domingo, 24 de março de 2019

Uma Noite a Mais (Parte 3)


Κι αν ρωτήσεις πώς περνάω  … (E se me perguntares como estou
θα σου πω δυο ψέματα                Eu vou-te dizer duas mentiras
ένα πως δε σ' αγαπάω                 Uma: que eu não te amo
κι ένα πως σε ξέχασα (**)          E a outra: que eu já te esqueci) …

(**) Dyo Psemata (δυο ψέματα): Antonis Remos

- Ainda lembras?

- Claro que sim. Algumas coisas não podem ser, simplesmente, apagadas da memória.

- Pois não.

- A canção estava tão certa…

- Contra o que havia desejado. Eu sinto muito.

- Por quê?

Ele me olhou, como se fosse fazer a maior revelação da sua vida, mas não emitiu nenhum som. A oportunidade era aquela e, se fosse perdida, não haveria outra. Ele baixou os olhos.

Eu balancei a cabeça, num gesto de desânimo e frustração, levantei-me, atravessei a varanda e fui para a praia. Estava bastante desiludido.

De frente para o mar, eu me sentia pequeno demais e aquela imensidão era intimidante. O conflito interno era tão ou mais assustador que tudo à minha volta, todavia. Eu nem sabia se sentia ódio, ou vontade de matar a saudade com um longo abraço apertado, mas diante daquela falta de ação, eu decidi que não tinha que alimentar falsas expectativas. Talvez aquela história já tivesse ido longe demais e acabado, afinal, apesar de minhas malnutridas esperanças.

Fechei os olhos e respirei fundo. Aquele ar salino me fazia tão bem. Eu quase ia ao passado buscar boas memórias, para alimentar minha alma dorida.

Num lampejo de consciência, reconheci que só o fato de estar ali, vivo, já era suficientemente bom, apesar de todas as circunstâncias. Minha filha era meu maior bem; um bem maior que minha própria vida. Não era justo sentir menos que gratidão pelo que eu havia feito e plantado e pelos frutos que havia colhido.

Dei um longo suspiro e voltei-me. Tinha que cuidar da minha vida…

***

A noite estava agradável. A porta que dava para a varanda estava aberta e uma suave brisa soprava pela casa. Eu sentei-me ao piano e comecei a cantarolar a mesma canção, que tanto mexia comigo. Desta vez, eu estava redimido. Aquela tristeza na alma era uma velha companheira, mas já não tinha o poder de outrora.

Ela sentou-se ao meu lado e acompanhou-me nos vocais.

…” They say that love can move a mountain
      They say love can break your heart 
      They say love can make you forget 
      Things that happened in the past
      For I've tasted your love and
      I need to taste some more 
      So wave goodbye to heaven for me
      I've thrown it all away 
      Just to spend one more night with you”
…  (*)

      (*) One more night with you: Ged McMahon

- Continuo a achar que é um bocado triste.

- E é. Mas eu não quero reclamar. Não é justo.

Ela deitou a cabeça no meu ombro, enquanto eu continuei a dedilhar as teclas, tão de leve, que parecia acariciá-las, respeitosamente. Senti uma angústia subir até minha garganta e não consegui mais falar… ou cantar… nem pude refrear as lágrimas, que caíram livres pelo meu rosto, enquanto meu corpo estremecia por inteiro, como se estivesse em convulsões.

Ela me abraçou e, com a cabeça enterrada no meu peito, chorou junto comigo, ali, no meio da sala de estar.

***

O sol da tarde estava mesmo agradável, naquele dia de início de primavera. Não ventava, mas uma leve brisa vinha do mar, trazendo aquele ar salino e iodado para mais perto de onde eu estava. Estiquei as pernas e fechei os olhos, pensando que devia estar sentindo falta de fazer minha fotossíntese. A bebé dormia na cadeirinha ao meu lado, devidamente protegida do vento e do sol.

Uma nuvem deve ter passado na frente do sol, pois senti que já não estava tão claro. Abri os olhos e vi que aquilo que pensava ser uma nuvem, nada mais era que a silhueta de um homem, que havia-se posicionado entre o sol e eu.

- Desculpe.  

- O quê?

- Não quis importunar, mas o bebé acordou e estava a mexer-se, por isso achei que devia verificar. Pensei que havia adormecido… Quer que eu traga alguma coisa?

A menina estava apenas a olhar-me com seus olhos esverdeados, mas não chorava. Eu devia ter, realmente, adormecido, pois, normalmente, ouvia quando ela acordava. Devia estar mesmo cansado… Ou relaxara tão profundamente…

- Ah. Não. Obrigado.

Eu levantei-me e procurei a mamadeira com água, dentro da bolsa. A bolsa havia ficado ao sol e a água estava meio morna.

- Acho que vou precisar de uma garrafinha de água fresca, por favor. Esta já passou da temperatura aceitável.

- Vou pedir para trazerem. Quer um café também?

 - Bem pensado. Acho que preciso de um, na verdade.

Às vezes eu me perguntava por qual razão ele era gentil comigo, até um pouco além do esperado por um cliente normal. Era agradável, mas eu não era muito habituado a aquele tipo de coisas.

A moça trouxe a água e duas chávenas de café, que pousou sobre a mesa. Eu olhei com aquele ar inquisidor, mas logo percebi. O gerente veio e sentou-se comigo, sem muita cerimónia e disse:

- Espero que não se importe que eu sente aqui, por um momento.

- Claro que não. Fique à vontade. 

- Eu adoro esta hora do dia. Não só pela tranquilidade, mas pela luz e pelas cores. É como se o mundo desse uma trégua e parasse de girar por uns momentos, para que a gente pudesse, simplesmente, apreciar um bom café.

Eu olhei para ele, admirado, não só pela leveza e poesia do que ele dissera, mas pela forma com que se expressara, tão fluentemente e à vontade.

Ele riu.

- O que foi? Disse alguma asneira?

- Não. Ao contrário. Foi muito bem colocado.

- Então?

- Não esperava. Só isso.

Ele fingiu que não se sentiu satisfeito por haver-me surpreendido e tomou seu café, calmamente, a olhar o mar, que parecia espreguiçar-se sobre a fina areia branca. Eu fingi que estava somente a cuidar da menina, mas observei um leve sorriso, na sua face tranquila.

- Posso fazer uma pergunta?

Ele riu.

- Pode. Mas não prometo responder.

Ele usava minha fala. Que esperto!

- Por que me trata assim?

- Assim como?

- Com esta gentileza e com um tanto de familiaridade, sem ser, necessariamente, íntimo. Eu sou apenas um cliente.

- Talvez não. Eu sou um homem habituado a viver sozinho e reconheço quando vejo uma pessoa com as mesmas características. Está sempre aqui sozinho, com a menina, mas nunca entre amigos. Não se sente só?

- Nunca. Acho que sempre fui assim, introvertido e ocupado com minhas coisas, ao invés de pessoas.

- Eu compreendo. Não sente falta de ter alguém?

Fugi à questão.

- Eu tenho alguém. E ela é adorável.

Ele riu, fazendo um muxoxo. Percebeu que eu fugia à conversa.

- Pois eu sinto. Embora nunca tenha sido homem de longos relacionamentos, sinto falta de alguém.

- Curioso. Nunca falamos sobre isto.

- Eu sei. É uma demonstração de confiança, não é?

- Acho que sim. Mas por que não?

- Acho que eu demoro para acreditar nas pessoas. Passei por algumas situações, que me fizeram perder a confiança…

A frase ficou assim, meio no ar, meio incompleta, meio a deixar azo para que se imaginasse tantas situações…

- Acho que eu também. Somos parecidos nisso.

- Vejo que sim. Que dois!

Ele levantou a chávena de café e disse, com um sorriso e um piscar de olhos:

- Aos solitários!

- Aos solitários!

Tive a impressão que só naquele momento percebi que havia música vinda dos dois pequenos altifalantes, alocados na parte de cima da varanda. Era uma canção conhecida minha. Eu cantarolei o pedacinho do refrão.

Κι αν ρωτήσεις πώς περνάω      (Ki an ro̱tí̱seis pó̱s pernáo̱) (E se me perguntares como estou
θα σου πω δυο ψέματα               (ha sou po̱ dyo psémata)      Eu vou-te dizer duas mentiras  
ένα πως δε σ' αγαπάω                (éna po̱s de s ' agapáo̱)          Uma: que eu não te amo
κι ένα πως σε ξέχασα (*)           (ki éna po̱s se xéchasa)          E a outra: que eu já te esqueci) 

(**) Dyo Psemata (δυο ψέματα): Antonis Remos

- Conheces esta canção?
    
- Claro. Mas não esperava ouvi-la aqui. É uma antiga canção grega…
  
- Sabes o significado, não sabes?

- Por acaso, sei. É um tanto triste, não é?

Ele me olhou, sério. Fui pego de surpresa com a afirmação que fez, a seguir.

- É. Mas uma coisa destas não gostaria, jamais, que acontecesse connosco…

***


sábado, 16 de março de 2019

One More Night (Part 2)



- I don’t know.

- I don’t, either, but you should.  After all, you are the one who came back here after such a long time.

- Don’t judge me, please. I don’t even know what to think. I missed you and had this strange sensation that I should come back here… It was here that we…

- Don’t you think it is odd you saying you’re missing us, after all these years?

- Don’t do that. It’s not fair to any of us.

At that right moment, we heard an excited shriek coming from the beach side. That little distraction was more than appropriate to break a little the tense atmosphere created between us.

- Look at her, playing in the seawater. Some things do not change…ever… She has been fascinated by the sea ever since she was a little girl.

- She’s grown up so much.

-She is almost a woman, now. A gift from heaven.

- Oh. Well, since when you do believe in heavens? She is a gift, yes, from life… from the Universe... I miss you, did you know that?

I felt a kind of a nostalgia embracing me… I knew he was feeling the same. I detected some sadness in his eyes. My soul was in pain, as was my head. I looked out and saw her coming to the restaurant where we were almost distractedly drinking our usual strong black coffee.

- Look at this. I got my pants all soaked in the sea. I did not expect that. Now I need to clean and dry this out… what a mess! And I need some water. I’m thirsty.

We laughed at her.

- Get some at the counter, my love. The place is almost quiet now.

She ran into the restaurant. I followed her with my eyes. I noticed I was being observed as well and I turned my head to face him. I knew that expression so very well.

- What now?

- I miss us…

My chest hurt. My soul was aching. My eyes were sore. I could not say anything, but felt the tears running down my face.

- Don’t cry.

- Me? Cry? Of course not. Don’t be ridiculous!

He laughed, not believing my words, for a change.

- Dad? Are you OK?

- I’m alright, my love! Sit with us for a little while.

- So, tell me how things are at school.

She straightened up and spoke out. She loved talking about school and her plans for the University.

***

The ocean was always like that. I imagined it as being a huge lion roaring insistently, trying to scare me out, but never succeeding. In my head it could try, but would never scare me away. The effect was the opposite: it used to calm me down and make me think about my life, my memories, my past, my things…

I loved that place. I had good and bad memories, but the good ones had always been the great majority of them. Over that cliff above my head I could see myself a long time before.

- Do you need anything, sir?

- Huh? No, thanks. I’m alright.

That pale skin did not match that place. Nor did those eyes. He looked like a foreigner.

- May I ask you something? I don’t want to be nosy. It’s more out of curiosity.

- You may, but I don’t promise any reply.

- Of course.

The intrusion had been a little rash, but I thought the man was probably bored of having no one to talk to. I was not used to talk to strangers, especially in this land, but I was at the same time so used to coming every weekend to that same place and restaurant, that I felt like I had known the manager from a long date. He was always courteous and always smiled at my coming in. He was not really a stranger, but he was not a friend either…

- Do you want me to bring you some local pastry to go with the coffee?

- Was that the question you wanted to ask me? If it was, the answer is yes, but one only, please…

He smiled. He knew I noticed he was trying to decide whether or not to ask me something he would not feel comfortable with and trying to have the courage to do so. He asked the waiter to bring two cream pastries under my protest.

- It’s been a long time I noticed you come here every Saturday afternoon, bring the baby for a ride, order a coffee, sits outside and in silence, watching the sea for a long time and then leave.

- And?

- And I ask myself why you never bring the child’s mother. Are you separated?

- We are… in a way...

- OK. I got it. I’m sorry for the intrusion and the curiosity.

- It’s OK. Never mind.

I did not think he understood it. For some reason I had the urge to tell him a little more, thing that was not common with strangers, but I did not see a problem, as he was being nice, in spite of his curiosity.

- She passed away. We were very good friends. This place brings me good memories of the times we were together.

The man looked at me, serious, almost trying to apologize. The child was sleeping in the baby car seat at my side.

- I’m really sorry. I did not want to be intrusive.

- No problem. It was an accident. There is nothing we can do now, anyway.

- Well, you can live. It’s the best for her, who has the whole life ahead of her.

- Indeed. That’s true. She is everything I have. She is very precious.

- I believe you.

He stared at me for a fraction of a second. I kept my eyes in his stare. He blushed immediately, like a child who is caught doing something that he was not allowed to.

- I’ll leave you alone now.

He left almost in a hurry. I followed him with my eyes as he walked into the restaurant. As soon as he reached the threshold, he stopped and turned around. It was my turn to blush.

- Well, well… what was that supposed to be, after all?

***

I was stretching out in the sun in the deck chair outside with my shirt unbuttoned. He touched the weird sketched scar on my chest with his pale fingers. I shook.

- Don’t be afraid. I mean no harm.

- I’m not afraid.

- It’s a big scar.

- It was an accident: a stupid accident from a clumsy man.

- I don’t believe it was stupid. Is it related to what happened to your wife?

- She was very ill. The tumour was detected in one of the routine exams during her pregnancy. She could not be put under chemotherapy as it was very risky for the child’s health. But the illness made her very weak. This was one of her favourite spots. We were walking down the trail by the cliff when she felt dizzy and slipped. I was right behind her and tried to hold her, but it was too sudden and I was not strong enough to get the grip on her. I tripped and fell down with my chest hitting the rock right at her side. It was not that accident that killed her. She was taken to hospital, after that, but her health got worse and worse. We decided to take the baby out so to try and put her under chemo, but it was too late. We saved the child but not the mother. It was not a sudden death, but it was very painful… to all of us.

- Does it still hurt?

- A little… sometimes… 

- I’ve never got married. I think I’ve never met the right person.

- We’d got married for the sake of the baby. It was the right thing to do and the best for the child.

- I understand. Do you think you would do the same thing again, if you could?

- I have no regrets. But life is not a game. You don’t decide to live again or do the same things again, making the same mistakes as an option. Time changes people and the circumstances as well…

- Did you love each other?

That same question again. I’d always answered it the same way.

- We were very god friends. We had always been “partners in crime”, so to speak, since the school times together. We went to the same university, graduated at the same time, left home and shared an apartment downtown to develop our careers and our lives independently from our parents. 

- But that was not love…

- But it was not love, in the physical sense. It was more of a brother/sister relationship, I think.

-I understand.

Did I notice a hint of a smile when he answered almost harmlessly? Or was that my naïve impression?

***

…”For a taste of your love and 
     I need to taste some more 
    Wave goodbye to heaven for me 
    I've thrown it all away 
    Just to spend one more night with you”…(*)

 (*) One more night with you : Ged McMahon


 - I like this version. I doesn’t have the power of the female voice, but it is good anyway. It sounds like a story I know so well…

I looked at her and imitated her way of speaking and voice.

- If I said everything I knew…

- Hah! You better not say anything else.

- True.

We laughed. She got up from where she was and lay down on the couch with her head on my lap.

- Dad?

- Huh?

- It wouldn’t be a problem if he’d come and lived with us again, would it?

- What do you mean?

- I know this is what he wants. I don’t see a problem, do you? He likes us… and we like him…

- How do you know? He didn’t say anything about it.

- Yet… but this is what I feel.

- He went away with an excuse that was not really convincing. God knows if that was the true reason. It all sounded like a bit of cowardice from his part.

- People change, dad. He must have suffered.

- Him? Only him?

She kissed my hands. Her eyes were fixed on my serious face. She tried to smile, being condescending with the emotional father she knew so well. I tried not to cry…

***

sábado, 9 de março de 2019

Uma noite a mais (Parte 2)




- Não sei.

- Nem eu… Mas devias saber, afinal foste tu que vieste para cá, assim, depois de tanto tempo.

- Não me julgues, por favor. Já nem sei o que pensar. Tive saudades e uma sensação estranha que devia vir até este lugar… Foi aqui que nós…

 - Não achas que é estranho sentires saudades?

- Não faças isso. Não é justo para nenhum de nós.

Um gritinho de excitação, do lado de fora, chamou a nossa atenção, momentaneamente. Aquela pequena distração era mais que oportuna, para atenuar o clima.

- Olha para ela, lá fora, a brincar com o mar… Algumas coisas não mudam… desde pequena que é fascinada pelo mar!

- Ela cresceu tanto…

- É uma mulher, quase. Um presente dos céus.

- Ora. E desde quando tu acreditas em “céus”? Ela é um presente, sim… da vida… do Universo. Sinto vossa falta, sabias?

Senti uma nostalgia… tinha certeza que ele também. Via a tristeza naqueles olhos. Minha alma estava dolorida, assim como minha cabeça. Olhei para fora e vi que ela vinha caminhando na direção do restaurante, onde bebíamos café, quase distraidamente, na esplanada.

- Olha isso! Molhei as pernas das calças quando o mar pegou-me de surpresa. Tenho que tentar secar isso… e preciso de uma água!

Nós rimos.

- Pede lá dentro, no balcão, meu amor. Não há muita gente para atenderem…

Ela correu para dentro. Acompanhei seus passos, com os olhos. Senti que era observado e virei-me. Olhava-me com uma expressão que eu conhecia bem.

- Que foi?

- Sinto falta de nós…

Meu peito doeu. Minha alma doeu. Meus olhos arderam. Não consegui dizer nada, mas senti lágrimas a me descerem pelo rosto.

- Não chores.

- Eu? Chorar? Claro que não! Não sejas ridículo!

Ele riu. Claro que não acreditava no que eu dizia.

- Pai? Está tudo bem?

- Está tudo bem, meu amor! Senta aqui, connosco.

- Então? Como estão as coisas, na escola?

Ela aprumou-se. Gostava de falar da escola e dos planos que tinha para a faculdade.

***

O mar estava sempre daquele jeito. Parecia um leão a rugir, insistente, mas nunca me conseguia amedrontar, por mais que o tempo passasse, por mais que, na minha cabeça, eu imaginasse que ele, de alguma forma, até tentava. Aquele bramir, ao contrário do que podia ser esperado, me deixava calmo e fazia-me pensar... Fazia minhas viagens na mente… nas lembranças… no passado.

Eu gostava daquele lugar. Tinha boas e, também, más memórias dali, mas as boas sobrepunham as outras. Naquele penhasco, acima da minha cabeça, eu me via, há um bom tempo atrás…

- Precisa de algo?

- Hã? Não. Estou bem, obrigado.

Aquela pele pálida não combinava com o lugar. Nem aqueles olhos. Ele parecia um estrangeiro.

- Posso perguntar uma coisa? Não quero ser atrevido. É uma curiosidade.

- Pode, mas não prometo responder.

- Claro.

A intromissão havia sido um tanto brusca, mas o homem estava, provavelmente, aborrecido por não ter com quem conversar. Eu não estava acostumado a falar com estranhos, especialmente nesta terra, mas vinha tantas vezes a aquele mesmo restaurante, que já conhecia o gerente, que sempre me atendia com cortesia e um sorriso e já não o considerava, de facto, um desconhecido. Ele não era, entretanto, um amigo… ainda…

- Quer que eu peça para trazer uma nata, para acompanhar o café?

- Era esta a pergunta? Se era, a resposta é sim, mas quero uma somente…

Ele riu. Sabia que eu havia percebido que ele estava tentando ganhar confiança, ou coragem, para fazer a pergunta verdadeira. Pediu para a empregada ao balcão trazer-me duas natas, apesar do meu protesto.

- Já faz algum tempo que tenho observado que vem, sempre, aos sábados à tarde, traz o bebé, pede um café, senta-se na esplanada, sozinho e em silêncio, a olhar o mar, e depois vai embora.

- E… ?

- E pergunto-me por que não vem com a mãe da criança. Estão separados?

- Estamos… por assim dizer…

- OK. Já percebi. Desculpe a intromissão e a curiosidade.

- Não há problema.

Ele não havia percebido o que eu quis dizer. Por alguma razão, eu tive vontade de contar-lhe mais, o que não era comum, mas não vi problema em falar ao estranho, que desculpava-se por haver talvez ultrapassado a fronteira da curiosidade.

- Ela faleceu. Éramos grandes amigos. Este lugar me traz boas recordações.

O homem olhou-me, sério, meio sem graça. A criança dormia, na cadeirinha, ao meu lado.

- Eu sinto muito. Não quis ser intrometido.

- Sem problemas. Foi um acidente. Não há nada que ainda possa ser feito.

- Pode-se viver. É o melhor para ela, que está aí, com uma vida inteira pela frente.

- Pois. É uma grande verdade. Ela é o meu bem mais precioso.

- Eu acredito.

Ele olhou-me nos olhos, por uma fração de segundos. Eu mantive o meu olhar no dele. Ele enrubesceu de imediato, como uma criança que é flagrada fazendo alguma peraltice.

-Vou deixá-los a sós.

Saiu, quase às pressas. Eu acompanhei com o olhar, enquanto ele entrava no restaurante. Na porta, deu uma paradinha e virou-se pra trás. Daquela vez, quem ficou vermelho foi eu.

Resmunguei, entre dentes.

- Ora, ora… o que foi aquilo, afinal?

***

Eu estava deitado na espreguiçadeira, com a camisa semiaberta, tomando um pouco de sol. Ele tocou, com os dedos pálidos, a estranha cicatriz, mal desenhada no meu peito. Eu tremi.

- Não tenha medo. Não tenho intenções de machucar.

- Não tenho medo.

- É uma grande cicatriz.

- Foi um acidente: um estúpido acidente, de um homem desajeitado.

- Não acredito que tenha sido estúpido. Tem a ver com o que aconteceu à esposa?

- Ela estava muito doente. O tumor foi detetado após a gravidez estar bastante adiantada. Não podia fazer tratamento químico, sob pena de afetar a criança. Mas a doença enfraqueceu sua saúde. Estávamos a descer a trilha que desce o penhasco, quando ela sentiu-se mal e caiu. Eu vinha atrás e tentei impedir a queda, mas foi tudo muito brusco e eu não tive forças para segurar. Escorreguei e caí de peito na rocha, ao lado dela. Não foi aquele acidente que a matou. Ela foi hospitalizada, após a queda, mas foi enfraquecendo, com o passar do tempo. Optamos por retirar o bebé e fazer o tratamento químico, mas era tarde demais. A menina sobreviveu, mas a mãe não conseguiu. Não foi uma morte súbita, mas foi muito dolorosa… para todos nós.

- Ainda dói?

- Um pouco… às vezes…

- Pois eu nunca casei. Não encontrei a pessoa certa, acho…

- Nós só casamos por causa da gravidez. Era o mais certo, para a criança, na época.

- Eu compreendo. Achas que farias tudo outra vez?

- Eu nunca me arrependi. Mas isso não é um jogo. É a vida. Não se volta a fazer as mesmas coisas, ou cometer os mesmos erros, por opção ou por vontade. O tempo muda as pessoas… as circunstâncias também…

- Vocês se amavam?

Aquela pergunta, mais uma vez, e que eu respondia, sempre, da mesma forma.

- Nós éramos grandes amigos. Sempre havíamos sido um tanto cúmplices, desde o tempo em que estudávamos juntos. Fomos para a mesma universidade, nos formamos na mesma época, saímos de casa na mesma ocasião, dividimos um apartamento e partilhamos nossa liberdade.

- Mas não era amor…

- Mas não era amor, no sentido físico. Era uma coisa mais fraternal, acho.

- Eu compreendo.

Teria eu percebido um leve sorriso, naquela resposta quase inofensiva? Ou teria sido somente uma inocente impressão minha?

***

…”For a taste of your love and 
     I need to taste some more 
    Wave goodbye to heaven for me 
    I've thrown it all away 
    Just to spend one more night with you”…(*)

(*) One more night with you : Ged McMahon



- Gosto desta versão. Não tem o mesmo poder da voz feminina, mas é muito boa também. Parece-me tanto com uma história que eu conheço tão bem…

Olhei para ela e imitei seu jeito de falar.

- Se eu contasse tudo que sei…

- Hah! Melhor não contar nada.

- Pois.

Rimos. Ela levantou-se de onde estava e veio deitar-se no sofá, com a cabeça no meu colo.

- Pai?

- Hum?

- Não seria problema se ele viesse morar novamente connosco, seria?

- Como assim?

- Eu sei que é isso que ele quer. Acho que não é problema, não achas? Ele gosta de nós… e nós gostamos dele…

- Como sabes? Ele não falou nada.

- Ainda… mas é o que eu sinto.

- Foi ele quem se afastou… sabe Deus se foi pelo motivo que alegou. Pareceu-me um tanto covarde…

- As pessoas mudam, pai. Ele deve ter sofrido.

- Só ele?

Ela beijou minhas mãos. Seus olhos fixaram-se na minha face séria. Esboçou um sorriso, tentando ser complacente com o pai emotivo e que ela conhecia tão bem. Tentei não chorar…

***

sábado, 2 de março de 2019

One More Night (Part 1)



- This is at least the fifth time you hear this same song in a row…

- Yeah. I know.

- What’s up?

- Nothing…. that really matters.

- Yeah. Right. If you need something, just tell me so. I’m heading to bed.

- OK.

I did not turn around. My mind was too busy contemplating the immense and dark void ahead of my eyes, to an invisible line beyond the horizon, where the ocean met the starry pitch-black firmament.

The night was fresh and quiet and it was quite enjoyable to stay by the shore. It was late and there was almost no noise on the streets of the neighbourhood. A strange silence embraced me with its cold arms, chilling me up and giving me goose bumps. I shivered, but I knew it was not because of the cold.

The song started again. The singer’s strong and pungent voice filled my senses and hit me like an ice stalactite falling from the dark and gloomy ceiling of a cave, into the calm waters of a lagoon, rippling the surface and hitting the deep unscathed darkness.

How many mysteries and secrets can be hidden below that apparently quiet and undefaced surface?

I closed my eyes and took a deep breath, diving into my own well of thoughts. Each word of that song was serving as a background to a kaleidoscopic sequence of images which brought my past back to the present with a cruel and vivid emotional distinctness.

…” They say that love can move a mountain
    They say love can break your heart 
   They say love can make you forget 
   Things that happened in the past” … 
(*)

(*) One more night with you : Ged McMahon featuring Kaz Hawkins



If those words were true, I had never experienced anything that could be close to those emotions… so far…

***

I touched the scar with my fingertips, as if caressing a dear pet.

It is incredible how we get used to wounds left in our bodies and souls and we tend to touch them every time we feel weak, as if it would give us some comfort or lessen the pain or our so protected solitude. It is the same as petting our errors, giving them a more condescending view. It is like trying to protect our hearts from the consequences of our sins, hoping for a chance and opportunity to have our souls saved.

…”So wave goodbye to heaven for me



  I've thrown it all away



 Just to spend one more night with you”…(*)

- Are you still like that?

- Like what?

- You know. I’m not a child anymore. You don’t need to try and fool me…

- I know.



My hands swept the piano keys, lightly, perhaps trying instinctively to forget those chords that had kept on hammering my mind for weeks already.

I read somewhere someday that the piano keys denote our feelings. The white represent the good emotions and the black, the pain and the bad sensations. The harmony, however, comes from the balance between them. You cannot make good music without playing both, as life cannot be fully and truly lived without the balance between the good and the bad emotions.

- You should play the song up to the last chord. It’s the best way to exorcize the pain away forever and for good.

I looked at her in awe. She was a very wise young woman. So I played it. Not necessarily to exorcize anything, but to feel the pain as alive as if it were being felt for the first time at that very moment.

I played the beginning of the song as a nocturne, with my fingers gently stroking the white keys and slightly touching the black ones, as if I was caressing my soul and its pain. The music took my body and emotion and my voice, weak at the beginning, became like a cry filled with melancholy, a blues feeling, with all my nerves reacting to the sequence of notes and chords… and words. My eyes and my soul overflowed…

…” They say that love can last forever
    They say love can last a day 
    They say love is like an ocean 
    For us to sail away” … (*)

I was going down to the bottom of the well, to get the impulse and go back to the surface. I needed to go to the bottom of the bottom or else I would never come back with strength enough to overcome the pain.

***

- Was it here?

- Yes.

- Let’s walk down there.

- No, we won’t.

- Yes, we will. Come with me.

She led the way before I could even answer or protest, descending the path from the top of the sea cliff. My stomach ached. I followed in silence. That foot track was not safe and I had to keep close to her just in case, although I knew there was no real reason to worry about.

When we reached the bottom of the trail, the white sandy beach was invitingly tempting, even though it was still early spring. The ocean roared, like a beast trying to threaten us. I did not feel intimidated, though. I was born on the island, so I always faced the sea as a comrade, not a foe. You should respect, but never fear a true old friend.

We walked along the shore for a while, with our feet in the chilly waters and our heads worried only with our own individual thoughts. A group of noisy seagulls were flying over our heads and the wind blew almost fiercely against our faces.

- It was an accident, wasn’t it?

- Yes, it was… an unhappy accident.

- Did you two love each other very much?

I did not think about it.

- We were very good friends, since our school days.

- This is not an answer.

- I know. It’s not.

She looked at me with that ‘questioning the truth’ look knowing that there was no truth to be revealed anymore.

- Then why did you two decide to have a child, after all?

- Because she wanted it. It was the best decision to have a child from that respectful relationship we had, than waiting for a love that would never come. She was a very practical woman. She knew we would love and respect the child above it all.

- And you never regretted that decision?

- Of course not! Why would we?

- Don’t know… there was no love…

- It was a very wise decision, based on true respect and care. She was afraid of getting old and never being able to become a mother. She wanted it so dearly. You know what women are like…

- Haha… Yeah, right!

We laughed out loud. My pale smile could not hide the awkwardness of having to tell her the same thing for the millionth time.

- Do you think you two were happy?

- Perhaps, before the…

- It’s odd…

- What?

- Your relationship. The illness. The accident.

- It’s not odd. The accident was caused by the disease.

- But you too could have died.

- I don’t think so. I fell down when I tried to help her… I was so clumsy…

- The scar is big.

- The pain is bigger!

She shut it up. The sea seemed to explode against the rocks. She walked away in silence for a while, then she turned around to face me. She squinted her eyes as if trying to see better something that was behind me. For a moment I felt a shadow crossing her face.

- Dad?

- What?

- Is that him on top of the cliff?

- Uh? What the hell is he doing up there?

***