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sábado, 13 de julho de 2024
domingo, 9 de abril de 2023
Watercolour study: Memories of Blue
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sábado, 4 de fevereiro de 2023
Watercolour study: Into the blue
sábado, 11 de junho de 2022
Watercolour Study: Ladybug (Red and Blue)
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domingo, 16 de maio de 2021
segunda-feira, 18 de junho de 2018
segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017
domingo, 8 de setembro de 2013
Outros Estudos em Vermelho e Azul (Epílogo)
- Ela estava
comigo. Quando o telefone tocou, ela inventou uma desculpa. Teve que inventar… Sentiu-se
culpada, mas já não havia o que fazer.
- Ela não faria
isso comigo…
Mas
uma pontada de dúvida e dor abriu caminho na mente sofrida do jovem rapaz.
- Mas fez. Estava
carente e a oportunidade apareceu. Todas as pessoas são assim. Não tentes
enganar-te… sabes bem que sim…
Misha
sorriu. E seu sorriso pareceu muitíssimo sarcástico.
- Por que estás
fazendo isso?
- Como eu já havia
dito, para provar um ponto. As coisas e as pessoas não são o que parecem.
O
rapaz, visivelmente afectado pela notícia, quase deixou cair a louça que havia
recolhido da mesa, alguns instantes antes. Sentiu-se sozinho, usado… e traído.
Um peso enorme caiu-lhe sobre os ombros e ele sentiu-se, subitamente, cansado.
Virou-se para sair na direcção da cozinha, quando o outro disse-lhe:
- Traga-me uma
daquelas natas, que me parecem tão frescas e apetitosas, por favor. De repente
senti uma vontade enorme de comer uma delas.
Misha
sorriu outra vez; um sorriso aberto e enganador; calculado, como as suas estudadas
acções de sedução.
Aquele
sorriso pareceu, ao outro, uma grande provocação. O rapaz saiu, sem dizer nada
mais.
-
Que se fodam as natas…
O
imprecativo saiu sem censura de sua mente, enquanto levava a louça suja para a
cozinha do Café. Que outro se
encarregasse de servir-lhe as natas…
(Grande filho da
puta!)
***
- Senti-me mal e
culpada. Fui fraca e deixei-me levar por uma situação, que podia facilmente
controlar.
- Estavas carente e
insegura...
- Não diminui a
minha responsabilidade, nem o sentimento de culpa. Que burra eu fui!!! Olha só
no que deu…
A
terapeuta tentou não rir-se da atitude dela.
- Culpar-te, não
vai resolver nada, nem trazer ninguém de volta. Sabes disso.
- É. Eu sei muito
bem…
- Então, aceita e
toca a vida adiante. Concentra-te no que seja importante, neste momento…
- Na morte… e no
mistério que ficou…
Os
olhos da investigadora pareceram levá-la para longe dali. A terapeuta
observou-a franzir o cenho, como se estivesse vendo algo que não havia
percebido antes…
***
- Como é que ele soube?
A
mulher, visivelmente alterada, mostrava a mensagem no visor do telefone: “Dói. Muito!”
- Não sei. Por que tu achas que
eu tenho alguma coisa a ver com isso?
- Não sejas, cínico, Misha. O que
foi que tu disseste a ele?
- Eu disse-lhe que podia acabar
com a sua dor… se ele deixasse…
- O quê?
- Mas ele não quis ouvir-me.
Disse que não queria nada de mim… nem comigo…
- És louco, ou o quê?
- Por quê? Ele até que era bem interessante…
Misha
riu. Estava a provocar a mulher, que parecia não gostar, nem um pouco, da
brincadeira.
- Deixe de ser asqueroso! Ele não
é da tua estirpe!
- Não?!? Tens certeza disso? Olha
que ele não foi tão indiferente ao beijo que eu dei…
Ela
levantou a mão e ia dar-lhe uma sonora bofetada, mas ele foi rápido o
suficiente para segurar-lhe o pulso, antes que fosse atingido. Chegou bem perto
da face dela e riu-se. Olhou-a nos olhos e disse, bem devagar:
- Eu teria me
divertido muito com ele, assim como diverti-me contigo. Aqueles olhinhos
tristes iam ter uma alegria, que ele nunca imaginara ter… mas ele... digamos
que desistiu, antes de saber.
- Solte-me, seu
grande… porco! Sacana idiota!!!
Ela
levantou o joelho, num gesto defensivo e atingiu-o numa parte delicada, entre o
alto das duas pernas, levando-o a perder o controle e cair ao chão, urrando e
contorcendo-se de dor.
- Vaca!
- Vá para o
inferno, seu filho da puta!
A
mulher saiu, fumegando, pela porta afora, com o peito arfando, cheia de asco e
revolta, deixando o agressor jogado no meio da sala.
Ao
cruzar a soleira e puxar a porta atrás de si, ainda ouviu um misto de gemido de
dor com uma gargalhada de deboche, do rapaz loiro e de olhos azuis, tão
profundos quanto o Oceano Pacífico, mas com a alma tão fútil quanto a de um anjo
caído.
- Vais pagar por
esta…
***
- O que tu queres
aqui? Vá embora!
- Vim trazer-te uma
garrafa da melhor vodka russa que há. Ajuda a aliviar a dor.
- Por que tu achas
que eu quero alguma coisa, que venha de ti? Já não fizeste mal suficiente?
Ainda não estás contente? Tens que destruir tudo que tu tocas?
- Deixa-me entrar e
conversamos.
Ele
abriu aquele seu sorriso estudado e segurou o braço do rapaz que estava a
bloquear sua entrada no pequeno apartamento onde morava. O outro reagiu
imediatamente.
- Saia já daqui!
Levantou
o punho e deu um soco contra o vazio, pois Misha conseguiu esquivar-se
rapidamente. Quase imediatamente, aproveitou-se da vantagem, deu um golpe
certeiro, com a mão cheia e aberta, no peito do rapaz, que perdeu o equilíbrio
e caiu, por cima da perna, que Misha colocara à frente, propositadamente. Meio
corpo caído para dentro do apartamento foi o suficiente para permitir que entrasse,
sem dificuldade, com a garrafa de vodka, cheia, na mão. A porta fechou-se,
assim que o outro levantou-se, ainda meio desnorteado.
***
- É melhor vir aqui
urgentemente… acho que estávamos bastante enganados.
- Como assim?
Enganados?
- O resultado da
autópsia saiu. A ‘causa mortis’… não foi o que pensamos
inicialmente.
- Já estou a
caminho.
A
mulher desligou o telefone e entrou no carro, apreensiva. Em sua cabeça,
milhares de perguntas, sem resposta, iam-se formando, enquanto conduzia, quase
instintivamente, até o laboratório da Polícia.
Pela
janela, as imagens iam passando, num show de slides vivos, enquanto em sua
mente as impressões, sensações e sentimentos atropelavam-se, como se quisessem
manifestar-se todas ao mesmo tempo.
Sombra…
Crianças correndo... Sol... Árvore... Vidro e concreto... Muro... Hidrante…
Sombra... Carro parado… Meninas, vestidas com uniforme da escola, a rir alto...
Semáforo... Vermelho... Dor… Céu azul… Muita dor… Avenidas… Aço, concreto e
vidro… ângulos rectos… esquinas e cruzamentos com sinais em vermelho… Sangue… Morte…
Suicídio? … Homicídio? … Acidente?... Por quê?
***
- Nunca vamos
conseguir provar que foi crime. O nível de álcool no organismo dele era
demasiadamente alto. Estás a ver esta marca?
Ela
confirmou, ao ver a marca de uma batida na têmpora do rapaz morto. O médico
legista apontava uma grande lesão, causada por uma superfície em ângulo recto,
como numa quina de algo.
- Ele caiu, bateu
com a cabeça, enquanto ia em queda e estatelou-se na calçada. Encontramos uma
marca de sangue numa das sacadas da escada de incêndio. Pelo jeito, é mais que
uma simples teoria. Só não conseguimos saber se houve intervenção de alguém… se
foi empurrado ou algo assim. Não há nenhuma evidência no corpo, que demonstre
isso. Procurei em tudo, mas não encontrei absolutamente nada. Jamais saberemos
a verdade, pelo que pude deduzir…
Mas
algo nela dizia que alguém tinha mais a ver com o ocorrido, que as evidências
conseguiam demonstrar cientificamente.
***
Quando
a mulher entrou no “Templo”, já era o
final da tarde. A iluminação dentro do grande salão trouxe-lhe memórias de um
tempo que pareceu-lhe, de repente, tão distante. Uma estranha nostalgia fê-la
olhar tudo com outros olhos. Era, agora, uma investigadora de polícia, em busca
de respostas. Não estava convencida da inocência de ninguém… nem da dela mesma…
Dirigiu-se
ao bar, no centro e perguntou ao servente, que já conhecia:
- Tens visto Misha?
- Faz algum tempo
que não aparece por aqui. Dizem que voltou para o lugar de onde veio, mas quem
poderá dizer com certeza?
***
Sentado
à minúscula janela, o rapaz de olhos azuis olhava para fora, atento aos
movimentos na pista do aeroporto. Temia que a qualquer momento a polícia
invadisse a nave e o levassem para uma sala de interrogatório. Apesar de a
temperatura estar regulada para cerca de 21 graus, Misha suava.
Quando
as portas fecharam de vez e o avião ganhou a pista, em alta velocidade e
levantou voo, deixando para trás a terra em que viveu por uns bons anos, Misha
fechou os olhos e expirou, aliviado.
Em
seus olhos, a imagem do rapaz, visivelmente bêbado e fragilizado, sentado no
chão da sala, ainda estava bastante vívida. Seus braços estavam enlaçados a
volta daqueles ombros, enquanto o outro chorava, angustiado, como uma criança.
Misha aproveitou-se do momento e beijou-lhe, delicadamente, os lábios. O rapaz
não o rejeitou, a princípio. Deixou-se levar por uns poucos segundos…
- Teus lábios são
mais doces e macios que os dela…
O
jovem afastou-se, indignado, passando a manga da camisa sobre a boca. Enojado,
tanto pelo que acabara de fazer, quanto pelo que ouvira, saiu pela porta que ia
até a sacada. Misha seguiu-o, agindo naturalmente, como se fora a coisa mais
natural do mundo.
- Não há nada de
errado com isso. Foi somente um beijo...
- Afasta-te de mim.
Já não basta o mal que causaste? Tens que destruir tudo que tocas, até o mais
ínfimo detalhe?
Misha
estendeu a mão, mas o outro reagiu com violência e um tanto de asco. Ele insistiu
em se aproximar. Ao tentar afastar-se, sem ter consciência exacta de onde pisava,
o rapaz chegou-se para trás, tropeçou num pequeno degrau e perdeu o equilíbrio,
batendo contra a grade de ferro que protegia – muito mal – quem estivesse na pequena
sacada. O efeito do álcool impediu-o de segurar-se, fê-lo perder o controle e
cair… da sacada do quinto andar, contra o cimento frio e duro da calçada,
batendo, durante a queda, na escada de incêndio.
Uma poça de sangue começou a formar-se à volta da cabeça do rapaz caído.
Uma poça de sangue começou a formar-se à volta da cabeça do rapaz caído.
Misha
abriu os olhos. A comissária de bordo vinha pelo corredor, com o carrinho de bebidas.
- O senhor deseja
alguma bebida?
- Sim. Por favor.
Uma vodka.
- Gelo?
- Não. Pura!
***
Fim
de tarde à beira do rio. Debruçada no ‘guard
rail’, a mulher olhava um ponto distante, sem realmente ver, além da outra
margem, onde uma construção com estranhas janelas coloridas erguia-se,
distinguindo-se das outras edificações à volta. O vento, que soprava contra sua
face e jogava-lhe os cabelos para trás, secava-lhe, ao mesmo tempo, as lágrimas
recém-choradas.
Uma
dor corroía-lhe por dentro, sem piedade… a dor que misturava ódio, culpa,
saudade e impotência, diante do maior algoz da vida: a própria morte. A terapia
havia-a ajudado a passar aquela fase de perda e culpa, mas não conseguira fazê-la
deixar de pensar no grande erro que cometera.
Em
sua cabeça, a recordação daquela última noite, ainda estava muito viva. Os
detalhes, ela lembrava que os revivera, inúmeras vezes. As lembranças estavam
tão nítidas, como se estivessem acontecendo naquele momento. Ela fechou os
olhos. Um leve ruído a fez voltar a cabeça.
- Desculpe. Sabe
onde fica o “Templo”?
Ela
virou-se automaticamente, saindo de uma espécie de transe. Quase sem perceber,
olhou directamente nos olhos azuis do rapaz, que vestia uma t-shirt vermelha e que estava em pé, ao seu lado, exibindo
um estranho sorriso nos lábios… A sensação de borboletas, batendo as asas em
seu estômago, lançou-lhe um sinal de alerta, que ela decidiu ignorar.
O
rapaz repetiu a pergunta:
- Sabe onde fica o
“Templo”?
Ela
simplesmente respondeu, sorrindo:
- Sei…
segunda-feira, 19 de agosto de 2013
Outros Estudos em Vermelho e Azul... (Parte 4)
- A senhora sabe porque está aqui?
A mulher, com aspecto um tanto
lívido, sentada à frente do homem de branco, balançou a cabeça, positivamente.
- Teve uma síncope: uma forma de ataque de pânico, ocasionado pelo
excesso de trabalho, provavelmente compulsivo. A senhora tem trabalhado demais,
não tem? Provavelmente não se alimenta, nem dorme direito… A senhora sabe as
consequências disso?
O médico de plantão já conhecia o
diagnóstico, sem precisar fazer mais que uns simples exames à paciente à sua frente.
Os sintomas eram evidentes demais, para quem já estava acostumado a ver,
repetidamente, as pessoas terem comportamentos indecentemente obsessivos em
relação ao trabalho.
- Sei, mais ou menos… mas o ‘SENHOR’ (ela usou uma dose de ironia
ao pronunciar a palavra, fazendo uma pausa quase imperceptível) vai dizer-me de todo o jeito, não vai?
O médico fingiu não perceber o
sarcasmo e disparou:
- Se não procurar ajuda profissional especializada, imediatamente, vai ter
que voltar aqui e com certeza será muito pior… Além de alguns exames médicos e
um acinético, vou-lhe passar o nome de uma óptima psicóloga, mas a senhora vai
ter que se comprometer, sem desculpas, a seguir a terapia à risca…
- Ok, doutor. Eu vou seguir suas instruções à risca… Prometo!
- Já falei com seu superior e ele concorda comigo. A senhora VAI
seguir a terapia à risca.
(Aaarrrghh!!! Agora ele pediu. E
ainda teve a audácia de colocar a ênfase no verbo… Vou-lhe directo ao pescoço…
sem dúvida alguma! Alguém me segure, senão ele não me escapa das unhas…)
Levantou-se, estendeu-lhe a mão,
com educação fingida e, com um sorriso forçado, virou-se e saiu pela porta
afora, com a prescrição médica de um forte calmante dentro do bolso da calça…
***
Um rapaz com profundos olhos
azuis entrou no Café. Avistou a mulher
sentada, sozinha, à janela e aproximou-se.
-‘Posso sentar-me aqui?’
Ela olhou-o, visivelmente pasmada
ante a ousadia do rapaz que acabara de chegar. Ele acomodou-se, antes mesmo que
ela tivesse tempo de responder. Sua acção não passou despercebida de todo. Ele
observou com cuidado o ambiente e o desconforto dela. Viu também que um dos atendentes
de mesas que estava de pé, próximo ao balcão do Café, não tirava os olhos de cima deles. Uma veia perversa
inundou-se o sangue com sede de vingança, mas ele soube permanecer impassível. Precisava
de mais certeza.
Chamou o rapaz para pedir um café, mas com um intuito bem mais
específico. Percebeu o nervosismo de ambos. Suas dúvidas dissiparam-se,
imediatamente, assim que viu a troca de olhares entre os dois. Misha sorriu-lhe
e seu sorriso foi o mais encantador que ele conseguiu produzir. Ela retribuiu,
meio desajeitadamente, sem saber exactamente o que fazer. O rapaz, que os
servia, franziu o cenho.
(Bingo!)
A semente da dúvida havia sido plantada. Agora
era somente uma questão de tempo… e, este, ele tinha à sua inteira disposição… e
mais que de sobra. Misha não precisou, entretanto, de um segundo assédio.
Naquela noite, quando estavam
juntos, após amarem-se como dois náufragos desesperados, em busca de uma tábua
de salvação, enquanto o calor arrefecia seus corpos, o rapaz rolou para o lado
e ficou, em silêncio, a olhar o teto. Ela percebeu que ficou um clima algo
estranho a pairar no ar. Mesmo assim,
falou, com cuidado:
- Eu gosto tanto de estar aqui…
Mas o rapaz parecia estar muitas
milhas distante dela. Uma lágrima de tristeza rolou-lhe pelo lado da face,
quando ele deu um longo e angustiado suspiro…
***
Misha passou a observar, de perto,
os passos da mulher. Viu que suas idas ao Café
da esquina cessaram após aquela ocasião em que esteve presente.
Certificou-se, primeiro, que estava certo, depois decidiu aproveitar-se da
situação. Deixou passar um tempo e voltou ao Café, dirigindo-se ao funcionário de mesa que já conhecia.
Perguntou, como se fosse a coisa
mais natural do mundo, como estava a namorada. Apesar das tentativas do rapaz
em afirmar que não havia nada entre ele e a investigadora de polícia, o outro
não pareceu convencido.
Após uns poucos minutos, Misha
então, desafiou o rapaz. Apostou que conseguia levar a mulher para cama.
- Se não há nada entre vocês, não há porque se preocupar, não é mesmo?
-‘Por que estás fazendo isso?’
- ‘Para provar que as coisas não são o que aparentam ser’…
O verdadeiro intuito, porém,
estava longe de ser tão simples.
***
-Tenho percebido que andas muito sozinha. Cada vez que te vejo, tenho a
impressão que estás mais triste. O menino deixou-te?
- Que menino?
- Achas que eu não sei o que se passa? Só porque não frequentas mais o ‘Templo’,
não quer dizer que passas despercebida… Tu és uma mulher atraente, mesmo por
trás desta fachada séria de policial durona. E eu sei que me achas
interessante.
(‘E arrogante’ - pensou ela, fazendo um leve muxoxo…)
- Vejo o jeito que me olhas e sei que também me deves desejar...
- Se alguma vez te olhei com algum desejo, deve ter sido há muito tempo
atrás. Essa atracção já não existe. Agora eu estou interessada em outro homem,
muito diferente de ti.
- O menino do Café…
Ela meio que entristeceu. Ele
riu, vitorioso.
Ela não negou, nem confirmou. A afirmação
tinha um grande fundo de verdade. Estava-se apaixonando pelo outro rapaz,
embora, naquela ocasião, estivessem separados, depois do incidente em que ele
lhe pedira um tempo para pensar. Seus olhos encheram-se de lágrimas a recordar a
estranheza do último encontro que tiveram. Já haviam-se passado vários dias…
Ele percebeu o estado dela e
aproveitou-se da situação e fragilidade demonstrada no momento. Chegou-se mais
perto, olhou-a nos olhos e sorriu. Ela não conseguiu desviar o olhar. Ele
tocou-lhe, com delicadeza, a face morna e ela, em reacção, fechou os olhos…
***
Misha era um mestre na arte. Sabia
todos os segredos da sedução, como preparar um ambiente sensual e conhecia os
pontos sensíveis do corpo da mulher. Deu-lhe prazeres que ela não sabia que
existiam, mesmo quando estava com seu jovem amante. Era evidente que ele era um
profissional do ramo e sabia muito bem como agradar.
- Agora vais ter que mentir ao menino…
- Eu não minto; só não preciso falar toda a verdade… Nunca prometemos
fidelidade, nem tampouco exclusividade, um ao outro…
Sabia, porém, que o que acabara
de dizer não era bem uma verdade incontestável… e sentia muito que assim fosse.
Como se numa encenação bem ensaiada,
o telefone dela tocou…
quinta-feira, 6 de junho de 2013
Outros Estudos em Vermelho e Azul - Parte 3
O fino veio de fluido escarlate, ainda levemente viscoso, escorria vagarosamente por entre os espaços das pedras do passeio. Mais à frente, juntava-se a outros, como afluentes a um mesmo rio, formando, ainda mais adiante, uma pequena lagoa esmaltada, tinta de um brilhante tom rubro, que ia lentamente aumentando de tamanho, diante de seus olhos.
Ajoelhada no gasto calçamento de granito cinzento e sujo, ela examinava o corpo caído - meio de lado, meio de bruços - no meio do passeio público. Uma mistura de perturbação e profunda dor comprimiram-lhe o peito, ao tocar a pele - ainda morna - do jovem homem. Impelida pelo senso de dever, tentou privar-se de pensar em seus sentimentos, procurando ser a mais científica e profissional detective, diante da situação e dos factos. Sendo cruelmente consumida pela dor, entretanto, ela não já conseguia separar a razão da emoção. Engoliu em seco, tentando reter as lágrimas que sentia inundarem seus olhos e seu espírito que, em objecção, retribuiu com uma aguda fisgada no principal órgão pulsando em seu peito.
Controle-se, pensou ela. Controle-se…
Aqueles olhos, de um tom intenso de safira, ainda abertos, não pareciam haver sido inteiramente surpreendidos pela fatalidade. Na verdade, davam a impressão de contemplar, imperturbavelmente, o espaço vazio à frente. A mulher estremeceu levemente, tendo a falsa impressão que ele apenas descansava, desajeitadamente, sobre o duro piso da rua. Questionou-se, intrigada e em silêncio, o que aqueles olhos teriam visto, antes que a vida fosse arrebatada deles, triste, violenta e definitivamente?
Desviou a atenção, sentindo um certo mal-estar pela cena daquela peça lúgubre, descortinada ali, diante de si, em vermelho… e azul… Os peritos já chegavam para examinar, detalhada e cientificamente, o corpo e o local, recolhendo amostras de tudo que podiam. Alguém dignou-se a fechar-lhe, com cuidado, as pálidas pálpebras. Ele, agora, parecia serenamente adormecido…
Curiosos ajuntavam-se à volta, apesar do cordão de isolamento estendido pela polícia em volta da cena do crime. Seu mal-estar cresceu diante daquela situação. Pensou em abutres em torno de um animal morto, prontos a atacar, na primeira oportunidade. Aquele pensamento inquietou-a grandemente, ao ponto de fazê-la querer estar longe dali, alheia a tudo e a todos.
Numa situação normal consideraria um corpo sem vida como um objecto de estudo… um conjunto de provas que se tornariam irrefutáveis para os peritos do laboratório forense determinarem a causa da morte e conduzirem as investigações aos policiais.
Aquele caso específico, todavia, mexera bastante com seus nervos. Sentiu uma súbita convulsão no estômago. Teve fortes ânsias de vómito. Precisava de ar fresco, distância daquele local e um pouco de descanso.
As luzes a piscar intermitentemente feriam-lhe os olhos, enquanto as imagens misturavam-se em sua mente, tornando difícil separar passado e presente, realidade e imaginação, memórias e factos. Apesar daquele tipo de ‘espectáculo’ não lhe ser nenhuma novidade, o excesso de horas seguidas de trabalho, sem repouso, estava dando cabo de sua paciência, com uma facilidade descomunal.
A investigadora de polícia – sempre durona, fria e impessoal - começava a mostrar sinais de fraqueza e stress. O facto de conhecer a vítima contribuía grandemente para aumentar o seu incómodo e incutir-lhe uma estranha sensação de culpa, que já começava a aumentar o peso em sua torturada consciência. Ela estava de pé por mais de 24 horas, não dormia direito já por vários dias seguidos e começava a desconfiar que a quantidade de cafeína ingerida causava-lhe delírios.
Percebeu, quase sem querer, que do outro lado da pequena multidão de curiosos, ela estava sendo observada por um certo par de olhos profundamente azuis – como as águas do Oceano Pacífico. Ele estava lá, atento a cada movimento que fazia, como se a estudasse com grande interesse. Se a vigiava como a uma presa, preparando um futuro bote, ela não tinha realmente certeza, mas aquela visão deixou-a, de alguma forma inquieta e desconfortável. Qual a relação que ele tinha com aquele contexto, ela ainda não sabia, mas o instinto de policial bem treinada acendeu uma luz vermelha dentro de si e alertou-a para o facto de que aquela não era uma curiosidade inocente… nem tampouco casual.
Franziu o cenho, ao olhar naquela direcção, mas uma distracção qualquer a fez perder o contacto visual com o rapaz. Quando tornou a procurar Misha, no meio da multidão, este já havia desaparecido. Perguntou-se se o havia visto realmente, ou se o havia imaginado naquela cena.
Vermelho… azul… vermelho… azul…
As luzes acesas em cima das viaturas policiais pintavam a noite com tons quase irreais de cores fortes. Os olhos da mulher, anteriormente atentos, começaram a perder o foco, gradativamente, enquanto ela procurava, na faixa por detrás do cordão de isolamento, a presença do personagem que ela não tinha certeza de haver verdadeiramente visto. Os sons das vozes, sirenes e trânsito foram-se distanciando, lentamente… Sentiu as pernas fraquejarem e, por sorte, estava suficientemente próxima do carro parado, para poder apoiar-se. Fixou-se nas cores a girar, na tentativa de voltar a manter o foco, mas sua mente começou a vaguear no tempo…
Os olhos azul-cobalto… o facho de luz filtrada pelo vitral vermelho da janela… outros olhos de um distinto tom de safira… a explosão em vermelho dentro de si… os olhos azuis do corpo caído na sarjeta… a poça de sangue vermelho e brilhante à volta do rapaz morto…
- Pare de olhar estas luzes assim...
Sentiu um firme puxão no braço, fazendo-a voltar à realidade…
***
- Eu gosto tanto de estar aqui… Contigo sinto-me segura e bem… protegida, como toda mulher deve, na verdade, sentir-se…
Deitada ao lado dele, na ampla cama de casal, ela esperou uma reacção. À declaração seguiu-se apenas um profundo suspiro. Ela virou-se para ele e viu que uma lágrima silenciosa e solitária escorria-lhe lentamente pelo lado do rosto.
Num gesto de espontâneo carinho, ela tocou-lhe, com cuidado, a face molhada. Uma sensação desconfortável envolveu-lhe o espírito, como se o prenúncio de uma tragédia se aproximasse a passos largos.
Ele deu outro suspiro e falou, com voz grave e baixa:
- Só não me faça sofrer, por favor. Já passei por muita dor na minha vida. Não sei quanto mais eu iria conseguir suportar...
Num momento em que deveriam estar relaxados e felizes, fazendo planos para o futuro, ou rindo de coisas bobas, ele, de repente parecia tão distante e tão perdido… tão sem perspectivas…
Ela puxou-o para si e abraçou-o com força, sem dizer nada. Ele entregou-se àquela demonstração de ternura e chorou, com a cabeça nos ombros da mulher que, naquele momento mostrava-se tão forte a ampará-lo, enquanto ele desabava diante dela, deixando cair todas as suas defesas, sem medo de parecer ridículo. Quão frágil e carente aquele homem se encontrava ali, aninhado em seus braços… Seu choro era triste… angustiado… convulsivo...
Ela beijou-lhe a cabeça, com suave e autêntica afeição.
(Vinte e seis anos de idade e já assim tão sofrido? Quem fez isso contigo, minha criança? Quem te magoou esse tanto a ponto de deixar-te tão desiludido… tão fragilizado?)
Um sussurro, ao pé do ouvido, foi o melhor que pode oferecer-lhe. Ele suspirou e, aparentemente, acalmou-se, ainda abraçado a ela.
- Não tenha medo, meu menino, de parecer fraco. Não tens que ser forte sempre. O passado, que te trouxe até aqui, ficou lá atrás. Deixa-o ficar onde ele pertence. Ele pode ter feito quem tu és, hoje, mas não precisa determinar quem tu serás amanhã. O que passou, passou, meu querido amigo. O presente é aqui… comigo. O que vier daqui para frente só depende de ti… de mim… de nós… mas o melhor ainda está por vir… acredita em mim… Para falar bem a verdade, eu não tenho saudades do passado que vivi. Eu acredito num futuro melhor e quero que faças parte dele. Confia no teu coração… e no meu... Dê uma hipótese a nós dois para que essa relação possa dar certo.
Ele não respondeu. Ficou em silêncio, como se estivesse tentando absorver o sentido daquelas palavras, digerindo-as devagar, depois de mastigá-las um grande número de vezes. Sabia que ela estava correcta, mas não tinha convicção de haver-se convencido a entregar-se totalmente, como quem se jogasse na escuridão fria e incerta do oceano, numa noite de tempestade.
Ela percebeu que, afinal, eram ambos náufragos, em um mar de decepções passadas e tinham receio de ter o coração machucado, como já havia acontecido vezes sem conta, pelo menos no seu caso. Ele também parecia haver experimentado profundas decepções – daquelas que fazem o medo ofuscar a razão e bloquear a emoção. Para não sofrer, tanto um como o outro, restringiam, assim, o ‘permitir-se enfrentar’ o que a vida pudesse lhes oferecer, aberta e intensamente, por tanto tempo quanto merecesse durar qualquer relação afectiva…
Apesar de encorajá-lo, ela percebia que também estava assustada…. Na verdade, sentia-se cada vez mais angustiada e assustada…
- Eu preciso de um tempo… sozinho… Estou tão confuso neste momento…
(Oh, Deus… e essa agora…)
Naquele momento ela pareceu distanciar-se daqueles olhos azuis e daquele sorriso de menino travesso, pelos quais havia-se deixado, inadvertidamente, apaixonar. Aquele pedido havia-lhe caído como uma grande pedra na água serena de um lago, levantando uma imensa onda… de apreensão… em seu coração. Custava-lhe acreditar que ele dissera aquilo, daquele jeito, ali, naquele momento…
(Quantos erros podem ser cometidos, até uma pessoa se convencer que apenas os repete indefinidamente?)
***
Assegurou à amiga que estava bem e que podia conduzir, sozinha, para casa. Deixou-a, ainda um tanto desconfiada, numa estação de metro e seguiu adiante, já pensando no conforto de um banho quente e da grande e confortável cama. As luzes da noite passavam, praticamente imperceptíveis, pelas janelas do carro, em velocidade acelerada.
Vermelho…
A mudança repentina na cor da luz no semáforo à sua frente a fez pisar nos freios com força. Um caminhão de bombeiros, seguido de uma ambulância - ambos com as sirenes ligadas - passou em alta velocidade pela rua transversal à que estava parada.
Ela se viu, entre imagens trazidas à sua mente activa e consciente, cercada de braços, mãos, estilhaços de vidro e vozes - que ouvia, mas não conseguia compreender. Apagaram-se as luzes, as vozes, as pessoas e ela deixou de sentir dor, caindo no profundo vazio de um imenso e silencioso buraco negro…
Lembrou, então, de quando acordou do coma a que esteve por uma boa temporada. O trágico acidente de viação deixara-a entre a vida e a morte, em coma, por um longo tempo. Perdera, definitiva e irreparavelmente, quem mais havia amado até então. O marido não resistira ao impacto da colisão e morrera instantaneamente. A ela, foi restituída a vida, mas não sem um preço.
Enquanto estava no hospital, pessoas que a visitavam traziam-lhe presentes e flores, em tentativas desastradas – a seu ver - de minorar a dor e a solidão da perda e da convalescença pós-coma. Ela se sentia derrotada e assumia que provavelmente não tinha direito aos presentes que lhe traziam. A compensação parecia-lhe imprópria e injusta. Flores e presentes passaram, então, a representar sua grande perda, portanto ela abominava-os com todas as suas forças.
A partir dali, passava a ficar desiludida para o resto da vida, de modo a sentir aversão a toda e qualquer ocasião que se relacionasse com presentes. Paradigmas que se repetiam. Continuava a deixar-se levar pelo comportamento padrão que tinha menos direito que os outros. Queria satisfazer os desejos dos outros, sem pensar naquilo que realmente queria.
(A vida, por ironia ou maldade, como resultado do acidente, privou-me do direito de procriar. Eu confundi com o direito de amar ou relacionar-me e assumi que tinha de ser durona, insensível, quase masculina, característica que se acentuava até no modo de vestir-me. Meus poucos relacionamentos, após aquele, haviam sido fugazes, sem nenhuma profundidade. Nas duas únicas vezes em que tivera um mínimo de esperança em ter alguém por mais tempo, fora surpreendida com os tristes e cruéis golpes do destino. Parece que tenho um pesado ‘carma’ a pagar e este está a custar-me bem caro…)
Ela se tornara uma pessoa solitária, amarga e sem expectativas em emoções e outras coisas imateriais, que decidira dedicar-se inteiramente ao trabalho, já que não sobrava muita coisa além daquilo em sua vida. As longas horas de trabalho duro e obsessivo afastavam-na de pensar em sequer relacionar-se com alguém. O que ela mais prezava era aquele pouco de paz, quietude e o conforto do silêncio, quando voltava para casa no fim do dia, onde o fiel Ginger sempre esperava à porta, invariavelmente, saudando sua chegada, sempre disposto a ganhar um pouco de atenção e esperando ser alimentado convenientemente.
Tinham uma relação bastante especial e única. Passavam o tempo livre dela sempre juntos, muitas vezes em intuitivo silêncio ou ouvindo música baixinho, grudados um no outro, deitados no sofá da sala, em dias frios, debaixo de um espesso cobertor. Era ele quem a ouvia, talvez sem compreender, quando a mulher entrava em modo de depressão, mas o bichinho nunca reclamava – apenas a olhava nos olhos, como quem dissesse: ‘eu não sei se percebo bem o que dizes, mas estou aqui, a dar-te todo o apoio que precisares’.
Esboçou um sorriso um tanto triste ao pensar no seu companheirinho de quatro patas e voltou à realidade do momento presente.
O sinaleiro havia estado em vermelho pelo que tomou por tempo demasiadamente longo. Sua cabeça não conseguia manter o foco em nada, por mais que umas fracções de segundos. Seus pensamentos voltavam invariavelmente para aquela cena e para os olhos que a observavam, como se analisassem seus movimentos, por um lado, mas por outro mostravam algo mais: talvez uma espécie de retaliação. E se, conscientemente, ele a estivesse punindo por não havê-lo ajudado? E se ele estivesse a vingar-se, tirando-lhe algo que sabia que ela prezava, para compensar a noite que tivera de passar na cela da cadeia, por não ter como pagar uma fiança?
O sinal mudou para verde e ela prosseguiu, pelas ruas da cidade, semi-consciente do que fazia, confiando mais no instinto que em seu estado de alerta. Uma pontada de dor atingiu-lhe as têmporas e os músculos em seu pescoço formigaram. Tensão, pensou… Precisava parar.
Já via diferentes olhos em todos os diferentes lugares. Ela não tinha certeza se estava fascinada ou em completa alucinação. Não conseguia parar de pensar na fascinante cor azul daqueles expressivos olhos, que faziam parte de seu passado recente, tão cruel e violentamente arrebatado de si.
Chegar em casa foi uma experiência estranha, da qual não se recordava de nada muito claramente. Parecia haver uma névoa em seus olhos e em seu discernimento. Estava praticamente semi-consciente. Só deu-se conta de onde estava, depois de sair do carro, caminhar até a porta do saguão e deixar cair as chaves da mão.
Foi como se acordasse de um estranho transe. Sua cabeça parecia estar em turbilhão e os pensamentos não encaixavam… eram uma sequência recortada de imagens passando completamente sem nexo – aleatória e rapidamente.
Não sabe ao certo como chegou à porta do apartamento. Entrou e jogou as chaves sobre a mesinha no hall de entrada, seguindo para a cozinha, a fim de preparar algo para comer.
Ginger a esperava naturalmente ansioso, como todos os dias quando chegava em casa e saudou-a com uma cabeçada na perna: sinal que estava na hora da sua comida. Alimentou o bichinho e preparou para si uma sanduíche de queijo quente, por ser mais prático e rápido e por ser já bastante tarde na noite.
Uma taça do seu vinho tinto favorito acalmou seus ânimos e relaxou-lhe o corpo demasiadamente tenso. O banho ia ter de esperar. Jogou-se no sofá da sala logo em seguida, ainda completamente vestida, atirando os sapatos para o lado, para o desespero do gato, que abominava desarrumação. Seu pequeno companheiro aproximou-se, deitou-se sobre seu peito, ronronando de satisfação e olhando no fundo de seus olhos, como costumava fazer, quando queria um carinho.
Adormeceu ali mesmo, cansada que estava para fazer qualquer outra coisa minimamente producente.
Os olhos azuis perseguiram-na pela noite adentro, em sonhos cheios de agonia e suor frio, num sono agitado, como já vinha ocorrendo muitas vezes ultimamente. Acordou-se no meio da madrugada, mais cansada do que se não tivesse dormido ali, devido ao pouco conforto do sofá… Levantou-se sentindo frio, tomou um duche morno, enrolou-se no roupão e foi preparar algo quente para beber. Estava ainda tão tensa que não iria conseguir voltar a dormir, de todo jeito.
Uma boa xícara de café forte iria deixá-la desperta o suficiente para pensar e avaliar mais coerentemente as circunstâncias e os eventos do último dia. Precisava juntar os factos de maneira lógica. Tinha que tentar seguir uma linha de raciocínio que a levasse à uma conclusão acertada, ou pelo menos que desse uma pista de como desvendar aquele mistério. Seu instinto apontava uma direcção, mas precisava de factos concretos e sabia que ia ter que esforçar-se bastante para consegui-los.
Começou a fazer anotações apressadas, sem muito critério, como se num brainstorming, para tentar organizar os detalhes ainda vivos em sua memória. A aparente tranquilidade na face do rapaz morto ainda a intrigava. Por qual razão não deixara gravada nenhuma surpresa no olhar congelado pelo último acontecimento de sua vida, ela não conseguia ainda perceber.
O que mais a atormentava, porém, naquele momento, era descobrir qual a relação Misha tinha com aquela cena toda. Não poderia estar apenas por um acaso do destino, naquela hora, naquele lugar. Não era um comportamento que ela aceitaria com base no que conhecia dele. Ela tentava sem parar, mas sua cabeça começava a dar sinais de cansaço.
A sua velha conhecida dor nas têmporas, voltou a afligi-la, impedindo-a de pensar claramente. Sentiu os músculos atrás do pescoço e ombros a formigarem. Passou, instintivamente, as pontas dos dedos pelos músculos doloridos… A um calor subindo-lhe pela espinha, seguiu-se uma tontura quase deliciosamente confortável, como se fosse o torpor gerado pela ingestão de uma grande taça de vinho, quando se está com o estômago vazio. Ela fechou os olhos e deixou-se cair numa escuridão suave e silenciosa, apagando completamente todos os sentidos…
domingo, 19 de maio de 2013
Outros Estudos em Vermelho e Azul - Parte 2
- E se eu me apaixonar por ti?
Ela não esperava por aquilo… A
mensagem a piscar no espaço digital à sua frente, naqueles longos segundos,
causou-lhe surpresa e um certo alarme. Em sua mente, foi como se uma luz
vermelha acendesse, imediatamente, em reacção àquelas palavras.
(Oh, Deus! E se eu já estiver apaixonada por ti, meu menino?)
Como responder àquela pergunta,
sem demonstrar todas as suas apreensões e suas dúvidas, somadas aos seus
desejos tão cuidadosamente dissimulados e ao seu receio de perdê-lo?
E se ela não estivesse preparada
para dizer-lhe, ou mesmo envolver-se mais que já realmente estava? Teria sido
cedo demais? Relacionamentos são sempre tão complicados, ponderou a mulher,
antes de tentar expressar o que realmente se passava na sua cabeça…
Por sorte, estavam apenas a
conversar no ‘cyber-chat’, sem câmera
ligada, por isso não precisava demonstrar as emoções expostas claramente em seu
rosto naquele momento. Ela digitou a mensagem e acrescentou um ‘emoticon’, representando um abraço. Decidira
ganhar tempo…
- Do que tens medo, meu amigo? De te machucar?
- Eu, na verdade, não sei do que tenho medo…
Ela ficou em silêncio… Aquela declaração
havia sido quase óbvia. A nova experiência, com uma mulher madura e
aparentemente mais experiente e destemida, podia ser a única razão pela qual
ele pudesse ter algum receio de arriscar-se. Mas, afinal, o que ele perderia se,
por acaso, se aventurasse a ficar com ela, enfrentando tantos temores e tantas
inseguranças? Ela estaria lá, para ele, o tempo todo… ou, pelo menos, enquanto
a eternidade do relacionamento durasse…
Sabendo o efeito que a próxima
mensagem ia ter, ela digitou-a, premiu a tecla “Enter” e esperou.
- Só um OK? Tu sabes como eu odeio quando envias somente um “OK”… dás-me
a impressão que não te importas… que não faz nenhuma diferença…
Ela riu e disse a si mesma, em
voz alta: Faz diferença, sim. Claro que faz…
Ela sentia um enorme carinho por
aquele rapaz que a fizera sentir-se feminina e viva, depois de um longo tempo.
Ele já fazia parte de sua história, ela reconhecia. E aquela parte de si, que
envolvia-se cada vez mais naquele relacionamento, confirmava as palavras que
ela havia pronunciado em alta voz. Fazia
uma diferença, sim… e esta diferença era bem grande…
E pensar que todo aquele
envolvimento começara a partir de um desvio casual de estratégia, para evitar o
contacto com outro personagem, inconveniente, que costumava fazer suas investidas
num bar recentemente inaugurado, à beira do rio…
Seus olhos perderam o foco,
automaticamente, quando as lembranças preencheram sua mente, como numa
avalanche incontrolada de memórias.
***
Vermelho…
A luz do sol de fim de tarde de
verão, que infiltrava-se pela parte de cima do vitral em arco - decorado com pequenos
detalhes florais um tanto ‘sui generis’,
à volta de um fundo vermelho, acima da linha de luminárias penduradas no teto
abobadado - causava um efeito luminoso bastante encantador a quem entrava. Na
parte central do grande salão, um bar fora construído em forma ovalada, de modo
a ter-se acesso por todos os lados, sem causar filas de atendimento aos
usuários.
‘O Templo’ era o lugar da moda. Os vitrais coloridos nas janelas em
arco gótico lembravam antigas igrejas, fazendo com que a incidência da luz do
dia diminuísse a necessidade de lâmpadas e luminárias acesas e tingisse o
ambiente com vários matizes de cores intensas.
A acústica era bem projectada, de
maneira a não criar reverberações devido ao alto pé direito do edifício e
aproveitar a distribuição dos altifalantes no grande salão, ainda assim
permitindo que se conversasse em tom razoavelmente baixo, sem poluir o
ambiente, devido ao volume da música ambiente. Tudo havia sido cuidadosamente
calculado, de modo a tornar o lugar devidamente aconchegante e convidativo.
O ‘happy hour’ era um acontecimento à parte. Música ‘Vintage’ para um grupo mais tranquilo de
frequentadores, que mudava consideravelmente à partir de um certo horário mais
adiantado da noite. Às quintas-feiras, especialmente, transformava-se em uma
grande festa com música electrónica e dança num ambiente paralelo. Era noite da
juventude e, assim, evitada pelos mais tradicionais.
Um longo e cansativo expediente
havia terminado e a investigadora de polícia decidira conhecer aquele novo
estabelecimento, do qual já muito ouvira falar, construído à beira da foz do
rio. Precisava beber algo… talvez um refresco, talvez uma bebida mais forte.
Quando entrou, a atmosfera
pareceu-lhe um tanto surreal. O ambiente era encantadoramente criativo e
inovador, tocando música bastante a seu gosto - incomum, até - em um volume
deliciosamente relaxante, àquela hora da tarde. Um facho de luz colorida - que
vinha de cima, em um ângulo agudo com o piso de madeira pesada e escura - quase
transformava o rapaz recostado no balcão, em personagem de um estranho conto de
fadas, pintado em matizes luminosos de vermelho.
Ele estava virado para a entrada,
brincando com um copo de cerveja à mão. Moveu-se para frente, saindo do facho
de luz filtrada pelo vitral. Ela percebeu sua mais fascinante característica,
assim que os viu pela primeira vez…
Azuis… como as águas do Oceano Pacífico…
Era assim que ele se referia aos
seus próprios olhos. Estes eram de um tom de cobalto tão intenso e tão
brilhante, que atraíram a atenção da investigadora quase de imediato. Acima
deles, molduras de sobrancelhas quase invisíveis, decoravam-lhe o olhar maroto.
A barba de pelos aloirados – estrategicamente
deixada por fazer já havia alguns dias -, adornava a atraente e harmoniosa face
- masculina e angelical, ao mesmo tempo. O sorriso era largo e adorável, com
dentes bem proporcionados e asseadamente brancos. Os lábios eram demasiadamente
bem desenhados. Os cabelos claros, com os quais o vento de fim da tarde
brincava, todas as vezes que a porta se abria, desafiava-a a desviar o olhar,
que já se encontrava magnetizado pela beleza ímpar do rapaz.
Ela perdeu a noção do tempo a
contemplar o impossível – ou inatingível -, no que pareceu-lhe um momento
infinitamente longo. Os olhos que miram o sol por muito tempo podem ficar
irremediavelmente queimados, foi o que pode perceber logo em seguida.
Misha tinha plena ciência de haver
causado um efeito surpreendente na mulher que acabara de entrar e que não desviava
os olhos de si. Sabia que era observado com grande interesse e fazia seu show
particular a provocar, enquanto ouvia e cantarolava, ao mesmo tempo, a canção
que lhes servia de trilha sonora para aquele momento – uma fusão de jazz
moderno com bossa nova – levemente dançante e altamente sensual.
“When loving me is so
easy, then why do I feel twisted, Cupid?” (from ‘Twisted Cupid’ – by Slow Train
Soul)
Aquele jovem homem sabia usar seu
charme de uma maneira extremamente provocante e com a maior naturalidade.
Quando cruzou o olhar com o dela, mostrou-lhe seu melhor sorriso, sabendo que
sua jogada era magistral e a mulher que o observava estava fascinada pela sua
figura imponentemente sedutora.
Na verdade, porém, sua presença
ali não era tão inofensiva quanto pareceu-lhe à primeira vista. Em pouco tempo,
seus olhos treinados perceberam mais que segundas intenções naquela parada para
um nem tão inocente drink ao final da
tarde. Ali havia mais mistérios encobertos, que ela decidira tentar desvendar,
sem que deixasse ele perceber suas reais intenções. Sob uma fachada de modelo
profissional, ele escondia o lado um tanto mais obscuro de sua personalidade.
Ser um ‘escort’ não era, definitivamente, sua menos bem-vista ocupação…
Passou a visitar o ‘Templo’ assiduamente. Às vezes ia sozinha, às vezes encontrava-se
com uma amiga, que era fotógrafa e repórter.
Em pouco tempo conseguiu avaliar
o seu comportamento e perceber o tipo de pessoa que o rapaz era. Aproximar-se
dele e incitar conversa havia sido um acto natural, já que sua presença naquele
lugar tinha um objectivo que tornou-se claro com o passar do tempo.
Assim que conversaram pela
primeira vez, a imagem que ela tinha dele decaiu muito, mas piorou bastante nas
ocasiões seguintes. Ela já estava acostumada com pessoas que não sabiam ouvir,
por terem o ego demasiadamente inchado, mas Misha ultrapassava todas as
expectativas. Não demorou a revelar-se um grande manipulador. Esta
característica dele, porém, ela conseguiu detectar a tempo de não se permitir
ser usada ou de fazer alguma grande tolice.
Aquele encanto inicial fenecera
rapidamente, tão logo compreendera quem ele era, por trás daquela atraente -
porém vazia - beleza física. Por dentro não passava de um homem um tanto amargo
e muitíssimo petulante - bastante patético e, até certo ponto, tocando as raias
do pedantismo. Uma pessoa que deixava muito a desejar em termos de confiança e
com uma tendência muito clara a se aproveitar das fragilidades das pessoas. Ele
não recebeu bem sua recusa em ajudá-lo em seus esquemas para levantar dinheiro
ou em acreditar em suas histórias trágicas, que sempre apareciam, devido ao seu
sangue quente e arrogância natural da juventude, aliados a um narcisismo
soberbamente agigantado.
Decidiu ter cautela ao tratar com
ele, para sua própria segurança.
Como já seria de esperar, foi fácil
decepcionar-se mais, com o passar do tempo. Numa briga de rua, os envolvidos
foram parar na delegacia onde a investigadora trabalhava. Por um infeliz acaso,
ela cruzou a sala, no momento em que Misha esperava sua vez de dar declaração.
Ele logo percebeu sua presença. Seus perspicazes olhos pousaram sobre ela, com
curiosidade intrigante. Franziu o cenho, como se estranhasse vê-la naquele
lugar, tão à vontade. Ela desviou-se sem dar nenhum sinal de reconhecê-lo. Ele
ainda tentou chamar-lhe a atenção, mas ela desapareceu da vista, antes de
demonstrar qualquer reacção. O rapaz, percebendo que ela o evitara, registou o
comportamento da mulher no seu subconsciente, assim como aquela nova informação
que acabara de obter, como se fosse um bem-vindo presente do destino. Haveria
de aparecer uma oportunidade para utilizar aquela novidade. Bastava ter
paciência…. E ele não ia perder nada por esperar. Apesar de estar sendo
registado na delegacia de polícia por atentado à ordem pública, o rapaz de
cabelos loiros e olhos azuis sorriu. Acabara de arranjar uma carta útil, para
manter escondida na manga, até a hora certa de jogar.
Ela resolveu evitar sua
frequência habitual ao ‘Templo’. Não queria expor-se tão cedo. Talvez o
incidente pudesse ser esquecido em pouco tempo, mas ela tinha receio que ele
fosse cobrar uma explicação para sua atitude do outro dia.
O ‘Café’ da esquina, próximo à sua morada, pareceu-lhe ser a
alternativa mais viável, para desestressar no final do dia… pelo menos enquanto
ela tentasse evitar encontrar-se com o belo, porém perigoso, Misha.
***
Vermelho… Azul... Vermelho… Azul…
Vermelho... Azul…
- Pare de olhar estas luzes assim. Tu não podes mudar o que aconteceu. Não
há mais nada que se possa fazer agora… Vamos embora daqui. Entre no carro. É
tarde demais...
Ela não parava de falar… e aquela falácia era uma tortura sem igual na
minha cabeça, já bastante fatigada e completamente atormentada. Por que as
mulheres insistem tanto em pensar que sempre sabem tudo? Eu sou uma e não penso
assim… Deve ter algo muito errado comigo…
Ela agarrou-me o braço com força e olhou-me com uma firmeza
perceptivelmente intimidadora, abstraindo-me da atenção fixa às luzes a girar. Se
não fosse a pessoa em quem eu mais confiasse - uma das poucas amigas que ainda
tinha, certamente a teria mandado calar-se e teria me desvencilhado de suas
mãos com um puxão – se tivesse encontrado forças para tal, naquela hora.
Embora não tivesse que esconder minhas emoções, devo admitir que ela
estava certa, afinal. Minha amiga, uma brilhante fotógrafa e repórter, embora
tomando uma atitude que me incomodava, naquele exacto momento, tencionava tão-somente
proteger-me.
Eu estava esgotada, pálida e prestes a perder o equilíbrio e o controlo.
Precisava concentrar-me e recompor-me antes que fizesse alguma asneira. Minha
vontade, porém, era somente de gritar... e gritar alto… bem alto!
(Por que eu não cheguei apenas uns míseros minutos antes, meu Deus, por
que? Tanta coisa podia ser diferente… por que, meu Deus, por que?)
A coerência, porém, forçava-me a engolir minha dor, meu orgulho e minha
fraqueza, para não desabar ali mesmo, na frente de tanta gente. Entrei no
carro, mas não consegui dar a partida de imediato. Ela também entrou e
sentou-se ao meu lado - desta vez calada - mas atenta aos meus mínimos movimentos,
como uma desconfiada gata, à espreita de toda actividade à sua volta e pronta a
não deixar passar nada, sem que visse ou interferisse instintivamente.
As atenções dos curiosos, técnicos e policiais ainda estavam todas
voltadas para a cena a desenrolar-se a poucos metros do carro. Eu sentia como
se estivesse fora daquele contexto, vendo tudo de fora, como num filme, numa
atmosfera bastante surreal. Quase não acreditava o que via diante dos meus
olhos cansados. Aquilo não podia estar, realmente, acontecendo.
As luzes acesas no topo das viaturas policiais, que formavam um paredão
de isolamento de um lado da rua, continuavam a girar e a pintar o cenário,
alternadamente, de vermelho… e azul… e vermelho… e azul…
Fechei os olhos e respirei fundo… Quando os abri, minha visão ainda
estava turva pelas lágrimas que retive, mas decidi ser mais forte que meu
sofrimento. Eu sou uma policial condicionada a controlar minhas emoções e ser
coerente e fria, especialmente diante de situações consideradas fortes pela
maioria das pessoas… Eu sabia que tinha de ser mais que forte, diante daquela
cena, que me abalara, sensível e consideravelmente, as estruturas, mostrando
que, apesar de bem treinada, eu era humana, afinal de contas…
Ela me conhecia muito bem e decidira não dizer uma palavra a mais, felizmente,
enquanto aguardava que eu me recompusesse. Levantei a cabeça, decidida, pigarreei
alto e com energia forçada e girei a chave na ignição…
***
Deitada, sentindo-se estranhamente
desconfortável no macio divã da analista, a inquieta mulher contava a angústia
que passara nos últimos dias. Ao mesmo tempo, sentia sua dor revivida em
detalhes, em cada palavra que usava para descrever o que vira e sentira e que a
fizera estar ali, naquele consultório, sobriamente decorado em tons de sépia e
âmbar, a falar de si – uma das situações mais difíceis que se aventurara a
enfrentar.
A terapia havia sido encaminhada
pelo médico de plantão, que a socorrera, após o princípio de colapso por stress
e excesso de horas em vigília e, provavelmente, trabalho compulsivo. Mal sabia
ele, que a verdadeira razão do ataque de depressão, estava directamente ligada ao
mistério à volta do crime que ela tinha que resolver… tanto as causas, quanto
as consequências, a tirar-lhe noites de sono…
A psicoterapeuta, uma mulher de
idade indefinida – uma matrona de mais de quarenta anos, com certeza - daquelas
que imagina-se, mas não consegue-se precisar exactamente quantos anos já vivera,
induziu-a a percorrer um caminho dolorosamente trilhado, enquanto aplicava
pressão em pontos específicos nas plantas dos bem cuidados pés da investigadora
de polícia. Suas técnicas de shiatsu
e reflexologia, associadas a um planeado exercício mental, onde uma bem
definida linha condutora era dada como guia, tinham um objectivo muito específico
no tratamento: perceber os mecanismos da mente em dissociar e recompor os detalhes
da memória dos acontecimentos e apresentar saídas propostas pela própria
paciente.
A mulher fechou, lentamente, os
olhos. Tanto na sua cabeça, como diante de si, uma sequência de cores
continuava a piscar insistentemente, incessantemente, hipnoticamente, … como se
lâminas giratórias de luz fossem alternadamente recortando as memórias e suas
percepções, … ora em azul… ora em vermelho… azul… vermelho…azul… vermelho…
A triste visão dos olhos azuis a
mirar o nada e uma grande poça vermelha formando-se, lentamente, à sua volta,
atormentavam-na sem lançar um simples vestígio de como encontrar uma saída…
Encurralados na mente grandemente
perturbada pelo sentimento de perda, seus devaneios iam e vinham, misturando
realidade e imaginação, num processo habilmente conduzido pela terapeuta, que
ia dando inputs para uma e outra
linha de reflexão, a fim de encontrar uma forma de escapar do labirinto em que
se encontrava. Era importante trazer à memória os factos e tentar captar mais
detalhes escondidos nos acontecimentos. Sua maior preocupação, porém, era
desvendar o mistério que envolvia o evento recentemente vivenciado e que a
abalara tão grandemente. Cada uma com um objectivo distinto, ambas trabalhavam
para encontrar as respostas certas.
Quem me dera não haver estado naquele lugar, nem naquele momento
difícil de suportar. Se pudesse reviver este último dia da minha vida, eu
mudaria tudo… quantos equívocos podem-se fazer no mesmo dia? Quantas vezes o
mesmo erro pode ser cometido, até se perceber que é um erro? Quantas vezes
pode-se insistir, até que a vida canse e mostre, com tratamento de choque, que tudo
não passa de uma grande estupidez e que desta forma tem ser reconhecida e
assumida?
- Vais ter que te acostumar a viver com teus erros, disse a
terapeuta. Eles fazem parte do
aprendizado…
- Mas este custou a vida de um inocente, mulher… será que é tão difícil
perceber isto? E não me trate como uma adolescente. Eu sei a extensão dos meus
erros e conheço estas teorias de psicologia...
Ela mordeu o lábio, para não
soltar um palavrão, que estava a ponto de sair. Às vezes era mesmo difícil
controlar-se, especialmente quando sua irritação fugia das raias do aceitável
eticamente.
- A culpa pelo que ocorreu não é tua. Tu não és responsável pelos actos
de outros… especialmente, de maníacos e assassinos…
- Mas fui eu que provoquei a ira ”de outros”, disse ela, colocando
uma boa dose de ironia e um certo deboche na voz, ao pronunciar a expressão
recentemente dita pela outra. E eu me
sinto responsável…
A terapeuta abanou a cabeça, num
gesto conhecido, que ela já sabia interpretar e que significava que não
adiantava discutir, pois nenhum argumento seria suficientemente forte para
fazê-la aceitar ou mudar de opinião.
Não havia nada mais que pudesse
ser feito, era verdade, mas não era - de maneira alguma - tarde demais.
Ao contrário, a investigação – e
talvez muito mais que um simples processo policial - apenas começava. Era sua
questão pessoal de honra ir ao fundo do caso e descobrir não somente as razões,
mas também punir severamente o culpado.
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