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segunda-feira, 25 de abril de 2016

Cantigas de Roda (Parte 3 - Epílogo)


Ai, bota aqui
Ai, bota ali o seu pezinho
O seu pezinho bem juntinho com o meu
E depois não vá dizer
Que você já me esqueceu…

- Dança comigo. São dois pra lá e dois pra cá…

- Eu ainda sei dançar bolero!

Não disse aquilo com irritação, nem impaciência, mas com convicção. Eu sabia os passos de poucas danças de salão, mas bolero era fácil demais… e eu lembrava…

Estávamos casados há quase oito anos e os últimos dois haviam sido, mesmo, uma derrocada completa. Os poucos momentos que ainda partilhávamos, tanto por estarmos muito envolvidos nos nossos projetos profissionais, quanto por arranjarmos desculpas para não estarmos mais juntos que o necessário, eram, quase sempre, um grande exercício de tolerância e paciência.

Era assim que sentia naquela ocasião…

Sabíamos que não havia futuro no nosso relacionamento, o que era, por um lado, bastante triste, mas também libertador, ao mesmo tempo.

Ela, uma educadora promissora e extremamente ambiciosa, com ideias avançadas, estava mais ligada às decisões profissionais dos adolescentes, com programas que mais enquadravam-se ao estilo militar, enquanto eu desenvolvia um programa experimental para crianças, num estilo mais natural e quase ingénuo.

Eu não gostava das ideias, nem da quase insaciável sede de status e posses que ela tinha, mas nossos projetos eram independentes e iam em direções muito diferentes, praticamente opostas, por isso um não interferia nos projetos do outro, mesmo que discordássemos dos métodos que um e outro utilizávamos. Com o tempo, aquilo que fez crescer a atração entre nós - nossas tão evidentes diferenças - também nos afastou, tornando a convivência praticamente insuportável.

Aquele foi nosso último bolero.

***

Marcha soldado, cabeça de papel
Se não marchar direito, vai preso
No quartel…

As crianças falaram, por dias, a respeito do acampamento e do que viram por lá. Imaginei que, em suas casas, as famílias tiveram, também, que partilhar a excitação dos alunos e ouvir as histórias com atenção. Alguns pais comentaram que foi difícil aquietarem os filhos, mas estavam bastante satisfeitos com o sucesso do empreendimento. As crianças passaram a semana a desenhar o que viram durante a experiência. O riacho, a montanha, os animaizinhos, as tendas, os coleguinhas, a fogueira… muitos detalhes do que eles experimentaram viraram um grande painel artístico, exposto nas paredes das salas de aula. 

Os dois rapazes, entretanto, desenharam soldados e jipes do exército, o que me preocupou um pouco, pois foi o que pareceu havê-los marcado bastante. Os dois vieram conversar comigo, no intervalo do almoço. Foi justamente o tema da conversa que me causou uma inquietação maior que os desenhos dos mesmos.

***

O anel que tu me deste
Era vidro e se quebrou
O amor que tu me tinhas
Era pouco e se acabou…

- O que aconteceu com o que sentíamos um pelo outro? Por que nos afastamos tanto?

- Não foi de uma hora para a outra. Foi um longo e doloroso processo, apesar das tentativas para que desse certo.

- O que houve com o que havia de bom entre nós? Aquela nossa amizade… o amor…

- Que amor? Nunca houve amor entre nós. Não se ama quem se é forçado a aceitar na casa ou na vida, por circunstâncias que não por opção espontânea. Sabes por que eu nunca te disse: eu te amo? Porque nunca senti que te amasse. Mesmo assim eu lutei pelo nosso relacionamento. Até tentei amar-te, mas tu derrubaste tudo, quando eu menos esperava e tão mais cedo que eu poderia aceitar. Aquela linha muito ténue que havia entre o amor e o ódio partiu-se, agora, de vez. Eu já não me importo contigo ou com tuas coisas, tua vida ou teus problemas. Na verdade, o que sinto por ti é mais um misto de desprezo e ojeriza, como nunca senti por ninguém…

Ela estava sentada na cama, com o computador aberto no colo e eu de pé, encostado à soleira da porta do quarto. Ao ouvir aquelas palavras, que estiveram presas na minha garganta por tanto tempo, ficou vermelha de raiva e chamou-me de covarde, por não haver levantado a discussão antes. Eu, como de tantas outras vezes antes, desliguei a parte do cérebro que se importava com a irritação… ou qualquer coisa que viesse dela… e não disse mais nada. Não valia a pena discutir, nem mesmo gastar meu tempo com qualquer tipo de preocupação ou empatia. Estava tudo acabado, mesmo, entre nós.

Virei as costas e saí, apesar de ouvir seus protestos, mas já não ia fazer diferença nenhuma. Abri a porta, entrei no carro e saí. Não voltei nunca mais…

***

- Como assim, soldados? Nosso projeto não passa por isso e seria um desperdício enorme do investimento que fizemos até agora. Mas como vocês estão quase em idade de mudar de escola, talvez seja interessante conversar com a orientadora pedagógica e avaliar as afinidades de vocês. Pode ser somente um interesse momentâneo…

- Não é só momentâneo. Nós queremos, mesmo, ser soldados…

- Vou encaminhar os dois, em separado, para a orientadora pedagógica, que é psicóloga, então… Ela saberá como avaliar as vocações e os interesses de vocês… e bem melhor que eu…

Os dois meninos sorriram. Mostravam-se satisfeitos com aquela decisão. Pareciam mesmo decididos a ir adiante com aquela ideia. Eu só rezava para que a minha ex-mulher não aparecesse por lá tão cedo, nem soubesse do tipo de interesses que começava a nascer nas cabeças de nossos alunos, devido a um incidente gerado durante uma inocente viagem de lazer.

A assustadora ideia de deixá-la aplicar seus loucos métodos de treinamento militar, em crianças tão jovens, não era pior que tê-la a vangloriar-se de que estava certa e que ela sabia o tempo todo que eu era apenas um ingénuo pedagogo, completamente fora do meu tempo… e dos processos que envolviam a educação moderna…

Será que eu havia sido tão ingénuo e estivera, mesmo, errado, o tempo todo?

***

Se eu tirasse uma pedra olê, olê, olá
Se eu tirasse uma pedra, olê, seus cavaleiros…
Uma pedra não faz mal, olê, olê, olá
Uma pedra não faz mal, olê seus cavaleiros…
Se eu tirasse duas pedras, olê, olê, olá…

- Acho que precisamos conversar. É bastante urgente!

- É sobre os meninos?

- Sim. Melhor vires à minha sala.

A orientadora pedagógica confirmou, em pouco tempo de conversa, minhas suspeitas e meus receios. Por mais que eu quisesse negar, apesar de haver dado o melhor de mim no projeto, sentia como se estivesse a perder uma batalha. Pelo menos eu deveria ficar feliz por saber que aqueles dois rapazes tinham as mentes livres de medos… o que poderia ser um grande benefício para o treinamento no exército, por torna-los destemidos e curiosos, mas não achava que era justo, depois de todo o investimento na educação deles, que o potencial criativo dos mesmos fosse usado para fins diferentes da intenção inicial.

Eu tinha que deixá-los ir adiante em suas vidas, de todo jeito, após o período em nossa escola. O que acontecesse com eles, depois que estivessem em outro estabelecimento de ensino, não era nem minha responsabilidade, nem tampouco tinha autoridade para influenciar ou mudar qualquer coisa. Sabia que quando tivessem que fazer suas decisões, em termos de carreiras, os alunos iam optar por aquelas que lhes pudessem dar um futuro promissor e sustentável.

O primeiro grupo a estar pronto para sair, formava-se naquele ano, dentro de poucos meses. Será que duas das pedras, naquela muralha de educação, comprometeriam a solidez da estrutura? Estariam eles preparados para enfrentar a decisão que haviam tomado, embora ainda muito cedo, em suas vidas?

Resolvemos que faríamos uma pequena cerimónia de formatura, para celebrar o sucesso do projeto e para encaminhá-los a outros tipos de vida escolar mais padronizados com a estrutura educacional vigente no país.

No dia da formatura daquela primeira turma, haviam muitos convidados, entre pais e outros educadores de outros colégios. As crianças estavam excitadas e alvoroçadas, como um bando de pardais. O programa havia sido elogiado pela maioria e eu estava, também, ansioso e irrequieto, como se fosse um dos alunos. Tinha os músculos do pescoço bastante tensos e temia uma surpresa desagradável…

***

Sereno eu caio, eu caio
Sereno deixai cair
Sereno da madrugada não deixou meu bem dormir
Minha vida ai ai ai
É um barquinho ai ai ai
Que navega sem leme e sem luz.
Quem me dera ai ai ai
Que eu tivesse ai ai ai
O farol dos teus olhos azuis.

- Eu sabia que tu ias fazer aquilo. Minhas suspeitas estavam certas e meu instinto avisou-me, mas não tinha como impedir-te de fazer uma das tuas, tinha?

- Claro que não! Foi uma pequena intervenção, homem. O melhor para aqueles meninos é o programa que eu desenvolvi. Eles são soldados, desde o berço…

- Tu estás cada dia mais louca!

- Deixa de te melindrares tanto. Parece que ainda estamos casados... Isso não tem nada a ver contigo. Ainda tens que aprender a separar as coisas… de uma vez por todas!

- Tens razão. Eu nunca soube separar bem as coisas. Devia ter aprendido a ler mais sabiamente os sinais, desde há muito tempo atrás. Eu cheguei a ser envolvido na tua engenhosa trama, que me levou à uma série de reveses, sem dar-me conta daquilo. Mas, no fundo e no final, mesmo tendo sido lesado na minha saúde e na minha vida, eu sobrevivi, levantei-me, lutei e venci… por minha conta e custo. Se houve uma coisa que me deu forças, foi a certeza que um dia eu ia poder olhar-te de frente e saber que não sentia mais nada por ti. Nada mesmo. Nenhuma pena, carinho ou interesse em saber como estás, nem mesmo qualquer vestígio de ressentimentos. Um dia desejei que alguém te fizesse passar pelo que eu passei e sentir o que eu senti, não por vingança, mas para saberes como é doloroso… mas, hoje, isso não tem a menor importância. Na verdade, nunca precisei disso para tornar-me quem eu sou e isso dá-me uma satisfação enorme. Maior que qualquer coisa que tu possas compreender ou imaginar e nem espero que o faças…

Ela soltou um palavrão... dos feios... virou-se e saiu. Já havia feito o mal que queria e não tinha paciência para ouvir minhas verdades.

Minha vida, desde que nos separamos, havia-se tornado muito mais simples e minhas ambições mais voltadas à educação, à arte e à criatividade, por isso o sucesso do meu projeto era uma questão de extrema importância para mim. Era como um filho que eu houvesse imaginado, concebido e ao qual dera uma bela vida. Eu só queria que crescesse e fosse bem-sucedido, para o meu bem e o daquelas crianças.

Sim, eu sabia que haveriam certas perdas, durante o percurso, mas essas sempre existiriam. Tudo era parte de um processo complexo de educação e de vida.

Do ponto de vista dos relacionamentos, o que eu precisava era manter-me sozinho e em paz. Meu trabalho absorvia boa parte dos meus dias e, o restante do tempo, tinha um projeto pessoal mais ambicioso, mas sem pressa de concluir: um livro de contos, com ilustrações em aguarelas e desenhos a carvão e sépia, feitos por mim mesmo.

***

Ciranda, cirandinha,
Vamos todos cirandar
Vamos dar a meia volta,
Volta e meia vamos dar…

Para os dois meninos, fascinados pelo exército, o projeto funcionou durante uns tempos. Os pais acabaram mudando para uma região muito próxima daquela onde acampamos uma única vez, afastando-os do treinamento para a vida militar, pelo menos até que vida os colocou, inusitadamente, frente a frente com uma situação bem mais crítica.

Embora a família tenha mudado o rumo das vidas deles, o destino tratou de alinhá-los, novamente, com perversidade de mestre, levando consigo o que lhes era mais caro e jogando-os de volta nos braços do exército… só que para o resto de suas vidas!

Uma base militar, secreta, para confirmar as suspeitas deles, havia, mesmo, sido construída no topo da montanha…

A descoberta da mesma foi-lhes tanto o azar, quanto a sorte deles…


sábado, 25 de outubro de 2014

Os Olhos da Tigresa (Parte 2 de 2)





O ar frio da manhã nevoenta não me foi impedimento para sair à rua. Eu precisava espairecer, sentir o vento no rosto, estar fora de casa, por umas horitas, pelo menos. Talvez a temperatura baixa do Inverno fizesse minha mente trabalhar em outro ritmo e pensar mais racionalmente. Eu estava cheio de dúvidas e as desconfianças torturavam-me a cada passo que dava, nas calçadas ainda enregeladas pelo orvalho da madrugada. Caminhei por minutos incontáveis, sem rumo certo. Meus pés doíam menos que minha cabeça. Eu queria desaparecer por uns instantes, deixar de pensar, parar de martirizar meu coração, mas o desejo tinha força menor que as minhas dúvidas, que insistiam em complicar-me a vida.

- E se eu estivesse certo? E se eu estivesse errado? Oh, meu Deus! Eu queria ter, pelo menos, alguma certeza e menos desconfiança…

Até aquele dia, nunca havia sido injusto, nem sentido ciúmes infundados ou desejos de vingança. Naquela caminhada, porém, todos estes sentimentos vieram povoar-me a cabeça, com a força de fortes invasores em terras férteis, mas incultivadas. Sentia desejos contraditórios de matar e morrer, a crescerem dentro de mim, com uma facilidade incomum. Eram monstros alimentados pelo ódio e pelo medo… e eles multiplicavam-se e cresciam, como uma colônia de parasitas dentro do meu cérebro. Senti calor, apesar do frio da rua. Desabotoei o casaco e arranquei o cachecol do pescoço. Devia estar febril. Precisava, urgentemente, de um café forte. Tinha que parar. Entrei num Café, na esquina e sentei-me encostado a uma grande janela, mas sem olhar para fora. Eu queria, pelo menos por um simples segundo, parar de pensar. Queria sumir do mundo…

- Que m…!

- Bom dia. Algo errado, senhor?

O empregado de mesa olhava-me com uma expressão de, ao mesmo tempo, curiosidade e preocupação. Provavelmente eu devo ter falado em voz alta, mas não tinha certeza.

- Ahn… Bom dia… Não… Nada errado. Apenas traga-me um café forte e quente, por favor.

Ele assentiu e saiu, com um sorrisinho estranho no canto da boca. Dei-me conta que eu estava sendo ridículo demais, não só pelo martírio mental a que me submetia, quanto por falar sozinho, em voz alta. Tinha que assentar os pés no chão e pensar com clareza. Briguei comigo mesmo e disse, baixinho, entre dentes, para não ser ouvido, daquela vez:

- Chega disso! Já tenho idade e experiência suficiente para agir como um adulto! Já passei por isso outras vezes e não há motivo para mais dramas que o estritamente desnecessário…

Tomei o café, levantei-me e saí. Estava resolvido a enfrentar o ar gelado da rua e a fria realidade.

Ao chegar de volta ao apartamento, vi que havia um bilhete depositado sobre a cômoda no pequeno hall de entrada. Li a mensagem mecanicamente e fui tomar banho, sem pensar muito. Era sexta-feira e ainda tinha um dia inteiro e mais o fim-de-semana, antes de voltar ao trabalho. Pretendia fazer minhas coisas, escrever, nem que fosse um desabafo qualquer e tentar desenhar e pintar. Sim. Havia decidido que pintar, pelo menos, não exigiria muito da minha capacidade de raciocínio e poderia relaxar-me um pouco. Resolvera deixar o acontecido em banho-maria, pelo menos até passar aquela angústia.

Tomei um longo duche, de modo a aquecer o corpo, depois ingeri um comprimido para dormir. Em pouco tempo estava na cama, a tentar recuperar o sono que perdera. Dormi até perto do meio-dia. Quando acordei, meu primeiro pensamento, como não podia deixar de ser, foi para o acontecido nas últimas horas. Levantei-me de um salto e dirigi-me à cozinha, preparar algo quente para comer. No caminho, apanhei o bilhete e levei-o comigo, lendo e relendo, incontáveis vezes, enquanto tomava uma sopa instantânea, que preparei em menos de oito minutos…

***

Dois dias depois do incidente recebi o primeiro contacto, via internet. Eu ainda estava magoado e inseguro, por isso não respondi com mais que uma fria educação, sem demonstrar muita afeição. Ela deve ter percebido, mas não questionou-me nada. Não discutimos o assunto e somente trocamos umas poucas palavras, polidas e politicamente corretas. Esperava que os próximos dias fizessem melhor efeito sobre minha teimosia, mas estava cada vez mais irritadiço e sem paciência para conversas, por isso, sempre respondia com polidez, mas com pouquíssimas palavras. Nossos contactos esfriaram e rarearam, com o passar dos dias. Ela havia-me dito que estava tão ocupada que só viria dentro de quatro semanas, aproximadamente. Não protestei, nem ofereci-me para visitá-la, entrementes. Apenas respondi-lhe com um seco ‘OK’.

No mesmo dia em que recebera aquela notícia, também recebi, por e-mail, uma mensagem de uma sala de chat num site de relacionamentos. Era, aparentemente, um convite de um conhecido meu. Não percebi que era uma mensagem automática e acedi ao site, fiz minha inscrição e resolvi fazer uma visita a alguns perfis, que pareceram-me mais interessantes. Vi que os perfis mais visitados eram os que tinham fotografias, por isso fiz o upload de uma foto minha e deixei-a lá, para ver o efeito que causaria. Quando voltei a aceder o site, por curiosidade, poucas horas depois, havia uma mensagem na caixa de entrada. Abri-a e não consegui deixar de dar uma sonora gargalhada. Era minha primeira risada, em semanas…

***

- Eu não posso acreditar que tu pensaste isso de mim.

- E o que é que tu querias que eu pensasse, afinal?

- Eu achei que estavas sendo compreensivo e me dando espaço e  tu me fazes isso? Tu sabias que eu estava ocupada com o meu trabalho e que precisava de envolvimento total… É minha arte, ‘for heaven’s sake’… É minha vida!

Ela misturava as linguagens, quando ficava nervosa e eu achava aquela característica simplesmente adorável. Olhei-a mudo, sem saber o que dizer. Ela odiava quando eu silenciava no meio de uma briga. Já tinha feito a minha quota de asneiras e não queria piorar o que já estava ruim demais. Mas para ela, como mulher, o meu silêncio era uma afronta.

Mirei aqueles olhos antes tão cheios de vida e serenidade, com um misto de culpa e de apreensão. O olhar cristalino e de um verde que sempre havia sido tão tocante, pelo menos para mim, agora só trazia uma tristeza imensa.

Senti uma consistente confusão instalar-se confortavelmente dentro da minha cabeça e visualizei-a, vestida de robe e calçando pantufas com formato de bichinho, sentada num sofá macio e confortável, na minha sala de visitas, a assistir minha desgraça, de camarote.

Não havia muito a dizer, já que era totalmente culpado de haver feito o filme completo na minha cabeça, de achar que estava certo ao procurar outra forma de relacionar-me, de pensar que estava sendo traído, de haver sido biltre e otário, ao mesmo tempo. Fui tolo ao julgar, sem ter certeza; ao trair, por achar que estava sendo traído; a deixar-me levar pela minha dúvida, sem questionar nada, sem ter certeza de nada. Eu havia-me deixado levar pela grande e promíscua fatia de hedonismo e leviandade que nasceu dentro de mim, no dia em que fui contactado pela personagem responsável por despertar, em mim, uma tola vaidade. Pensava que estava sendo esperto em fazer o que pensava que Liana fazia a mim, sem sentir culpa, nem pesar. Não era, porém, por qualquer sentimento de vingança… era apenas por uma carência afetiva, uma sensação de abandono, uma tristeza impotente, que só crescia com a dúvida e a impressão de ter sido trocado por outro.

Oh, Deus… e como eu estava errado… 

Ela desistiu de brigar, de importar-se, de tentar fazer-me sentir mais culpado que eu já sentia. Foi-se embora no mesmo dia que chegou, dizendo que voltava para buscar suas coisas num outro dia, quando estivesse mais calma, mais centrada, menos decepcionada e com menos raiva de mim. 

***

Aquele olhar, cristalino e distante, com uma distinta pincelada da verde e pálida tristeza, fitou-me pela última vez, da janela embaçada do trem. Plantado, sozinho, a olhar o vagão afastar-se, senti minha alma inundar-se com aquele sentimento de angústia e impotência que nos assola, quando o dantes improvável transforma-se no absolutamente possível; quando nos vemos por uma derradeira vez, numa despedida seca e quase impessoal. É triste perceber como os sentimentos mudam tanto, diante de uma grande mágoa.

Não sei porque, naquela ocasião, faltou-me coragem, vontade de quebrar barreiras, de jogar tudo para o alto, ou se simplesmente já não importava-me mais com o futuro daquela relação. Sei, apenas, que aquela última conversa ficara gravada a ferro em brasa na minha memória, por muito tempo, a latejar e a molestar-me.

- Eu tenho que ir sozinha. Será um partir para sempre, como morrer de vez. O tempo vai curar as feridas. A distância vai facilitar a recuperação. Mas eu, simplesmente, não consigo perdoar-te. Não tenho armas para lutar contra um inimigo cujo poder ultrapassa os meus e cujas armas eu desconheço totalmente. Essa impotência ressecou-me o coração e quebrou as correntes que nos mantinham ligados um ao outro, de uma vez por todas. E eu não consigo viver com esta aridez a incomodar-me o peito deste jeito.

Os olhos da minha tigresa, antes tão cheios de vida e luz, mostravam, agora, uma baça melancolia, que era-me altamente perturbante e enchia-me de uma culpa irremediável. Eu queria conseguir fazer alguma coisa, mas um nó apertava-me a garganta, impedindo-me de falar. Se, antes, dizer-lhe um simples ‘eu te amo’ era-me difícil, é de imaginar-se quão muito mais difícil era-me dizer-lhe, então, ‘perdoa-me’. Eu, simplesmente, não conseguia. Minha mente até concluía o discurso, mas minha voz não saía de jeito nenhum. Eu sabia que a havia magoado e também sabia que, mesmo que ela me perdoasse, ia sempre sentir-se incomodada, desconfiada e em dúvida se eu não ia fazê-la passar pela mesma situação vezes e vezes sem conta, dali por diante…

- Levas-me à estação… pela derradeira vez?

- Claro.

Engoli em seco. Meu coração pesava. Minha vontade era dizer-lhe que não, que se virasse sozinha. Excomungar até sua última geração, dizer-lhe uma série de palavrões, mas não podia. Como podia amaldiçoar uma pessoa que havia sido ferida pela minha crueldade? Minha alma estava dilacerada. Eu remoía indignação, frustração e culpa, mas já não havia nada que eu pudesse fazer. Eu, no lugar dela, teria sido menos nobre, tanto nas ações quanto nas palavras. Nunca havia percebido como éramos tão diferentes. Ela era distinta, controlada e generosa. Eu era rasca, vulgar, impulsivo e mesquinho.

Mas eu sentia raiva. Muita raiva. Dela e, mais ainda, de mim. Eu havia sido descuidado e vítima da minha própria ingenuidade, hedonismo e arrojo. Que grande burro havia sido! Diante de uma cena de flagrante sexual com outra pessoa, onde as evidências são inquestionáveis, o que é que eu poderia dizer?

Eu sabia que ela tinha que recomeçar, sozinha, sua própria vida, longe de mim e eu não tinha o direito de impedi-la. Ela estava ferida. Suas asas haviam crescido e seu voo já a havia afastado de mim. Ela sentia-se no direito de voar alto e para longe e eu não queria sentir-me mais culpado que já estava, se tentasse demovê-la da ideia. Ela precisava de espaço e eu tinha a obrigação de dar-lhe, já que eu havia quebrado muitos elos das correntes que nos uniam.

A tigresa pulava para o outro lado da cerca, para ser livre, outra vez...

Olhei aqueles olhos por uma última vez, com imensa melancolia. Minhas entranhas eram roídas por sentimentos contraditórios, tanto de irritação, quanto de culpa. Ela partiu. Sozinha. Triste. Eu fiquei ali, a olhar o vazio sobre os trilhos, depois que o trem sumiu na curva, no meio da neblina de Outono. No mesmo vagão, partiu, para sempre, não somente minha grande amiga – a bela e terna tigresa - mas também minha confiança nos relacionamentos e no ser humano.

Na saída da estação, ainda a cruzar a calçada, esbarrei num transeunte que trazia umas sacolas e que caíram ao chão, com o impacto. Apressei-me, instintivamente, a desculpar-me e a ajuntar os pacotes caídos na calçada, quase sem olhar para quem eu ajudava, por pura vergonha. Foi somente quando entreguei-lhe os embrulhos, que notei aqueles olhos muito claros e verdes a fitar-me com curiosidade e um certo ar de gracejo.

Alguém lá em cima deve gostar muito de brincar comigo…


domingo, 19 de outubro de 2014

Os Olhos da Tigresa (Parte 1 de 2)




Quatro jovens tigres caminhavam, tranquilamente, ao meu redor e roçavam-se contra minhas pernas, como se fossem tão amistosos quanto dóceis gatos domésticos. Era como se estivessem a pedir-me algum carinho ou a marcar-me para reconhecimento, com suas glândulas de feromonas, espalhadas em pontos estratégicos de seus pujantes corpos. Eu sentia-me confortável e nem um pouco intimidado por qualquer um deles.

Um dos animais, uma belíssima fêmea com expressivos e cristalinos olhos, de um tom muito luminoso de verde, levantou-se nas patas traseiras e abraçou-me com afeição, numa atitude que eu realmente não esperava. Ela esfregou sua magnífica cabeça contra meu rosto, depois chegou-a mais para frente e mordeu-me a orelha, com cuidado. Alguém falou:

- Acho que ela gosta de ti. Este não é um comportamento comum.

Passei meus braços à volta do seu belo corpo, dando-lhe um abraço. Seu pelo era macio e luzidio. Provavelmente não sabia a força que tinha e o poder que dela emanava, quando deixou-se envolver por meu abraço. Não fiquei exatamente surpreso quando ela sussurrou ao meu ouvido:

- Deixa-me ir para o outro lado da cerca, onde posso ter mais liberdade. Por favor...

Ajudei-a a pular por sobre o cercado, dando-lhe impulso para ir-se, apesar de desejar que ela ficasse comigo, por muito mais tempo. Sabia, porém, que não tinha qualquer influência sobre seus desejos de independência. Mais cedo ou mais tarde, ela teria que ir-se para além das fronteiras do meu domínio… ou seria eternamente infeliz.

Senti um distinto aperto no peito, ao vê-la afastar-se. Ela olhou para trás e balançou a cabeça, de maneira carinhosa, como se agradecesse o impulso que eu dera, para que atingisse sua emancipação. Aqueles olhos, extremamente magnéticos, porém, tocaram-me a alma, de uma maneira que eu não esperava. Um sentimento estranho tomou conta de mim, numa mistura de melancolia com nostalgia, ao ver minha tigresa partir. Os outros grandes felinos juntaram-se à ela, do outro lado da cerca metálica, levando-a para longe de onde estávamos. Uma lágrima escorreu-me pelo canto do olho e senti a inquietação em minha alma aumentar e envolver-me, com muito mais força que minha tigresa abraçou-me o corpo. Um soluço cresceu dentro de mim e eu fechei os olhos, tentando controlar o pranto, mas já era tarde demais…

Acordei, chorando alto, no meio da madrugada, sentindo uma angústia enorme a pesar sobre meu peito, que arfava, descontrolado. A escuridão do quarto disfarçou a tristeza, mas não diminuiu a sensação de imensa solidão e abandono que aquele sonho me trouxe. Chorei como criança, sem conseguir conter os soluços e a dor que sentia, naquele momento, abraçado ao meu próprio corpo, deitado na cama de casal, que pareceu-me imensa, deserta e fria…

***

Liana tinha, em torno de si, uma suave aura de felina feminilidade. Seus olhos verdes, extraordinariamente expressivos e cristalinos, pareciam-me sempre inquietos, como se procurassem, em algum lugar ou, talvez, em algum tempo, vestígios de uma inocência perdida. Ela sabia ler-me como ninguém. E examinava-me com aqueles seus grandes olhos, despia-me a alma, como se conseguisse penetrar nos meus pensamentos, fazendo-me enrubescer, desajeitado, ante a sua singela majestade e a maneira como conseguia compreender, sem perguntar, meus estados de humor e da alma.

Eu costumava perder-me, completamente, a contemplar aquela sublime e meiga grandeza, por horas e horas a fio, sem precisar dizer nada e, ainda assim, a sentir-me totalmente compreendido e amado pela mulher que havia-me transformado no homem que eu passei a ser. Perto dela, eu sentia-me completo e sereno. Pela primeira vez na minha vida, a presença de uma pessoa, não violava minhas necessidades de ter meus momentos de silêncio. Ela respeitava meu espaço e compreendia que eu necessitava estar só, às vezes, para poder centrar-me, escrever, ou simplesmente ouvir música e pintar, numa tentativa de ilustrar minhas histórias amadoras: meus hobbies favoritos e que davam-me grande satisfação.

Ela aproveitava estes raros momentos para isolar-se, também, e fazer o que já gostava fazer, antes de conhecer-me. Liana era uma artista sensível e perfeccionista. Suas aquarelas eram hiper-realistas e detalhadas. Para fazê-las com esmero, costumava passar horas num dos quartos do apartamento onde morávamos, transformado em seu pequeno estúdio... um oásis de beleza e tranquilidade, que eu raramente invadia, a não ser quando convidado, por puro respeito ao espaço dela. Suas peças estavam expostas em galerias de artistas novos e promissores e ela havia sido convidada, mais que apenas algumas vezes, a viver num centro maior, onde teria mais reconhecimento e oportunidades artísticas. Ela nunca dera nenhuma resposta aos agentes, acerca dos tais convites. Dizia-se feliz onde estava, a produzir sua arte, em seu próprio ritmo. Tinha receio que uma grande metrópole fosse transformá-la em uma artista menos sensível, mais preocupada com a produção que com a sensibilidade.   

Eu compreendia seus medos, mas incentivava a ideia de ela abrir suas asas imensas por paragens mais desbravadas e por ares mais desafiadores. Ela tinha talento e merecia voar alto, mas dizia-se despreparada.

Eu sabia que parte daquele receio estava ligada ao nosso relacionamento. Eu tinha uma carreira, no lugar onde vivíamos e não poderia acompanhá-la, pelo menos no início. Ela inventava muitas de suas desculpas, dizendo-se feliz e satisfeita onde estava, mas eu a conhecia muito bem, para convencer-me que seus receios estavam  relacionados apenas à massificação de sua arte.

Um dia, quando cheguei em casa, depois do trabalho, percebi que ela estava bastante séria e pensativa. Havia recebido uma proposta praticamente irrecusável, mas que não havia aceitado de imediato. Ficara de pensar e dar a resposta em alguns dias. Claro que a proposta implicava em uma grande mudança. Ela iria lecionar uma cadeira na faculdade de Belas Artes, numa grande universidade, alguns dias, durante a semana e teria um estúdio, para produzir seus próprios trabalhos artísticos e desenvolver uma série de projetos, com outros novos artistas, para uma promissora galeria, em Londres.

Ela estava entre vários estados, bastante diversos. Se de um lado sentia uma euforia enorme, em relação ao reconhecimento do seu talento e aos projetos que iria participar, por outro lado, sentia-se totalmente insegura se ia corresponder às expectativas e, por um outro lado ainda,  estava triste, por termos que nos afastar durante semanas.

Tentei fazê-la ver que uma oportunidade destas não aparece mais que uma vez e que ela deveria aceitar. Era a possibilidade de vencer e mostrar seu trabalho e eu não poderia, jamais, deixar de incentivá-la a ir em frente. Prometi que nos veríamos semana sim, semana não... um ou outro viajaria e conseguiríamos vencer os obstáculos que, já sabíamos, iriam aparecer.

- O mundo é muito pequeno e as comunicações estão cada vez mais fáceis. Estaremos sempre em contacto.

Eu disse-lhe a frase esperada, tentando tranquilizá-la, mas meu peito acusava um desconforto, que traduzia o medo que eu sentia, de que algo não corresse tão linearmente como eu assegurava.

Os primeiros meses foram difíceis de suportar, mas fáceis de mantermos o contacto. Quando o estúdio começou a exigir mais do seu tempo e dedicação, até mesmo nossas comunicações começaram a rarear. Sabia que era natural que tal acontecesse, pois ela desabrochava, naturalmente, dentro de seu genuíno meio de expressão. Ela estava cada vez melhor, mais feliz, mais produtiva e mais ocupada que jamais estivera.

Eu, porém, sentia-me cada vez mais desamparado. Apesar da necessidade de estar só ainda tomar parte do meu tempo, não tê-la por perto corroía-me a alma. Pelo menos - tentava convencer-me - tínhamos as férias de fim de ano para estarmos juntos. Eu ansiava por aquele tempo junto dela e contava os dias que antecediam o período, já que nossos fins de semana juntos praticamente haviam desaparecido. Escrevíamos quase diariamente, deixávamos mensagens um ao outro, tentávamos sempre saber como iam as coisas, o trabalho, a vida... mas o tempo é cruel...e a distância também... 

Ficamos meses sem nos ver, a não ser pela internet, já que ela estava ocupada demais com seu trabalho, incluindo nos fins de semana.

Quando nos encontramos, em Dezembro, ela parecia diferente e distante. Algo havia mudado. Onde, antes havia uma imensa vivacidade e alegria de viver, havia, agora, um quê de tristeza, um intrigante mistério, uma distância quase inatingível. Ela disse que era somente cansaço. Estava com excesso de coisas a fazer. O projeto ia muito bem e ela precisava daquela chance de mostrar o trabalho do grupo e, mais especificamente, o seu, em particular. A mais famosa galeria de artes em Londres havia-lhe solicitado uma mostra individual e ela trabalhava em novas obras com avidez. Sabia que aquela seria sua grande oportunidade. O reconhecimento de sua individualidade artística era evidente e ela não podia deixar passar, sem fazer seu melhor.

Fiquei feliz por ela. Disse-lhe que aproveitasse, incentivei-lhe a ir adiante, mas disse-lhe também para cuidar de sua saúde, pois estava bastante magra e abatida. Ela afirmou que mal tinha tempo para alimentar-se, mas eu protestei. Ela prometeu cuidar-se. Aproveitamos aqueles poucos dias de inverno, para ficarmos mais juntos. Tratei de preparar-lhe meus melhores pratos, numa tentativa de dar um pouco de cor ao rosto, que eu adorava, e de compensar a perda de peso, que havia-se tornado evidente, no corpo que eu tanto desejei, desde que nos conhecemos. Ela contestou, no começo, mas cedeu à minha insistência e em poucos dias parecia mais vivaz e com as faces mais rosadas.

Uma noite, naqueles poucos dias em que estávamos juntos, eu adormeci no sofá, enquanto ela trabalhava no estúdio. Acordei, ao ouvir vozes. Ela estava ao telefone e parecia ter uma discussão com alguém. Tive a impressão de ouvi-la dizer, num tom mais baixo:

- Já te disse para não ligar-me aqui...

Levantei-me e fui até o quarto, mas assim que cheguei perto, ela desligou. Perguntei quem era.

- Nada importante... apenas assuntos de trabalho... Não te preocupes.

O semblante dela não era o mesmo. A luz vermelha da desconfiança acendeu na minha mente insegura, mas eu não insisti em saber o que acontecia. Pelo jeito a intimidade, que antes havia entre nós, quando compartilhávamos tudo, já não existia. Afastei um pensamento ruim, com um abano de cabeça e saí do estúdio, com o cenho franzido. Fui para a cama, mas não conseguia adormecer...

Uma noite mal dormida só agrava os pensamentos nefastos... e eu amplifiquei minha insegurança e minha paranoia, elevando-as à potências de dez...

Não tenho muita certeza se realmente ouvi vozes, durante a madrugada, ou se adormeci e sonhei, no estado de tortura mental em que me encontrava. Quando amanheceu, eu ainda estava de olhos abertos e ela não havia vindo para a cama. Levantei-me e procurei-a pela casa. Estava na cozinha, a olhar para fora, com o olhar baço e os pensamentos tão distantes, que mal conseguiu ouvir-me aproximar. Ela virou-se para mim e disse, muito séria:

- Tenho que voltar a Londres... hoje mesmo, se conseguir um voo.

- Aconteceu alguma coisa?

- Nada que eu não possa resolver sozinha...

Aquela resposta, seca e num tom que eu desconhecia, apanhou-me de surpresa e deixou-me de queixo caído. Ela passou por mim, apanhou a bolsa de cima da cômoda na entrada e saiu pela porta afora, sem olhar para trás.

Eu fiquei ali, de pé, no meio da cozinha, a matutar o que poderia ter acontecido que a deixara daquele jeito. Aquela luz vermelha da insegurança piscava como um grande farol na beira da praia, parecendo gritar, na minha mente torturada:

Alerta! Alerta! Alerta!

segunda-feira, 1 de julho de 2013

A Carta


Assim que entrei, os meus olhos foram atraídos pela folha de papel. A carta, pousada em cima da mesa vazia, estava, estranhamente, assinada por ela.

Não se tratava de uma despedida. Era mais um recado: simples, breve e direto. Anunciava, apenas, o fim… quase impessoal, como uma lista de compras ou um comunicado de que ia chegar mais tarde do trabalho.

Senti um vazio…um enorme vazio a abraçar-me a alma, a pesar-me nos ombros e um cruel e triste silêncio a impregnar a casa deserta.

Mas não era aquela sensação que incomodava. Eu já sentira muito mais vazio, estando a seu lado, dividindo a cama, sem compartilhar os sonhos, sem sentir prazer no sexo automático - que já nem frequente era – e que só me fazia sentir vontade de lá chegar, para sair logo, tomar um banho, voltar a deitar-me e dormir.

Não era tampouco a carta, assim secamente escrita, ainda pousada sobre a mesa, a anunciar a partida – sem volta - sem considerar o que alguma vez sentimos, ou mesmo o que fizemos um pelo outro, que me inquietava.

Já não havia nenhuma emoção desnecessária, nem tampouco explicações, no teor da mensagem … pois estas já não faziam, mesmo, diferença alguma. Já não havia nenhuma necessidade de demonstrar ódio, nem amor, nem piedade, nem nada… A nossa história havia-se simplificado nas estéreis palavras escritas naquela folha de papel.

Pensei no tempo que havíamos perdido, sem que, por comodismo, tomássemos a corajosa-covarde atitude que ela tomara sozinha e na minha ausência. Talvez evitasse, assim, a obrigação de olhar-me nos olhos e hesitar...

Aquele era apenas um fim. Daqueles que não deixam ódio, nem mágoa, nem mesmo qualquer amizade. Daqueles que fazem, no futuro, questionarmo-nos as razões de havermos deixado a relação chegar ao ponto de a separação não fazer mossa alguma em nossas vidas.

O fim, sabe-se, nunca advém do nada. Vem sempre como consequência de muitos fins… de muitos erros e de muitos desencontros... de tantos pequenos e incómodos gestos que, então, somam-se, como gotas d’água de intolerância, ao copo já totalmente cheio.

Não era nada daquilo que, naquele momento - a olhar a folha de papel, então em minha mão e a pensar numa parte de minha vida praticamente desperdiçada - me incomodava o espírito.

O que me incomodava, na realidade, era ter sido ela - e não eu - a ter tomado aquela decisão. A bravura de ter tomado a dianteira e resolver por um termo à relação, deveria ter-me acontecido há muito tempo atrás, antes que os sentimentos - tanto os pequenos, quanto os grandes; tanto os bons, quanto os maus - houvessem partido, definitivamente, sem deixar qualquer vestígio em nossas emoções…

Antes mesmo que eu olhasse aquela assinatura no papel e a visse como de uma verdadeira e completa desconhecida…