- Eles têm uma filial no sul, na Capital. É para lá que vamos. Fica mais difícil de sermos detetados e encontrados. Quando perceberem, já estaremos longe… espero eu!
- Se eu for contra esta ideia, não vai adiantar nada, vai?
O rapaz de óculos parecia desconsolado, derrotado e assustado. O outro ignorou a pergunta. Estava mais concentrado em fazer os planos para a viagem até a Capital.
- E vamos de comboio. Se formos de carro alugado, eles podem ter meios de saber. Não temos ideia das redes de contacto que eles têm, mas esse pessoal é muito perigoso. Usando os transportes públicos permaneceremos incógnitos, por mais tempo.
- Eles pensam que estamos mortos.
- Por enquanto… e é melhor deixá-los pensar assim, até…
- Até sermos mortos de verdade?
Os dois trocaram olhares sérios e preocupados.
***
- Pelo menos estamos mais tranquilos. Até agora, todas as informações passadas estão corretas. As amostras comportaram-se lindamente, conforme o relatório. Agora, temos que aguardar a última parte do material, para iniciarmos a produção…
- Podemos confiar nele?
- Temos alguma razão para duvidar? Até agora, ele foi impecável… embora bastante imprevisível… mas a impressão que deu foi que tudo o que tem feito tem sido por excesso de cautela. Dado a origem dele, tem mesmo que ser prudente. Isso atrasou o projeto um pouco, mas não íamos longe, sozinhos, de todo jeito.
- Não devemos ter pressa. Se apressarmos as coisas, poderemos levantar suspeitas indesejáveis. O homenzinho tem razão. Tudo a seu tempo…
A reunião da direção da N.M.E. foi interrompida pelo som do telefone. O executivo atendeu com rispidez, dizendo:
- Eu disse que não queria ser interrompido. O que pode ser tão importante…
Aparentemente interrompido, ele mesmo, por notícias urgentes e de relevância inquestionável, o homem ouviu, em silêncio e, sem dizer mais nada, desligou. Menos de cinco segundos depois, a secretária entrava com um envelope pardo nas mãos.
- Senhores, temos boas e más notícias. A boa é que o material que esperávamos acabou de chegar, por correio especial. Será suficiente para concluirmos as análises e começarmos a produção dos fármacos, que serão um grande passo na história dessa empresa. Estamos entrando numa era muito particular. É o começo do futuro.
- E a má notícia, então?
O homem olhou para os outros membros do Conselho Diretor da N.M.E. e pigarreou. Abriu cuidadosamente o envelope, de onde tirou um bloco de apontamentos, aparentemente bastante desgastado pelo uso. Não parecia nada com o relatório que ele havia recebido anteriormente. A secretária, então, entregou-lhe um outro envelope menor, aberto e que continha uma carta. Ele retirou o papel de dentro do envelope e desdobrou-o, lendo a mensagem em voz alta.
***
- Eu não contava com essa. Temos que ser muito cuidadosos. Se formos descobertos, estamos em uma grande confusão. Os olhos, todos, voltar-se-ão para nós.
- Não seremos descobertos. Ninguém, nunca, saberá que fomos nós.
- Espero bem que não.
- Não se preocupe. A empresa nunca será associada ou responsabilizada por um acidente num laboratório de pesquisas na Universidade. Acidentes acontecem, todos os dias, em laboratórios de pesquisas, mormente no campus Universitário.
- Mesmo assim, devemos estar preparados. Melhor evitar qualquer contacto com as pessoas. Vamos aproveitar que já é tarde da noite. Assim fica mais fácil de não levantar suspeitas ou dar na vista.
- Vou buscar a carrinha. Se acontecer algo, que possa suscitar quaisquer tipos de perguntas, aquele é o veículo que já frequenta o campus com mais frequência e, portanto, pode parecer mais natural…
- OK.
Assim que o colega saiu, o chefe da Segurança pegou o telefone e digitou um número da lista de speed dial. Esperou um par de segundos e falou, em voz baixa:
- Estamos prontos. Vamos agora para a Universidade…
Ouviu, em silêncio, a resposta. Sentia-se ansioso e tenso. Uma gota de suor brotou-lhe na testa e escorreu-lhe pelo rosto abaixo. Ele sentiu o perfume de sua própria loção de barba, a exalar. Não era bom sinal que suasse assim.
- Sim… OK. Pode deixar...
***
- Para que lado vamos?
- Pelo que sei, deve haver um hotelzinho numa destas ruas, perto da estação. Deixa-me pensar.
- Devem haver muitos, afinal estamos na Capital. Não será melhor irmos fazer o que viemos fazer, primeiro?
- Ir à empresa? Talvez seja melhor irmos à Universidade… Tive uma ideia.
O rapaz de óculos sorriu. Preferia ir à Universidade, mas sabia que era questão de tempo até ter que enfrentar o desafio, para o qual não se sentia minimamente preparado.
- Já que cá estamos, vamos descer e tomar o metro para a Universidade.
***
A Universidade estava bastante movimentada, como nos dias normais. Havia muita gente a andar de um lado para o outro. Grupos mais silenciosos, estudantes solitários, com fones nos ouvidos, outros ocupados com os telefones de última geração, mocinhas em grupos, dando risadas, pessoas de muitas faixas etárias diferentes, dos mais jovens, ainda adolescentes, até os mais velhos, provavelmente doutorados, todos contribuíam para fazê-los passar despercebidos no meio daquela multidão de rostos desconhecidos.
- Vamos procurar o laboratório de pesquisas. Aquele artigo que lemos mencionava pesquisas no campo da genética de alimentos, mas que levava à uma mudança na estratégia, mais para o lado da genética humana e alterações no DNA. Isso pareceu muito estranho. Aqui há coisa…
- Se eles estiverem alterando a genética dos alimentos para promover uma mudança no DNA humano, isso é, no mínimo, um crime ou a tentativa de um… genocídio?
- Vamos ver o que descobrimos.
O rapaz de óculos consultou as placas de sinalização e apontou para o oeste, onde deveria estar o Departamento e os laboratórios de Biologia. Os dois apresaram os passos. Pareciam ansiosos para descobrir mais e ainda tinham que planear o próximo passo.
Os dois caminhavam em silêncio, quando, de repente, o rapaz de óculos parou e segurou o braço do amigo, com força.
À frente deles e parada no estacionamento da área reservada aos pesquisadores estava uma carrinha branca. Nas laterias, escrito em grandes letras vermelhas, a sigla da empresa: N.M.E.
- Essa não! Parecem uma praga!
- Vamos voltar, antes que nos vejam. Vamos para a biblioteca. De lá podemos verificar umas coisas, até conseguirmos uma hipótese de voltar para o laboratório. Tomara que eles não fiquem muito tempo por cá.
A Biblioteca não ficava longe, e tinha uma vista para onde o ponto de interesse dos dois estava mais voltado. Eles sentaram perto de uma das janelas voltadas para o oeste e ficaram a vigiar o movimento do veículo. Decidiram que seguiriam para lá, assim que estivessem seguros. Era uma aposta mais acertada e um passo mais seguro.
O dia passou lentamente e eles não viram movimentos da carrinha.
O motorista saiu algumas vezes de dentro veículo, para fumar. Parecia impaciente, dentro de seu fato escuro. O outro homem entrava e saía do carro, ia até o bar, voltava, ia até o outro lado. Parecia desconfortável também. A noite aproximava-se e eles tinham uma missão a cumprir.
Para desapontamento dos dois rapazes, a biblioteca estava para fechar e eles tinham que sair. Pior ainda, a carrinha ainda estava lá. O movimento dos estudantes e profissionais do campus havia diminuído bastante.
Eles sentiam que haviam perdido a viagem. Não conseguiram descobrir muita coisa sobre a pesquisa, além do pouco que já sabiam. A única novidade, que ainda conseguiram descobrir, foi que a nova pesquisa estava ligada a um estudo ligado à longevidade, não à uma tentativa de genocídio, como desconfiavam inicialmente.
Aquela era uma boa coisa. Restava saber a razão deles estarem ali, plantados a tarde toda e também de tentarem acabar com a vida dos dois.
- Falta uma peça importante neste quebra-cabeças. O que pode ser?
Quatro pessoas caminhavam ligeiras, na direcção do laboratório, assim que os dois estavam a sair do prédio da biblioteca. Àquela hora, não era muito normal, mas nada preocupante. A mulher parecia preocupada. O rapaz que estava com ela, também. Um homem mais velho e um mais jovem, muito pálido, vinham atrás deles. Não perceberam a carrinha e foram até a porta de metal do prédio da área de Biologia.
O que aconteceu, naquele instante, foi tão rápido, que os dois rapazes só tiveram tempo de se esconder, atrás de um dos prédios e observar de longe, com receio de ficarem metidos naquela grande confusão.
O motorista, assim que viu o grupo de pessoas chegar à porta, saiu da carrinha e sacou de uma arma automática, atirando neles. O grupo ainda conseguiu entrar no prédio, trancar a porta, que não ficou fechada por muito tempo. Em poucos minutos os homens, armados, entravam no prédio e, não muito tempo depois, uma grande explosão acontecia no recinto.
Enquanto observavam, assustados, o desenrolar daquela guerra particular, viram que quatro pessoas corriam pelo outro lado, na direcção da floresta. Em pouco tempo, os dois seguranças, ainda armados, seguiam na mesma direcção.
- O que foi isso, pelo amor de Deus? Estamos ferrados. Agora é que não descobrimos mais nada. O laboratório está todo destruído e não conseguiremos sair daqui, agora.
- Vamos ter que sair, de todo jeito. Em pouco tempo isso vai estar um manicómio. Deve haver um alarme de incêndio, que já deve ter sido accionado.
Antes mesmo que terminasse de falar, ouviu o som das sirenes.
Não podiam ser vistos ali. Se testemunhassem qualquer coisa, estariam expostos e a N.M.E. saberia que estavam vivos. Bem na hora que eles viraram, para ir na direção da saída do Campus, viram um homem parado, de pé, atrás deles.
- Vocês não deviam estar aqui!
***