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domingo, 11 de agosto de 2013

Um Frio Deserto


A grande onda de calor veio, de repente, como se fosse por mágica… ou por maldição. Para os mais desavisados, nem as lojas estavam preparadas para suprir a repentina demanda de ventoinhas ou aparelhos de ar condicionado.

Deitados no chão da sala, com as persianas baixas e as luzes apagadas, em frente à única ventoinha que havia sobrado na loja e que teria de servir, para o momento, ficamos quietos, lado a lado, como se soubéssemos que, qualquer movimento desnecessário, só nos iria trazer mais desconforto.

Havia, por sugestão da doutora, borrifado sua barriga e peito com água fria, para tentar refrescá-lo um pouco. Ele, assim como eu, já não sentia apetite algum… apenas sede; muita sede. 

Menos de uma semana depois, quando as temperaturas começaram a voltar ao normal, ainda não havíamos recuperado a rotina. Apenas nos forçávamos a comer o mínimo e continuávamos a ingerir muito líquido. Ele, porém, começou a enfraquecer e perder peso. Preocupado, voltei à clínica e o submetemos a uma série de exames e análises mais minuciosos.

Os resultados não foram animadores. Os rins estavam gravemente afetados. Parecia sentir dor nas articulações das patas traseiras também. A medicação, especialmente preparada, iria apenas sustentar seu corpinho, que ia definhando aos poucos e que preocupava-me sobremaneira. Meu grande amigo e companheiro, de tantas aventuras e alegrias, havia adoecido gravemente e eu não sabia o que fazer.

Aquele gato ativo e superinteligente, manipulador, desastrado e brincalhão, que não deixava passar, sem seu controle, nenhum horário das refeições ou de ir para a cama, de apagar as luzes ou fechar as portas, tornara-se um bichinho sofrido e apático, que apenas deitava-se ao meu lado, ainda, como dantes, porém já sem conseguir fazer-me rir. Apenas ficava a olhar-me, com seus olhinhos tristes, como se aconselhasse, com aquele olhar, a preparar-me para o que vinha, rapidamente, a seguir.

Pouquíssimas semanas passaram-se, frustrando todas as minhas tentativas de fazê-lo animar-se e reagir. Ele não reclamava. Não gemia. Não miava. Mal andava e, quando o fazia, era com um esforço imenso. Por fim, até mesmo o peso da cabeça impedia-o de beber água sozinho. Havia necessidade de segurá-lo pelos ombrinhos, para que pudesse atingir a água sem que o nariz pendesse e ele se afogasse.

Ele passou de cem por cento a zero, em menos de três semanas. Completamente dependente de mim para todas as funções, sendo alimentado e medicado por seringa e aplicações de soro subcutâneo, ele entregou-se ao destino.

Desesperado e despreparado, ainda tentei até o fim.

Na madrugada de uma quinta-feira (ah! Como eu ainda odeio quintas-feiras!), dormindo, como de costume, ao meu lado, na grande cama de casal, ele gemeu. Levantei-me, com ele no colo e levei-o à cozinha, onde tentei dar-lhe água e levá-lo à caixa de areia. Foi em vão, todavia. Ele recusou ambas as ações.

Deitado sobre meu peito, no sofá da sala, ele deu seu quase último suspiro, avisando-me que estava próximo do inevitável fim. Partiu, plácido e calado, poucos minutos depois, ainda sob os meus cuidados e meu carinhoso e suave abraço, a volta de seu corpinho debilitado. Minhas lágrimas pousaram, mornas e inúteis, sobre seu dorso sem vida.

Meu grande amigo e companheiro, de mais de treze anos, foi-se embora para sempre. (Para onde vão os gatos, afinal, quando morrem? Existe um Paraíso para eles? Existe um, para nós, humanos?) Fiquei sozinho, triste e desconsolado, sem saber como viver - sem a sua tão forte presença.

Acredito que tenha sido a situação mais desesperante da minha vida. E porque amei-o total e incondicionalmente, como nenhuma outra criatura antes dele, eu chorei. Admito, sem vergonha, que nunca havia chorado tanto, como fiz naquele dia (e, também, nos subsequentes)...

Na noite daquele dia, a grande cama de casal parecia um deserto. Estéril e desolado. A sensação era de um verdadeiro, imenso e frio deserto... glacial demais… a sufocar-me o fôlego, a comprimir meu peito. Afiadíssimas lâminas de um gelo frígido e ácido perfuravam, corroíam  e congelavam meu pobre coração.

A casa ficou quieta… vazia… enorme… como o enorme e amargo vazio deixado na minha vida e na minha alma…



segunda-feira, 1 de julho de 2013

A Carta


Assim que entrei, os meus olhos foram atraídos pela folha de papel. A carta, pousada em cima da mesa vazia, estava, estranhamente, assinada por ela.

Não se tratava de uma despedida. Era mais um recado: simples, breve e direto. Anunciava, apenas, o fim… quase impessoal, como uma lista de compras ou um comunicado de que ia chegar mais tarde do trabalho.

Senti um vazio…um enorme vazio a abraçar-me a alma, a pesar-me nos ombros e um cruel e triste silêncio a impregnar a casa deserta.

Mas não era aquela sensação que incomodava. Eu já sentira muito mais vazio, estando a seu lado, dividindo a cama, sem compartilhar os sonhos, sem sentir prazer no sexo automático - que já nem frequente era – e que só me fazia sentir vontade de lá chegar, para sair logo, tomar um banho, voltar a deitar-me e dormir.

Não era tampouco a carta, assim secamente escrita, ainda pousada sobre a mesa, a anunciar a partida – sem volta - sem considerar o que alguma vez sentimos, ou mesmo o que fizemos um pelo outro, que me inquietava.

Já não havia nenhuma emoção desnecessária, nem tampouco explicações, no teor da mensagem … pois estas já não faziam, mesmo, diferença alguma. Já não havia nenhuma necessidade de demonstrar ódio, nem amor, nem piedade, nem nada… A nossa história havia-se simplificado nas estéreis palavras escritas naquela folha de papel.

Pensei no tempo que havíamos perdido, sem que, por comodismo, tomássemos a corajosa-covarde atitude que ela tomara sozinha e na minha ausência. Talvez evitasse, assim, a obrigação de olhar-me nos olhos e hesitar...

Aquele era apenas um fim. Daqueles que não deixam ódio, nem mágoa, nem mesmo qualquer amizade. Daqueles que fazem, no futuro, questionarmo-nos as razões de havermos deixado a relação chegar ao ponto de a separação não fazer mossa alguma em nossas vidas.

O fim, sabe-se, nunca advém do nada. Vem sempre como consequência de muitos fins… de muitos erros e de muitos desencontros... de tantos pequenos e incómodos gestos que, então, somam-se, como gotas d’água de intolerância, ao copo já totalmente cheio.

Não era nada daquilo que, naquele momento - a olhar a folha de papel, então em minha mão e a pensar numa parte de minha vida praticamente desperdiçada - me incomodava o espírito.

O que me incomodava, na realidade, era ter sido ela - e não eu - a ter tomado aquela decisão. A bravura de ter tomado a dianteira e resolver por um termo à relação, deveria ter-me acontecido há muito tempo atrás, antes que os sentimentos - tanto os pequenos, quanto os grandes; tanto os bons, quanto os maus - houvessem partido, definitivamente, sem deixar qualquer vestígio em nossas emoções…

Antes mesmo que eu olhasse aquela assinatura no papel e a visse como de uma verdadeira e completa desconhecida…