- Não
sei.
- Nem
eu… Mas devias saber, afinal foste tu que vieste para cá, assim, depois de
tanto tempo.
- Não
me julgues, por favor. Já nem sei o que pensar. Tive saudades e uma sensação
estranha que devia vir até este lugar… Foi aqui que nós…
- Não achas que é estranho sentires saudades?
- Não
faças isso. Não é justo para nenhum de nós.
Um gritinho de excitação, do lado
de fora, chamou a nossa atenção, momentaneamente. Aquela pequena distração era
mais que oportuna, para atenuar o clima.
- Olha
para ela, lá fora, a brincar com o mar… Algumas coisas não mudam… desde pequena que é fascinada pelo mar!
- Ela
cresceu tanto…
- É uma
mulher, quase. Um presente dos céus.
- Ora.
E desde quando tu acreditas em “céus”? Ela é um presente, sim… da vida… do Universo.
Sinto vossa falta, sabias?
Senti uma nostalgia… tinha certeza
que ele também. Via a tristeza naqueles olhos. Minha alma estava dolorida,
assim como minha cabeça. Olhei para fora e vi que ela vinha caminhando na
direção do restaurante, onde bebíamos café, quase distraidamente, na esplanada.
- Olha
isso! Molhei as pernas das calças quando o mar pegou-me de surpresa. Tenho que tentar
secar isso… e preciso de uma água!
Nós rimos.
- Pede
lá dentro, no balcão, meu amor. Não há muita gente para atenderem…
Ela correu para dentro. Acompanhei
seus passos, com os olhos. Senti que era observado e virei-me. Olhava-me com
uma expressão que eu conhecia bem.
- Que
foi?
- Sinto
falta de nós…
Meu peito doeu. Minha alma doeu.
Meus olhos arderam. Não consegui dizer nada, mas senti lágrimas a me descerem
pelo rosto.
- Não
chores.
- Eu?
Chorar? Claro que não! Não sejas ridículo!
Ele riu. Claro que não acreditava no que eu dizia.
- Pai?
Está tudo bem?
- Está
tudo bem, meu amor! Senta aqui, connosco.
-
Então? Como estão as coisas, na escola?
Ela aprumou-se. Gostava de falar da escola e dos planos que tinha para a
faculdade.
***
O mar estava sempre daquele jeito.
Parecia um leão a rugir, insistente, mas nunca me conseguia amedrontar, por
mais que o tempo passasse, por mais que, na minha cabeça, eu imaginasse que
ele, de alguma forma, até tentava. Aquele bramir, ao contrário do que podia ser
esperado, me deixava calmo e fazia-me pensar... Fazia minhas viagens na mente…
nas lembranças… no passado.
Eu gostava daquele lugar. Tinha
boas e, também, más memórias dali, mas as boas sobrepunham as outras. Naquele
penhasco, acima da minha cabeça, eu me via, há um bom tempo atrás…
-
Precisa de algo?
- Hã?
Não. Estou bem, obrigado.
Aquela pele pálida não combinava
com o lugar. Nem aqueles olhos. Ele parecia um estrangeiro.
- Posso
perguntar uma coisa? Não quero ser atrevido. É uma curiosidade.
- Pode,
mas não prometo responder.
-
Claro.
A intromissão havia sido um tanto
brusca, mas o homem estava, provavelmente, aborrecido por não ter com quem
conversar. Eu não estava acostumado a falar com estranhos, especialmente nesta
terra, mas vinha tantas vezes a aquele mesmo restaurante, que já conhecia o gerente,
que sempre me atendia com cortesia e um sorriso e já não o considerava, de
facto, um desconhecido. Ele não era, entretanto, um amigo… ainda…
- Quer
que eu peça para trazer uma nata, para acompanhar o café?
- Era
esta a pergunta? Se era, a resposta é sim, mas quero uma somente…
Ele riu. Sabia que eu havia
percebido que ele estava tentando ganhar confiança, ou coragem, para fazer a
pergunta verdadeira. Pediu para a empregada ao balcão trazer-me duas natas, apesar
do meu protesto.
- Já
faz algum tempo que tenho observado que vem, sempre, aos sábados à tarde, traz
o bebé, pede um café, senta-se na esplanada, sozinho e em silêncio, a olhar o
mar, e depois vai embora.
- E… ?
- E
pergunto-me por que não vem com a mãe da criança. Estão separados?
-
Estamos… por assim dizer…
- OK.
Já percebi. Desculpe a intromissão e a curiosidade.
- Não
há problema.
Ele não havia percebido o que eu
quis dizer. Por alguma razão, eu tive vontade de contar-lhe mais, o que não era
comum, mas não vi problema em falar ao estranho, que desculpava-se por haver
talvez ultrapassado a fronteira da curiosidade.
- Ela
faleceu. Éramos grandes amigos. Este lugar me traz boas recordações.
O homem olhou-me, sério, meio sem
graça. A criança dormia, na cadeirinha, ao meu lado.
- Eu sinto
muito. Não quis ser intrometido.
- Sem
problemas. Foi um acidente. Não há nada que ainda possa ser feito.
-
Pode-se viver. É o melhor para ela, que está aí, com uma vida inteira pela
frente.
- Pois.
É uma grande verdade. Ela é o meu bem mais precioso.
- Eu
acredito.
Ele olhou-me nos olhos, por uma
fração de segundos. Eu mantive o meu olhar no dele. Ele enrubesceu de imediato,
como uma criança que é flagrada fazendo alguma peraltice.
-Vou
deixá-los a sós.
Saiu, quase às pressas. Eu
acompanhei com o olhar, enquanto ele entrava no restaurante. Na porta, deu uma
paradinha e virou-se pra trás. Daquela vez, quem ficou vermelho foi eu.
Resmunguei, entre dentes.
- Ora,
ora… o que foi aquilo, afinal?
***
Eu estava deitado na
espreguiçadeira, com a camisa semiaberta, tomando um pouco de sol. Ele tocou,
com os dedos pálidos, a estranha cicatriz, mal desenhada no meu peito. Eu
tremi.
- Não
tenha medo. Não tenho intenções de machucar.
- Não
tenho medo.
- É uma
grande cicatriz.
- Foi
um acidente: um estúpido acidente, de um homem desajeitado.
- Não
acredito que tenha sido estúpido. Tem a ver com o que aconteceu à esposa?
- Ela
estava muito doente. O tumor foi detetado após a gravidez estar bastante
adiantada. Não podia fazer tratamento químico, sob pena de afetar a criança.
Mas a doença enfraqueceu sua saúde. Estávamos a descer a trilha que desce o
penhasco, quando ela sentiu-se mal e caiu. Eu vinha atrás e tentei impedir a
queda, mas foi tudo muito brusco e eu não tive forças para segurar. Escorreguei
e caí de peito na rocha, ao lado dela. Não foi aquele acidente que a matou. Ela
foi hospitalizada, após a queda, mas foi enfraquecendo, com o passar do tempo.
Optamos por retirar o bebé e fazer o tratamento químico, mas era tarde demais.
A menina sobreviveu, mas a mãe não conseguiu. Não foi uma morte súbita, mas foi
muito dolorosa… para todos nós.
- Ainda
dói?
- Um
pouco… às vezes…
- Pois
eu nunca casei. Não encontrei a pessoa certa, acho…
- Nós
só casamos por causa da gravidez. Era o mais certo, para a criança, na época.
- Eu
compreendo. Achas que farias tudo outra vez?
- Eu
nunca me arrependi. Mas isso não é um jogo. É a vida. Não se volta a fazer as
mesmas coisas, ou cometer os mesmos erros, por opção ou por vontade. O tempo
muda as pessoas… as circunstâncias também…
- Vocês
se amavam?
Aquela pergunta, mais uma vez, e que
eu respondia, sempre, da mesma forma.
- Nós
éramos grandes amigos. Sempre havíamos sido um tanto cúmplices, desde o tempo
em que estudávamos juntos. Fomos para a mesma universidade, nos formamos na
mesma época, saímos de casa na mesma ocasião, dividimos um apartamento e partilhamos
nossa liberdade.
- Mas
não era amor…
- Mas
não era amor, no sentido físico. Era uma coisa mais fraternal, acho.
- Eu
compreendo.
Teria eu percebido um leve sorriso,
naquela resposta quase inofensiva? Ou teria
sido somente uma inocente impressão minha?
***
…”For a taste of your love
and
I need to taste some more
Wave goodbye to heaven for me
I've thrown it all away
Just to spend one more night with you”…(*)
I need to taste some more
Wave goodbye to heaven for me
I've thrown it all away
Just to spend one more night with you”…(*)
(*) One more night with you : Ged McMahon
- Gosto
desta versão. Não tem o mesmo poder da voz feminina, mas é muito boa também.
Parece-me tanto com uma história que eu conheço tão bem…
Olhei para ela e imitei seu jeito
de falar.
- Se eu
contasse tudo que sei…
- Hah!
Melhor não contar nada.
- Pois.
Rimos. Ela levantou-se de onde
estava e veio deitar-se no sofá, com a cabeça no meu colo.
- Pai?
- Hum?
- Não
seria problema se ele viesse morar novamente connosco, seria?
- Como
assim?
- Eu
sei que é isso que ele quer. Acho que não é problema, não achas? Ele gosta de
nós… e nós gostamos dele…
- Como
sabes? Ele não falou nada.
-
Ainda… mas é o que eu sinto.
- Foi
ele quem se afastou… sabe Deus se foi pelo motivo que alegou. Pareceu-me um
tanto covarde…
- As
pessoas mudam, pai. Ele deve ter sofrido.
- Só
ele?
Ela beijou minhas mãos. Seus olhos
fixaram-se na minha face séria. Esboçou um sorriso, tentando ser complacente
com o pai emotivo e que ela conhecia tão bem. Tentei não chorar…
***
Uma leve homenagem aos fãs do yaoi. Algumas revelações no estranho caleidoscópio que a história se tornou.
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