A grande onda de calor veio, de repente, como se fosse por mágica… ou por maldição. Para os mais desavisados, nem as lojas estavam preparadas para suprir a repentina demanda de ventoinhas ou aparelhos de ar condicionado.
Deitados no chão da sala, com as persianas baixas e as luzes apagadas, em frente à única ventoinha que havia sobrado na loja e que teria de servir, para o momento, ficamos quietos, lado a lado, como se soubéssemos que, qualquer movimento desnecessário, só nos iria trazer mais desconforto.
Havia, por sugestão da doutora, borrifado sua barriga e peito com água fria, para tentar refrescá-lo um pouco. Ele, assim como eu, já não sentia apetite algum… apenas sede; muita sede.
Menos de uma semana depois, quando as temperaturas começaram a voltar ao normal, ainda não havíamos recuperado a rotina. Apenas nos forçávamos a comer o mínimo e continuávamos a ingerir muito líquido. Ele, porém, começou a enfraquecer e perder peso. Preocupado, voltei à clínica e o submetemos a uma série de exames e análises mais minuciosos.
Os resultados não foram animadores. Os rins estavam gravemente afetados. Parecia sentir dor nas articulações das patas traseiras também. A medicação, especialmente preparada, iria apenas sustentar seu corpinho, que ia definhando aos poucos e que preocupava-me sobremaneira. Meu grande amigo e companheiro, de tantas aventuras e alegrias, havia adoecido gravemente e eu não sabia o que fazer.
Aquele gato ativo e superinteligente, manipulador, desastrado e brincalhão, que não deixava passar, sem seu controle, nenhum horário das refeições ou de ir para a cama, de apagar as luzes ou fechar as portas, tornara-se um bichinho sofrido e apático, que apenas deitava-se ao meu lado, ainda, como dantes, porém já sem conseguir fazer-me rir. Apenas ficava a olhar-me, com seus olhinhos tristes, como se aconselhasse, com aquele olhar, a preparar-me para o que vinha, rapidamente, a seguir.
Pouquíssimas semanas passaram-se, frustrando todas as minhas tentativas de fazê-lo animar-se e reagir. Ele não reclamava. Não gemia. Não miava. Mal andava e, quando o fazia, era com um esforço imenso. Por fim, até mesmo o peso da cabeça impedia-o de beber água sozinho. Havia necessidade de segurá-lo pelos ombrinhos, para que pudesse atingir a água sem que o nariz pendesse e ele se afogasse.
Ele passou de cem por cento a zero, em menos de três semanas. Completamente dependente de mim para todas as funções, sendo alimentado e medicado por seringa e aplicações de soro subcutâneo, ele entregou-se ao destino.
Desesperado e despreparado, ainda tentei até o fim.
Na madrugada de uma quinta-feira (ah! Como eu ainda odeio quintas-feiras!), dormindo, como de costume, ao meu lado, na grande cama de casal, ele gemeu. Levantei-me, com ele no colo e levei-o à cozinha, onde tentei dar-lhe água e levá-lo à caixa de areia. Foi em vão, todavia. Ele recusou ambas as ações.
Deitado sobre meu peito, no sofá da sala, ele deu seu quase último suspiro, avisando-me que estava próximo do inevitável fim. Partiu, plácido e calado, poucos minutos depois, ainda sob os meus cuidados e meu carinhoso e suave abraço, a volta de seu corpinho debilitado. Minhas lágrimas pousaram, mornas e inúteis, sobre seu dorso sem vida.
Meu grande amigo e companheiro, de mais de treze anos, foi-se embora para sempre. (Para onde vão os gatos, afinal, quando morrem? Existe um Paraíso para eles? Existe um, para nós, humanos?) Fiquei sozinho, triste e desconsolado, sem saber como viver - sem a sua tão forte presença.
Acredito que tenha sido a situação mais desesperante da minha vida. E porque amei-o total e incondicionalmente, como nenhuma outra criatura antes dele, eu chorei. Admito, sem vergonha, que nunca havia chorado tanto, como fiz naquele dia (e, também, nos subsequentes)...
Na noite daquele dia, a grande cama de casal parecia um deserto. Estéril e desolado. A sensação era de um verdadeiro, imenso e frio deserto... glacial demais… a sufocar-me o fôlego, a comprimir meu peito. Afiadíssimas lâminas de um gelo frígido e ácido perfuravam, corroíam e congelavam meu pobre coração.
A casa ficou quieta… vazia… enorme… como o enorme e amargo vazio deixado na minha vida e na minha alma…
E, assim, termina uma longa história de dedicação e amor incondicional.
ResponderEliminarOh, Elcio... Eu sei que nada que eu diga vai diminuir sua dor... Mas sei que as lembranças dele ainda serão capazes de trazer um sorriso ao seu rosto, mesmo nesse momento de tamanha dor....
ResponderEliminarSim, Samila. Ainda sinto a presença dele viva aqui. E ainda lembro de como ele me fazia rir... muito. Agora resta o tempo ser bom comigo...
EliminarSinto muito pela sua perda, do seu companheiro de tantos anos. Mas fica a certeza de que a vida dele valeu a pena, casa minuto, dia, momentos que passou com você, sob seus cuidados. Ele teve uma vida longa, feliz e cheia de aventuras. O vazio fica, mas as lembranças, aos poucos, irão preencher um pouco desse buraco no coração. Com certeza você deu o seu melhor pra garantir uma vida digna a ele. Ele certamente também, do seu jeitinho, deu o melhor dele a você. Sinta-se abraçado, eu realmente, sinto muito.
ResponderEliminarObrigado, Sara. Ele foi feliz, sim. Também fez de mim uma pessoa melhor e, isso, é que vale a pena.
EliminarElegiazinha de Nelson Ascher
ResponderEliminarGatos não morrem de verdade:
eles apenas se reintegram
no ronronar da eternidade.
Gatos jamais morrem de facto:
suas almas saem de fininho
atrás de alguma alma de rato.
Gatos não morrem: sua fictícia
morte não passa de uma forma
mais refinada de preguiça.
Gatos não morrem:
rumo a um nível
mais alto é que eles, galho a galho,
sobem numa árvore invisível.
Gatos não morrem:
mais preciso - se somem - é dizer que foram
rasgar sofás no paraíso
e dormirão lá, depois do ónus
de sete bem vividas vidas,
seus sete merecidos sonos.
Obrigado, Sónia, pelo poeminha. Acredito que foram sete vidas bem vividas... Incondicionalmente amadas e bem vividas...
ResponderEliminarMuita força... Nunca estamos preparados e eu só de imaginar tremo... Muita força e um abraço muito apertado de uma gateira também... Eles são a nossa família de 4 patas!
ResponderEliminarPois são. E tem um jeito de cativar-nos, que não nos deixam dúvidas de que estão ali, sempre, para nós. Obrigado, Ruiva.
EliminarBem haja por o que fez ao seu anjo!!
ResponderEliminarE tenho certeza que farei sempre, em ocasiões semelhantes, porque o que ele me deu, foi muito, muito especial. Ele foi muito especial para mim.
EliminarA minha zapata teve uma vida , e final muito idêntica...sei o quanto doi amigo.
ResponderEliminarAgradeço imensamente a consideração de todos. Ajuda a minimizar a dor, que vai, aos poucos, transformando-se em saudade... nostalgia...
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