- Meus estimadíssimos amigos… Ah! Como eu gosto de chamá-los de amigos.
Quase poderia chamá-los de meus queridos filhos… de tanto que, agora, vos admiro.
A voz soou poderosa, em cadeia
nacional de televisão, cobrindo todos os possíveis canais, com uma precisão
invasiva de dar inveja a qualquer hacker.
O foco da imagem foi-se ajustando, mostrando a estranha silhueta da figura em
primeiro plano, enquanto o fundo ia desfocando de uma série de barbáries,
filmadas em tempo real e reportadas ao longo das eras. E continuou:
- Eu tenho que reconhecer haver feito um belo trabalho convosco. Nunca
pensei que uma raça tão limitada, como a vossa, fosse superar quaisquer
expectativas que eu pudesse ter. Vós conseguistes ultrapassar toda uma carga de
maldades e perversões que eu sequer pude congeminar. E posso garantir que estais
em verdadeira e rápida evolução… de iniquidade… Não vos amo, porque não conheço
este sentimento… mas vós sois tão odiosos, que me comovem…
Sem pigarrear, nem titubear, a
voz procedia naturalmente, como se o discurso tivesse há muito sido preparado,
para ser corrente e fluido, durante a transmissão.
- O Altíssimo vos presenteou com o livre arbítrio, com toda boa vontade
que lhe é peculiar. Uma pena, para Ele, que a prenda não vos serviu. Eu
dei-lhes, em contraponto, a semente da maldade. Não consegui prever, porém, que
ela fosse encontrar terreno tão fértil em vós… Se não fosse uma grande blasfémia,
eu até diria: Aleluia!!!
Fez um muxoxo, como se a palavra
pronunciada lhe queimasse a língua e lábios, mas terminou com um movimento de
canto de boca, que mostrou tratar-se apenas de uma ironia, propositadamente
colocada, para ter um efeito mais dramático.
- Realmente, eu fui parvo a ponto de achar que era o próprio Mal. (Talvez
até já tenha sido… há muito tempo atrás). Tenho muita vergonha de haver-me deixado
ultrapassar por uma raça tão ínfima quanto a vossa. Vós conseguistes inventar
tantas asneiras, tantas regras que conseguistes quebrar, tantos mandamentos de
boa conduta - que fazeis questão de não seguir e que impingem dor e culpa aos
vossos semelhantes -, tantos pecados capitais - que fazeis questão de superar
com as mais requintadas das maldades -, que chegais a envergonhar até o mais desalmado
dos demónios.
Vós rides de vossos semelhantes, daqueles que diferem de vossos padrões
– tão perfeitos, esteticamente, que não os conseguis alcançar. E quando vossos
corpos são moldados com muito exercício físico, falta-lhes um mínimo de bom
senso… ou cérebro, por assim dizer.
Havia um peso silencioso no ar. O
mundo havia parado para ouvir o discurso do Diabo. E ele parecia bastante
coerente no que dizia. Quanta crueldade existia na verdade, jogada assim, na
cara da Humanidade…
- Vós criastes os vossos deuses para, tão-somente, ignorá-los.
Engendrastes vossas religiões, vossos novos cultos com os “manuais de
procedimento” e discursos cheios de pompa, voracidade e entusiasmo, com palavras
vazias de conteúdo e o intuito único de explorar, à vantagem, os pobres e os ignorantes
– tão facilmente manipuláveis… E como o fazeis tão perfeitamente bem… Quanta
inspiração maléfica tendes! Que pantomima exemplar! Tirais dos pobres para dares
aos ricos! Que tão bem feita maldade…
Perdestes toda a fé e a capacidade de sentir remorsos…Nem no Diabo
acreditais mais...
Por vaidade - (esse pecado merecia ser escrito com letra maiúscula!) e ganância
- (esse também!) haveis cometido tamanhos desvarios e tantas inexplicáveis loucuras…
que faltam-me palavras para vos enaltecer. Aliás, criar sete pecados capitais
foi uma ideia de génio! Eu devia ter pensado nisso, antes que a igreja os
houvesse publicado…
Sabia que havia tocado num ponto crucial, mas
também sabia que o mundo estava perdido. O discurso era enaltecedor - não um
arrependimento, nem uma promessa de mudança…
- Vossos líderes - tanto políticos quanto religiosos - tem a capacidade
de reverter qualquer posição tomada e assumida em completa vantagem pessoal. Vossos
governantes e magnatas querem sempre mais e não medem esforços para deter toda
a riqueza e poder possível, a qualquer custo. Que óptimo! Haveis acumulado não
somente opulência, mas também desumanidade e indiferença… e orais para ter
mais.
Orar? Para ter mais? Para ter mais dinheiro??? Mais riquezas???
O Grande Maligno deu uma
gargalhada.
- Falais de pobreza, promoveis o castigo aos ímpios e pecadores e, no
fim, sentais em tronos de ouro, com vossos dedos ornados com anéis de grande valor
e ostentação… Ora, que grande atrevimento! Que genialidade maléfica!
Vós mereceis que eu vos tire o chapéu, ou até mesmo os meus cornos, em
reconhecimento à vossa tão depravada imaginação!!!
A humanidade está, realmente, condenada, por vosso imensamente estimado
livre arbítrio...
Graças a Deus! ...Oops! Perdão…
Ele deu uma risadinha e esperou,
um segundo interminável.
As plateias, reunidas à volta de
enormes telas em Times Square, Tóquio, Rio de Janeiro, Londres, Paris e Sydney,
entre outros grandes centros de concentração, ficou em silêncio, por mais um
instante. O diabo tinha um discurso bastante congruente. Parecia um grande
político, fazendo um retrato dos seus mais desejados eleitores...
Alguém perguntou em alta voz se
tratava-se de uma campanha política…
O diabo sorriu para si mesmo. Que
grande ideia acabara de nascer!!!
Esse texto, com a intenção de ser um discurso do diabo para o mundo, também fez parte dos que enviei ao concurso. Sei que ficou um pouco chocante, mas cumpriu o objectivo...
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