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sexta-feira, 28 de julho de 2017

Contradições (Parte 2 de 2)


- Tu o quê?

- Eu deixei que ele me beijasse... e eu o beijei de volta.

- Estás louca? Por quê? Tu disseste que o odiavas...

- E é verdade. Eu ainda o odeio e a mim, mais ainda, por deixá-lo fazer isso comigo. Foi um momento de fraqueza... e foi só um beijo…

- Fraqueza? Só um beijo? E quanto a nós?

Olhei aquele seu rosto atraente, exibindo a expressão de uma triste incredulidade e me senti, mesmo, muito mal e culpada. Ele não merecia aquilo, especialmente de mim.

Que idiota eu fui! Eu não havia sido apenas fraca, também estivera completamente fora de mim, sem pensar na extensão do que tinha feito. E, agora, era muito tarde para voltar atrás. Eu conhecia aquele homem e também sabia que sua confiança em mim seria muito difícil de manter, depois de um comportamento inconsistente daqueles.

- Eu sinto muito. De verdade.

Eu podia ver o desencanto cobrir, rapidamente, seu rosto, como uma nuvem pesada e escura e não pude deixar de me sentir severamente responsável por aquilo. Eu também estava devastada, confusa e totalmente desapontada comigo mesma.

Ele não disse mais nada, apenas virou as costas e saiu.

Eu me perguntei se, algum dia, poderia consertar aquela situação e, mesmo se pudesse, sabia que ele nunca mais confiaria em mim, tão cegamente.

Ah! Se eu pudesse fazer o tempo voltar atrás...

***

Um pequeno vaso de Miosótis foi entregue, pelo florista, na minha porta. Eu não precisava de nenhum cartão para descobrir quem teria sido o remetente, mas procurei, no meio das delicadas pétalas azuis, de qualquer maneira. Uma mensagem simples, não assinada, estava escrita em um pequeno cartão. Senti uma fisgada no estômago.

"Não consigo te esquecer... Não me esqueças..."

Eu conhecia o nome popular daquelas flores. A mensagem era clara, em ambos os sentidos. Eu me perguntava por que ele estava fazendo aquilo e o que ainda queria de mim.

Após aquele incidente, já havia passado algumas semanas sozinha e eu tentava não colocar mais stress na minha mente. Já havia assumido meus erros e sabia que alguns actos são imperdoáveis, especialmente em termos de relacionamentos. Dei, ao meu amante, o tempo necessário para pensar em nós e à mim mesma, para me acostumar a viver por minha própria conta, novamente. Por outro lado, estava evitando o homem que me enviava mensagens directas, tentando, de alguma forma, voltar para minha vida e para o meu coração.

Quão complicada pode ser a vida, com todas aquelas coisas a acontecerem, como se fossem tempestades, umas após as outras? Era justo ou era apenas uma maneira que a vida encontrava de me tornar mais forte e rígida, sem perder a leveza do meu coração?

Peguei o vaso de flores e coloquei do lado de fora, na varanda, para não ter que olhar para elas. Aquelas flores não eram responsáveis ​​por nada e, como seres vivos, mereciam sobreviver. Resolvi que iria, apenas, regá-las uma vez por dia, antes de decidir o que fazer, a seguir.

Quando voltei para dentro, o telefone tocava.

- Recebeste as flores? Eles significam muito, sabias? Espero que não te tenhas esquecido...

- Esquecido do quê?

- Estás tentando enganar-me. Eu te conheço muito bem. Tu nunca esquecerias coisas como essas...

- Mesmo?

Ele riu. Ele me conhecia muito bem. Claro que eu ainda me lembrava. Ninguém jamais poderia acreditar como minhas memórias ainda estavam tão vívidas e, no entanto, eu desejava, tanto, que elas já não estivessem.

***

"Estou quase aí. Cerca de três minutos, aproximadamente. Qual o número do quarto, mesmo?"

Enviei uma mensagem de texto com as informações e esperei. Cinco minutos depois eu abria a porta do quarto 308 e deixava entrar o belo homem ruivo.

Segundos depois que ele entrou, estávamos abraçados e eu pude sentir quão entusiasmado ele estava, assim que nos beijamos. Ele era apaixonado, intenso e viril, apesar do toque delicado e suave de seus dedos em minha pele. Suas mãos encontraram seu caminho por toda a extensão do meu corpo e minhas roupas, espalhadas pelo pequeno quarto, passaram a ser, apenas, como insignificantes peças da decoração.

Passamos o dia inteiro e a noite juntos, saboreando cada momento daquele encontro de fim-de-semana. Depois de deixar o hotel, na manhã seguinte, a caminho da estação de comboio, ele disse que adorava aquelas florzinhas, que estavam expostas numa montra de floricultura. As pétalas azuis chamavam sua atenção e o nome popular era uma mensagem directa para mim. As delicadas Miosótis eram popularmente conhecidas como 'não-me-esqueças'.

Ele, então, comprou-me um vasinho daquelas frágeis flores, para que eu pudesse mantê-las comigo e lembrar dos nossos breves, mas intensos, momentos. Dei-lhe meu cachecol como lembrança, quando nos despedimos. Combinamos de vermo-nos, pelo menos, uma ou duas vezes ao mês, pois vivíamos em cidades diferentes, separados por cerca de pouco mais de cem milhas.

Tivemos alguns outros apaixonados fins-de-semana juntos. Entrementes, costumávamos conversar por telefone, praticamente todos os dias.

Por algum motivo estranho, depois de alguns meses, no entanto, aqueles contactos começaram a esfriar e a diminuir e, então, ele ficou em silêncio por uns tempos. Eu pensei que estivesse aborrecido com aquela situação e havia decidido parar de me ver. Coisas como essas acontecem o tempo todo e eu não estava realmente surpresa, embora um pouco desapontada. A distância entre nós tornara-se um impedimento de aprofundar nosso relacionamento. Eu ainda tentei manter as chamas acesas, deixando-lhe mensagens íntimas e apaixonadas, mas ele nem se incomodou em respondê-las.

Imaginei que haveria um bom motivo para a falta de contacto e tentei entender as razões por trás das acções. Talvez ele não me quisesse preocupar. Talvez estivesse cansado e não quisesse ficar-me chateando com explicações. Talvez... talvez... talvez...

Tantas possibilidades a considerar e nenhuma delas parecia ser suficientemente forte, para sustentar e explicar o silêncio e a falta de contacto.

Um sábado de manhã, quando eu estava voltando do supermercado, o telefone tocou. Sua voz parecia estranhamente diferente. Pensei que havia algo errado, mas esperei até ele dizer-me o que se passava.

Ele disse que tentou, mas que não pôde entrar em contacto comigo, por mais que quisesse. Havia outra pessoa em sua vida e, então, havia ligado porque precisava de um favor muito especial, da minha parte. Queria que eu enviasse uma curta mensagem de correio electrónico, afirmando que nunca houvera nada, além de uma branda amizade, entre nós. Ele precisava daquilo para mostrar, à sua mulher, que éramos apenas conhecidos e nada mais, pois ela havia encontrado uma das minhas mensagens no telefone dele e ficara furiosa.

Aquilo me atingiu como se fosse uma punhalada nas costas. Eu me senti traída, abandonada e solitária, de repente.

Ainda tentei parecer cordata e pouco afectada, mas estava tão triste, chateada e ofendida, que decidi que tinha que parar aquela situação para sempre e esquecê-lo, de uma vez, para o bem da minha sanidade. Ele não merecia minhas lágrimas ou minhas preocupações.

Ele receberia sua mensagem, sim, como precisava e, então, eu poderia voltar para minha maçante rotina solitária, enquanto ele voltaria para sua vida apaixonada e apaixonante com sua outra mulher.

Como ele nunca me enviou outra palavra desde então, considerei que estava tudo acabado entre nós.

Alguns anos se passaram, desde o dia em que tivemos aquele último contacto e eu já estava acostumada com minha vidinha simples e caseira. Ocupava-me com minhas aventuras na cozinha e, depois, longas horas no ginásio, a tentar compensar o exagero da gula. Que mais podia desejar da vida?

Um domingo de manhã, eu havia decidido tomar um brunch num Café, no centro da cidade. Estava distraída a observar os outros clientes, quando vi um homem alto e loiro entrar no recinto. Os cabelos dourados brilhavam sob a luz do ambiente e seus olhos, de um intenso azul, cruzaram os meus, quando ele sentou à mesa em frente à qual eu estava.

A partir daquela manhã especial de domingo, meu coração restabeleceu-se, lentamente, da ferida anterior e senti que tivera muita sorte em encontrar meu loiro amante, que passou, sempre, a iluminar minha vida com seu bom humor e sua figura tão atraente e masculinamente sexy. Ele mudou-se para a minha casa, umas poucas semanas depois de começarmos a namorar e eu nunca me arrependi daquela decisão. Ele era um homem bom e sempre me tratou com generosidade e respeito, além de ser um amante atencioso e sensato.

Quando a campainha tocou, naquela manhã, enquanto tomávamos o pequeno-almoço, não podia imaginar quem poderia ser. Era difícil acreditar que eu estava, novamente, frente a frente com o homem que me machucara tanto, no passado. Ele estava parado, de pé, na soleira da porta, agindo como se nada tivesse acontecido entre nós...

***

- É outra das minhas contradições tentando fazer sentido... Talvez elas, realmente, não façam nenhum...

- Ao contrário. Elas, realmente, fazem muito sentido para mim. Podes acreditar que sim. Este teu ir e vir, entretanto, não é bom para mim e não acho que seja bom para ti também... Só nos causa mais sofrimento.

- Eu entendo o que dizes, mas podemos tentar mais uma vez. Podemos fazer com que funcione desta vez.

- Tentei-me convencer de que eu deveria ser paciente e compreensiva. Tentei-me convencer que havíamos sido feitos um para o outro, já que encaixávamo-nos tão bem. Agora eu sei que estava errada... e, podes acreditar, esta não é nenhuma das minhas contradições. Eu fui injusta com o homem que sempre foi amável e fiel comigo e lamento minha estupidez, profundamente. Tu não és ele e nunca serás... Tu és, de fato, um homem mimado e sem consideração e não mereces minhas lágrimas, nem meu amor, ou meu carinho.

E aquela foi a última vez que tive contacto com aquele homem ruivo, que embora houvesse sido um amante excepcional, não tinha nenhuma apreciação verdadeira pelos meus sentimentos.

***

Eu tinha que tentar fazer algumas compensações, caso contrário me sentiria culpada pelo resto da minha vida, então entrei em contacto com meu bom amigo e pedi-lhe que me viesse encontrar, para uma conversa, em um determinado Café, no centro da cidade. Pelo tom de sua voz, eu podia sentir que ele ainda estava incerto e chateado, mas eu insisti e ele, finalmente, desistiu e aceitou.

Eu estava sentada no mesmo lugar que nos vimos pela primeira vez. Quando entrou, todo esbelto e bonito, lembrei da mesma sensação que tive na primeira vez. As borboletas bateram asas em meu estômago, mas, desta vez, por uma razão completamente diferente. Eu estava extremamente ansiosa.

Ele caminhou na minha direcção, com passos firmes, e encontrou seu caminho, assim que me viu sentada, mas não sorriu. Fiquei ainda mais apreensiva do que antes.

- Como tens estado?

- Estou bem. Meu trabalho absorve mais do meu tempo do que eu preciso, mas posso lidar bem com isso.

- Certo. Queres um café? Eu, definitivamente, preciso de um.

- Sim. Claro. Vou chamar o empregado.

Sem intimidade. Sem sorrisos. Sem esperança. Mas eu ainda tinha que fazer um esforço extra. Não estava conformada em perder, sem tentar, pelo menos, uma vez mais. O rapaz trouxe nossos cafés e nós bebemos, em silêncio. Para duas pessoas que costumavam ser amantes, aquilo era bastante estranho. Eu decidi que tinha que quebrar o silêncio, pelo bem da minha sanidade.

- Vamos ser justos um com o outro. Precisamos resolver isso, ou então...

- Não. Não há mais nada para resolver. O tempo de justiça e paciência já se foi. Agora é muito tarde... É realmente muito tarde para nós.

Daquela vez, quem ficou sem palavras, fui eu. Ele havia contido sua decepção e raiva por um tempo demasiadamente longo e doloroso. Era o momento e a ocasião certa para expressar o que ainda se passava pelo seu coração, antes tão terno e paciente. Eu tinha que dar, ao homem, a hipótese de falar, o mais livremente possível. E ele o fez. Ouvi no silêncio mais difícil que eu, alguma vez, tivera de suportar.

Ele estava no seu direito de dizer o que tinha guardado em sua mente, por tanto tempo e eu tive que beber e digerir suas palavras, como um remédio muito amargo. Eu simplesmente não sabia se aquilo me proporcionaria alguma cura, entretanto.

Meus sentimentos e emoções estavam destroçados e espalhados por todo o lugar. Eu me senti como se fosse sufocar. Um nó na garganta impedia-me de respirar. Precisava de ar, com muita urgência. Pedi a conta, paguei e levantei-me, indo directo para a porta. Ele me seguiu, em silêncio.

Enquanto caminhávamos para a praia, sentia-me tão triste, que não podia ver, nem pensar com clareza. O dia estava pesado, assim como meu coração e minha alma. Sobre nossas cabeças, as nuvens cinzentas e escuras anunciavam o mau tempo, para muito breve.

Ficamos lado a lado, por um longo tempo, observando o mar a ir e vir, naquele movimento monótono e constante. Minha mente estava vazia, ou totalmente confusa... Eu já nem sabia o que pensar. Sentia, somente, uma tristeza imensa, tentando engolir-me, como se fosse um gigantesco buraco negro.

Ele não disse nada o tempo todo, mantendo seu olhar na distância, ou em um ponto além do horizonte.

Eu me virei um pouco, para poder olhar melhor o rosto do homem, que eu ainda amava tanto. Ele parecia ter a mente e o corpo tão vazios e distantes dali. Perguntei-me se ainda poderia trazê-lo de volta daquela terra de decepção, onde se encontrava totalmente imerso.

Achei que precisava fazer alguma coisa, como minha última hipótese e, então, num arrojo desesperado, beijei-lhe num dos ombros, apoiando as minhas mãos em seus braços e tentando mostrar-lhe que ainda havia muito carinho e amor em mim, mas ele, somente, estremeceu um pouco e, então, ficou tenso, imediatamente.

Foi quando eu senti que ia ser difícil engolir meu orgulho e não chorar. Tentei manter-me plácida, para poder afastar-me dele, sem dizer nada. Já não havia nada a dizer. Já não havia mais nada nele, que pudesse ser meu, outra vez.

Ele nunca virou-se para me olhar partir, daquela forma, da vida dele, nunca disse nada, nem tentou impedir-me de ir embora. Aqueles braços e peito, onde antes eu me sentia tão segura e abrigada num abraço, já não estavam mais lá, para me proteger ou segurar.

O homem que eu tanto amei, já não podia confiar em mim e eu sabia que nunca poderia haver qualquer relacionamento saudável, se não houvesse confiança. O nosso tempo havia-se acabado e, infelizmente, tive que aceitar que fora somente por minha culpa. Eu tinha que aprender a viver com aquilo, para o resto da minha vida.

Não me virei, enquanto caminhava de volta para o carro. Era hora de encarar a realidade e afastar-me, enquanto ainda havia um fino vestígio de orgulho em mim. Eu teria que enfrentar a solidão, como meu único companheiro, novamente.

A praia pareceu-me um imenso deserto. Por trás das minhas costas eu ouvi o ribombar dos trovões e os clarões dos relâmpagos, e percebi o que vinha logo a seguir...

Em segundos, a tempestade começou e eu não fui totalmente surpreendida por um repentino banho de água fria, que jorrava, sem piedade, sobre minha cabeça e meu corpo, encharcando minhas roupas e causando-me uma inundação súbita e incontrolável, vindo dos meus olhos. Não senti nenhuma vergonha por chorar, deixando as gotas de chuva misturarem com o meu choro. Quão clichê era chorar na chuva, mas não estava preocupada com o quão comum ou quão idiota podia parecer... Também estava chovendo dentro de mim... torrencialmente...

Eu não tive vontade de correr. Só queria que a chuva lavasse minha dor, por um momento... e foi o que aconteceu... por um segundo, ou dois... Depois, a aflição multiplicou-se exponencialmente e eu solucei, alto, como uma criança abandonada…

No meu coração, eu sabia que nunca mais tornaríamos a nos ver, depois daquele dia tão triste e tempestuoso... e eu estava certa...


sábado, 15 de julho de 2017

Contradições (Parte 1 de 2)


- Estás acordada?

- Mmm... não... na verdade, não...

Ele riu.

- Esse sorrisinho me diz que tu estás...

Eu estava acordada, é claro, mas havia ficado com os olhos fechados, enquanto me deliciava com a maneira como ele brincava com os dedos, muito de leve, a descer pelas minhas costas, acariciando-me como se não me quisesse acordar daquele misto de sono e delírio. Eu havia despertado quando ele me beijou os ombros e pescoço, tão suavemente, que parecia o roçar de uma pluma na minha pele. Talvez ele não me quisesse, realmente, acordar... Talvez ele estivesse apenas se divertindo... Talvez estivesse se aproveitando a situação... Talvez eu também estivesse...

Eu me virei um pouco e encarei-o, sorrindo e dando boas-vindas às suas delicadas carícias. Segurei-lhe a mão na minha e beijei seus preciosos dedos.

- Bom dia, madrugador.

- Bom dia, bela adormecida.

Ele descansou a cabeça na palma da mão, olhando-me com um sorriso doce e olhos genuinamente amorosos. Pensei comigo mesma: "que maneira adorável de acordar".

Ele cingiu meu corpo com os braços e puxou-me para mais perto do peito, com as pernas entrelaçadas nas minhas. Descansei minha cabeça naqueles suaves pelos dourados e fechei os olhos, ouvindo o ritmo das batidas de seu coração, como uma suave percussão em meus ouvidos. Ele beijou o topo da minha cabeça e sussurrou.

- Gosto tanto de ti…

Gemi baixinho e aninhei-me um pouco mais em seu abraço, quase ronronando, como uma gata feliz, numa cama aconchegante e fofa. Não senti vontade de abrir os olhos novamente... e tornei a adormecer.

Quando acordei, ele não estava por perto. Ouvi o som de louça e talheres na cozinha e pensei que ele deveria ter esperado muito tempo que eu acordasse e decidiu fazer algo para comer sozinho. O cheiro de café fresco e de alguma outra coisa era extremamente convidativo.

Eu não quis que a bondade daquele homem passasse por não apreciada, então levantei-me e fui para a cozinha, a fim de fazer-lhe companhia, como se aquilo fosse a minha maior intenção.

Ele estava em pé, descalço, tão sublime e bonito, a sorrir, do alto de seus quase dois metros, com uma xícara de café puro e forte na mão. Embora não estivéssemos acostumados a gostar de fazer o café da manhã, ele estava ocupado com uma omelete que cheirava tão bem, que meu estômago reagiu imediatamente. Aquilo certamente serviria bem para uma manhã preguiçosa de sábado.

- Ei…

- Bom dia de novo, doce campo de trigo. O que estás cozinhando?

Ele sorriu para mim. Eu costumava chamá-lo de "campo de trigo" por causa da cor de seus cabelos e pelos. Ele ria disso, satisfeito com a alcunha que eu lhe havia dado. O homem loiro e bem apessoado olhou-me nos olhos e mentiu, sem corar.

- Não estou cozinhando nada de especial. Vamos sentar e comer. Estou com uma fome...

Ainda olhando para ele, eu obedeci, enquanto ele despejou o café quente na minha xícara e serviu-me uma porção daquela omelete perfeita de tomates, queijo e cogumelos. O sabor era simplesmente divino e me fazia lembrar de uma certa ocasião, em algum lugar do meu passado.

***

Já era tarde em uma manhã de um indolente domingo e eu havia decidido comer um brunch, sozinha, em um Café no centro da cidade. Sempre amei o cheiro de café preto forte e aquele estava realmente bom. Como estava morrendo de fome, eu havia decidido pelo prato do dia, para poder ter a minha refeição servida mais rápido. O gosto daquela omelete especial do Menu estava-me saciando com um prazer peculiar.

De onde eu estava, podia ver a clientela atravessando a porta da frente e sendo direcionada para as mesas, pela equipe de serviço. Sentada ao lado da janela, observando as pessoas a entrar, eu tentava não olhar para ninguém muito diretamente.

Um homem, provavelmente lá pelos seus quarenta e poucos anos, atravessou a porta e olhou em volta, tentando encontrar uma mesa vazia. O que chamou minha atenção foi a cor de seus incríveis cabelos loiros brilhantes e sua postura de caminhar. Bem mais alto do que eu, forte e bonito, aquele homem era como um guerreiro vencedor de uma batalha nas terras altas. Eu senti como se o lugar tivesse esvaziado imediatamente e todas as luzes desaparecido na minha frente, exceto pela que estava em cima da sua cabeça.

Quando o garçom o acompanhou, senti-me estranhamente interessada. Em minha mente, eu podia ouvir uma voz, dizendo sem parar e com vontade:

"Por favor, sente-se perto de mim... por favor"...

E foi o que aconteceu. Por algum motivo, ele escolheu uma mesa muito próxima da minha e sentou-se bem na minha frente. Apanhou o menu e fez seu pedido muito rapidamente.

Aquilo pareceu-me um bom sinal. Ele demonstrava ser um homem que sabia muito bem o que queria e era rápido a tomar decisões. Perguntei-me se ele faria isso com todas as outras coisas em sua vida.

Enquanto esperava, ele naturalmente olhou em volta, mostrando apenas um interesse geral nos outros clientes, que estavam acomodados na mesma sala, conversando discretamente e tomando suas refeições. Então, de repente, ele pousou aqueles lindos e radiantes olhos azuis em mim.

Surpreendentemente, o efeito foi absolutamente inesperado. Eu corei imediatamente e tentei voltar a minha atenção para o meu prato e xícara, tentando parecer natural e à vontade. Minhas mãos tremiam e a faca caiu no chão com um barulho alto demais, para os meus ouvidos. Eu sou realmente desajeitada, quando nervosa, então abaixei-me para juntar a faca e já ia chamar o garçom para me trazer uma outra, limpa, quando percebi que o rapaz já vinha a caminho, provavelmente acostumado a lidar com esse tipo de coisas, muitas vezes por dia. Eu lutava para não olhar à mesa bem na minha frente, mas meus olhos me traíram. Ele estava olhando para mim, novamente. Nossos olhos se cruzaram. Meu rosto e orelhas estavam queimando, como se fossem pedaços de carvão em brasa. Tentei evitar seu olhar, mas não consegui.

Então ele sorriu e sussurrou um "olá" claro e distinto, embora nenhum som pudesse ser ouvido de onde eu estava.

‘Meu Deus, o que foi isso? Isso é incrivelmente assustador. Eu não esperava sentir borboletas a se debaterem no meu estômago! ‘

Eu sorri de volta para ele, mas devo ter parecido tão estranhamente fora do lugar, que ele riu. Corei de novo e senti vontade de sumir dali, de tão sem jeito que fiquei.

Fui convenientemente salva pelo garçom, trazendo a refeição e colocando-a na frente dele. Sua atenção de repente se desviou para uma xícara de café preto e para o prato do dia: a omelete especial de tomates, queijo e cogumelos.

Não pude deixar de rir ...

***

- Tu ainda lembras?

- Como eu poderia esquecer? Fiquei em completo transe...

Ele riu. Simplesmente amava o jeito que ele parecia relaxar completamente e parecer tão juvenil, quando ria. Ele costumava me provocar com seus encantadores olhos azuis claros e aquele sorriso aberto, antes de tudo. Perguntei-me como um homem podia ser tão sexy, sem ser abertamente sexual ou indecentemente malicioso. Ele sempre foi tão elegante... tão controlado... tão encantador... tão bom e tão gentil... e ainda assim, tão desejável... tudo isso, no pacote mais adorável que eu pudesse, algum dia, desejar.

Meus pensamentos foram interrompidos pelo som irritante da campainha.

- Quem poderia ser?

***

- O que tu estás fazendo aqui?

- Vais-me convidar para entrar ou não?

- Sim. Claro. Desculpa.

- E quem é esse?

- Um amigo muito caro.

Ele sorriu e estendeu a mão para o meu amigo.

- Sei. Muito prazer em conhecê-lo.

- Igualmente..., mas quem é você?

- Um velho conhecido...

Estava claro, para meu actual companheiro, que apenas um "velho conhecido" não agiria daquela maneira, então olhou para mim, tentando ler as minhas reacções, antes de fazer qualquer movimento.

Era como se o rei esperasse que o peão fizesse sua jogada, para que ele, então, pudesse pensar em uma estratégia para continuar. Mas a rainha não estava ansiosa para deixar o flanco aberto e aquele homem tinha intenções de provar algum ponto, todo seu, por isso eu resolvi tomar a dianteira e dei o primeiro passo.

***

O ar não estava pesado, mas também não era totalmente confortável. Sentada à beira-mar, deixei minha mente vagar até alguns anos antes daquela data, quando o peso da idade era-me tão mais leve e até mais suportável. Aquele rosto costumava ser tão querido e aquele homem tão gentil.

O que nos aconteceu? Onde perdemos a sensação de respeito e bondade entre nós? O que o passado fazia de volta no meu presente? Meu receio era que as intenções não fossem nada boas…

Deixá-lo afastado e longe da minha vida havia sido difícil, na primeira vez, mas agora parecia que alguns fantasmas haviam decidido voltar para me assombrar. E eu que só queria recuperar o meu equilíbrio…

Por enquanto, tratei de tirá-lo de perto do meu parceiro e da minha casa, para que eu pudesse resolver aquela situação, sem envolvimento desnecessário de ambos os lados.

O homem voltou da casa de banho e sentou-se bem na minha frente. Ele ainda adorava sua cerveja gelada, enquanto eu estava acostumada com o vinho verde fresco, no calor do verão. Ele ainda parecia bem, embora seu cabelo ruivo tivesse rareado, evidentemente. Seu rosto estava um pouco mais redondo, mas ainda era bonito e adorável. Seu sorriso era quase o mesmo. Lembrei-me do dia em que me senti atraída por aquelas pequenas curvas nos cantos de seus lábios, quando ele me abriu o sorriso, pela primeira vez. Seus olhos tinham linhas de expressão, marcadas profundamente ao redor deles. Eu observei seu rosto cuidadosamente, estudando seus movimentos e tentando descobrir o que ele queria de mim... desta vez...

- Eu senti tua falta, sabias disso?

- Não. Não sabia. O que queres de mim, agora?

- Não sejas assim. Nós costumávamos ser tão bons juntos. Nós éramos verdadeiros amigos.

- Exatamente. Nós éramos amigos..., mas então tu deixaste a nossa amizade de lado por uma situação, que nem mesmo deixou-me nenhuma margem para lutar.

- E como tu sabes que eu também não lutei?

- Ainda poderíamos ter mantido nossa amizade... Algumas vez pensaste em como foi difícil escrever aquelas coisas, para que tu pudesses ter a tua vida perfeita?

- Tu disseste que nunca tínhamos sido amigos de verdade...

- Pelo bem do teu relacionamento. O que mais eu poderia dizer? Que costumávamos ser grandes amigos, mas, então, já não queríamos mais brincar de sermos amigos de verdade? Por favor! Me poupe!

Ele segurou minha mão. Eu estava tão chateada, que estava tremendo, visivelmente. Ele esperou até eu parar de discutir e disse com uma voz muito baixa:

- Eu realmente senti a tua falta. Foi tão difícil...

Ele parou quando percebeu que eu estava pálida e meus olhos estavam húmidos.

- Eu sinto muito.

- O que tu ainda queres de mim? Tiraste tudo o que eu tinha e agora achas que tudo volta a ser como antes? Voltas, como se nada tivesse acontecido e queres que eu te receba de braços abertos?

- Ela estava grávida. Era nosso bebê que ela iria ter. Eu nunca poderia deixá-la. Tu me conheces.

- Não, eu não te conheço. Eu realmente não tenho a mínima ideia de quem tu, realmente, és.

- É justo.

Ele parou por um tempo e depois falou, como se fosse a coisa mais natural de se dizer.

- Nós já não estamos juntos. Nós nos separamos como pessoas civilizadas, mas não podemos mais viver como um casal. O menino está com ela.

- E ele se parece tanto contigo...

- Como é que tu sabes?

Eu parei. Aquilo não deveria ter acontecido. Corei, imediatamente, e ele percebeu.

- Tu és tão surpreendente. Nunca quis  fazer-te sofrer, mas tenta entender...

Fiquei tão cansada de repente. Lembrei-me de como eu tentei, com todas as minhas forças, entender, aceitar e esquecer, mas nunca consegui fazê-lo. Tentei sufocar todas as coisas que sentia, mas não tinha ideia de que seria tão difícil. Não disse mais nada. Já não havia nada a dizer…

Ele segurou a minha mão nas dele e beijou meus dedos. Tentei libertar-me, mas ele era forte e firme. Virou a minha mão e beijou-me a palma, suavemente e com aparente ternura.

Minha cabeça estava dando voltas...


domingo, 26 de junho de 2016

Acerca de Ana Maria (Parte 2 de 2)


A porta, a bater com mais força que o habitual, deixou meus sentidos em estado de alerta, mas não consegui ouvir mais que os sons tranquilizantes e impessoais do vento e do mar. Estava do lado de fora, a trabalhar na pequena horta que cultivava na parte de trás da casa e não era possível filtrar muito do que se passava lá dentro.

O som do motor do carro foi desaparecendo na distância e sendo sobreposto pelo monocórdio e lânguido marulhar das ondas naquele ir e vir contra as areias da praia. Esperei um pouco e, depois de um tempo, mais ou menos calculado, para não parecer óbvio, entrei.

Ele estava de pé, junto à janela, a olhar para fora e não virou quando eu me aproximei, como seria de esperar.

- Aconteceu alguma coisa?

- Nada importante.

Eu tinha certeza que aquela afirmação não estava nada perto da verdade, mas respeitei a reticência da resposta e deixei-a passar como se não tivesse importância.

- OK. Preciso ir ao mercado. Vens comigo?

Na verdade, eu não precisava de nada que não pudesse esperar, mas queria ter certeza de que estava tudo bem. Como não queria voltar a perguntar diretamente, fingi não dar mais relevância ao caso que merecia, para não parecer invasivo.

- Não. Preciso fazer umas coisas. Mas se lembrares, compra laranjas, que já não temos nenhuma.

- Vou lembrar, claro.

A voz parecia muito baixa e grave. Eu percebi que não me olhou, quando o telefone tocou e ele atendeu. Apressou-se a ir para a varanda, falar com privacidade, o que não surpreendeu-me de todo, mas sentia que alguma coisa havia mudado.

Será que ele não confiava mais em mim, ou estava, tão-somente, a tentar resolver o problema sozinho?

Ainda avistei-o a andar de um lado para o outro, com o telefone ao ouvido e a gesticular nervosamente. Decidi sair e deixá-lo na casa, enquanto ia ao supermercado da aldeia, que ficava a menos de dez minutos dali, de carro. Ambos precisávamos de tempo.

Quando voltei, ele estava a caminhar na praia, com os pés na água, como se a brincar com as ondas, como fazia quando era criança e sempre que precisava pensar. Já era além do fim da tarde e eu decidi que deveria tratar de arranjar algo para jantarmos.

O que nós dois tínhamos em comum, além de muitas outras coisas, era a tendência a ficar sós quando queríamos pensar em algo sério e tomar decisões. Se precisasse conversar, ele sabia que eu estava à mão…

Quando finalmente entrou, eu estava a arranjar a mesa, para jantarmos. Ele parecia drenado de tanto pensar. Não perguntei nada, apenas esperei que falasse, enquanto eu me ocupava com os talheres, os pratos e, também, com as panelas.

- Ela ganhou uma bolsa para estudar… na América… A bolsa é patrocinada por uma grande empresa e há grandes possibilidades de que lhe deem um emprego quando os estudos acabarem.

- É uma oportunidade enorme e incomum…

- É, sim. Mas não é isso que me incomoda.

- Então?…

- Ela disse que precisava de um tempo para concentrar-se nos estudos e carreira. Eu apoio totalmente esta decisão, mas não queria que isto pusesse um fim ao que nós temos. Nenhum argumento foi forte suficiente para convencê-la a mantermos o relacionamento, apesar da distância, entretanto. Isso não é certo, pai.

- Ela tem o direito de optar. É a vida e a carreira dela. Mas hoje em dia, com a tecnologia que temos à mão, é tão mais fácil conversarem e manterem os contactos, mesmo à longa distância…

- Eu sei, pai. E as passagens não são tão inacessíveis assim…

- Pois não. Sempre arranja-se uma promoção ou outra… Vocês brigaram?

- Discutimos por divergir as opiniões em relação a ficarmos em contacto ou não. Ela disse que íamos manter contacto, sempre que lhe fosse possível, mas pediu tempo e espaço e que eu respeitasse a decisão dela…

- É justo.

- Não é. Não é nada justo.

- Dê tempo ao tempo… e à ela… ou nunca terás perdão… As mulheres não gostam que as decisões delas sejam questionadas…

- E se levar tempo demais?

- Vais ter que aceitar e aprender a viver com isso…

Ele soltou um suspiro de impotência… ou desespero. No fundo, sabia o fim que aquela história ia ter, mas negava-se a aceitar o óbvio.

***

Eu fiquei apreensivo com a decisão que ele tomara. Eu jamais faria o mesmo, mesmo porque eu sou teimoso demais para ir contra um “dá-me espaço” daqueles, como ela pediu…

Como os contactos entre eles haviam ficado cada vez mais espaçados, ele resolveu que deveria ir vê-la, na América e fazer-lhe uma surpresa. Achava que quando se vissem, tudo voltaria ao normal.

A falta de notícias desde que viajara, deixava-me com um mau pressentimento…

***

- Oh! Meu Deus!

- Eu tentei avisar-te, mas sabia que não ias ouvir-me… Nem sempre o coração ouve a voz da razão… Nós somos muito parecidos mesmo!

- Pai, eu perdi a cabeça! Isso nunca me aconteceu!

Eu olhei para a expressão de desespero, tão claramente estampada na sua face e esperei. Não havia nada que eu pudesse dizer ou fazer.

- O que faço agora?

- Não fazes nada… já fizeste…

Ele baixou a cabeça e pareceu-me que estava enterrando-se num buraco sem fundo…

Aquela angústia cortava-me a alma, mas ele tinha que bater no fundo, sozinho, para poder levantar-se. Não há nada pior que a decepção, para acabar com nossos sonhos e fazer-nos enxergar a vida com olhos menos míopes e lentes mais grotescamente verdadeiras. A crua realidade é, muitas vezes, mais dura que achamos ter forças para suportar. Viver, enfrentar e conviver com nossos erros é, também, um ato de coragem, sem precedentes. Às vezes, as forças esvaem-se, a vontade de viver vai-se junto, mas é preciso ser muito bravo, para levantar-se.

Ele estava a aprender, da pior maneira e muito cedo, para o meu gosto, a ser um adulto…

Eu não aprovei a decisão dele antes e não apoiava o que ele fez, então.

Fiquei ali, parado, a acompanhá-lo com os olhos, enquanto ele saía pela porta de trás e ia na direção da praia. Sabia que ele precisava daquele momento de solidão… ou muitos momentos daqueles… Seu caminhar parecia o de um velho, de tão pesado e arrastado…

Duas lágrimas desceram, quentes, dos meus olhos, pela face abaixo. Sentia que ele precisava de mim e queria estar lá para ele, mas não podia invadir seu martírio interior, sem que ele me desse permissão para fazê-lo. Por mais que eu quisesse protegê-lo, naquela hora, não seria capaz, sequer, de aliviar uma minúscula gota de sua angústia. Resisti e não fui atrás dele…

De longe, enquanto seguia a silhueta conhecida, a caminhar solitária, na beira do mar, imaginava o tumulto que devia ter criado, quando perdeu a cabeça e a razão e partiu para cima do rapaz que estava com Ana Maria, em atitudes muito mais íntimas que poder-se-ia esperar de um simples amigo.

Ele podia ter agido de maneira mais nobre, mas um coração partido não quer saber de nobreza ou raciocínio lógico. Se não fosse a moça a chamar-lhe à razão e expulsá-lo da esplanada onde estava com o tal “amigo”, ele teria sido preso por assédio e violência… ainda mais na América! 

Foi mesmo irresponsável! 

Mesmo para um rapaz tão centrado como ele sempre havia sido, sentir-se traído, fê-lo perder, completamente, a estribeira... não que ele não tivesse certa dose de razão...

***

- Pai?

- Ahn?

- É sempre assim?

- Assim como, meu filho?

- Dolorido. Dói sempre assim?

- Só quando a gente ama… ou amou… muito… Só quando há muito amor… ou então muita mágoa… é que dói tanto assim…

- Não é muito justo.

- Nunca é!

Ele sentou-se no degrau da varanda, cobriu o rosto com as duas mãos e chorou como uma criança.

Para mim, na verdade, ele ainda era uma criança… a minha criança, aprendendo a viver com as injustas agruras da vida. Por mais que eu tentasse consolá-lo, não iria conseguir minimizar o que ele experimentava naquele momento.

Infelizmente, quando é assim, a dor tem que ser sentida.

Ele nunca mais ia ser o mesmo. Aquela agonia ia, invariavelmente, passar, com o tempo, com outro amor, com outras visões do mundo, mas ia deixar suas cicatrizes, profunda e indelevelmente tatuadas na memória dele. Era como um batismo de fogo e aflição a marcar-lhe, para sempre, mas, também, a amadurecer-lhe os sentimentos e a ensinar-lhe a encarar a vida sob vários ângulos diferentes.

Eu daria minha alma para que ele nunca tivesse que sofrer, mas não tinha qualquer poder sobre aquilo, por isso apenas sentei-me ao seu lado, passei o braço por sobre seu ombro e puxei-o para perto de mim.

Ele não ofereceu resistência, nem mostrou-se envergonhado ao abrir sua fragilidade diante do pai, chorando daquele jeito.

Abraçado a ele, não me contive e chorei também…


***

segunda-feira, 25 de abril de 2016

Cantigas de Roda (Parte 3 - Epílogo)


Ai, bota aqui
Ai, bota ali o seu pezinho
O seu pezinho bem juntinho com o meu
E depois não vá dizer
Que você já me esqueceu…

- Dança comigo. São dois pra lá e dois pra cá…

- Eu ainda sei dançar bolero!

Não disse aquilo com irritação, nem impaciência, mas com convicção. Eu sabia os passos de poucas danças de salão, mas bolero era fácil demais… e eu lembrava…

Estávamos casados há quase oito anos e os últimos dois haviam sido, mesmo, uma derrocada completa. Os poucos momentos que ainda partilhávamos, tanto por estarmos muito envolvidos nos nossos projetos profissionais, quanto por arranjarmos desculpas para não estarmos mais juntos que o necessário, eram, quase sempre, um grande exercício de tolerância e paciência.

Era assim que sentia naquela ocasião…

Sabíamos que não havia futuro no nosso relacionamento, o que era, por um lado, bastante triste, mas também libertador, ao mesmo tempo.

Ela, uma educadora promissora e extremamente ambiciosa, com ideias avançadas, estava mais ligada às decisões profissionais dos adolescentes, com programas que mais enquadravam-se ao estilo militar, enquanto eu desenvolvia um programa experimental para crianças, num estilo mais natural e quase ingénuo.

Eu não gostava das ideias, nem da quase insaciável sede de status e posses que ela tinha, mas nossos projetos eram independentes e iam em direções muito diferentes, praticamente opostas, por isso um não interferia nos projetos do outro, mesmo que discordássemos dos métodos que um e outro utilizávamos. Com o tempo, aquilo que fez crescer a atração entre nós - nossas tão evidentes diferenças - também nos afastou, tornando a convivência praticamente insuportável.

Aquele foi nosso último bolero.

***

Marcha soldado, cabeça de papel
Se não marchar direito, vai preso
No quartel…

As crianças falaram, por dias, a respeito do acampamento e do que viram por lá. Imaginei que, em suas casas, as famílias tiveram, também, que partilhar a excitação dos alunos e ouvir as histórias com atenção. Alguns pais comentaram que foi difícil aquietarem os filhos, mas estavam bastante satisfeitos com o sucesso do empreendimento. As crianças passaram a semana a desenhar o que viram durante a experiência. O riacho, a montanha, os animaizinhos, as tendas, os coleguinhas, a fogueira… muitos detalhes do que eles experimentaram viraram um grande painel artístico, exposto nas paredes das salas de aula. 

Os dois rapazes, entretanto, desenharam soldados e jipes do exército, o que me preocupou um pouco, pois foi o que pareceu havê-los marcado bastante. Os dois vieram conversar comigo, no intervalo do almoço. Foi justamente o tema da conversa que me causou uma inquietação maior que os desenhos dos mesmos.

***

O anel que tu me deste
Era vidro e se quebrou
O amor que tu me tinhas
Era pouco e se acabou…

- O que aconteceu com o que sentíamos um pelo outro? Por que nos afastamos tanto?

- Não foi de uma hora para a outra. Foi um longo e doloroso processo, apesar das tentativas para que desse certo.

- O que houve com o que havia de bom entre nós? Aquela nossa amizade… o amor…

- Que amor? Nunca houve amor entre nós. Não se ama quem se é forçado a aceitar na casa ou na vida, por circunstâncias que não por opção espontânea. Sabes por que eu nunca te disse: eu te amo? Porque nunca senti que te amasse. Mesmo assim eu lutei pelo nosso relacionamento. Até tentei amar-te, mas tu derrubaste tudo, quando eu menos esperava e tão mais cedo que eu poderia aceitar. Aquela linha muito ténue que havia entre o amor e o ódio partiu-se, agora, de vez. Eu já não me importo contigo ou com tuas coisas, tua vida ou teus problemas. Na verdade, o que sinto por ti é mais um misto de desprezo e ojeriza, como nunca senti por ninguém…

Ela estava sentada na cama, com o computador aberto no colo e eu de pé, encostado à soleira da porta do quarto. Ao ouvir aquelas palavras, que estiveram presas na minha garganta por tanto tempo, ficou vermelha de raiva e chamou-me de covarde, por não haver levantado a discussão antes. Eu, como de tantas outras vezes antes, desliguei a parte do cérebro que se importava com a irritação… ou qualquer coisa que viesse dela… e não disse mais nada. Não valia a pena discutir, nem mesmo gastar meu tempo com qualquer tipo de preocupação ou empatia. Estava tudo acabado, mesmo, entre nós.

Virei as costas e saí, apesar de ouvir seus protestos, mas já não ia fazer diferença nenhuma. Abri a porta, entrei no carro e saí. Não voltei nunca mais…

***

- Como assim, soldados? Nosso projeto não passa por isso e seria um desperdício enorme do investimento que fizemos até agora. Mas como vocês estão quase em idade de mudar de escola, talvez seja interessante conversar com a orientadora pedagógica e avaliar as afinidades de vocês. Pode ser somente um interesse momentâneo…

- Não é só momentâneo. Nós queremos, mesmo, ser soldados…

- Vou encaminhar os dois, em separado, para a orientadora pedagógica, que é psicóloga, então… Ela saberá como avaliar as vocações e os interesses de vocês… e bem melhor que eu…

Os dois meninos sorriram. Mostravam-se satisfeitos com aquela decisão. Pareciam mesmo decididos a ir adiante com aquela ideia. Eu só rezava para que a minha ex-mulher não aparecesse por lá tão cedo, nem soubesse do tipo de interesses que começava a nascer nas cabeças de nossos alunos, devido a um incidente gerado durante uma inocente viagem de lazer.

A assustadora ideia de deixá-la aplicar seus loucos métodos de treinamento militar, em crianças tão jovens, não era pior que tê-la a vangloriar-se de que estava certa e que ela sabia o tempo todo que eu era apenas um ingénuo pedagogo, completamente fora do meu tempo… e dos processos que envolviam a educação moderna…

Será que eu havia sido tão ingénuo e estivera, mesmo, errado, o tempo todo?

***

Se eu tirasse uma pedra olê, olê, olá
Se eu tirasse uma pedra, olê, seus cavaleiros…
Uma pedra não faz mal, olê, olê, olá
Uma pedra não faz mal, olê seus cavaleiros…
Se eu tirasse duas pedras, olê, olê, olá…

- Acho que precisamos conversar. É bastante urgente!

- É sobre os meninos?

- Sim. Melhor vires à minha sala.

A orientadora pedagógica confirmou, em pouco tempo de conversa, minhas suspeitas e meus receios. Por mais que eu quisesse negar, apesar de haver dado o melhor de mim no projeto, sentia como se estivesse a perder uma batalha. Pelo menos eu deveria ficar feliz por saber que aqueles dois rapazes tinham as mentes livres de medos… o que poderia ser um grande benefício para o treinamento no exército, por torna-los destemidos e curiosos, mas não achava que era justo, depois de todo o investimento na educação deles, que o potencial criativo dos mesmos fosse usado para fins diferentes da intenção inicial.

Eu tinha que deixá-los ir adiante em suas vidas, de todo jeito, após o período em nossa escola. O que acontecesse com eles, depois que estivessem em outro estabelecimento de ensino, não era nem minha responsabilidade, nem tampouco tinha autoridade para influenciar ou mudar qualquer coisa. Sabia que quando tivessem que fazer suas decisões, em termos de carreiras, os alunos iam optar por aquelas que lhes pudessem dar um futuro promissor e sustentável.

O primeiro grupo a estar pronto para sair, formava-se naquele ano, dentro de poucos meses. Será que duas das pedras, naquela muralha de educação, comprometeriam a solidez da estrutura? Estariam eles preparados para enfrentar a decisão que haviam tomado, embora ainda muito cedo, em suas vidas?

Resolvemos que faríamos uma pequena cerimónia de formatura, para celebrar o sucesso do projeto e para encaminhá-los a outros tipos de vida escolar mais padronizados com a estrutura educacional vigente no país.

No dia da formatura daquela primeira turma, haviam muitos convidados, entre pais e outros educadores de outros colégios. As crianças estavam excitadas e alvoroçadas, como um bando de pardais. O programa havia sido elogiado pela maioria e eu estava, também, ansioso e irrequieto, como se fosse um dos alunos. Tinha os músculos do pescoço bastante tensos e temia uma surpresa desagradável…

***

Sereno eu caio, eu caio
Sereno deixai cair
Sereno da madrugada não deixou meu bem dormir
Minha vida ai ai ai
É um barquinho ai ai ai
Que navega sem leme e sem luz.
Quem me dera ai ai ai
Que eu tivesse ai ai ai
O farol dos teus olhos azuis.

- Eu sabia que tu ias fazer aquilo. Minhas suspeitas estavam certas e meu instinto avisou-me, mas não tinha como impedir-te de fazer uma das tuas, tinha?

- Claro que não! Foi uma pequena intervenção, homem. O melhor para aqueles meninos é o programa que eu desenvolvi. Eles são soldados, desde o berço…

- Tu estás cada dia mais louca!

- Deixa de te melindrares tanto. Parece que ainda estamos casados... Isso não tem nada a ver contigo. Ainda tens que aprender a separar as coisas… de uma vez por todas!

- Tens razão. Eu nunca soube separar bem as coisas. Devia ter aprendido a ler mais sabiamente os sinais, desde há muito tempo atrás. Eu cheguei a ser envolvido na tua engenhosa trama, que me levou à uma série de reveses, sem dar-me conta daquilo. Mas, no fundo e no final, mesmo tendo sido lesado na minha saúde e na minha vida, eu sobrevivi, levantei-me, lutei e venci… por minha conta e custo. Se houve uma coisa que me deu forças, foi a certeza que um dia eu ia poder olhar-te de frente e saber que não sentia mais nada por ti. Nada mesmo. Nenhuma pena, carinho ou interesse em saber como estás, nem mesmo qualquer vestígio de ressentimentos. Um dia desejei que alguém te fizesse passar pelo que eu passei e sentir o que eu senti, não por vingança, mas para saberes como é doloroso… mas, hoje, isso não tem a menor importância. Na verdade, nunca precisei disso para tornar-me quem eu sou e isso dá-me uma satisfação enorme. Maior que qualquer coisa que tu possas compreender ou imaginar e nem espero que o faças…

Ela soltou um palavrão... dos feios... virou-se e saiu. Já havia feito o mal que queria e não tinha paciência para ouvir minhas verdades.

Minha vida, desde que nos separamos, havia-se tornado muito mais simples e minhas ambições mais voltadas à educação, à arte e à criatividade, por isso o sucesso do meu projeto era uma questão de extrema importância para mim. Era como um filho que eu houvesse imaginado, concebido e ao qual dera uma bela vida. Eu só queria que crescesse e fosse bem-sucedido, para o meu bem e o daquelas crianças.

Sim, eu sabia que haveriam certas perdas, durante o percurso, mas essas sempre existiriam. Tudo era parte de um processo complexo de educação e de vida.

Do ponto de vista dos relacionamentos, o que eu precisava era manter-me sozinho e em paz. Meu trabalho absorvia boa parte dos meus dias e, o restante do tempo, tinha um projeto pessoal mais ambicioso, mas sem pressa de concluir: um livro de contos, com ilustrações em aguarelas e desenhos a carvão e sépia, feitos por mim mesmo.

***

Ciranda, cirandinha,
Vamos todos cirandar
Vamos dar a meia volta,
Volta e meia vamos dar…

Para os dois meninos, fascinados pelo exército, o projeto funcionou durante uns tempos. Os pais acabaram mudando para uma região muito próxima daquela onde acampamos uma única vez, afastando-os do treinamento para a vida militar, pelo menos até que vida os colocou, inusitadamente, frente a frente com uma situação bem mais crítica.

Embora a família tenha mudado o rumo das vidas deles, o destino tratou de alinhá-los, novamente, com perversidade de mestre, levando consigo o que lhes era mais caro e jogando-os de volta nos braços do exército… só que para o resto de suas vidas!

Uma base militar, secreta, para confirmar as suspeitas deles, havia, mesmo, sido construída no topo da montanha…

A descoberta da mesma foi-lhes tanto o azar, quanto a sorte deles…


domingo, 26 de abril de 2015

Um Pacto (In Pactus)


Por favor, não te apaixones por mim. Tu prometeste que não irias...

- Eu sei. Não te preocupes. Eu sei muito bem onde estou pisando. Já passei por isso antes e não vou-me apaixonar outra vez.

- OK. Lembra que tu prometeste.

- Sim. Eu sei. Podes deixar... Quando vens de novo? Já faz algum tempo, desde a última vez.

- Talvez na próxima semana. As coisas não estão fáceis do meu lado. A esposa está exigindo atenção. Anda meio desconfiada, mas eu estou apenas sobrecarregado de trabalho e sentindo-me muito cansado.

- Tu precisas é de uma massagem, um forte abraço e descansar tua cabeça no meu colo. Eu afago-te até que durmas em meus braços, relaxado e feliz.

- Soa como o paraíso, mas longe de ser viável em um curto espaço de tempo. Eu não posso escorregar agora ou posso perder tudo. Precisamos ter paciência.

Eu desisti de discutir. Não havia nada que eu pudesse fazer, de qualquer maneira. Desejei que a vida fosse diferente. Desejei que eu fosse diferente. Eu queria que ele fosse diferente. Mas a vida não é feita de desejos...

- OK. Leva o tempo que precisares, descansa um pouco... ou descansa muito... Quando estiveres pronto, novamente, por favor, me avise.

- OK. Adeus por agora.

- Até mais, meu querido. Vou sentir tua falta.

- Dorme bem.

- Tu também.

A conversa fora bastante superficial, simples e quase impessoal. Ambos estávamos tendo muito cuidado, tentando evitar o inevitável. Ambos acreditávamos que era fácil manter nossas emoções sob controlo. Homens casados ​​são, realmente, muito complicados.

Fechei a sessão, desliguei o computador e voltei à minha vida, como se fosse a coisa mais normal do mundo. Nós costumávamos conversar on-line todos os dias, à mesma hora, dizendo quase as mesmas coisas e prometendo nunca nos apaixonarmos ou teríamos que deixar de vermo-nos, para o bem de nossas sanidades. Ele era um homem casado com mulher e filhos. Um par deles. Eu havia sobrevivido a um divórcio e queria continuar assim, sem mais ninguém. Não havia nada de novo naquilo.

A maioria das pessoas que eu conhecia também estavam divorciadas e gostariam de permanecer naquela condição, de qualquer maneira, durante o tempo mais longo que pudessem. Alguns deles, no entanto, tinham medo de envelhecer sozinhos.

Eu tinha a minha vida, meu passado, minhas crenças sobre o amor, relacionamentos e solidão. E eu gostava tanto da minha vida, quanto da minha liberdade.

Estar com ele era como ter alguém e não ter nada, nem ninguém, ao mesmo tempo. Mas eu não tinha medo de envelhecer, nem de solidão... absolutamente...

Decidi preparar algo para comer, descansar um pouco, talvez assistir um pouco de TV e ir para a cama cedo. Tentei não pensar sobre a conversa que tivera, por mais tempo que o necessário. Tendo minha mente e as mãos ocupadas, por algum tempo, seria perfeito para o momento.

O gato entrou na cozinha, sentou-se no tapete azul e ficou à espera de seu jantar e eu comecei a cozinhar um macarrão com molho de cogumelos, logo que o bichano foi servido. Meu único e verdadeiro companheiro estava OK com sua pequena porção de atum para o jantar e mostrou sua satisfação, esfregando a cabeça nas minhas pernas, assim que terminou. Brinquei com ele, afaguei-lhe a cabeça e voltei a cozinhar, depois de lavar minhas mãos pela milionésima vez, naquela noite.

Fui para a cama como planejado, após a refeição simples de massa, acompanhada de um bom e encorpado vinho tinto e tentei relaxar, esvaziando a mente, antes de adormecer.

Sonhei que estava em seus braços. Seus lábios eram quentes na minha fronte, minhas pálpebras, meu rosto e meus lábios. Seu gosto era doce e amargo ao mesmo tempo. Ele sempre havia sido doce, mas o acordo que fizemos trouxe uma espécie de amargura na minha alma, que não era novidade para mim. Ele estava repetindo aquelas palavras, que eu já não podia ouvir mais, mas, infelizmente, só se pode desejar que as coisas fossem diferentes. A verdade é, às vezes, muito difícil de suportar.

"Por favor, não te apaixones por mim."

Quão abstrato e estúpido um pacto daqueles poderia ser? Quão imprevisível pode ser um coração, antes que se perceba que já é tarde demais, para voltar atrás?

E eu conhecia meu coração muito bem. Eu poderia dizer todas as palavras e fazer todas as promessas e ainda permanecer longe de problemas, se eu quisesse, mas era isso que eu realmente queria? Se eu não sentisse aquela paixão, como eu poderia estar inteiramente presente naqueles encontros íntimos?

Eu adorava seu cheiro, seu sabor, seu toque e sua abertura em receber minhas carícias. Adorava a forma como ele sentia prazer com a minha presença; do jeito que ele dizia que era todo meu e eu tinha pleno acesso a tudo o que eu quisesse; a maneira que dava o seu corpo para mim e a forma como ele usava o meu corpo para seu próprio prazer e para o meu, também, é claro. Gostava de como ele me olhava no fundo dos olhos e como ele fechava as pálpebras ao ser tocado por meus dedos; o modo como ele segurava meu corpo perto do seu, enredava as pernas nas minhas, deixando a impressão de que nunca iriamos separar-nos novamente; a maneira como ele me beijava com paixão genuína e, também, do jeito que ele me amava.

Sim. A maneira como ele fazia amor comigo. Aquilo era mais do que o contato apenas físico, eu poderia garantir. Eu já tivera outros homens antes dele e ninguém tinha-me deleitado com tal paixão. Ele era apaixonado, gentil, atencioso e presente. Mas não era meu.

Ou, melhor dizendo: ele era. Por alguns minutos apenas, por vezes, um par de horas, ele era inteira e abertamente meu, como ninguém havia sido antes.

Eu tinha orgulho de suas realizações e de sua vida. Ele me dissera, certa vez, que eu era a única pessoa que sabia tudo sobre sua vida e seus desejos secretos. A maioria deles eram tão secretos, que quase escondia de si mesmo, mas, no entanto, haviam sido compartilhados comigo.

Que tipo de homem faria isso, sem ter uma confiança cega na pessoa com quem estava?

- Quando tu pensas em mim, no que tu pensas?

Ele corou. Não era bom em falar sobre seus pensamentos ou sentimentos, especialmente quando se referia ao nosso não-chamado "relacionamento".

Eu ri. Como ele podia ser tão docemente teimoso?

Ao dizer nada e corando assim, ele estava-me dizendo tudo, sem pronunciar uma única palavra. Ele não admitia o óbvio, nem aceitava a verdade. O que estava acontecendo entre nós era algo a ser seriamente considerado, mas ele nunca diria nada em alta voz. No fundo, entretanto, sabíamos... e muito bem... o que havia entre nós.

O que são as palavras, afinal? Por que uma pessoa precisa dizer o que acontece, em alta voz, quando os sentimentos não precisam de vocábulos, para serem, expressamente, expressados? Eu podia ver em seus olhos. Eu podia sentir em seu corpo. Eu podia ler seus pensamentos, só de olhar para ele e perceber a expressão terna em seu bonito rosto. Sua boca nunca iria pronunciar as palavras, mas eu podia ouvi-las sendo gritadas por seus doces olhos.

Eu olhei para ele e pensei: ‘tu não precisas admitir, mas eu sei que tu és, de fato, o meu homem’.

- E tu? Em que tu pensas, quando pensas em mim?

- Eu penso em anjos e percebo quão forte tu és. Eu gosto tanto de ti...

- Tu estás caindo em tentação e apaixonando-te, embora tenhas prometido que não irias. O que vais fazer agora?

- Eu não vou fazer nada. Não há nada que eu possa fazer, mas deixar minhas emoções correrem livres. Eu gosto muito de ti e eu não quero perder isso. És importante... muito importante para mim...

- Eu sei. Eu sei muito bem, mas tu prometeste...

Beijei seus lábios. Ele, então, respondeu-me com ternura, abrindo suas enormes asas e segurando-me em um caloroso abraço.

- Deixe a vida guiar-nos, por favor. Não lute contra isso, ou então vamos perder o melhor de nós...

- Eu não vou lutar... não vou lutar...

Acordei no meio da noite, sentindo-me feliz, sob a calorosa proteção de um anjo, que não existia de fato. Ele não era nada mais que uma doce ideia. Era o meu conceito de perfeição. Não era impecável fisicamente, embora eu gostasse de olhar para ele o tempo todo, mas era perfeito como um homem com quem se podia envelhecer, exceto que ele nunca seria meu, afinal... Nem eu seria dele, além da condição de estarmos completamente ligados por aqueles breves momentos, em que o mundo poderia parar de girar ao nosso redor e todos os problemas de nossas vidas complicadas nunca iriam passar da porta do quarto.

Não consegui dormir de novo até que o sol da manhã atingiu a janela do quarto e abriu caminho através das cortinas, dizendo que era hora de levantar-me e voltar à vida normal.

Os dias passavam muito lentamente e de forma muito aborrecida quando não nos víamos. Alguns dias depois, quando a campainha tocou, finalmente, meu corpo e mente estavam prontos para recebê-lo.

Quando abri a porta e vi-o, ali na minha frente, com seu sorriso irresistível, meu coração deu uma batida em falso. Ele não disse nada, até que eu fechei a porta atrás de suas costas e abracei-o com força, beijando-lhe os lábios.

- Senti tua falta.

- Eu também…

Nós tivemos uma das mais notáveis noites, desde que começamos a sair juntos. Ele foi todo meu e eu dele. Não me lembro onde nossas roupas caíram, a caminho do quarto. Não me lembro o que aconteceu entre a porta de entrada e minha cama. Eu só lembro que estávamos tão emaranhados, que éramos quase um corpo só.

Eu tinha necessidade física dele. Aspirei o seu perfume viril, tentando mantê-lo na minha pele e memória. Não fechei meus olhos porque eu queria mantê-lo no meu campo de visão. Eu queria apreciar a sua beleza e perfeição. Toquei cada centímetro de sua pele nua, com cuidado e suavidade. Ele respondeu a cada toque dos meus dedos no corpo no dele. Nunca disse uma palavra. Apenas respirou fundo e gemeu baixinho.

Em seguida, beijou-me com uma intensidade tão grande, que parecia ter fome. Ele tocou-me os lábios e o corpo com imensa paixão e desejo. Eu sentia-me como se um anjo de asas muito largas estivesse conduzindo-me ao céu. Em seguida, fizemos amor. Eu tinha certeza que aquilo não era apenas luxúria ou sexo: estava muito mais perto do sentido real de amor. Ele era completamente meu, assim como eu era dele.

- Eu não consigo deixar de pensar em ti o tempo todo. Achas isso normal? Eu fico pensando quando e como eu posso estar contigo... Se isto não for um sinal de paixão, não sei o que possa ser. Eu não tenho nenhuma dúvida sobre isso tudo e morro de medo do que sinto.

- Como é que algo tão bom e prazeroso possa causar-te algum tipo de medo? Não valorizas o nosso tempo juntos?

- Aí é que está. Eu aprecio muito e até acho que estou irremediavelmente apaixonado por ti, mas isso não está certo. Vou acabar machucando-te a ti e às outras pessoas, que não merecem, e isso não é justo, nem para ti, nem para elas. Temos que parar com isso, urgentemente!

- Meu amigo, se é isso que tu pensas e estás a deixar-me, por medo de machucar-me, não o faças... Agora, se o facto de estares apaixonado por mim, prejudica a vida de outras pessoas, então deves ir-te agora, antes que seja tarde demais.

Ele não disse nada, quando levantou-se e começou a vestir-se, saindo em seguida, sem dizer uma única palavra a mais.

Era estranho ver partir aquele homem, que deu-me seu tudo, naquela noite e tirou tudo de mim, apenas alguns minutos depois. Eu senti-me como se estivesse afogando em um mar de desesperança. Deixar-me assim, por estar muito envolvido comigo, além de ser um peso demasiado pesado para suportar, era também de uma injustiça e crueldade inconcebíveis.

Depois daquele último encontro, fomo-nos separando cada vez mais. Nossos contatos escassearam, exceto pelas mensagens de "bom dia", que tornaram-se cada vez menos frequentes, pois ele foi deixando de respondê-las, aos poucos, até deixá-las no vazio, completamente. Eu sabia que ele estava evitando-me daquela forma, para que pudesse ter certeza que eu poderia viver longe dele. 

Ele estava errado, mas não havia nada que eu pudesse fazer para convencê-lo do contrário. Ele deixava-me porque estava preocupado em envolver-se mais do que estávamos. Eu nunca temi nada daquilo. Deixou-me porque me amou… pelo menos foi o que disse... Eu tinha certeza, no meu coração, que ele havia sido sincero...

Os dias passaram uns após os outros, em sua sequência impiedosa e aborrecida. Algum tempo depois, quando passeava pelo Shopping Center, eu o vi, parado em frente à uma loja, olhando para uma moderna jaqueta de couro, exposta na montra. Meu primeiro impulso foi de correr até onde ele estava e surpreendê-lo, abraçando-o e beijando-o, na frente da multidão, que passava à nossa volta, absolutamente incógnita.

Comecei a andar em sua direção, mas parei, sentindo algo estranho, quando uma mulher, de repente, aproximou-se e beijou-o no pescoço. Um rapaz e uma menina, pré-adolescentes, também acercaram-se do casal e eles foram-se embora, andando pelos corredores, de mãos dadas e sorrindo um para o outro. Ele parecia estar bastante feliz.

Senti uma estranha pontada de dor, mas reconheci que ele, afinal, merecia aquela sua vida. Se ele estava feliz, eu deveria estar feliz também. Voltei-me, sentindo um peso enorme na alma, sabendo que ele não era, nem seria meu. Nunca havia sido, de qualquer maneira e eu tinha que viver com aquilo... infelizmente...

Naquele momento, o que eu precisava era de um café bem forte e quente… e com urgência... As coisas, na minha vida, teriam que, paulatinamente, voltar ao normal e eu sabia disso.

Só, novamente e como já era de costume, eu tinha que continuar a existir, embora sentisse que estava, lentamente, afogando-me em grande mágoa e decepção.

Não havia nada de novo ou surpreendente naqueles últimos acontecimentos, entretanto. Não era nenhuma novidade que minha existência continuasse a ser, assim, solitariamente desajeitada…