Mostrar mensagens com a etiqueta paixão. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta paixão. Mostrar todas as mensagens

sexta-feira, 1 de maio de 2020

Dança Lenta



Uma dança lenta, com o Valete de Espadas, não estava, definitivamente, no cardápio. Eu decidi observá-lo de uma distância segura, para não ser queimado pelo fogo dele... ou por aquele que começou a arder, lentamente, no meu peito, quando o vi pela primeira vez.

Lá estava ele, de pé, por trás do pequeno grupo de convidados, olhando casualmente para mim. Eu cumprimentei a todos e caminhei até ele, com um sorriso no rosto e a mão estendida para um aperto firme. Olhei em seus olhos azul-esverdeados, por um breve momento, e me apresentei. Ele fez o mesmo.

Eu quase podia ouvir meus próprios pensamentos gritando, na minha cabeça e, até, tive medo de que ele notasse as evidências, tão claras nos meus olhos, ou conseguisse ler minha mente, de alguma forma.

Eu me perguntei se ele, algum dia, teria ciência do efeito que teve sobre mim, naquele exato momento. Pouco sabia eu do que passava em sua mente, quando ele me sorriu daquele jeito.

"Por favor, goste de mim".

Aquela primeira impressão fora bastante surpreendente, a meu ver.

***

- É bom estar aqui, assim. Me sinto tão em casa.

Ele me abraçou mais forte. Tinha minha cabeça recostada em seu peito e seus braços envolviam-me a parte superior do corpo. Suas pernas musculosas estavam enroscadas nas minhas, como se ele estivesse me segurando para que eu não caísse do estreito sofá. Estávamos ouvindo algumas das minhas músicas favoritas. A maioria delas ele estava, apenas, começando a conhecer...

“You say you had your heart broken
 What a stupid little thing to do…
 Make no mistake
 I'll do whatever it takes
 To get over these walls
 High up in the atmosphere
 If I could catapult my heart
…To where you are” …*
(*Catapult, by Jack Savoretti)

Quando a música terminou, ele se levantou e eu também. Tocou meu rosto, tão levemente, com as duas mãos, que senti como se fossem plumas caindo suavemente na minha pele nua.

Sorri, meio sem jeito. Ele me beijou e me abraçou, firmemente. Em seus braços, sentia uma proteção infinita e aquele foi um dos melhores sentimentos que tive na vida.

Eu dançava, lentamente, com o Valete de Espadas e gostava daquilo, com todo o meu corpo e alma. Tive a sensação de que ele sabia, exatamente, o que estava fazendo e isso me deixava extremamente feliz.

A sala estava quieta, as luzes baixas, mas continuamos dançando as músicas, que continuavam a tocar, silenciosamente, em nossas cabeças, por uma banda invisível... por um bom tempo... Senti o calor suave de nossas peles nuas, uma contra a outra… nossos corações a bater no mesmo ritmo.

Ele, então, pegou minha mão na sua e me conduziu...

***

Minha atenção estava totalmente voltada para como suas mãos pálidas tocavam minha pele, viajando pelo meu corpo, de maneira muito leve e calorosa.

- Adoro tuas mãos e o jeito que tu me tocas. És tão carinhoso.

- Adoro tocar em ti. Tua pele é tão macia.

- E nunca pensei que amaria alguém desse jeito...

- Então teu coração tem sido negligenciado, meu amor...

Houve uma dor repentina no meu peito. Eu me virei. Não conseguia me controlar. Fechei os olhos e deixei minhas lágrimas correrem, silenciosamente, quentes e livres. E elas queimavam, como lava. Meu corpo estremeceu um pouco.

Ele colocou os braços à minha volta e me puxou para perto dele. Seu queixo repousava no meu pescoço. Eu senti que ele cheirava meus cabelos. Senti seu corpo aquecendo o meu, enquanto soluçava, incontrolavelmente, em seu abraço forte.

***

Era uma tarde ensolarada de sábado. Fui dar um passeio na praia e sentei-me em silêncio, olhando o mar. Uma brisa fresca soprou contra meu rosto e cabelo. O céu estava tão azul que me fez lembrar dele e de seus olhos.

Perdi-me a olhar um ponto inexistente, ao longe. Minha mente vagueou no passado. Eu estremeci.

- Quanto tempo faz?

Eu me virei. Além de algumas gaivotas barulhentas, voando acima, não havia ninguém à vista. Eu pensei que minha imaginação estivesse brincando comigo.

- Há quanto tempo? Tu lembras?

Eu decidi responder em voz alta.

- Sabes muito bem há quanto tempo.

Lembrei-me do dia em que nos conhecemos, há longos anos no passado, desde o momento em que as portas deslizantes se abriram e vi seu sorriso acolhedor e o coração nas mãos, até o flagrante beijo de despedida que ele me deu, antes que eu entrasse na área restrita do aeroporto, a caminho de casa.

- Estou tão feliz que tua dor se tenha ido embora.

Não respondi, apenas me levantei e saí silenciosamente.

Lágrimas quentes insistiram em desfocar minha visão, enquanto o vento soprava mais frio, desta vez por todo o meu corpo...

***

sábado, 9 de março de 2019

Uma noite a mais (Parte 2)




- Não sei.

- Nem eu… Mas devias saber, afinal foste tu que vieste para cá, assim, depois de tanto tempo.

- Não me julgues, por favor. Já nem sei o que pensar. Tive saudades e uma sensação estranha que devia vir até este lugar… Foi aqui que nós…

 - Não achas que é estranho sentires saudades?

- Não faças isso. Não é justo para nenhum de nós.

Um gritinho de excitação, do lado de fora, chamou a nossa atenção, momentaneamente. Aquela pequena distração era mais que oportuna, para atenuar o clima.

- Olha para ela, lá fora, a brincar com o mar… Algumas coisas não mudam… desde pequena que é fascinada pelo mar!

- Ela cresceu tanto…

- É uma mulher, quase. Um presente dos céus.

- Ora. E desde quando tu acreditas em “céus”? Ela é um presente, sim… da vida… do Universo. Sinto vossa falta, sabias?

Senti uma nostalgia… tinha certeza que ele também. Via a tristeza naqueles olhos. Minha alma estava dolorida, assim como minha cabeça. Olhei para fora e vi que ela vinha caminhando na direção do restaurante, onde bebíamos café, quase distraidamente, na esplanada.

- Olha isso! Molhei as pernas das calças quando o mar pegou-me de surpresa. Tenho que tentar secar isso… e preciso de uma água!

Nós rimos.

- Pede lá dentro, no balcão, meu amor. Não há muita gente para atenderem…

Ela correu para dentro. Acompanhei seus passos, com os olhos. Senti que era observado e virei-me. Olhava-me com uma expressão que eu conhecia bem.

- Que foi?

- Sinto falta de nós…

Meu peito doeu. Minha alma doeu. Meus olhos arderam. Não consegui dizer nada, mas senti lágrimas a me descerem pelo rosto.

- Não chores.

- Eu? Chorar? Claro que não! Não sejas ridículo!

Ele riu. Claro que não acreditava no que eu dizia.

- Pai? Está tudo bem?

- Está tudo bem, meu amor! Senta aqui, connosco.

- Então? Como estão as coisas, na escola?

Ela aprumou-se. Gostava de falar da escola e dos planos que tinha para a faculdade.

***

O mar estava sempre daquele jeito. Parecia um leão a rugir, insistente, mas nunca me conseguia amedrontar, por mais que o tempo passasse, por mais que, na minha cabeça, eu imaginasse que ele, de alguma forma, até tentava. Aquele bramir, ao contrário do que podia ser esperado, me deixava calmo e fazia-me pensar... Fazia minhas viagens na mente… nas lembranças… no passado.

Eu gostava daquele lugar. Tinha boas e, também, más memórias dali, mas as boas sobrepunham as outras. Naquele penhasco, acima da minha cabeça, eu me via, há um bom tempo atrás…

- Precisa de algo?

- Hã? Não. Estou bem, obrigado.

Aquela pele pálida não combinava com o lugar. Nem aqueles olhos. Ele parecia um estrangeiro.

- Posso perguntar uma coisa? Não quero ser atrevido. É uma curiosidade.

- Pode, mas não prometo responder.

- Claro.

A intromissão havia sido um tanto brusca, mas o homem estava, provavelmente, aborrecido por não ter com quem conversar. Eu não estava acostumado a falar com estranhos, especialmente nesta terra, mas vinha tantas vezes a aquele mesmo restaurante, que já conhecia o gerente, que sempre me atendia com cortesia e um sorriso e já não o considerava, de facto, um desconhecido. Ele não era, entretanto, um amigo… ainda…

- Quer que eu peça para trazer uma nata, para acompanhar o café?

- Era esta a pergunta? Se era, a resposta é sim, mas quero uma somente…

Ele riu. Sabia que eu havia percebido que ele estava tentando ganhar confiança, ou coragem, para fazer a pergunta verdadeira. Pediu para a empregada ao balcão trazer-me duas natas, apesar do meu protesto.

- Já faz algum tempo que tenho observado que vem, sempre, aos sábados à tarde, traz o bebé, pede um café, senta-se na esplanada, sozinho e em silêncio, a olhar o mar, e depois vai embora.

- E… ?

- E pergunto-me por que não vem com a mãe da criança. Estão separados?

- Estamos… por assim dizer…

- OK. Já percebi. Desculpe a intromissão e a curiosidade.

- Não há problema.

Ele não havia percebido o que eu quis dizer. Por alguma razão, eu tive vontade de contar-lhe mais, o que não era comum, mas não vi problema em falar ao estranho, que desculpava-se por haver talvez ultrapassado a fronteira da curiosidade.

- Ela faleceu. Éramos grandes amigos. Este lugar me traz boas recordações.

O homem olhou-me, sério, meio sem graça. A criança dormia, na cadeirinha, ao meu lado.

- Eu sinto muito. Não quis ser intrometido.

- Sem problemas. Foi um acidente. Não há nada que ainda possa ser feito.

- Pode-se viver. É o melhor para ela, que está aí, com uma vida inteira pela frente.

- Pois. É uma grande verdade. Ela é o meu bem mais precioso.

- Eu acredito.

Ele olhou-me nos olhos, por uma fração de segundos. Eu mantive o meu olhar no dele. Ele enrubesceu de imediato, como uma criança que é flagrada fazendo alguma peraltice.

-Vou deixá-los a sós.

Saiu, quase às pressas. Eu acompanhei com o olhar, enquanto ele entrava no restaurante. Na porta, deu uma paradinha e virou-se pra trás. Daquela vez, quem ficou vermelho foi eu.

Resmunguei, entre dentes.

- Ora, ora… o que foi aquilo, afinal?

***

Eu estava deitado na espreguiçadeira, com a camisa semiaberta, tomando um pouco de sol. Ele tocou, com os dedos pálidos, a estranha cicatriz, mal desenhada no meu peito. Eu tremi.

- Não tenha medo. Não tenho intenções de machucar.

- Não tenho medo.

- É uma grande cicatriz.

- Foi um acidente: um estúpido acidente, de um homem desajeitado.

- Não acredito que tenha sido estúpido. Tem a ver com o que aconteceu à esposa?

- Ela estava muito doente. O tumor foi detetado após a gravidez estar bastante adiantada. Não podia fazer tratamento químico, sob pena de afetar a criança. Mas a doença enfraqueceu sua saúde. Estávamos a descer a trilha que desce o penhasco, quando ela sentiu-se mal e caiu. Eu vinha atrás e tentei impedir a queda, mas foi tudo muito brusco e eu não tive forças para segurar. Escorreguei e caí de peito na rocha, ao lado dela. Não foi aquele acidente que a matou. Ela foi hospitalizada, após a queda, mas foi enfraquecendo, com o passar do tempo. Optamos por retirar o bebé e fazer o tratamento químico, mas era tarde demais. A menina sobreviveu, mas a mãe não conseguiu. Não foi uma morte súbita, mas foi muito dolorosa… para todos nós.

- Ainda dói?

- Um pouco… às vezes…

- Pois eu nunca casei. Não encontrei a pessoa certa, acho…

- Nós só casamos por causa da gravidez. Era o mais certo, para a criança, na época.

- Eu compreendo. Achas que farias tudo outra vez?

- Eu nunca me arrependi. Mas isso não é um jogo. É a vida. Não se volta a fazer as mesmas coisas, ou cometer os mesmos erros, por opção ou por vontade. O tempo muda as pessoas… as circunstâncias também…

- Vocês se amavam?

Aquela pergunta, mais uma vez, e que eu respondia, sempre, da mesma forma.

- Nós éramos grandes amigos. Sempre havíamos sido um tanto cúmplices, desde o tempo em que estudávamos juntos. Fomos para a mesma universidade, nos formamos na mesma época, saímos de casa na mesma ocasião, dividimos um apartamento e partilhamos nossa liberdade.

- Mas não era amor…

- Mas não era amor, no sentido físico. Era uma coisa mais fraternal, acho.

- Eu compreendo.

Teria eu percebido um leve sorriso, naquela resposta quase inofensiva? Ou teria sido somente uma inocente impressão minha?

***

…”For a taste of your love and 
     I need to taste some more 
    Wave goodbye to heaven for me 
    I've thrown it all away 
    Just to spend one more night with you”…(*)

(*) One more night with you : Ged McMahon



- Gosto desta versão. Não tem o mesmo poder da voz feminina, mas é muito boa também. Parece-me tanto com uma história que eu conheço tão bem…

Olhei para ela e imitei seu jeito de falar.

- Se eu contasse tudo que sei…

- Hah! Melhor não contar nada.

- Pois.

Rimos. Ela levantou-se de onde estava e veio deitar-se no sofá, com a cabeça no meu colo.

- Pai?

- Hum?

- Não seria problema se ele viesse morar novamente connosco, seria?

- Como assim?

- Eu sei que é isso que ele quer. Acho que não é problema, não achas? Ele gosta de nós… e nós gostamos dele…

- Como sabes? Ele não falou nada.

- Ainda… mas é o que eu sinto.

- Foi ele quem se afastou… sabe Deus se foi pelo motivo que alegou. Pareceu-me um tanto covarde…

- As pessoas mudam, pai. Ele deve ter sofrido.

- Só ele?

Ela beijou minhas mãos. Seus olhos fixaram-se na minha face séria. Esboçou um sorriso, tentando ser complacente com o pai emotivo e que ela conhecia tão bem. Tentei não chorar…

***

sábado, 15 de julho de 2017

Contradições (Parte 1 de 2)


- Estás acordada?

- Mmm... não... na verdade, não...

Ele riu.

- Esse sorrisinho me diz que tu estás...

Eu estava acordada, é claro, mas havia ficado com os olhos fechados, enquanto me deliciava com a maneira como ele brincava com os dedos, muito de leve, a descer pelas minhas costas, acariciando-me como se não me quisesse acordar daquele misto de sono e delírio. Eu havia despertado quando ele me beijou os ombros e pescoço, tão suavemente, que parecia o roçar de uma pluma na minha pele. Talvez ele não me quisesse, realmente, acordar... Talvez ele estivesse apenas se divertindo... Talvez estivesse se aproveitando a situação... Talvez eu também estivesse...

Eu me virei um pouco e encarei-o, sorrindo e dando boas-vindas às suas delicadas carícias. Segurei-lhe a mão na minha e beijei seus preciosos dedos.

- Bom dia, madrugador.

- Bom dia, bela adormecida.

Ele descansou a cabeça na palma da mão, olhando-me com um sorriso doce e olhos genuinamente amorosos. Pensei comigo mesma: "que maneira adorável de acordar".

Ele cingiu meu corpo com os braços e puxou-me para mais perto do peito, com as pernas entrelaçadas nas minhas. Descansei minha cabeça naqueles suaves pelos dourados e fechei os olhos, ouvindo o ritmo das batidas de seu coração, como uma suave percussão em meus ouvidos. Ele beijou o topo da minha cabeça e sussurrou.

- Gosto tanto de ti…

Gemi baixinho e aninhei-me um pouco mais em seu abraço, quase ronronando, como uma gata feliz, numa cama aconchegante e fofa. Não senti vontade de abrir os olhos novamente... e tornei a adormecer.

Quando acordei, ele não estava por perto. Ouvi o som de louça e talheres na cozinha e pensei que ele deveria ter esperado muito tempo que eu acordasse e decidiu fazer algo para comer sozinho. O cheiro de café fresco e de alguma outra coisa era extremamente convidativo.

Eu não quis que a bondade daquele homem passasse por não apreciada, então levantei-me e fui para a cozinha, a fim de fazer-lhe companhia, como se aquilo fosse a minha maior intenção.

Ele estava em pé, descalço, tão sublime e bonito, a sorrir, do alto de seus quase dois metros, com uma xícara de café puro e forte na mão. Embora não estivéssemos acostumados a gostar de fazer o café da manhã, ele estava ocupado com uma omelete que cheirava tão bem, que meu estômago reagiu imediatamente. Aquilo certamente serviria bem para uma manhã preguiçosa de sábado.

- Ei…

- Bom dia de novo, doce campo de trigo. O que estás cozinhando?

Ele sorriu para mim. Eu costumava chamá-lo de "campo de trigo" por causa da cor de seus cabelos e pelos. Ele ria disso, satisfeito com a alcunha que eu lhe havia dado. O homem loiro e bem apessoado olhou-me nos olhos e mentiu, sem corar.

- Não estou cozinhando nada de especial. Vamos sentar e comer. Estou com uma fome...

Ainda olhando para ele, eu obedeci, enquanto ele despejou o café quente na minha xícara e serviu-me uma porção daquela omelete perfeita de tomates, queijo e cogumelos. O sabor era simplesmente divino e me fazia lembrar de uma certa ocasião, em algum lugar do meu passado.

***

Já era tarde em uma manhã de um indolente domingo e eu havia decidido comer um brunch, sozinha, em um Café no centro da cidade. Sempre amei o cheiro de café preto forte e aquele estava realmente bom. Como estava morrendo de fome, eu havia decidido pelo prato do dia, para poder ter a minha refeição servida mais rápido. O gosto daquela omelete especial do Menu estava-me saciando com um prazer peculiar.

De onde eu estava, podia ver a clientela atravessando a porta da frente e sendo direcionada para as mesas, pela equipe de serviço. Sentada ao lado da janela, observando as pessoas a entrar, eu tentava não olhar para ninguém muito diretamente.

Um homem, provavelmente lá pelos seus quarenta e poucos anos, atravessou a porta e olhou em volta, tentando encontrar uma mesa vazia. O que chamou minha atenção foi a cor de seus incríveis cabelos loiros brilhantes e sua postura de caminhar. Bem mais alto do que eu, forte e bonito, aquele homem era como um guerreiro vencedor de uma batalha nas terras altas. Eu senti como se o lugar tivesse esvaziado imediatamente e todas as luzes desaparecido na minha frente, exceto pela que estava em cima da sua cabeça.

Quando o garçom o acompanhou, senti-me estranhamente interessada. Em minha mente, eu podia ouvir uma voz, dizendo sem parar e com vontade:

"Por favor, sente-se perto de mim... por favor"...

E foi o que aconteceu. Por algum motivo, ele escolheu uma mesa muito próxima da minha e sentou-se bem na minha frente. Apanhou o menu e fez seu pedido muito rapidamente.

Aquilo pareceu-me um bom sinal. Ele demonstrava ser um homem que sabia muito bem o que queria e era rápido a tomar decisões. Perguntei-me se ele faria isso com todas as outras coisas em sua vida.

Enquanto esperava, ele naturalmente olhou em volta, mostrando apenas um interesse geral nos outros clientes, que estavam acomodados na mesma sala, conversando discretamente e tomando suas refeições. Então, de repente, ele pousou aqueles lindos e radiantes olhos azuis em mim.

Surpreendentemente, o efeito foi absolutamente inesperado. Eu corei imediatamente e tentei voltar a minha atenção para o meu prato e xícara, tentando parecer natural e à vontade. Minhas mãos tremiam e a faca caiu no chão com um barulho alto demais, para os meus ouvidos. Eu sou realmente desajeitada, quando nervosa, então abaixei-me para juntar a faca e já ia chamar o garçom para me trazer uma outra, limpa, quando percebi que o rapaz já vinha a caminho, provavelmente acostumado a lidar com esse tipo de coisas, muitas vezes por dia. Eu lutava para não olhar à mesa bem na minha frente, mas meus olhos me traíram. Ele estava olhando para mim, novamente. Nossos olhos se cruzaram. Meu rosto e orelhas estavam queimando, como se fossem pedaços de carvão em brasa. Tentei evitar seu olhar, mas não consegui.

Então ele sorriu e sussurrou um "olá" claro e distinto, embora nenhum som pudesse ser ouvido de onde eu estava.

‘Meu Deus, o que foi isso? Isso é incrivelmente assustador. Eu não esperava sentir borboletas a se debaterem no meu estômago! ‘

Eu sorri de volta para ele, mas devo ter parecido tão estranhamente fora do lugar, que ele riu. Corei de novo e senti vontade de sumir dali, de tão sem jeito que fiquei.

Fui convenientemente salva pelo garçom, trazendo a refeição e colocando-a na frente dele. Sua atenção de repente se desviou para uma xícara de café preto e para o prato do dia: a omelete especial de tomates, queijo e cogumelos.

Não pude deixar de rir ...

***

- Tu ainda lembras?

- Como eu poderia esquecer? Fiquei em completo transe...

Ele riu. Simplesmente amava o jeito que ele parecia relaxar completamente e parecer tão juvenil, quando ria. Ele costumava me provocar com seus encantadores olhos azuis claros e aquele sorriso aberto, antes de tudo. Perguntei-me como um homem podia ser tão sexy, sem ser abertamente sexual ou indecentemente malicioso. Ele sempre foi tão elegante... tão controlado... tão encantador... tão bom e tão gentil... e ainda assim, tão desejável... tudo isso, no pacote mais adorável que eu pudesse, algum dia, desejar.

Meus pensamentos foram interrompidos pelo som irritante da campainha.

- Quem poderia ser?

***

- O que tu estás fazendo aqui?

- Vais-me convidar para entrar ou não?

- Sim. Claro. Desculpa.

- E quem é esse?

- Um amigo muito caro.

Ele sorriu e estendeu a mão para o meu amigo.

- Sei. Muito prazer em conhecê-lo.

- Igualmente..., mas quem é você?

- Um velho conhecido...

Estava claro, para meu actual companheiro, que apenas um "velho conhecido" não agiria daquela maneira, então olhou para mim, tentando ler as minhas reacções, antes de fazer qualquer movimento.

Era como se o rei esperasse que o peão fizesse sua jogada, para que ele, então, pudesse pensar em uma estratégia para continuar. Mas a rainha não estava ansiosa para deixar o flanco aberto e aquele homem tinha intenções de provar algum ponto, todo seu, por isso eu resolvi tomar a dianteira e dei o primeiro passo.

***

O ar não estava pesado, mas também não era totalmente confortável. Sentada à beira-mar, deixei minha mente vagar até alguns anos antes daquela data, quando o peso da idade era-me tão mais leve e até mais suportável. Aquele rosto costumava ser tão querido e aquele homem tão gentil.

O que nos aconteceu? Onde perdemos a sensação de respeito e bondade entre nós? O que o passado fazia de volta no meu presente? Meu receio era que as intenções não fossem nada boas…

Deixá-lo afastado e longe da minha vida havia sido difícil, na primeira vez, mas agora parecia que alguns fantasmas haviam decidido voltar para me assombrar. E eu que só queria recuperar o meu equilíbrio…

Por enquanto, tratei de tirá-lo de perto do meu parceiro e da minha casa, para que eu pudesse resolver aquela situação, sem envolvimento desnecessário de ambos os lados.

O homem voltou da casa de banho e sentou-se bem na minha frente. Ele ainda adorava sua cerveja gelada, enquanto eu estava acostumada com o vinho verde fresco, no calor do verão. Ele ainda parecia bem, embora seu cabelo ruivo tivesse rareado, evidentemente. Seu rosto estava um pouco mais redondo, mas ainda era bonito e adorável. Seu sorriso era quase o mesmo. Lembrei-me do dia em que me senti atraída por aquelas pequenas curvas nos cantos de seus lábios, quando ele me abriu o sorriso, pela primeira vez. Seus olhos tinham linhas de expressão, marcadas profundamente ao redor deles. Eu observei seu rosto cuidadosamente, estudando seus movimentos e tentando descobrir o que ele queria de mim... desta vez...

- Eu senti tua falta, sabias disso?

- Não. Não sabia. O que queres de mim, agora?

- Não sejas assim. Nós costumávamos ser tão bons juntos. Nós éramos verdadeiros amigos.

- Exatamente. Nós éramos amigos..., mas então tu deixaste a nossa amizade de lado por uma situação, que nem mesmo deixou-me nenhuma margem para lutar.

- E como tu sabes que eu também não lutei?

- Ainda poderíamos ter mantido nossa amizade... Algumas vez pensaste em como foi difícil escrever aquelas coisas, para que tu pudesses ter a tua vida perfeita?

- Tu disseste que nunca tínhamos sido amigos de verdade...

- Pelo bem do teu relacionamento. O que mais eu poderia dizer? Que costumávamos ser grandes amigos, mas, então, já não queríamos mais brincar de sermos amigos de verdade? Por favor! Me poupe!

Ele segurou minha mão. Eu estava tão chateada, que estava tremendo, visivelmente. Ele esperou até eu parar de discutir e disse com uma voz muito baixa:

- Eu realmente senti a tua falta. Foi tão difícil...

Ele parou quando percebeu que eu estava pálida e meus olhos estavam húmidos.

- Eu sinto muito.

- O que tu ainda queres de mim? Tiraste tudo o que eu tinha e agora achas que tudo volta a ser como antes? Voltas, como se nada tivesse acontecido e queres que eu te receba de braços abertos?

- Ela estava grávida. Era nosso bebê que ela iria ter. Eu nunca poderia deixá-la. Tu me conheces.

- Não, eu não te conheço. Eu realmente não tenho a mínima ideia de quem tu, realmente, és.

- É justo.

Ele parou por um tempo e depois falou, como se fosse a coisa mais natural de se dizer.

- Nós já não estamos juntos. Nós nos separamos como pessoas civilizadas, mas não podemos mais viver como um casal. O menino está com ela.

- E ele se parece tanto contigo...

- Como é que tu sabes?

Eu parei. Aquilo não deveria ter acontecido. Corei, imediatamente, e ele percebeu.

- Tu és tão surpreendente. Nunca quis  fazer-te sofrer, mas tenta entender...

Fiquei tão cansada de repente. Lembrei-me de como eu tentei, com todas as minhas forças, entender, aceitar e esquecer, mas nunca consegui fazê-lo. Tentei sufocar todas as coisas que sentia, mas não tinha ideia de que seria tão difícil. Não disse mais nada. Já não havia nada a dizer…

Ele segurou a minha mão nas dele e beijou meus dedos. Tentei libertar-me, mas ele era forte e firme. Virou a minha mão e beijou-me a palma, suavemente e com aparente ternura.

Minha cabeça estava dando voltas...


sábado, 18 de junho de 2016

Acerca de Ana Maria (Parte 1 de 2)


- Ana Maria?

- É.

- É um bonito nome. Como ela é?

- Tem olhos esverdeados e cabelos castanho-claros, que lhe caem como uma cascata pelas costas. É tão cheia de vida, que me faz sentir que eu posso tudo, quando estou com ela.

- E podes… se quiseres…

- Só de pensar nela, eu me sinto tão bem… Ela é música e dança ao mesmo tempo.

- Estás mesmo apaixonado!

- Acho que sim. Eu penso nela o dia inteiro… o tempo todo…

- Estás irremediavelmente infectado. Não há vacina contra isso e a cura é difícil…

Ele riu. Eu também.

Era bom ver que havia crescido, tornando-se um homem responsável e bom e, agora, apaixonado pela menina Ana Maria. Só agora dei-me conta que o tempo passou tão rápido, que eu mal percebi. Há tão pouco tempo era apenas um menino a brincar com blocos de legos e bonecos de super-heróis com poderes sobre-humanos e a fazer-me perguntas sobre tudo. Agora, devo admitir, já é um ‘homem feito’, como dizia meu pai.

A imagem que me vinha à cabeça, quando o ouvia falar daquela forma, sobre o objeto de sua afeição, era de um passarinho que aprendera a voar e agora já podia abandonar o ninho e fazer seus voos solo.

Era engraçado, mas assustador, ao mesmo tempo.

Quando nasceu, confesso que senti uma emoção que não conseguia descrever. Parecia tão frágil e tão desprotegido, que comoveu-me completamente. Eu só queria ser o melhor provedor e o melhor exemplo para ele. Queria que ele sentisse orgulho de mim, num futuro, para o qual eu nem sabia como prepará-lo para enfrentar. Ao mesmo tempo, senti um amor tão grande, que minha vida deixou de ter importância, a não ser por ele. Quanta coisa eu poderia ensiná-lo e quanta coisa eu iria aprender com ele, no decorrer da sua história… da nossa história.

Tive um lampejo e uma dúvida que nunca ia conseguir responder: será que eu estava preparado?

Não estava. Sabia que não estava. O simples facto de olhar para ele, enquanto brincava, dormia, sorria ou chorava, já me enchia de emoções, que eu nunca iria saber como explicar. Com o tempo, deixei de tentar entender aquelas emoções… contentei-me com senti-las e deixá-las encher meu coração até transbordar…

Eu sabia que a vida não ia ser justa, às vezes, nem as pessoas, mas eu queria que ele tivesse, sempre, a oportunidade e o discernimento para tomar suas próprias decisões e que ele nunca tivesse motivos para arrependimento.

É claro que, por mais que desejasse, jamais iria conseguir protegê-lo de tudo. Ele ia ter que enfrentar muita coisa sozinho e eu devia prepará-lo, da melhor forma possível, mas não era um super-herói, nem um deus todo-poderoso... Era somente seu pai. Quando pensava naquilo, sentia-me tão pequeno e impotente, que doía-me a alma e meus olhos enchiam-se de lágrimas.

Ele cresceu saudável e deu-me muito poucos motivos para preocupações. Não foi o tipo de filho que eu fui. Não era rebelde, nem revoltado. Era uma criança tranquila e centrada, um menino sempre curioso e estudioso, perguntador e interessado em quase tudo que lhe passava à frente de seus olhos. Era, ao mesmo tempo, tímido e aventureiro, mas nunca demonstrava medos.  Assim como eu, ele adorava os animais e respeitava-os, como parte de nossas vidas. Passava tempos a observar o comportamento dos nossos gatos, de modo a compreender suas formas de comunicar suas necessidades e suas demonstrações de afeto. Era um rapaz muito perspicaz e atencioso e tinha um coração enorme, compassivo e muito generoso.

A tal menina Ana Maria tinha muita sorte e, se soubesse estimulá-lo a mostrar, sempre, o melhor lado dele, tinha tudo para ser muito feliz.

***
- Pai, essa é a Ana Maria.

Eu olhei para aquela criaturinha de pé, à minha frente, ao lado do meu filho tão cheio de si e visivelmente apaixonado e apreensivo. Via-se ambas as emoções contraditórias estampadas em sua face e olhos. Ele era tão transparente quanto eu.

A menina tinha olhos grandes, de uma tonalidade interessante de verde e longos cabelos a cair-lhe em cachos pelas costas. Bem como ele havia descrito e, talvez, muito mais agradável aos olhos que eu houvera imaginado, não sei por que motivo. Talvez por puro instinto de proteção à minha cria, havia avaliado mal a descrição que ele fizera da moça.

Era fácil ver a razão pela qual ele estava apaixonado. Além da beleza natural, ela emanava uma tranquilidade enorme. Senti uma ponta de ciúmes, mas também um alívio, ao perceber que os dois davam-se bem e, pelo jeito, estavam felizes.

Ao olhar para eles, assim, tão jovens e tão bem, eu não pude impedir de pensar em mim também e no meu futuro. Ainda tinha muita vida pela frente e tinha muitos planos e projetos, mas não contava com sua partida, ainda. Embora não fosse o que eles tivessem sequer mencionado, meu instinto de pai já fazia os filmes todos na minha cabeça. Já via-me a viver sozinho, com dois gatos a correr de um lado para o outro e um estúdio cheio de pinturas espalhadas por todo canto.

Será que me dariam netos, logo? Será que eu seria um bom avô? Eu tinha tanto receio de não corresponder às suas expectativas…

Alguns anos depois, eu, provavelmente, lembraria sorrindo dos dias em que temia o futuro deles e avaliaria que havia sido tão tolo quanto ingénuo. Assim como nós sobrevivemos, nossos filhos e netos também sobreviverão aos reveses que colocam-se em nossos caminhos. A vida é uma grande e eficiente mestra. Só nos dá aquilo que sabe que teremos força para suportar. Apesar de todos os receios, também não podia negar que as alegrias que eu recebera compensaram todas as noites em claro e os dias de vigília. Eu podia considerar-me um verdadeiro afortunado.

***

Respirar o ar da noite e o cheiro do mar era uma coisa que fazia-me bem, desde que eu era uma criança. Ficar um tempo sozinho a olhar o mar, mesmo sem ver direito o que se passava na escuridão à minha frente, ajudava-me a pensar e manter a sanidade. Era minha rotina, pouco antes de deitar... um tempo todo meu, para recarregar as baterias e centrar meus pensamentos e rever os acontecimentos do dia.

- Eu amo o mar. Dá-me uma tranquilidade tão grande!

- Eu também…

Eu virei-me e observei a moça que estava de pé na areia, com o olhar perdido em algum ponto muito longe, naquela imensidão escura e não tão silenciosa à nossa frente. A monotonia das ondas a baterem na praia era como um mantra hipnotizante e tranquilizador. Ela tinha razão e eu tinha que reconhecer. Aquela vasta massa de água a mover-se no seu incessante vai-e-vem, realmente, dava uma serenidade muito grande na gente…

Ao olhá-la, não sei por qual razão, imaginei-a como o próprio mar… mas desconfiava que havia mais mistério nela que podia-se ver a olho nu. O reflexo na superfície nunca mostra a profundidade do oceano, nem o que se esconde por baixo daquele manto de água em perpétuo movimento… 

- O que vocês estão fazendo aí, parados? Não me diga que tu também tens a mania de ficar na praia a olhar o mar, antes de ir deitar. Essa eu não sabia…

Ela riu. Eu também. Meu filho passou o braço pela cintura da moça e beijou-lhe a face. Ela recostou a cabeça no ombro dele e eu vi que era hora de deixar os dois a sós. Pedi licença, usando a desculpa de ser bastante tarde e estar cansado e deixei-os ali fora.

A casa ficava muito próxima à uma área da praia limitada por um agrupamento de rochas de cada lado e um pequeno caminho abria-se dos fundos do quintal até a areia fofa e branca, dando uma sensação de que aquele pedaço da praia era todo nosso.

Não demorou muito para os dois entrarem também, mas eu já havia-me retirado para o quarto e deitado, embora não tivesse conseguido adormecer imediatamente. Fiquei a olhar o teto, por uns tempos, ainda, com uma sensação estranha a inquietar-me a mente. Por alguma razão que eu não conseguia explicar, ficara com a impressão que havia alguma coisa nela que eu deveria conhecer melhor, mas não conseguia descobrir o que poderia ser…

O cansaço venceu-me, finalmente, depois de muito tempo, sem consolar-me o espírito…

***

- Tu estás vestido como ele, mas não és ele…

O grande animal não retrucou, mas tentou sorrir. Apesar de perceber que eu não era enganado facilmente, virou-se e continuou a caminhar nas duas pernas traseiras, como um humano, sem dar importância ao que eu havia falado. Era mais ou menos da minha altura e bem mais gordo que eu. Segui-o de perto, da praia até a porta da casa, observando como teve cuidado em parecer-se com Ginger, o gato, incluindo a cauda, que arrastava pelo chão coberto de velhos tijolos, dispostos em um mosaico simples, mas harmonioso. O pelo parecia haver sido costurado, muito justo, à volta do corpo, de modo a não parecer falso, mas eu sabia que não era natural, porque não havia brilho, nem vida, como numa cobertura original.

Quando chegou ao topo do lance de três estreitos degraus, ele virou-se, olhou-me e sorriu. Era um sorriso estranho, meio malicioso, que me intrigou, por parecer esconder uma má intenção ou algo que eu não sabia o que era, mas que não me deixava confortável.

Ele empurrou a porta e entrou.

Eu arregalei os olhos… e acordei…


- Sabia que havia alguma coisa errada!

***

domingo, 26 de abril de 2015

Um Pacto (In Pactus)


Por favor, não te apaixones por mim. Tu prometeste que não irias...

- Eu sei. Não te preocupes. Eu sei muito bem onde estou pisando. Já passei por isso antes e não vou-me apaixonar outra vez.

- OK. Lembra que tu prometeste.

- Sim. Eu sei. Podes deixar... Quando vens de novo? Já faz algum tempo, desde a última vez.

- Talvez na próxima semana. As coisas não estão fáceis do meu lado. A esposa está exigindo atenção. Anda meio desconfiada, mas eu estou apenas sobrecarregado de trabalho e sentindo-me muito cansado.

- Tu precisas é de uma massagem, um forte abraço e descansar tua cabeça no meu colo. Eu afago-te até que durmas em meus braços, relaxado e feliz.

- Soa como o paraíso, mas longe de ser viável em um curto espaço de tempo. Eu não posso escorregar agora ou posso perder tudo. Precisamos ter paciência.

Eu desisti de discutir. Não havia nada que eu pudesse fazer, de qualquer maneira. Desejei que a vida fosse diferente. Desejei que eu fosse diferente. Eu queria que ele fosse diferente. Mas a vida não é feita de desejos...

- OK. Leva o tempo que precisares, descansa um pouco... ou descansa muito... Quando estiveres pronto, novamente, por favor, me avise.

- OK. Adeus por agora.

- Até mais, meu querido. Vou sentir tua falta.

- Dorme bem.

- Tu também.

A conversa fora bastante superficial, simples e quase impessoal. Ambos estávamos tendo muito cuidado, tentando evitar o inevitável. Ambos acreditávamos que era fácil manter nossas emoções sob controlo. Homens casados ​​são, realmente, muito complicados.

Fechei a sessão, desliguei o computador e voltei à minha vida, como se fosse a coisa mais normal do mundo. Nós costumávamos conversar on-line todos os dias, à mesma hora, dizendo quase as mesmas coisas e prometendo nunca nos apaixonarmos ou teríamos que deixar de vermo-nos, para o bem de nossas sanidades. Ele era um homem casado com mulher e filhos. Um par deles. Eu havia sobrevivido a um divórcio e queria continuar assim, sem mais ninguém. Não havia nada de novo naquilo.

A maioria das pessoas que eu conhecia também estavam divorciadas e gostariam de permanecer naquela condição, de qualquer maneira, durante o tempo mais longo que pudessem. Alguns deles, no entanto, tinham medo de envelhecer sozinhos.

Eu tinha a minha vida, meu passado, minhas crenças sobre o amor, relacionamentos e solidão. E eu gostava tanto da minha vida, quanto da minha liberdade.

Estar com ele era como ter alguém e não ter nada, nem ninguém, ao mesmo tempo. Mas eu não tinha medo de envelhecer, nem de solidão... absolutamente...

Decidi preparar algo para comer, descansar um pouco, talvez assistir um pouco de TV e ir para a cama cedo. Tentei não pensar sobre a conversa que tivera, por mais tempo que o necessário. Tendo minha mente e as mãos ocupadas, por algum tempo, seria perfeito para o momento.

O gato entrou na cozinha, sentou-se no tapete azul e ficou à espera de seu jantar e eu comecei a cozinhar um macarrão com molho de cogumelos, logo que o bichano foi servido. Meu único e verdadeiro companheiro estava OK com sua pequena porção de atum para o jantar e mostrou sua satisfação, esfregando a cabeça nas minhas pernas, assim que terminou. Brinquei com ele, afaguei-lhe a cabeça e voltei a cozinhar, depois de lavar minhas mãos pela milionésima vez, naquela noite.

Fui para a cama como planejado, após a refeição simples de massa, acompanhada de um bom e encorpado vinho tinto e tentei relaxar, esvaziando a mente, antes de adormecer.

Sonhei que estava em seus braços. Seus lábios eram quentes na minha fronte, minhas pálpebras, meu rosto e meus lábios. Seu gosto era doce e amargo ao mesmo tempo. Ele sempre havia sido doce, mas o acordo que fizemos trouxe uma espécie de amargura na minha alma, que não era novidade para mim. Ele estava repetindo aquelas palavras, que eu já não podia ouvir mais, mas, infelizmente, só se pode desejar que as coisas fossem diferentes. A verdade é, às vezes, muito difícil de suportar.

"Por favor, não te apaixones por mim."

Quão abstrato e estúpido um pacto daqueles poderia ser? Quão imprevisível pode ser um coração, antes que se perceba que já é tarde demais, para voltar atrás?

E eu conhecia meu coração muito bem. Eu poderia dizer todas as palavras e fazer todas as promessas e ainda permanecer longe de problemas, se eu quisesse, mas era isso que eu realmente queria? Se eu não sentisse aquela paixão, como eu poderia estar inteiramente presente naqueles encontros íntimos?

Eu adorava seu cheiro, seu sabor, seu toque e sua abertura em receber minhas carícias. Adorava a forma como ele sentia prazer com a minha presença; do jeito que ele dizia que era todo meu e eu tinha pleno acesso a tudo o que eu quisesse; a maneira que dava o seu corpo para mim e a forma como ele usava o meu corpo para seu próprio prazer e para o meu, também, é claro. Gostava de como ele me olhava no fundo dos olhos e como ele fechava as pálpebras ao ser tocado por meus dedos; o modo como ele segurava meu corpo perto do seu, enredava as pernas nas minhas, deixando a impressão de que nunca iriamos separar-nos novamente; a maneira como ele me beijava com paixão genuína e, também, do jeito que ele me amava.

Sim. A maneira como ele fazia amor comigo. Aquilo era mais do que o contato apenas físico, eu poderia garantir. Eu já tivera outros homens antes dele e ninguém tinha-me deleitado com tal paixão. Ele era apaixonado, gentil, atencioso e presente. Mas não era meu.

Ou, melhor dizendo: ele era. Por alguns minutos apenas, por vezes, um par de horas, ele era inteira e abertamente meu, como ninguém havia sido antes.

Eu tinha orgulho de suas realizações e de sua vida. Ele me dissera, certa vez, que eu era a única pessoa que sabia tudo sobre sua vida e seus desejos secretos. A maioria deles eram tão secretos, que quase escondia de si mesmo, mas, no entanto, haviam sido compartilhados comigo.

Que tipo de homem faria isso, sem ter uma confiança cega na pessoa com quem estava?

- Quando tu pensas em mim, no que tu pensas?

Ele corou. Não era bom em falar sobre seus pensamentos ou sentimentos, especialmente quando se referia ao nosso não-chamado "relacionamento".

Eu ri. Como ele podia ser tão docemente teimoso?

Ao dizer nada e corando assim, ele estava-me dizendo tudo, sem pronunciar uma única palavra. Ele não admitia o óbvio, nem aceitava a verdade. O que estava acontecendo entre nós era algo a ser seriamente considerado, mas ele nunca diria nada em alta voz. No fundo, entretanto, sabíamos... e muito bem... o que havia entre nós.

O que são as palavras, afinal? Por que uma pessoa precisa dizer o que acontece, em alta voz, quando os sentimentos não precisam de vocábulos, para serem, expressamente, expressados? Eu podia ver em seus olhos. Eu podia sentir em seu corpo. Eu podia ler seus pensamentos, só de olhar para ele e perceber a expressão terna em seu bonito rosto. Sua boca nunca iria pronunciar as palavras, mas eu podia ouvi-las sendo gritadas por seus doces olhos.

Eu olhei para ele e pensei: ‘tu não precisas admitir, mas eu sei que tu és, de fato, o meu homem’.

- E tu? Em que tu pensas, quando pensas em mim?

- Eu penso em anjos e percebo quão forte tu és. Eu gosto tanto de ti...

- Tu estás caindo em tentação e apaixonando-te, embora tenhas prometido que não irias. O que vais fazer agora?

- Eu não vou fazer nada. Não há nada que eu possa fazer, mas deixar minhas emoções correrem livres. Eu gosto muito de ti e eu não quero perder isso. És importante... muito importante para mim...

- Eu sei. Eu sei muito bem, mas tu prometeste...

Beijei seus lábios. Ele, então, respondeu-me com ternura, abrindo suas enormes asas e segurando-me em um caloroso abraço.

- Deixe a vida guiar-nos, por favor. Não lute contra isso, ou então vamos perder o melhor de nós...

- Eu não vou lutar... não vou lutar...

Acordei no meio da noite, sentindo-me feliz, sob a calorosa proteção de um anjo, que não existia de fato. Ele não era nada mais que uma doce ideia. Era o meu conceito de perfeição. Não era impecável fisicamente, embora eu gostasse de olhar para ele o tempo todo, mas era perfeito como um homem com quem se podia envelhecer, exceto que ele nunca seria meu, afinal... Nem eu seria dele, além da condição de estarmos completamente ligados por aqueles breves momentos, em que o mundo poderia parar de girar ao nosso redor e todos os problemas de nossas vidas complicadas nunca iriam passar da porta do quarto.

Não consegui dormir de novo até que o sol da manhã atingiu a janela do quarto e abriu caminho através das cortinas, dizendo que era hora de levantar-me e voltar à vida normal.

Os dias passavam muito lentamente e de forma muito aborrecida quando não nos víamos. Alguns dias depois, quando a campainha tocou, finalmente, meu corpo e mente estavam prontos para recebê-lo.

Quando abri a porta e vi-o, ali na minha frente, com seu sorriso irresistível, meu coração deu uma batida em falso. Ele não disse nada, até que eu fechei a porta atrás de suas costas e abracei-o com força, beijando-lhe os lábios.

- Senti tua falta.

- Eu também…

Nós tivemos uma das mais notáveis noites, desde que começamos a sair juntos. Ele foi todo meu e eu dele. Não me lembro onde nossas roupas caíram, a caminho do quarto. Não me lembro o que aconteceu entre a porta de entrada e minha cama. Eu só lembro que estávamos tão emaranhados, que éramos quase um corpo só.

Eu tinha necessidade física dele. Aspirei o seu perfume viril, tentando mantê-lo na minha pele e memória. Não fechei meus olhos porque eu queria mantê-lo no meu campo de visão. Eu queria apreciar a sua beleza e perfeição. Toquei cada centímetro de sua pele nua, com cuidado e suavidade. Ele respondeu a cada toque dos meus dedos no corpo no dele. Nunca disse uma palavra. Apenas respirou fundo e gemeu baixinho.

Em seguida, beijou-me com uma intensidade tão grande, que parecia ter fome. Ele tocou-me os lábios e o corpo com imensa paixão e desejo. Eu sentia-me como se um anjo de asas muito largas estivesse conduzindo-me ao céu. Em seguida, fizemos amor. Eu tinha certeza que aquilo não era apenas luxúria ou sexo: estava muito mais perto do sentido real de amor. Ele era completamente meu, assim como eu era dele.

- Eu não consigo deixar de pensar em ti o tempo todo. Achas isso normal? Eu fico pensando quando e como eu posso estar contigo... Se isto não for um sinal de paixão, não sei o que possa ser. Eu não tenho nenhuma dúvida sobre isso tudo e morro de medo do que sinto.

- Como é que algo tão bom e prazeroso possa causar-te algum tipo de medo? Não valorizas o nosso tempo juntos?

- Aí é que está. Eu aprecio muito e até acho que estou irremediavelmente apaixonado por ti, mas isso não está certo. Vou acabar machucando-te a ti e às outras pessoas, que não merecem, e isso não é justo, nem para ti, nem para elas. Temos que parar com isso, urgentemente!

- Meu amigo, se é isso que tu pensas e estás a deixar-me, por medo de machucar-me, não o faças... Agora, se o facto de estares apaixonado por mim, prejudica a vida de outras pessoas, então deves ir-te agora, antes que seja tarde demais.

Ele não disse nada, quando levantou-se e começou a vestir-se, saindo em seguida, sem dizer uma única palavra a mais.

Era estranho ver partir aquele homem, que deu-me seu tudo, naquela noite e tirou tudo de mim, apenas alguns minutos depois. Eu senti-me como se estivesse afogando em um mar de desesperança. Deixar-me assim, por estar muito envolvido comigo, além de ser um peso demasiado pesado para suportar, era também de uma injustiça e crueldade inconcebíveis.

Depois daquele último encontro, fomo-nos separando cada vez mais. Nossos contatos escassearam, exceto pelas mensagens de "bom dia", que tornaram-se cada vez menos frequentes, pois ele foi deixando de respondê-las, aos poucos, até deixá-las no vazio, completamente. Eu sabia que ele estava evitando-me daquela forma, para que pudesse ter certeza que eu poderia viver longe dele. 

Ele estava errado, mas não havia nada que eu pudesse fazer para convencê-lo do contrário. Ele deixava-me porque estava preocupado em envolver-se mais do que estávamos. Eu nunca temi nada daquilo. Deixou-me porque me amou… pelo menos foi o que disse... Eu tinha certeza, no meu coração, que ele havia sido sincero...

Os dias passaram uns após os outros, em sua sequência impiedosa e aborrecida. Algum tempo depois, quando passeava pelo Shopping Center, eu o vi, parado em frente à uma loja, olhando para uma moderna jaqueta de couro, exposta na montra. Meu primeiro impulso foi de correr até onde ele estava e surpreendê-lo, abraçando-o e beijando-o, na frente da multidão, que passava à nossa volta, absolutamente incógnita.

Comecei a andar em sua direção, mas parei, sentindo algo estranho, quando uma mulher, de repente, aproximou-se e beijou-o no pescoço. Um rapaz e uma menina, pré-adolescentes, também acercaram-se do casal e eles foram-se embora, andando pelos corredores, de mãos dadas e sorrindo um para o outro. Ele parecia estar bastante feliz.

Senti uma estranha pontada de dor, mas reconheci que ele, afinal, merecia aquela sua vida. Se ele estava feliz, eu deveria estar feliz também. Voltei-me, sentindo um peso enorme na alma, sabendo que ele não era, nem seria meu. Nunca havia sido, de qualquer maneira e eu tinha que viver com aquilo... infelizmente...

Naquele momento, o que eu precisava era de um café bem forte e quente… e com urgência... As coisas, na minha vida, teriam que, paulatinamente, voltar ao normal e eu sabia disso.

Só, novamente e como já era de costume, eu tinha que continuar a existir, embora sentisse que estava, lentamente, afogando-me em grande mágoa e decepção.

Não havia nada de novo ou surpreendente naqueles últimos acontecimentos, entretanto. Não era nenhuma novidade que minha existência continuasse a ser, assim, solitariamente desajeitada…