A estreita porta de madeira com duas
fileiras de vidros foscos coloridos, na parte de cima, foi empurrada para
dentro com pouco esforço. Era uma daquelas portas de vai-e-vem, que abre para
dentro e fora e ficava numa das laterais da entrada principal. O homem entrou e
fez o sinal da cruz, em sinal de respeito ao que via no final do corredor
central.
Uma imagem de São José com o menino no
colo, em madeira esculpida e colorida, em tamanho natural, estava colocada no
alto da parede por trás da mesa disposta no centro do altar. O santo olhava com
bondade para os fiéis que instalavam-se abaixo de sua presença. Era esta a impressão
que ele tinha, desde que entrara na igreja, há muito tempo atrás. Voltar ali,
era como reviver o passado… mas não era por isso que ele estava ali.
O cheiro característico da madeira encerada
misturava-se com as lembranças e com o som dos ecos de seus passos, enquanto
caminhava pelos corredores da grande nave. Ele queria e devia estar sozinho. Precisava
daquilo. Expirou, como se a absorver algo do ar à sua volta.
Havia alguma coisa de sagrada naquele
ambiente, antes visitado mais frequentemente. Engraçado como as igrejas não
cheiram a detergente, nem à poeira, nem mesmo à fumaça dos incensos, apesar do
uso constante deles: cheiram à santidade... Era este o cheiro que ele associava
às igrejas.
O piso de granito decorado e gasto
dava-lhe a sensação de solidez – uma impressão de segurança que ele sentia
quando lá estava.
Quando era mais jovem, o homem gostava
de sentar-se em silêncio, sozinho, nos bancos longos de madeira escura,
sentindo uma pseudo-paz, uma tranquilidade protegida do mundo lá fora. Ele
parou a meio caminho e sentou-se num deles.
***
Lembrou-se do dia em que ouviu o
silêncio, na pequena capela do seminário onde fazia retiro espiritual. Ele
fechou os olhos e viu-se sentado, sozinho, na minúscula capela, ao entardecer.
Não havia luzes acesas; apenas a
iluminação natural, que vinha pelos vitrais. Havia saído da confissão e queria
estar só. Ele esvaziou a mente e ficou quieto. Fechou os olhos. Quase sentia um
nada a abraçá-lo, envolvendo seu corpo e mente.
Foi então que ouviu, muito baixinho,
quase imperceptivelmente, a música que vinha de algum lugar, tomando conta de
tudo à sua volta. A nona sinfonia. O hino da alegria. Somente pode ouvir porque estava totalmente quieto, quase sem respirar. E ele se tornou o
silêncio e a música, como se não tivesse corpo físico.
Sentiu uma espécie de êxtase… uma
leveza na alma… até ser interrompido…
***
Olhou para a construção à sua
esquerda. Um impulso fê-lo levantar-se e dirigir-se até o pequeno
confessionário, protegido apenas por uma cortina de tecido de um tom muito
escuro de roxo, onde entrou e ajoelhou-se.
- Padre, dai-me a vossa bênção porque
pequei…
- Filho, esta fórmula já não se usa há
muito tempo.
- Oh…
- Há quanto tempo não te confessas?
Realmente. Ele já nem lembrava bem de
quanto tempo fazia… Havia sido às vésperas do casamento, há bem mais de vinte
anos atrás? Provavelmente sim…
- Mais de vinte anos, padre… a última
vez foi quando eu acreditei numa grande mentira: que estaria unido até que a
morte nos separasse…. Bom, foi uma verdade, até certo ponto: a morte do que nos
unia, pelo menos… Masturbação ainda é pecado?
O padre riu. Uma mudança no assunto que
trouxera o outro ali não era estratégia que ele apreciava. Ele olhou para o lado. Pela grade, semiencoberto pela
tela de protecção, o rosto do homem era apenas uma silhueta de perfil indefinido.
Um pecador. Um crente ou um desesperado?
- Eu nem sei por onde começar… já
custou-me muito chegar até este ponto e ajoelhar-me no confessionário, depois
de tanto tempo…
***
O rapaz, sentado numa cadeira simples
de madeira envernizada, avaliava suas faltas, em uma conversa de frente a um
dos padres, que havia sido designado a ouvir as confissões dos jovens
participantes do retiro espiritual de três dias, sem contacto com a civilização
fora do prédio de pedra, no cimo do barranco, de frente para o mar aberto. A
ingenuidade dava-lhe um certo ar de santidade e sua sensação de culpa por
faltas tão menores, uma infantilidade adorável. Os cabelos castanhos muito
claros, quase aloirados, caiam-lhe em cachos até quase a altura dos ombros,
emoldurando a pálida face, que não escondia um olhar entre o perdido e o
triste. O padre pensou que havia ali uma história duramente vivida, apesar da
tenra idade.
-…E é essa a história. Apenas nos encontramos,
conversamos, ficamos juntos…
- Então ela só precisava de um pouco
do carinho, que já perdeu ao longo de anos de convivência e rotina no casamento…
Não é certo, mas não me surpreende. Aconselho-te a tomar bastante cuidado.
- Eu sei.
Mas, na verdade, não sabia…
***
- E o que te traz aqui, hoje, depois
de vinte anos, meu filho?
Os padres têm a tendência de
chamar-nos de filhos, não importa a idade que tenhamos. Será que isto faz parte
do aprendizado no seminário? Ele pensou no motivo. Não havia realmente um
motivo, havia? Ele nem ao mesmo sabia porque procurara abrigo num lugar que não
frequentava há tanto tempo. Alento? Provavelmente também não. Devia ter
procurado a psicóloga, antes...
O silêncio foi interpretado pelo padre
como um sinal de culpa.
- O que o aflige?
- Sinto um vazio, padre. Um imenso
vazio…
- Há quanto tempo não buscas a Deus?
- Desde que perdi a fé.
- Se a tivesses mesmo perdido, não
estarias aqui… agora…
Ele ouviu e ficou em silêncio por uns
segundos. Ia argumentar, mas o padre foi mais rápido que ele.
- Tu não precisas acreditar em todas
as coisas. O próprio papa resolveu revelar alguns segredos e olha que está a
ser muito criticado, tanto pelos fanáticos quanto pelo próprio clero. A fé, na
verdade, não tem religião. Tu tens idade e percepção suficiente para entender o
que digo.
- Sim, padre. Eu compreendo bem. E um
pouco do meu afastamento se deve aos meus questionamentos à acção da igreja,
especialmente à nossa. A história e a ciência descobrem muitas coisas que
estavam escondidas, por trás de muita hipocrisia e manipulação do clero, desde
antes da idade média…
- Os tempos estão em mudança. Os
fanáticos vão-se escandalizar. Eu mesmo estou ansioso para que estas mudanças
venham logo, mas considero que é bastante delicado e até perigoso. O papa tem
que ser muito forte, porque ele vai enfrentar muitas correntes contrárias à todas
estas revelações.
O padre respirou fundo. Talvez
pensasse que estava a falar demais. Não era sempre que encontrava alguém com
discernimento suficiente para desafiar suas faculdades e discutir abertamente o
assunto. O homem retomou o fio da conversa.
- A própria concepção de pecado mudou,
não mudou?
- O mal existe. O pecado existe. A
intolerância, a falta de respeito, a inveja e o rancor, a falta de consideração
e de humildade… todos estes são, por assim dizer, pecados, que nos rondam todos
os dias. Não falemos de matar ou prejudicar a vida dos outros,
intencionalmente, nem de vinganças a ferro e fogo, porque estas são faltas bem mais
graves e até mesmo pelo ponto de vista do estatuto dos homens, são puníveis pela
lei. Os tempos modernos revelam crimes hediondos que nunca poderiam sequer ser
imaginados há algum tempo atrás. A crueldade e a manipulação tomaram proporções
que tornaram-se quase incontroláveis…. Ou não… O grande erro é que nos
acostumamos a ver o mal à nossa volta e não fazemos nada. Com o tempo, aquilo
torna-se normal…. Algumas vezes até aceitamos o que não admitíamos antes.
- Padre, nenhum destes motivos me
trouxe aqui. Minha consciência está tranquila em relação a isto… O que eu faço
com a frustração e a decepção?
- Só as sentes quando tiveste
expectativas demais, meu filho. A culpa não é exatamente de quem te
decepcionou. Não foste tu que esperaste demais?
- Talvez… E a raiva? E a inveja? E a
desconfiança?
O padre nem precisou pensar para
responder. Estava bastante acostumado com as pessoas e suas perguntas, nos
muitos anos de profissão. Aquela era uma das mais recorrentes.
- São males que matam devagar… mas
somente a quem os sente. É como se tu ingerisses um forte veneno e esperasses
que outra pessoa morresse. Não faz muito sentido… quem morrerá, aos poucos,
serás tu… Sentes solidão?
Ele lembrou-se da estranha conversa que
teve, uma vez, com Akis.
***
- Eu preciso tirar umas férias, para
ficar sozinho um pouco. Já sinto falta disso…
- Para ficar sozinho? Tu já não ficas só
por tempo demais?
- Claro que não, senão não precisava
ficar mais…
- Ninguém pode ficar mais sozinho do
que um máximo admissível. Se o limite máximo que se consegue ficar, seja,
digamos, do tamanho de um pacote de cigarros, não se pode exceder este limite.
Não adianta querer colocar mais do que cabe dentro dele, nem que este pacote
aumente de tamanho…. É simplesmente impossível! Como é que tu queres exceder o
máximo exequível e tolerável?
- Eu simplesmente preciso, Akis. Ficar
sozinho me devolve a sanidade.
- Tu me tiras do sério, sabias? Há
vezes em que tenho vontade de te bater…
Ele riu. O outro desistia de
argumentar, diante da teimosia irritante dele.
***
- Não, padre. Não sinto solidão.
Às vezes sinto um vazio… às vezes, muita vontade de chorar… mas nem sei, ao
certo, por que a tristeza me abraça de quando em quando e faz-me sentir assim
desolado…
- E o que fazes?
- Choro… que mais poderia fazer?
Os joelhos doíam-lhe. A cabeça
também.
-Tenho de ir, padre.
- Não disseste a que vieste…
O homem levantou-se, sem responder.
Vontades contraditórias de matar ou morrer invadiam-lhe os pensamentos.
Atravessou o corredor e saiu pela porta, sem olhar para trás. O padre esticou a
cabeça branca para fora do confessionário e ficou a olhar o homem a caminhar para fora
da igreja.
Não viu quando ele atravessou a
rua, sem olhar para os lados… Ouviu apenas o som repentino de uma longa e
brusca freada e um som surdo, como de algo sólido a bater contra algo… ou
alguém…
Não demorou muito a correr para
fora e deparar com o corpo ensanguentado do homem, na rua em frente da igreja,
em meio a uma dezena de curiosos, que já se acumulavam no local. O olhar parecia
haver sido congelado num ponto à sua frente. Parecia tranquilo, entretanto…
O padre fez-lhe o sinal da cruz na testa e recitou uma fórmula conhecida, fechando-lhe, com cuidado, as pálidas
pálpebras…