sábado, 9 de março de 2019

Uma noite a mais (Parte 2)




- Não sei.

- Nem eu… Mas devias saber, afinal foste tu que vieste para cá, assim, depois de tanto tempo.

- Não me julgues, por favor. Já nem sei o que pensar. Tive saudades e uma sensação estranha que devia vir até este lugar… Foi aqui que nós…

 - Não achas que é estranho sentires saudades?

- Não faças isso. Não é justo para nenhum de nós.

Um gritinho de excitação, do lado de fora, chamou a nossa atenção, momentaneamente. Aquela pequena distração era mais que oportuna, para atenuar o clima.

- Olha para ela, lá fora, a brincar com o mar… Algumas coisas não mudam… desde pequena que é fascinada pelo mar!

- Ela cresceu tanto…

- É uma mulher, quase. Um presente dos céus.

- Ora. E desde quando tu acreditas em “céus”? Ela é um presente, sim… da vida… do Universo. Sinto vossa falta, sabias?

Senti uma nostalgia… tinha certeza que ele também. Via a tristeza naqueles olhos. Minha alma estava dolorida, assim como minha cabeça. Olhei para fora e vi que ela vinha caminhando na direção do restaurante, onde bebíamos café, quase distraidamente, na esplanada.

- Olha isso! Molhei as pernas das calças quando o mar pegou-me de surpresa. Tenho que tentar secar isso… e preciso de uma água!

Nós rimos.

- Pede lá dentro, no balcão, meu amor. Não há muita gente para atenderem…

Ela correu para dentro. Acompanhei seus passos, com os olhos. Senti que era observado e virei-me. Olhava-me com uma expressão que eu conhecia bem.

- Que foi?

- Sinto falta de nós…

Meu peito doeu. Minha alma doeu. Meus olhos arderam. Não consegui dizer nada, mas senti lágrimas a me descerem pelo rosto.

- Não chores.

- Eu? Chorar? Claro que não! Não sejas ridículo!

Ele riu. Claro que não acreditava no que eu dizia.

- Pai? Está tudo bem?

- Está tudo bem, meu amor! Senta aqui, connosco.

- Então? Como estão as coisas, na escola?

Ela aprumou-se. Gostava de falar da escola e dos planos que tinha para a faculdade.

***

O mar estava sempre daquele jeito. Parecia um leão a rugir, insistente, mas nunca me conseguia amedrontar, por mais que o tempo passasse, por mais que, na minha cabeça, eu imaginasse que ele, de alguma forma, até tentava. Aquele bramir, ao contrário do que podia ser esperado, me deixava calmo e fazia-me pensar... Fazia minhas viagens na mente… nas lembranças… no passado.

Eu gostava daquele lugar. Tinha boas e, também, más memórias dali, mas as boas sobrepunham as outras. Naquele penhasco, acima da minha cabeça, eu me via, há um bom tempo atrás…

- Precisa de algo?

- Hã? Não. Estou bem, obrigado.

Aquela pele pálida não combinava com o lugar. Nem aqueles olhos. Ele parecia um estrangeiro.

- Posso perguntar uma coisa? Não quero ser atrevido. É uma curiosidade.

- Pode, mas não prometo responder.

- Claro.

A intromissão havia sido um tanto brusca, mas o homem estava, provavelmente, aborrecido por não ter com quem conversar. Eu não estava acostumado a falar com estranhos, especialmente nesta terra, mas vinha tantas vezes a aquele mesmo restaurante, que já conhecia o gerente, que sempre me atendia com cortesia e um sorriso e já não o considerava, de facto, um desconhecido. Ele não era, entretanto, um amigo… ainda…

- Quer que eu peça para trazer uma nata, para acompanhar o café?

- Era esta a pergunta? Se era, a resposta é sim, mas quero uma somente…

Ele riu. Sabia que eu havia percebido que ele estava tentando ganhar confiança, ou coragem, para fazer a pergunta verdadeira. Pediu para a empregada ao balcão trazer-me duas natas, apesar do meu protesto.

- Já faz algum tempo que tenho observado que vem, sempre, aos sábados à tarde, traz o bebé, pede um café, senta-se na esplanada, sozinho e em silêncio, a olhar o mar, e depois vai embora.

- E… ?

- E pergunto-me por que não vem com a mãe da criança. Estão separados?

- Estamos… por assim dizer…

- OK. Já percebi. Desculpe a intromissão e a curiosidade.

- Não há problema.

Ele não havia percebido o que eu quis dizer. Por alguma razão, eu tive vontade de contar-lhe mais, o que não era comum, mas não vi problema em falar ao estranho, que desculpava-se por haver talvez ultrapassado a fronteira da curiosidade.

- Ela faleceu. Éramos grandes amigos. Este lugar me traz boas recordações.

O homem olhou-me, sério, meio sem graça. A criança dormia, na cadeirinha, ao meu lado.

- Eu sinto muito. Não quis ser intrometido.

- Sem problemas. Foi um acidente. Não há nada que ainda possa ser feito.

- Pode-se viver. É o melhor para ela, que está aí, com uma vida inteira pela frente.

- Pois. É uma grande verdade. Ela é o meu bem mais precioso.

- Eu acredito.

Ele olhou-me nos olhos, por uma fração de segundos. Eu mantive o meu olhar no dele. Ele enrubesceu de imediato, como uma criança que é flagrada fazendo alguma peraltice.

-Vou deixá-los a sós.

Saiu, quase às pressas. Eu acompanhei com o olhar, enquanto ele entrava no restaurante. Na porta, deu uma paradinha e virou-se pra trás. Daquela vez, quem ficou vermelho foi eu.

Resmunguei, entre dentes.

- Ora, ora… o que foi aquilo, afinal?

***

Eu estava deitado na espreguiçadeira, com a camisa semiaberta, tomando um pouco de sol. Ele tocou, com os dedos pálidos, a estranha cicatriz, mal desenhada no meu peito. Eu tremi.

- Não tenha medo. Não tenho intenções de machucar.

- Não tenho medo.

- É uma grande cicatriz.

- Foi um acidente: um estúpido acidente, de um homem desajeitado.

- Não acredito que tenha sido estúpido. Tem a ver com o que aconteceu à esposa?

- Ela estava muito doente. O tumor foi detetado após a gravidez estar bastante adiantada. Não podia fazer tratamento químico, sob pena de afetar a criança. Mas a doença enfraqueceu sua saúde. Estávamos a descer a trilha que desce o penhasco, quando ela sentiu-se mal e caiu. Eu vinha atrás e tentei impedir a queda, mas foi tudo muito brusco e eu não tive forças para segurar. Escorreguei e caí de peito na rocha, ao lado dela. Não foi aquele acidente que a matou. Ela foi hospitalizada, após a queda, mas foi enfraquecendo, com o passar do tempo. Optamos por retirar o bebé e fazer o tratamento químico, mas era tarde demais. A menina sobreviveu, mas a mãe não conseguiu. Não foi uma morte súbita, mas foi muito dolorosa… para todos nós.

- Ainda dói?

- Um pouco… às vezes…

- Pois eu nunca casei. Não encontrei a pessoa certa, acho…

- Nós só casamos por causa da gravidez. Era o mais certo, para a criança, na época.

- Eu compreendo. Achas que farias tudo outra vez?

- Eu nunca me arrependi. Mas isso não é um jogo. É a vida. Não se volta a fazer as mesmas coisas, ou cometer os mesmos erros, por opção ou por vontade. O tempo muda as pessoas… as circunstâncias também…

- Vocês se amavam?

Aquela pergunta, mais uma vez, e que eu respondia, sempre, da mesma forma.

- Nós éramos grandes amigos. Sempre havíamos sido um tanto cúmplices, desde o tempo em que estudávamos juntos. Fomos para a mesma universidade, nos formamos na mesma época, saímos de casa na mesma ocasião, dividimos um apartamento e partilhamos nossa liberdade.

- Mas não era amor…

- Mas não era amor, no sentido físico. Era uma coisa mais fraternal, acho.

- Eu compreendo.

Teria eu percebido um leve sorriso, naquela resposta quase inofensiva? Ou teria sido somente uma inocente impressão minha?

***

…”For a taste of your love and 
     I need to taste some more 
    Wave goodbye to heaven for me 
    I've thrown it all away 
    Just to spend one more night with you”…(*)

(*) One more night with you : Ged McMahon



- Gosto desta versão. Não tem o mesmo poder da voz feminina, mas é muito boa também. Parece-me tanto com uma história que eu conheço tão bem…

Olhei para ela e imitei seu jeito de falar.

- Se eu contasse tudo que sei…

- Hah! Melhor não contar nada.

- Pois.

Rimos. Ela levantou-se de onde estava e veio deitar-se no sofá, com a cabeça no meu colo.

- Pai?

- Hum?

- Não seria problema se ele viesse morar novamente connosco, seria?

- Como assim?

- Eu sei que é isso que ele quer. Acho que não é problema, não achas? Ele gosta de nós… e nós gostamos dele…

- Como sabes? Ele não falou nada.

- Ainda… mas é o que eu sinto.

- Foi ele quem se afastou… sabe Deus se foi pelo motivo que alegou. Pareceu-me um tanto covarde…

- As pessoas mudam, pai. Ele deve ter sofrido.

- Só ele?

Ela beijou minhas mãos. Seus olhos fixaram-se na minha face séria. Esboçou um sorriso, tentando ser complacente com o pai emotivo e que ela conhecia tão bem. Tentei não chorar…

***

1 comentário:

  1. Uma leve homenagem aos fãs do yaoi. Algumas revelações no estranho caleidoscópio que a história se tornou.

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