Ai, bota aqui
Ai, bota ali o seu pezinho
O seu pezinho bem juntinho com o meu
E depois não vá dizer
Que você já me esqueceu…
- Dança comigo. São dois pra lá e dois pra cá…
- Eu ainda sei dançar bolero!
Não disse aquilo com irritação,
nem impaciência, mas com convicção. Eu sabia os passos de poucas danças de
salão, mas bolero era fácil demais… e eu lembrava…
Estávamos casados há quase oito
anos e os últimos dois haviam sido, mesmo, uma derrocada completa. Os poucos
momentos que ainda partilhávamos, tanto por estarmos muito envolvidos nos nossos
projetos profissionais, quanto por arranjarmos desculpas para não estarmos mais
juntos que o necessário, eram, quase sempre, um grande exercício de tolerância
e paciência.
Era assim que sentia naquela
ocasião…
Sabíamos que não havia futuro no
nosso relacionamento, o que era, por um lado, bastante triste, mas também libertador,
ao mesmo tempo.
Ela, uma educadora promissora e extremamente
ambiciosa, com ideias avançadas, estava mais ligada às decisões profissionais
dos adolescentes, com programas que mais enquadravam-se ao estilo militar, enquanto
eu desenvolvia um programa experimental para crianças, num estilo mais natural
e quase ingénuo.
Eu não gostava das ideias, nem da
quase insaciável sede de status e
posses que ela tinha, mas nossos projetos eram independentes e iam em direções
muito diferentes, praticamente opostas, por isso um não interferia nos projetos
do outro, mesmo que discordássemos dos métodos que um e outro utilizávamos. Com
o tempo, aquilo que fez crescer a atração entre nós - nossas tão evidentes
diferenças - também nos afastou, tornando a convivência praticamente
insuportável.
Aquele foi nosso último bolero.
***
Marcha soldado, cabeça de papel
Se não marchar direito, vai preso
No quartel…
As crianças falaram, por dias, a
respeito do acampamento e do que viram por lá. Imaginei que, em suas casas, as
famílias tiveram, também, que partilhar a excitação dos alunos e ouvir as
histórias com atenção. Alguns pais comentaram que foi difícil aquietarem os
filhos, mas estavam bastante satisfeitos com o sucesso do empreendimento. As
crianças passaram a semana a desenhar o que viram durante a experiência. O
riacho, a montanha, os animaizinhos, as tendas, os coleguinhas, a fogueira…
muitos detalhes do que eles experimentaram viraram um grande painel artístico,
exposto nas paredes das salas de aula.
Os dois rapazes, entretanto,
desenharam soldados e jipes do exército, o que me preocupou um pouco, pois foi
o que pareceu havê-los marcado bastante. Os dois vieram conversar comigo, no
intervalo do almoço. Foi justamente o tema da conversa que me causou uma
inquietação maior que os desenhos dos mesmos.
***
O anel que tu me deste
Era vidro e se quebrou
O amor que tu me tinhas
Era pouco e se acabou…
- O que aconteceu com o que sentíamos um pelo outro? Por que nos
afastamos tanto?
- Não foi de uma hora para a outra. Foi um longo e doloroso processo,
apesar das tentativas para que desse certo.
- O que houve com o que havia de bom entre nós? Aquela nossa amizade… o
amor…
- Que amor? Nunca houve amor entre nós. Não se ama quem se é forçado a
aceitar na casa ou na vida, por circunstâncias que não por opção espontânea. Sabes
por que eu nunca te disse: eu te amo? Porque nunca senti que te amasse. Mesmo
assim eu lutei pelo nosso relacionamento. Até tentei amar-te, mas tu derrubaste
tudo, quando eu menos esperava e tão mais cedo que eu poderia aceitar. Aquela
linha muito ténue que havia entre o amor e o ódio partiu-se, agora, de vez. Eu
já não me importo contigo ou com tuas coisas, tua vida ou teus problemas. Na verdade,
o que sinto por ti é mais um misto de desprezo e ojeriza, como nunca senti por
ninguém…
Ela estava sentada na cama, com o
computador aberto no colo e eu de pé, encostado à soleira da porta do quarto.
Ao ouvir aquelas palavras, que estiveram presas na minha garganta por tanto
tempo, ficou vermelha de raiva e chamou-me de covarde, por não haver levantado
a discussão antes. Eu, como de tantas outras vezes antes, desliguei a parte do
cérebro que se importava com a irritação… ou qualquer coisa que viesse dela… e não
disse mais nada. Não valia a pena discutir, nem mesmo gastar meu tempo com
qualquer tipo de preocupação ou empatia. Estava tudo acabado, mesmo, entre nós.
Virei as costas e saí, apesar de
ouvir seus protestos, mas já não ia fazer diferença nenhuma. Abri a porta,
entrei no carro e saí. Não voltei nunca mais…
***
- Como assim, soldados? Nosso projeto não passa por isso e seria um
desperdício enorme do investimento que fizemos até agora. Mas como vocês estão
quase em idade de mudar de escola, talvez seja interessante conversar com a
orientadora pedagógica e avaliar as afinidades de vocês. Pode ser somente um
interesse momentâneo…
- Não é só momentâneo. Nós queremos, mesmo, ser soldados…
- Vou encaminhar os dois, em separado, para a orientadora pedagógica,
que é psicóloga, então… Ela saberá como avaliar as vocações e os interesses de
vocês… e bem melhor que eu…
Os dois meninos sorriram. Mostravam-se
satisfeitos com aquela decisão. Pareciam mesmo decididos a ir adiante com
aquela ideia. Eu só rezava para que a minha ex-mulher não aparecesse por lá tão
cedo, nem soubesse do tipo de interesses que começava a nascer nas cabeças de nossos
alunos, devido a um incidente gerado durante uma inocente viagem de lazer.
A assustadora ideia de deixá-la
aplicar seus loucos métodos de treinamento militar, em crianças tão jovens, não
era pior que tê-la a vangloriar-se de que estava certa e que ela sabia o tempo
todo que eu era apenas um ingénuo pedagogo, completamente fora do meu tempo… e
dos processos que envolviam a educação moderna…
Será que eu havia sido tão ingénuo e estivera, mesmo, errado, o tempo
todo?
***
Se eu tirasse uma pedra olê, olê, olá
Se eu tirasse uma pedra, olê, seus cavaleiros…
Uma pedra não faz mal, olê, olê, olá
Uma pedra não faz mal, olê seus cavaleiros…
Se eu tirasse duas pedras, olê, olê, olá…
- Acho que precisamos conversar. É bastante urgente!
- É sobre os meninos?
- Sim. Melhor vires à minha sala.
A orientadora pedagógica
confirmou, em pouco tempo de conversa, minhas suspeitas e meus receios. Por
mais que eu quisesse negar, apesar de haver dado o melhor de mim no projeto,
sentia como se estivesse a perder uma batalha. Pelo menos eu deveria ficar
feliz por saber que aqueles dois rapazes tinham as mentes livres de medos… o
que poderia ser um grande benefício para o treinamento no exército, por
torna-los destemidos e curiosos, mas não achava que era justo, depois de todo o
investimento na educação deles, que o potencial criativo dos mesmos fosse usado
para fins diferentes da intenção inicial.
Eu tinha que deixá-los ir adiante
em suas vidas, de todo jeito, após o período em nossa escola. O que acontecesse
com eles, depois que estivessem em outro estabelecimento de ensino, não era nem
minha responsabilidade, nem tampouco tinha autoridade para influenciar ou mudar
qualquer coisa. Sabia que quando tivessem que fazer suas decisões, em termos de
carreiras, os alunos iam optar por aquelas que lhes pudessem dar um futuro
promissor e sustentável.
O primeiro grupo a estar pronto
para sair, formava-se naquele ano, dentro de poucos meses. Será que duas das
pedras, naquela muralha de educação, comprometeriam a solidez da estrutura?
Estariam eles preparados para enfrentar a decisão que haviam tomado, embora ainda
muito cedo, em suas vidas?
Resolvemos que faríamos uma
pequena cerimónia de formatura, para celebrar o sucesso do projeto e para
encaminhá-los a outros tipos de vida escolar mais padronizados com a estrutura
educacional vigente no país.
No dia da formatura daquela
primeira turma, haviam muitos convidados, entre pais e outros educadores de
outros colégios. As crianças estavam excitadas e alvoroçadas, como um bando de
pardais. O programa havia sido elogiado
pela maioria e eu estava, também, ansioso e irrequieto, como se fosse um dos
alunos. Tinha os músculos do pescoço bastante tensos e temia uma surpresa desagradável…
***
Sereno eu caio, eu caio
Sereno deixai cair
Sereno da madrugada não deixou meu bem dormir
Minha vida ai ai ai
É um barquinho ai ai ai
Que navega sem leme e sem luz.
Quem me dera ai ai ai
Que eu tivesse ai ai ai
O farol dos teus olhos azuis.
- Eu sabia que tu ias fazer aquilo. Minhas suspeitas estavam certas e meu
instinto avisou-me, mas não tinha como impedir-te de fazer uma das tuas, tinha?
- Claro que não! Foi uma pequena intervenção, homem. O melhor para
aqueles meninos é o programa que eu desenvolvi. Eles são soldados, desde o
berço…
- Tu estás cada dia mais louca!
- Deixa de te melindrares tanto. Parece que ainda estamos casados... Isso
não tem nada a ver contigo. Ainda tens que aprender a separar as coisas… de uma
vez por todas!
- Tens razão. Eu nunca soube separar bem as coisas. Devia ter aprendido
a ler mais sabiamente os sinais, desde há muito tempo atrás. Eu cheguei a ser
envolvido na tua engenhosa trama, que me levou à uma série de reveses, sem dar-me
conta daquilo. Mas, no fundo e no final, mesmo tendo sido lesado na minha saúde
e na minha vida, eu sobrevivi, levantei-me, lutei e venci… por minha conta e
custo. Se houve uma coisa que me deu forças, foi a certeza que um dia eu ia
poder olhar-te de frente e saber que não sentia mais nada por ti. Nada mesmo.
Nenhuma pena, carinho ou interesse em saber como estás, nem mesmo qualquer
vestígio de ressentimentos. Um dia desejei que alguém te fizesse passar pelo
que eu passei e sentir o que eu senti, não por vingança, mas para saberes como
é doloroso… mas, hoje, isso não tem a menor importância. Na verdade, nunca
precisei disso para tornar-me quem eu sou e isso dá-me uma satisfação enorme.
Maior que qualquer coisa que tu possas compreender ou imaginar e nem espero que
o faças…
Ela soltou um palavrão... dos
feios... virou-se e saiu. Já havia feito o mal que queria e não tinha paciência
para ouvir minhas verdades.
Minha vida, desde que nos
separamos, havia-se tornado muito mais simples e minhas ambições mais voltadas
à educação, à arte e à criatividade, por isso o sucesso do meu projeto era uma
questão de extrema importância para mim. Era como um filho que eu houvesse
imaginado, concebido e ao qual dera uma bela vida. Eu só queria que crescesse e
fosse bem-sucedido, para o meu bem e o daquelas crianças.
Sim, eu sabia que haveriam certas
perdas, durante o percurso, mas essas sempre existiriam. Tudo era parte de um
processo complexo de educação e de vida.
Do ponto de vista dos relacionamentos,
o que eu precisava era manter-me sozinho e em paz. Meu trabalho absorvia boa
parte dos meus dias e, o restante do tempo, tinha um projeto pessoal mais
ambicioso, mas sem pressa de concluir: um livro de contos, com ilustrações em
aguarelas e desenhos a carvão e sépia, feitos por mim mesmo.
***
Ciranda, cirandinha,
Vamos todos cirandar
Vamos dar a meia volta,
Volta e meia vamos dar…
Para os dois meninos, fascinados
pelo exército, o projeto funcionou durante uns tempos. Os pais acabaram mudando
para uma região muito próxima daquela onde acampamos uma única vez,
afastando-os do treinamento para a vida militar, pelo menos até que vida os
colocou, inusitadamente, frente a frente com uma situação bem mais crítica.
Embora a família tenha mudado o
rumo das vidas deles, o destino tratou de alinhá-los, novamente, com perversidade
de mestre, levando consigo o que lhes era mais caro e jogando-os de volta nos
braços do exército… só que para o resto de suas vidas!
Uma base militar, secreta, para
confirmar as suspeitas deles, havia, mesmo, sido construída no topo da montanha…
A descoberta da mesma foi-lhes
tanto o azar, quanto a sorte deles…