quinta-feira, 18 de julho de 2013

Ginger


A velha mesa redonda havia sido encerada, ficando impecavelmente limpa e luzente. A empregada fizera um bom trabalho.

O velho sentou-se a ler, concentrado, o diário matutino. De repente, um furacão arruivado passou com a velocidade da luz e arrebatou-lhe o jornal das mãos. Um estranho estrondo seguiu-se àquela confusão momentânea.

Ele olhou à volta e logo compreendeu o que acontecera. O gato pulara sobre a mesa, para cumprimentá-lo, como de costume, sem saber que aquela estava, além de polida, tremendamente escorregadia. Ainda tentou voltar atrás, mas as almofadinhas e os pelos em suas patas não o ajudaram… Ao contrário, tornaram o deslize mais fácil. O gato perdeu o controlo, tentou agarrar-se ao que havia pelo caminho, levando consigo as folhas do jornal, passou directo até a borda da mesa e caiu desajeitadamente.

Do chão, ainda meio agachado, com os olhos arregalados e uma expressão aparvalhada, ele olhava o velho, sem perceber muito bem o que acabara de acontecer. O jornal, totalmente desfolhado e meio destruído pelas unhas afiadas, jazia ao seu lado, testemunhando a confusão acontecida há poucos segundos.

O velho riu alto e acarinhou a cabeça e o dorso do animalzinho, para acalmá-lo. Ele parecia bem, apesar de ainda assustado.

O homem, então, pensou na relação – especial e de amor incondicional - que tinham. Nunca havia imaginado que um mero gato de rua, gorducho e de tamanho além do normal, traria tanta diferença em sua vida, desde que fora adoptado.

Ginger nascera em África e sempre fora livre como o vento. No mais comum dos dias, vivia no jardim a caçar insectos e pequenos pássaros, subir nas árvores e nos telhados, ou simplesmente a dormir em baixo dos arbustos.

Brincalhão, inteligente, trapalhão, carinhoso, manipulador e muito esperto - quando queria algo - o felino sabia fazer-se comunicar, de uma forma que era clara como água, para o velho.

O nome dado referia-se à bela cor ruiva de sua pelagem. Mais de treze anos haviam-se passado, desde o dia em que a falecida esposa o trouxera para casa. Quando ela partiu, deixou-os a trazer consolo, cumplicidade e companhia um ao outro.

Às vezes, ao chegar à casa, uma tristeza abatia-o e ele sentia uma vontade enorme de chorar. Então, jogava-se no sofá, exausto e consternado. O gato deitava-se sobre seu peito, olhava-o nos olhos e ficava ali, presente, enquanto o velho desabava em lágrimas...

O animalzinho era sempre tratado com cuidado, carinho e, sobretudo, com extremo amor.

Apesar de saudável, porém, o bichano já era um sénior e o homem sabia que a expectativa de vida começava a aproximar-se do limite. As variáveis podiam ser muitas e, como tudo na vida, podiam alterar os prazos.

O homem tinha ciência que ele poderia faltar-lhe, um dia qualquer, num futuro bem próximo. Sabia também que ia sofrer. Sabia ainda que o vazio, tanto na casa, quanto em sua vida, ia ser bem maior que muitos podiam suportar, mas ele tinha que ser forte.

Não ia ser fácil viver sem o seu grande companheiro, depois de tanto tempo a conviverem juntos. Mas não podia deixar de amar o animalzinho dedicada e intensamente, nem de dar-lhe, cada vez mais, o máximo de atenção que exigia. Não temia, de jeito algum, sofrer a perda, nem devia evitar a dor.

O gato era uma grande parte do que ele era. Tinha o direito a ter uma vida mais curta, sim, porque - diferentemente do seu humano – ele já tinha a sua missão praticamente cumprida: a de fazer do velho um homem melhor.

4 comentários:

  1. Este também foi enviado ao concurso. Supostamente o texto deveria provocar algumas reacções: rir, chorar, pensar...

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  2. (Brincalhão, inteligente, trapalhão, carinhoso, manipulador e muito esperto - quando queria algo)
    BELÍSSIMO, NESTE TRECHO JÁ SINTETIZAS TODAS AS REAÇÕES EMOCIONAIS QUE CITAS NO COMENTÁRIO ACIMA.
    Muito bom, Parabéns
    Nena

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    1. Obrigado, Nena. Sempre é bom receber inputs. Nste caso, apesar de criar um personagem, não há dúvidas que não é somente um personagem, mas uma singular "figura"...

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  3. Quando escrevi e publiquei esta versão, não tinha ideia do que viria acontecer em seguida. Perdi meu Grande Amigo, meu companheiro de tantos anos e aventuras... meu grande amor... Mas partiu pacificamente e foi fiel e soberano até o fim. Que esteja em paz, meu tigre!

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