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domingo, 24 de março de 2019

Uma Noite a Mais (Parte 3)


Κι αν ρωτήσεις πώς περνάω  … (E se me perguntares como estou
θα σου πω δυο ψέματα                Eu vou-te dizer duas mentiras
ένα πως δε σ' αγαπάω                 Uma: que eu não te amo
κι ένα πως σε ξέχασα (**)          E a outra: que eu já te esqueci) …

(**) Dyo Psemata (δυο ψέματα): Antonis Remos

- Ainda lembras?

- Claro que sim. Algumas coisas não podem ser, simplesmente, apagadas da memória.

- Pois não.

- A canção estava tão certa…

- Contra o que havia desejado. Eu sinto muito.

- Por quê?

Ele me olhou, como se fosse fazer a maior revelação da sua vida, mas não emitiu nenhum som. A oportunidade era aquela e, se fosse perdida, não haveria outra. Ele baixou os olhos.

Eu balancei a cabeça, num gesto de desânimo e frustração, levantei-me, atravessei a varanda e fui para a praia. Estava bastante desiludido.

De frente para o mar, eu me sentia pequeno demais e aquela imensidão era intimidante. O conflito interno era tão ou mais assustador que tudo à minha volta, todavia. Eu nem sabia se sentia ódio, ou vontade de matar a saudade com um longo abraço apertado, mas diante daquela falta de ação, eu decidi que não tinha que alimentar falsas expectativas. Talvez aquela história já tivesse ido longe demais e acabado, afinal, apesar de minhas malnutridas esperanças.

Fechei os olhos e respirei fundo. Aquele ar salino me fazia tão bem. Eu quase ia ao passado buscar boas memórias, para alimentar minha alma dorida.

Num lampejo de consciência, reconheci que só o fato de estar ali, vivo, já era suficientemente bom, apesar de todas as circunstâncias. Minha filha era meu maior bem; um bem maior que minha própria vida. Não era justo sentir menos que gratidão pelo que eu havia feito e plantado e pelos frutos que havia colhido.

Dei um longo suspiro e voltei-me. Tinha que cuidar da minha vida…

***

A noite estava agradável. A porta que dava para a varanda estava aberta e uma suave brisa soprava pela casa. Eu sentei-me ao piano e comecei a cantarolar a mesma canção, que tanto mexia comigo. Desta vez, eu estava redimido. Aquela tristeza na alma era uma velha companheira, mas já não tinha o poder de outrora.

Ela sentou-se ao meu lado e acompanhou-me nos vocais.

…” They say that love can move a mountain
      They say love can break your heart 
      They say love can make you forget 
      Things that happened in the past
      For I've tasted your love and
      I need to taste some more 
      So wave goodbye to heaven for me
      I've thrown it all away 
      Just to spend one more night with you”
…  (*)

      (*) One more night with you: Ged McMahon

- Continuo a achar que é um bocado triste.

- E é. Mas eu não quero reclamar. Não é justo.

Ela deitou a cabeça no meu ombro, enquanto eu continuei a dedilhar as teclas, tão de leve, que parecia acariciá-las, respeitosamente. Senti uma angústia subir até minha garganta e não consegui mais falar… ou cantar… nem pude refrear as lágrimas, que caíram livres pelo meu rosto, enquanto meu corpo estremecia por inteiro, como se estivesse em convulsões.

Ela me abraçou e, com a cabeça enterrada no meu peito, chorou junto comigo, ali, no meio da sala de estar.

***

O sol da tarde estava mesmo agradável, naquele dia de início de primavera. Não ventava, mas uma leve brisa vinha do mar, trazendo aquele ar salino e iodado para mais perto de onde eu estava. Estiquei as pernas e fechei os olhos, pensando que devia estar sentindo falta de fazer minha fotossíntese. A bebé dormia na cadeirinha ao meu lado, devidamente protegida do vento e do sol.

Uma nuvem deve ter passado na frente do sol, pois senti que já não estava tão claro. Abri os olhos e vi que aquilo que pensava ser uma nuvem, nada mais era que a silhueta de um homem, que havia-se posicionado entre o sol e eu.

- Desculpe.  

- O quê?

- Não quis importunar, mas o bebé acordou e estava a mexer-se, por isso achei que devia verificar. Pensei que havia adormecido… Quer que eu traga alguma coisa?

A menina estava apenas a olhar-me com seus olhos esverdeados, mas não chorava. Eu devia ter, realmente, adormecido, pois, normalmente, ouvia quando ela acordava. Devia estar mesmo cansado… Ou relaxara tão profundamente…

- Ah. Não. Obrigado.

Eu levantei-me e procurei a mamadeira com água, dentro da bolsa. A bolsa havia ficado ao sol e a água estava meio morna.

- Acho que vou precisar de uma garrafinha de água fresca, por favor. Esta já passou da temperatura aceitável.

- Vou pedir para trazerem. Quer um café também?

 - Bem pensado. Acho que preciso de um, na verdade.

Às vezes eu me perguntava por qual razão ele era gentil comigo, até um pouco além do esperado por um cliente normal. Era agradável, mas eu não era muito habituado a aquele tipo de coisas.

A moça trouxe a água e duas chávenas de café, que pousou sobre a mesa. Eu olhei com aquele ar inquisidor, mas logo percebi. O gerente veio e sentou-se comigo, sem muita cerimónia e disse:

- Espero que não se importe que eu sente aqui, por um momento.

- Claro que não. Fique à vontade. 

- Eu adoro esta hora do dia. Não só pela tranquilidade, mas pela luz e pelas cores. É como se o mundo desse uma trégua e parasse de girar por uns momentos, para que a gente pudesse, simplesmente, apreciar um bom café.

Eu olhei para ele, admirado, não só pela leveza e poesia do que ele dissera, mas pela forma com que se expressara, tão fluentemente e à vontade.

Ele riu.

- O que foi? Disse alguma asneira?

- Não. Ao contrário. Foi muito bem colocado.

- Então?

- Não esperava. Só isso.

Ele fingiu que não se sentiu satisfeito por haver-me surpreendido e tomou seu café, calmamente, a olhar o mar, que parecia espreguiçar-se sobre a fina areia branca. Eu fingi que estava somente a cuidar da menina, mas observei um leve sorriso, na sua face tranquila.

- Posso fazer uma pergunta?

Ele riu.

- Pode. Mas não prometo responder.

Ele usava minha fala. Que esperto!

- Por que me trata assim?

- Assim como?

- Com esta gentileza e com um tanto de familiaridade, sem ser, necessariamente, íntimo. Eu sou apenas um cliente.

- Talvez não. Eu sou um homem habituado a viver sozinho e reconheço quando vejo uma pessoa com as mesmas características. Está sempre aqui sozinho, com a menina, mas nunca entre amigos. Não se sente só?

- Nunca. Acho que sempre fui assim, introvertido e ocupado com minhas coisas, ao invés de pessoas.

- Eu compreendo. Não sente falta de ter alguém?

Fugi à questão.

- Eu tenho alguém. E ela é adorável.

Ele riu, fazendo um muxoxo. Percebeu que eu fugia à conversa.

- Pois eu sinto. Embora nunca tenha sido homem de longos relacionamentos, sinto falta de alguém.

- Curioso. Nunca falamos sobre isto.

- Eu sei. É uma demonstração de confiança, não é?

- Acho que sim. Mas por que não?

- Acho que eu demoro para acreditar nas pessoas. Passei por algumas situações, que me fizeram perder a confiança…

A frase ficou assim, meio no ar, meio incompleta, meio a deixar azo para que se imaginasse tantas situações…

- Acho que eu também. Somos parecidos nisso.

- Vejo que sim. Que dois!

Ele levantou a chávena de café e disse, com um sorriso e um piscar de olhos:

- Aos solitários!

- Aos solitários!

Tive a impressão que só naquele momento percebi que havia música vinda dos dois pequenos altifalantes, alocados na parte de cima da varanda. Era uma canção conhecida minha. Eu cantarolei o pedacinho do refrão.

Κι αν ρωτήσεις πώς περνάω      (Ki an ro̱tí̱seis pó̱s pernáo̱) (E se me perguntares como estou
θα σου πω δυο ψέματα               (ha sou po̱ dyo psémata)      Eu vou-te dizer duas mentiras  
ένα πως δε σ' αγαπάω                (éna po̱s de s ' agapáo̱)          Uma: que eu não te amo
κι ένα πως σε ξέχασα (*)           (ki éna po̱s se xéchasa)          E a outra: que eu já te esqueci) 

(**) Dyo Psemata (δυο ψέματα): Antonis Remos

- Conheces esta canção?
    
- Claro. Mas não esperava ouvi-la aqui. É uma antiga canção grega…
  
- Sabes o significado, não sabes?

- Por acaso, sei. É um tanto triste, não é?

Ele me olhou, sério. Fui pego de surpresa com a afirmação que fez, a seguir.

- É. Mas uma coisa destas não gostaria, jamais, que acontecesse connosco…

***


segunda-feira, 23 de julho de 2018

Tatuagem (Parte 1 de 2)



- É um dragão.

- Já vi melhores, mas não está mal.

- Eu sei… devo mandar retocar… quero mudar um pouco a figura original.

Beijou-me a tatuagem, suavemente, como quem beija a cabeça de uma criança… ou de um animalzinho de estimação…

Olhou-me como se quisesse ler minhas reações, diante daquela atitude quase infantil e riu-se. Aquele riso veio tão espontaneamente que divertiu-me, fez-me rir, também, e deixou-me, no peito, uma morna sensação de conforto e serenidade.

A imagem, do tamanho de um punho fechado, representava um dragão e estava impressa no lado esquerdo da minha cintura. Eu sabia que deveria reforçar as linhas e cores, pois depois de dez anos, a imagem já não tinha o mesmo brilho inicial, mas tinha primeiro que tomar algumas decisões em relação ao que queria.

Como se estivesse tentando ler meus pensamentos, cantarolou o verso da antiga canção, sorrindo, a me provocar.

“Quero ficar no teu corpo, feito tatuagem”…*

Eu ri.

- Criatura sem noção! E, ainda mais, com uma canção tão antiga…

- Mas que cabe bem neste momento…

Seus olhos pareciam duas estrelas, que não conseguiam esconder o brilho evidente do desejo, que os lábios acabavam de revelar. Talvez, na verdade, quisesse, apenas, brincar um pouco com minha libido e minhas reações, provocar-me, ou sei-lá-o-quê…

Virei-me e abracei-lhe o corpo, deitando minha cabeça em seu peito. Soltou um longo suspiro e brincou com meus cabelos, passando o outro braço à minha volta.

Eu senti-me como uma criança em seu morno regaço. Aquela manifestação de uma proteção quase onipotente era-me convenientemente agradável. Fechei os olhos.

- Gosto da maciez dos teus cabelos.

- Gosto que me toques a cabeça.

- Dizem que é prova de grande confiança.

- Eu sei…

- Existe alguma coisa que não saibas?

- Muitas, mas não lembro de nenhuma, agora…

Dei uma gargalhada. Quem provocava quem, agora?

***

- Tu acreditas em almas gémeas?

- Eu não acredito nem em almas. Acredito, sim, em afinidades, em respeito aos limites e…

- Não sejas assim. Nós temos muitas afinidades, é verdade. Somos como almas gémeas…

- Ah! Tá!

- Tu já não acreditas em nada que não seja real e solidamente palpável. Perdeste o romantismo e a fantasia…

- Mas não perdi o tacto, pois não?

Sorriu. Olhou-me como se me analisasse, antes de dizer o que pensava.

- Não. O tacto é uma das coisas que mais gosto em ti… e não só…

- Ai, não? Que mais tu gostas?

Não respondeu. Apenas riu, com uma pontinha daquela malícia, que lhe caía tão bem, quando estávamos juntos, daquele jeito, entre os lençóis desalinhados, na cama de casal.

Eu sempre gostei de camas grandes. Quando era criança, nunca tive um quarto todo meu, tendo sempre que dividir meu espaço e dormir em uma cama estreita, que sempre me pareceu diminuta, apesar da minha pequena estatura e do corpo mirrado demais para a minha idade. Talvez meu egoísmo e minha carência de espaço fossem maiores que o meu tamanho físico, mas agora aquilo tudo havia ficado num passado muitíssimo distante.

Minhas lembranças de infância nunca traziam saudades de tempos felizes. Era uma quase melancolia, quando meu passado vinha à memória, mais para inquietar-me, que para fazer-me sorrir.

Não. Eu não fui infeliz, mas nunca senti saudades daqueles tempos, em que eu era apenas uma criança, buscando ganhar uma atenção, que eu nem sabia bem se merecia e sem sentir grandes demonstrações de carinho, por parte de quem, supostamente, deveria mas dar, espontaneamente.

Cresci independente, tentando esconder e controlar a arredia insegurança e a disfarçar a timidez, com uma boa dose de arrogância e rebeldia, características da idade.

Meus pensamentos já iam muito longe, quando sua mão tocou-me o rosto e senti-me como a voltar a assentar meus pés à realidade.

- Onde estavas? Parecias tão distante.

Menti.

- Estava apenas a curtir este momento. É bom estar aqui, sem ter que pensar em nada…

Não convencia nem a mim, obviamente.

- Sei, sei… Sem pensar em nada…

Não consegui sorrir. Eu caía num incontrolável poço de auto-comiseração e não gostava nada daquilo. Agarrei-me à corda lançada, como quem agarra-se à única possibilidade de salvação.

- Ainda bem que cá estás.

- Por quê? 

- Porque assim me dás segurança.

- Ah…

- Não brinques. É importante para mim.

- Ok. Então que seja.

Beijou-me os lábios, de leve. Eu respondi, tentando controlar o desespero que tomava conta de mim naquele momento, mas meu corpo inteiro delatou-me, com um tremor involuntário.

- Estás bem?

- Uh hum…

Aquela resposta bastava. Era, entre nós, sinal que não era hora de falar mais nada.

Costumávamos respeitar nossos silêncios, quando nossos corpos estavam presentes, mas nossas mentes não. Conhecíamos nossos desejos e respeitávamos nossas necessidades de ficarmos assim, sem dizer nada, a ouvir a música que vinha da sala, do computador ligado num canal de rádio e que me atingia, em cheio, no meio do peito, como uma seta envenenada por curare, que paralisava-me os movimentos, mas deixava duas lágrimas salgadas e quentes a brotar-me pelo canto do olho e descer-me pela face abaixo.

“Ando tão à flor da pele,
 Que qualquer beijo de novela me faz chorar;”…
”Ando tão à flor da pele,
 Que meu desejo se confunde
 Com a vontade de não ser;
 Ando tão à flor da pele,
 Que a minha pele tem o fogo do juízo final”…**

***

- Vou fazer uma tatuagem.

- Vais? E o que vai ser?

- Não vou dizer.

- Por que não?

- Quero que seja uma surpresa.

- OK, então. Que seja… sabes as consequências… e sabes que dói…

Riu.

- Quando?

- Logo… ainda não sei direito…

Levantei o sobrolho, como quem desconfia ou condena aquela meia explicação, mas percebi que não causei grande comoção.

Sorriu, apenas. Parecia uma criança que ganhava um brinquedo novo. Aquela não devia ter sido uma decisão muito fácil. Uma tatuagem é, quase sempre, para sempre. É mais duradoura que a maioria dos relacionamentos. Embora muito em moda, sabe-se que pode ser uma decisão bem dolorosa e, dependendo do caso, pode não compensar o “sacrifício”.

Talvez a minha aceitação, assim, tão naturalmente, tenha sido um alívio, afinal. Eu não tinha porque criticar ou condenar. Eu tinha a minha e sabia o quanto doía, mas, também, o quanto era importante para mim tê-la gravada na pele, indelevelmente, para, no meu caso, marcar um evento. Cada um tem seus próprios motivos, afinal.

***

- Vou sair. Não sei a que horas volto.

- Como assim? Não sabes?

- Não sei, simplesmente… Posso demorar… bastante…

Não esperou que eu dissesse mais nada.

Saiu, como quem ia fazer algo especial ou como quem ia encontrar com alguém especial, de tão feliz que estava.

Fiquei a olhar, enquanto se afastava. Um aperto no peito plantou uma semente de dúvida. Uma sombra passou-se em meu discernimento. Já não pensava claramente…

***

* Tatuagem, de Chico Buarque de Holanda
** Flor da Pele, de Zeca Baleiro

sábado, 2 de dezembro de 2017

Preso na Mente (Parte 2)



- Tu és um anjo?

- Na verdade, não...

- Então?

- Estou aqui para ajudar-te...

- Em quê?

- Em ir para o outro lado…

- Assim me estás assustando.

- Por favor, não tenha medo. Tudo vai ficar bem.

- Agora é que estou com muito medo, mesmo. Isso é de loucos...

- Um salto de fé?

- Outro?

Ele riu. Engraçado, como seu sorriso me fazia sentir tão bem e segura. Algo em minha mente dizia que eu poderia confiar nele. Ao observar aquela bondade claramente expressa em sua face atraente, não sei por qual razão, minhas pernas enfraqueceram e senti que precisava sentar-me. Ele apenas segurou minha mão. Minha vista escureceu. Minha mente ficou vazia. Então eu apaguei... Ou foi todo o resto que desapareceu?

***

- Venha comigo. O canal deve estar bastante quieto agora. É tarde e ninguém trabalha nas gôndolas à esta hora da noite. Vou levá-la para o outro lado...

Ele escolheu uma noite de lua nova, com muita sabedoria. Estava demasiadamente escuro, sem a lua a brilhar no céu. Eu podia ver as estrelas cintilando acima de nossas cabeças, mas não podíamos ver muito adiante de nossos olhos. Senti sua mão quente e firme a segurar a minha. Por uma razão estranha, meu coração estava ardendo, apesar de a noite estar fresca, quase fria. Eu estava sendo habilmente conduzida por ele, noite adentro, através das águas um tanto turvas e silenciosas do canal. As luzes da cidade haviam ficado atrás de nós e o barco seguia para o lado mais escuro do lugar. Eu me sentia cansada, mas estava apreensiva ao mesmo tempo. Não conseguia fechar os olhos, mesmo que fosse por um segundo sequer.

Eu confiava nele e em suas habilidades... Tinha que confiar. Ele conduziu a embarcação por uma entrada que levava pelos porões de um conjunto muito antigo de prédios. De repente, todas as luzes desapareceram e eu só podia ouvir o som intermitente do remo, a bater suavemente na água que nos rodeava. Quase perdi o controlo e segurei-me ao lado do barco, com as duas mãos. Senti que estávamos avançando, porque uma suave e fresca brisa soprava contra meu rosto. Ele estava em silêncio e eu também, mais pelo medo, do que pela consciência, mantendo meus ouvidos em alerta total.

- Onde estamos?

- Shh... Não se preocupe. Confie em mim. Estamos quase lá.

- Lá? Onde?

Ele nunca respondeu. O silêncio era quase insuportável. Desisti e fiquei com a boca fechada, naquela estranha viagem, por uma via totalmente desprovida de luz, até que vi uma luminescência muito pálida, a flamejar bem à frente, como se a bruxulear sua mistura de estranhas sombras, nas paredes cobertas de limo e caruncho. Meu coração batia tão rápido, que eu pensei que ia ter um colapso. Minha mente estava completamente inquieta e eu sentia calafrios, subindo e descendo pela minha coluna. Meus pensamentos se tornaram um, gritando, na minha cabeça, aquele estado anormal e evidente de pavor.

"Oh, Deus! Estou tão terrivelmente assustada agora."

E, então, a situação ficou ainda pior, quando o ouvi dizer:

- Não fiques. Não tens razão para ter medo.

Ele fez aquilo novamente. Como ele poderia saber o que eu estava pensando? Perguntei se eu, algum dia, saberia.

Então ele desacelerou o barco e atracou, pulando rapidamente para uma espécie de minúsculo atracadouro e me ajudando a sair, para o terreno firme. Sua mão estava quente, mas a minha, ao contrário, estava extremamente fria.

E então ele sorriu para mim. Por algum inexplicável motivo, em vez de me sentir segura, senti-me ainda mais assustada, que já estava. Qual seria a sua intenção? Por que aquele estranho sorriso?

Meu coração deu uma outra batida em falso. E, então…

***

- O que é que foi isso?

- Um sonho, eu acho...

- Tu achas? Tu sabes bem o que foi...

Ele apenas sorriu, como se soubesse mais do que realmente dizia.

- Isso é loucura. O que estás fazendo comigo? Estou apavorada.

- Essa não é minha intenção, minha cara. De modo nenhum. Estou apenas te preparando.

- Lá vem aquela conversa de preparação, novamente. Por que tu não dizes tudo? Estou ficando cansada disso...

Ele simplesmente respondeu, da maneira mais calma que podia.

- Já falamos sobre isso.

- Sim, já, mas isso não me faz sentir melhor.

Ele ficou a me olhar, fixamente. Sua expressão era impossível de traduzir. Minha mente vagou no tempo.

***


- Uma razão?

- Saberás, quando o tempo for devido.

- E acho que não vais-me dizer mais nada sobre isso, de antemão...

- Como eu disse, no seu devido tempo, minha cara... Só então...

- Isso é muito irritante, sabias disso? E é um bocado assustador...

- Tu não vais-te machucar. Não tenhas medo.

- Machucar? É essa a tua preocupação?

- Principalmente...

Dei-lhe um soco no braço, tentando machucá-lo, mas, daquela vez, de verdade.

- Ouch!

Ele segurou minha mão, beijou-a e abraçou-me, rindo da minha torpe tentativa de prejudicá-lo.

- Tu vais ficar bem.

Eu sentia que ele estava-me tentando proteger, mas não conseguia definir do que... ou de quem.... Então fechei os olhos e me aconcheguei no seu peito. Ele tocou meu rosto, tão levemente, que imaginei flocos de neve pousando na minha pele, mas com a sensação de que eram muito mais cálidos...

***

- Tive aquele sonho novamente.

- Ah, foi?

Ele estava sorrindo. Perguntei-me o que aquele sorriso maroto poderia significar. Ele sabia. Eu sabia que ele sabia. Ele sabia exatamente o que estava acontecendo na minha mente... como sempre…

- Por que essa carinha engraçada?

- Tu não sabes tudo? Adivinha.

- Eu não sei tudo. A tua impressão a meu respeito está muito longe da realidade.

- Não está. Tu és sempre tão misterioso e reticente. Me confundes e, então, ris de mim, sem qualquer explicação real... e eu me pergunto onde isso me possa levar, mas suponho que tu não vais-me dizer agora...

- Talvez… um dia…

***

- Conta-me teus segredos... mesmo os mais sombrios... Podes confiar em mim.


- Só se me contares os teus...

Ele simplesmente sorriu, fingindo que estava derrotado. Claro que ele nunca me contaria nenhum dos seus segredos mais secretos. Se realmente pudesse ler minha mente, sabia que muitas das minhas feridas, não reveladas, ainda estavam vulneráveis, para todos os efeitos. Ele poderia tocá-las e me machucar ou, por outro lado, me curar. Era sua opção e sua decisão. Ele tinha-me completamente em suas mãos.

E aquelas mãos... oh, Deus... Aquelas mãos eram tão carinhosas. Seu toque era tão perfeito, a seguir, vagarosamente, as curvas do meu corpo, como se quisesse decorar todas as linhas, na sua mente complexa. Seus lábios roçaram os meus, depois o meu pescoço, meu peito e meu estômago. Ele então desceu pela minha pele, causando-me arrepios, enquanto abria seu caminho com os lábios, a beijar-me suavemente e a segurar meu corpo, firmemente, em suas mãos quentes, como se quisesse certificar-se que eu não iria fugir de suas carícias...

Até parece que, por algum descabido motivo, eu ia, mesmo, tentar fugir...

Como eu poderia pensar em mais alguma coisa, além do prazer, quando estava sendo tocada e mimada daquele jeito? Eu poderia ficar viciada naquilo e nele, a qualquer hora e de qualquer maneira.

Não. Na verdade, não poderia. O caso condicional, aqui, já não podia ser aplicado. Já era tarde demais para isso.

Pensando de forma absolutamente clara, na verdade, eu já estava completamente dependente da presença dele.

Ele poderia fazer qualquer coisa que quisesse e tirar qualquer coisa de mim, que eu certamente me entregaria, sem qualquer sinal de luta. Ele era meu amante e dominava a arte da sedução, fazendo-me esquecer tudo o mais, quando estávamos juntos. O mundo poderia girar sem nós, por uma noite inteira ou mais, se ele quisesse. Eu era um brinquedo em suas mãos, aceitando abertamente o que poderia tirar dele, como se fosse a última coisa que eu conseguisse fazer na minha vida... Então ele poderia assumir todo o controle e me fazer ir para o Céu ou para o Inferno, em segundos, até o mundo inteiro explodir em mim e eu cair das alturas, agarrada ao seu corpo e alma, como se fossemos apenas um.

Cansados e felizes, nós adormeceríamos nos braços um do outro, dormindo juntos e sonhando sonhos separados.

***

- Eu tenho que ir agora.

- Mas ainda é cedo...

- Eu sei e, realmente, não quero sair, mas tenho que ir.

- Eu queria que tu pudesses ficar um pouco mais.

- Não vou-me atrasar esta noite. Eu prometo.

Seus olhos, então, vagaram para longe. Eu conhecia aquele olhar. Meu corpo reagiu imediatamente, ficando tenso e estremecendo um pouco.

- Isso não é um adeus. É apenas um "até depois"...

- Eu sei disso…

Ele sentou-se na beira da cama. Meus olhos tentavam memorizar as linhas de suas costas e braços, enquanto ele lentamente se vestia e preparava-se para sair. Eu estava ocupada a observar seus movimentos quase felinos, ainda impressionada e encantada, depois de tanto tempo juntos, pelo jeito que ele se movia. Ele era surpreendente, no mais belo sentido da palavra. Não só era bonito, mas também muito masculino. Adorava o jeito que ele se cuidava e mantinha seu forte corpo em boa forma.

Ele saiu alguns minutos depois. Eu ainda tinha cerca de uma hora antes da minha hora de levantar, então, simplesmente, rolei para o lado e adormeci, por mais um tempo.

***

Eu caminhava, depois do almoço, perto do Canal, meio desejando que pudesse vê-lo, mas sabia que seria apenas um desejo, pois sua agenda era pouco rígida e nada previsível. Como a alta temporada estava quase terminada, o negócio ainda dependia dos grupos de turistas, que se alinhavam no cais, para dar voltas pelos meandros da cidade. O tempo vinha esfriando e o número de clientes diminuía todos os dias. Já estávamos no meio do outono.

O ar estava mais fresco, perto do canal e a maioria dos mendigos evitava aqueles pontos, embora necessitassem manter-se, sempre, perto dos restaurantes e das ruas mais movimentadas.

Uma velha senhora, que eu costumava ver perto da trattoria, estava sentada na calçada, recostada na parede, tomando um pouco de sol. Parecia estar dormindo, calmamente, e aquecida pelos raios quase pálidos do início da tarde. Por algum motivo, continuei a observá-la, por um tempo. Seu corpo se inclinou um pouco para a frente, como se realmente adormecesse, no local supostamente aquecido, onde ela se encontrava tão confortavelmente aninhada.

Acho que eu era a única pessoa a olhar para aquela criatura. É engraçado que, com o passar do tempo, os mendigos se transformam em pessoas totalmente invisíveis à grande maioria dos transeuntes, como se, nem ao menos, estivessem lá ou se não existissem.

Entrei na trattoria e pedi uma xícara de café, depois de sentar-me junto à janela. A velha mendiga ainda estava lá, na mesma posição, inclinada um pouco para a frente, sentada ao sol. Minha mente estava quase vazia. Eu apenas observava o movimento das pessoas e a velha senhora.

Então, uma silhueta conhecida apareceu, de não sei onde e parou perto dela. Meus olhos se iluminaram e já estava pronta para me levantar e sair, quando o empregado trouxe meu café. Quando pude voltar minha atenção para fora da janela, novamente, vi que o homem estendia, num gesto convidativo, a mão para a mulher que, já acordada, colocava seus dedos enrugados na palma da jovem e forte mão, para poder levantar. Ele a ajudou a ficar de pé e os dois seguiram o percurso, caminhando lado a lado, a passos decididos. Pareciam manter o silêncio, enquanto se afastavam do meu campo de visão.

Eu decidi segui-los, apenas para ver o que ele estava fazendo. Era uma mistura de gentileza, mas, ao mesmo tempo, muito intrigante. Quando eu saí pela porta, notei que o lugar onde a mulher esteve sentada, alguns minutos antes, parecia tão intacto, como se ela ainda estivesse por perto. Suas poucas sacolas de plástico e um velho xale de lã cinza e vermelho ainda estavam lá. Parecia que o tempo havia congelado. Pensei que havia algo errado, por isso peguei o xale em minhas mãos e me afastei com passos rápidos, tentando alcançá-los, mesmo sabendo que tinha poucas hipóteses de conseguir.

Não os avistei na rua à frente, mas segui meu coração e a rota que eu achava que eles tomariam, indo na direcção do Canal. Para variar, eu estava certa. Quando virei a esquina, vi que ele a estava ajudando a entrar na gôndola. Estavam sozinhos. Eu não vi a fila habitual de turistas, no cais. Ela sentou-se calmamente na parte de trás da gôndola e eles saíram a navegar pelo Canal, antes que eu pudesse alcançá-los. Não gritei, pois sabia que ele não iria ouvir-me, de qualquer maneira.

Decidi segui-los o máximo que pude, mesmo sabendo que não fazia muito sentido. Meu coração batia muito rápido. Minha mente estava incomodada. Segui a gôndola por muitas ruas, tentando estar tão perto quanto possível.

De repente, eles saíram da via principal e entraram por um dos braços mais estreitos do Grande Canal.

Enquanto o barco seguia, percebi que o lugar ficava cada vez mais silencioso. Em minha mente, eu reconhecia o lugar. O barco atravessou uma passagem e eles entraram pelos porões de um prédio muito antigo. Tive a impressão que o vi virar-se e olhar na minha direção, mas não tinha certeza de que aquilo realmente aconteceu ou se eu simplesmente imaginei. Meu sangue congelou. Então, eles desapareceram nas sombras.

Eu não conseguiria segui-los mais, mas reconheci que aquele era o mesmo lugar com o qual eu vinha sonhando, por várias noites.

Meu coração deu um salto... ou, talvez, dois.

‘Por Deus! O que ele estava fazendo?’

E eu? O que eu estava fazendo, afinal?

***