ao coração, amenizar o efeito de um pecado e conceder uma hipótese de salvação à alma do pecador.  

…”So wave goodbye to heaven for me

  I've thrown it all away

 Just to spend one more night with you”…(*)


- Ainda estás assim?

- Assim como?

- Tu sabes. Eu não sou uma criança, que tu possas enganar facilmente.

- Eu sei que não…

Minhas mãos deslizaram suavemente pelas teclas do piano, talvez, procurando, instintivamente, esquecer aqueles mesmos acordes que não me saíam da cabeça ou dos dedos, já há algumas semanas.
Eu li, uma vez, em algum lugar, que as teclas do piano representam nossos sentimentos. Enquanto as brancas denotam nossas emoções positivas, as pretas representam as negativas. A harmonia, entretanto, só é conseguida com um equilíbrio entre ambas. Não se pode fazer boa música, sem usar tanto as teclas brancas quanto as pretas, assim como não se pode viver a vida verdadeira e completamente, sem um equilíbrio entre as emoções boas e as não boas.

- Toque a música até o último acorde. É melhor exorcizar esta dor de uma vez por todas!

Olhei para ela, surpreso. A menina havia-se transformado numa jovem muito perspicaz. Então eu toquei. Não exatamente para exorcizar, mas para sentir a dor, tão vívida como se estivesse sendo experimentada, pela primeira vez, naquele momento.

Começando quase como um noturno, a acariciar, as teclas brancas e a martelar, levemente, as pretas, minha dor foi aumentando numa progressão de notas e acordes, que se misturaram à minha voz baixa e fraca, no início, porém elevando o tom, como num sentido blues, até que todos os meus nervos reagiam àquela sequência de notas e palavras. Meus olhos e minha alma transbordavam.
…” They say that love can last forever
    They say love can last a day 
    They say love is like an ocean 
    For us to sail away” … (*)


Eu ia ao fundo do poço, para tomar impulso e voltar à superfície. Era necessário descer ao mais fundo do fundo, para poder voltar, com as forças redobradas.
***
- Foi aqui?

- Sim.

- Vamos descer.

- Não.

- Vamos, sim. Vem comigo.

Saiu à minha frente, antes que respondesse, descendo pelo caminho ao lado do penhasco. Meu estômago doeu. Eu segui, sem dizer nada. O caminho não era seguro e eu devia estar por perto, caso acontecesse algo, embora soubesse que estava a me preocupar sem razão.    

Quando chegamos ao fundo da trilha, a praia abria-se, convidativa, embora ainda fosse primavera. O mar rugia, como se a ameaçar, embora eu nunca tivesse medo daquele bramido. Eu havia nascido na ilha. O mar sempre fora um amigo. Não tinha por que temer um amigo.  

Caminhamos pela orla, com os pés na água fria do oceano, em silêncio, por uns momentos. Um grupo de ruidosas gaivotas voavam por sobre nossas cabeças e o vento fustigava nossos rostos.

- Foi um acidente, não foi?

- Foi. Um infeliz acidente.

- Vocês se amavam muito, não?

Eu não pensei.

- Nós éramos grandes amigos. Desde o tempo em que estudávamos juntos.

- Isso não é uma resposta.

- Não. Não é.

Olhou-me com aquele ar de quem quer saber a verdade, quando já não há verdades a saber.

- Então por que vocês decidiram que deviam ter um filho?

- Porque era a vontade dela. Era melhor termos um filho, juntos, sabendo do respeito que tínhamos um pelo outro e sabendo que era melhor isso, que esperar por um sentimento que não existia. Ela era uma mulher prática.

- Vocês nunca se arrependeram da decisão?

- Claro que não. Por que razão haveríamos de nos arrepender?

- Sei lá. Não havia amor…

- Havia um respeito e um carinho muito grande. Ela tinha medo de envelhecer, antes de poder ser mãe… coisas de mulheres!

- Haha! Até parece…

Eu ri. Um riso pálido, quase sem graça. Sabia que ia ter que contar a história toda, pela milionésima vez.

- Achas que vocês foram felizes?

- Talvez. Antes de…

- É estranho…

- O que?

- Aquela vossa relação. A doença. O acidente.

- Não é estranho. O acidente foi uma consequência da doença.

- Mas tu também podias ter morrido.

- Acho que não. Eu só tive uma queda feia, quando tentei ajudar. Falta de jeito, mesmo…

- A cicatriz é grande.

- A dor é maior!

Calou-se. O mar parecia explodir contra as rochas. Caminhou uns segundos, em silêncio, e virou-se. Franziu os olhos, como se estivesse tentando ver algo, atrás de mim, à distância. Pareceu-me que uma nuvem negra se passou pela sua face jovem.

- Pai?

- Que foi?

- É ele, lá em cima do penhasco?

- Hã? O que ele faz aqui?

***

(*) One more night with you : Ged McMahon featuring Kaz Hawkins


***



sábado, 1 de dezembro de 2018

Obliviar (Parte 2: A Volta)


- É impossível!

- Leia outra vez. Tente ler nas entrelinhas. É pequeno, a superfície é reflectora e não pode ser detectado pelos telescópios, até o momento em que estava muito perto, mas também muito rápido para ser seguido pelas câmaras dos satélites… Olhe a figura. Não achas que…?

- Pode parar! Não acho nada! Aquilo não pode ter vindo de um planeta alienígena…

- Mas pode ter vindo do nosso planeta, duma outra era, muito adiante do nosso tempo, não pode?

- Começas a confundir-me.

- Estou a tentar achar um jeito, uma teoria, uma resposta, uma saída…

- Tu sabes que eu não sou um cientista. Quantas vezes preciso lembrar-te disso?

- Tu és feito do melhor material genético que já houve… que há… que haverá… Nunca pensei que isso iria ser tão difícil de ser colocado numa conversa.

- Não tente. Desista.

 - Pensa comigo. Tente pensar como um cientista. Tu sobreviveste porque tu és um dos seres mais preparados e habilitados. Usa teu cérebro da maneira mais prática que houver.

- Eu sobrevivi, porque fui enviado ao passado, uns pouquíssimos segundos antes da explosão. E eu não fui o único, como vocês já sabem.

- Pensa comigo! Por favor?

Aquele homem de pele pálida olhou muito seriamente para os dois jovens soldados e falou o que passava na sua mente.

- Na era de onde eu vim não havia aquele tipo de transportes. Nós viajávamos usando terminais de transporte tempo-espaço, que eram mais eficientes. O único veículo que eu conheci foi aquele que me trouxe para cá, quando o planeta explodiu. Era antiquado, mas eficiente para o propósito, pois não usava os terminais e não seria detectado pelo sistema, nem colocaria em causa a operação que o homem, que destruiu o planeta, planeou. Foi enviado ao passado através de uma fenda deliberadamente aberta no tempo, por ele, no momento da explosão. A cápsula nunca poderia ser comparada ao vosso “Oumuamua”. Este poderia ter vindo do passado, não do futuro e deve provavelmente estar a viajar por centenas, talvez até milhares de anos.

- Então tu concordas que tenha vindo de outro planeta.

- Eu não concordo, nem discordo. Nós temos muito pouca informação sobre ele, quase nada além de teorias, para tirar conclusões. Se nem os cientistas mais especializados conseguem ter certeza de nada, imagina se eu ia poder. O que é certo, e que eu quis dizer foi que não veio do mesmo tempo e espaço de onde eu vim…

O homem de pele pálida encarou os dois jovens soldados. Seus olhos mostravam uma tristeza nostálgica profunda, quando concluiu a frase.

- …E para onde eu nunca vou poder voltar. A única forma de entrar em contacto com o futuro seria se alguém de lá quisesse entrar em contacto com o passado. Não há outra forma. E nós sabemos que isso já não é mais possível.

***

- Eu te disse para parar com esta besteira.

- Eu sei. Mas era uma hipótese a ser considerada. E agora?

- Agora voltamos para nossas vidas, como sempre. Deixemos o passado lá onde ele pertence.

- Talvez haja ainda uma forma…

- Não recomeces!

Os dois se olharam. O rapaz de óculos tinha uma expressão distante e um leve sorriso a esboçar-se, discretamente, na face jovem e jovial.

***

- O quê? Por que tu ainda queres voltar para lá? Ainda não basta disto?

- Eu tenho que voltar lá. Eu gostaria que tu viesses comigo, se não te importares.

- Claro que eu me importo, mas vou contigo, sim. Aquela área ainda é proibida. Sabes muito bem disso. Só espero que não entremos numa fria.

- Ninguém vai saber que estivemos lá, de toda forma.

- Bom, é melhor termos cuidado, mesmo assim. Tenho certeza que está sendo monitorizada de alguma forma.

- Vai dar tudo certo.

- Ah. Tá…

***

O rapaz de óculos parecia estar tão distante, no meio da desolação daquele campo imenso em que se tornou a vila, onde moravam, antes da grande explosão. Seus olhos estavam cheios de lágrimas de nostalgia.

O outro olhava à volta, não tão absorto, mas também envolvido em suas memórias de infância, quando brincavam da redondeza até o riacho, ou subiam a montanha e acampavam por lá, nas férias de verão.

Era estranho estarem ali, no meio do que havia sido seus lares, contemplando o vazio e o deserto que a terra havia-se transformado. A montanha virara um monte, apenas, com uma enorme cratera, aberta onde havia sido a base nuclear, agora completamente soterrada e inactiva. A desolação do local mostrava que havia, ainda, actividade radioactiva, o que impedia qualquer coisa de crescer por ali. Os soldados haviam tomado as precauções, mas sabiam que não podiam ficar no local por muito pouco tempo, por razões mais que óbvias.

- Temos que ir. Já não há nada que ainda possamos ver. Como era de se esperar, não sobrou nada para contar a história…foi-se tudo…

- OK. Vamos embora. Podíamos ir até a montanha, antes de irmos de vez?

- Para quê?

- Foi lá que tudo aconteceu. Acho que preciso ir até lá e resolver isso tudo na minha cabeça. Sinto que nem tudo foi-se…ainda…

- Eu não gosto disso, mas OK. Se é para ir, vamos logo. Temos que nos apressar.

Subiram pela antiga estrada que levava à base, até quase a cratera, quando uma grande fenda na estrada os impediu de passar. Os dois saltaram do Jeep e começaram a caminhar, tentando contornar a grande rachadura e achar um lugar onde pudessem atravessar. A fenda ainda era muito profunda e larga. Eles teriam que saltar para o outro lado, onde a distância não fosse tão grande.

Quase no topo, a sudeste da base principal, onde os dois lados do barranco pareciam mais próximos, o rapaz de óculos tomou impulso e saltou para o outro lado. O amigo fez o mesmo. Chegaram à borda da cratera, que era profunda e tinha diâmetro de, pelo menos, uns oitenta metros. A base estava totalmente soterrada. Não havia vestígio aparente do que havia sido antes, para quem desconhecesse o local, mas não para eles.

- Não há mais nada aqui, como vês. Nem parece o que já foi, há tempos. Está tudo soterrado em baixo desta terra estéril, assim como o passado. Temos que ir embora. É arriscado ficar muito tempo aqui.

O rapaz de óculos deu um longo suspiro.

- OK. Vamos.

Os dois começaram a descer, até onde haviam saltado. O primeiro fez impulso e saltou. Quando seus pés bateram firmes no chão, do outro lado, sentiu que a terra tremeu sob eles. Olhou para trás e viu a cara de pavor do rapaz de óculos.

- Salta! Depressa!

Ele saltou, mas quando tocou o outro lado, a terra tremeu novamente e a fenda cedeu um pouco. Ele perdeu o equilíbrio e começou a escorregar para dentro da enorme rachadura, lentamente, junto com a terra seca e solta, sem poder agarrar-se a nada.

- Oh, não! Não outra vez!

- Aguenta firme. Tenta achar uma raiz, ou coisa que o valha, para agarrar-te, que eu vou buscar o gancho e a corda do Jeep.

O rapaz de óculos não respondeu. Apenas olhou para baixo, tentando localizar qualquer coisa que o fizesse parar de descer, mas a fenda parecia abrir uma enorme boca e tentar engoli-lo lentamente.

Ele não gritou. Tentou parar, usando os dedos das mãos e os pés, mas não conseguiu mais que esfolar-se todo. Ele avistou o que parecia ser o resto de uma tubulação metálica e tentou dirigir sua rota para aquela saída. Seu corpo escorregava mais rápido e ele virou-se, tomou impulso e saltou sobre o tal tubo.

Foi, então, que aquilo, que era apenas um pedaço do que poderia ter sido um velho encanamento, desprendeu-se da parede de terra seca e começou a cair, junto com ele, para o fundo escuro do largo buraco.

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