- A senhora sabe porque está aqui?
A mulher, com aspecto um tanto
lívido, sentada à frente do homem de branco, balançou a cabeça, positivamente.
- Teve uma síncope: uma forma de ataque de pânico, ocasionado pelo
excesso de trabalho, provavelmente compulsivo. A senhora tem trabalhado demais,
não tem? Provavelmente não se alimenta, nem dorme direito… A senhora sabe as
consequências disso?
O médico de plantão já conhecia o
diagnóstico, sem precisar fazer mais que uns simples exames à paciente à sua frente.
Os sintomas eram evidentes demais, para quem já estava acostumado a ver,
repetidamente, as pessoas terem comportamentos indecentemente obsessivos em
relação ao trabalho.
- Sei, mais ou menos… mas o ‘SENHOR’ (ela usou uma dose de ironia
ao pronunciar a palavra, fazendo uma pausa quase imperceptível) vai dizer-me de todo o jeito, não vai?
O médico fingiu não perceber o
sarcasmo e disparou:
- Se não procurar ajuda profissional especializada, imediatamente, vai ter
que voltar aqui e com certeza será muito pior… Além de alguns exames médicos e
um acinético, vou-lhe passar o nome de uma óptima psicóloga, mas a senhora vai
ter que se comprometer, sem desculpas, a seguir a terapia à risca…
- Ok, doutor. Eu vou seguir suas instruções à risca… Prometo!
- Já falei com seu superior e ele concorda comigo. A senhora VAI
seguir a terapia à risca.
(Aaarrrghh!!! Agora ele pediu. E
ainda teve a audácia de colocar a ênfase no verbo… Vou-lhe directo ao pescoço…
sem dúvida alguma! Alguém me segure, senão ele não me escapa das unhas…)
Levantou-se, estendeu-lhe a mão,
com educação fingida e, com um sorriso forçado, virou-se e saiu pela porta
afora, com a prescrição médica de um forte calmante dentro do bolso da calça…
***
Um rapaz com profundos olhos
azuis entrou no Café. Avistou a mulher
sentada, sozinha, à janela e aproximou-se.
-‘Posso sentar-me aqui?’
Ela olhou-o, visivelmente pasmada
ante a ousadia do rapaz que acabara de chegar. Ele acomodou-se, antes mesmo que
ela tivesse tempo de responder. Sua acção não passou despercebida de todo. Ele
observou com cuidado o ambiente e o desconforto dela. Viu também que um dos atendentes
de mesas que estava de pé, próximo ao balcão do Café, não tirava os olhos de cima deles. Uma veia perversa
inundou-se o sangue com sede de vingança, mas ele soube permanecer impassível. Precisava
de mais certeza.
Chamou o rapaz para pedir um café, mas com um intuito bem mais
específico. Percebeu o nervosismo de ambos. Suas dúvidas dissiparam-se,
imediatamente, assim que viu a troca de olhares entre os dois. Misha sorriu-lhe
e seu sorriso foi o mais encantador que ele conseguiu produzir. Ela retribuiu,
meio desajeitadamente, sem saber exactamente o que fazer. O rapaz, que os
servia, franziu o cenho.
(Bingo!)
A semente da dúvida havia sido plantada. Agora
era somente uma questão de tempo… e, este, ele tinha à sua inteira disposição… e
mais que de sobra. Misha não precisou, entretanto, de um segundo assédio.
Naquela noite, quando estavam
juntos, após amarem-se como dois náufragos desesperados, em busca de uma tábua
de salvação, enquanto o calor arrefecia seus corpos, o rapaz rolou para o lado
e ficou, em silêncio, a olhar o teto. Ela percebeu que ficou um clima algo
estranho a pairar no ar. Mesmo assim,
falou, com cuidado:
- Eu gosto tanto de estar aqui…
Mas o rapaz parecia estar muitas
milhas distante dela. Uma lágrima de tristeza rolou-lhe pelo lado da face,
quando ele deu um longo e angustiado suspiro…
***
Misha passou a observar, de perto,
os passos da mulher. Viu que suas idas ao Café
da esquina cessaram após aquela ocasião em que esteve presente.
Certificou-se, primeiro, que estava certo, depois decidiu aproveitar-se da
situação. Deixou passar um tempo e voltou ao Café, dirigindo-se ao funcionário de mesa que já conhecia.
Perguntou, como se fosse a coisa
mais natural do mundo, como estava a namorada. Apesar das tentativas do rapaz
em afirmar que não havia nada entre ele e a investigadora de polícia, o outro
não pareceu convencido.
Após uns poucos minutos, Misha
então, desafiou o rapaz. Apostou que conseguia levar a mulher para cama.
- Se não há nada entre vocês, não há porque se preocupar, não é mesmo?
-‘Por que estás fazendo isso?’
- ‘Para provar que as coisas não são o que aparentam ser’…
O verdadeiro intuito, porém,
estava longe de ser tão simples.
***
-Tenho percebido que andas muito sozinha. Cada vez que te vejo, tenho a
impressão que estás mais triste. O menino deixou-te?
- Que menino?
- Achas que eu não sei o que se passa? Só porque não frequentas mais o ‘Templo’,
não quer dizer que passas despercebida… Tu és uma mulher atraente, mesmo por
trás desta fachada séria de policial durona. E eu sei que me achas
interessante.
(‘E arrogante’ - pensou ela, fazendo um leve muxoxo…)
- Vejo o jeito que me olhas e sei que também me deves desejar...
- Se alguma vez te olhei com algum desejo, deve ter sido há muito tempo
atrás. Essa atracção já não existe. Agora eu estou interessada em outro homem,
muito diferente de ti.
- O menino do Café…
Ela meio que entristeceu. Ele
riu, vitorioso.
Ela não negou, nem confirmou. A afirmação
tinha um grande fundo de verdade. Estava-se apaixonando pelo outro rapaz,
embora, naquela ocasião, estivessem separados, depois do incidente em que ele
lhe pedira um tempo para pensar. Seus olhos encheram-se de lágrimas a recordar a
estranheza do último encontro que tiveram. Já haviam-se passado vários dias…
Ele percebeu o estado dela e
aproveitou-se da situação e fragilidade demonstrada no momento. Chegou-se mais
perto, olhou-a nos olhos e sorriu. Ela não conseguiu desviar o olhar. Ele
tocou-lhe, com delicadeza, a face morna e ela, em reacção, fechou os olhos…
***
Misha era um mestre na arte. Sabia
todos os segredos da sedução, como preparar um ambiente sensual e conhecia os
pontos sensíveis do corpo da mulher. Deu-lhe prazeres que ela não sabia que
existiam, mesmo quando estava com seu jovem amante. Era evidente que ele era um
profissional do ramo e sabia muito bem como agradar.
- Agora vais ter que mentir ao menino…
- Eu não minto; só não preciso falar toda a verdade… Nunca prometemos
fidelidade, nem tampouco exclusividade, um ao outro…
Sabia, porém, que o que acabara
de dizer não era bem uma verdade incontestável… e sentia muito que assim fosse.
Como se numa encenação bem ensaiada,
o telefone dela tocou…