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domingo, 24 de fevereiro de 2019

Uma noite a mais (Parte 1)



- Deve ser, pelo menos, a quinta vez que ouves esta canção.

- É, eu sei.

- O que se passa?

- Nada… que importe.

- Sei. Se precisares de alguma coisa, fala. Vou deitar-me.

- OK.

Eu não me virei. Estava com a mente ocupada demais a contemplar o imenso vazio à minha frente. Meus olhos perderam-se na escuridão, que se estendia para além da linha do horizonte, ao longo de um oceano pouco iluminado pelas luzes à beira da praia da baía.

Estava uma noite fresca e calma. Era tarde e já não havia quase nenhum movimento nas ruas. Um estranho silêncio enlaçou-me com seus braços frios, provocando um calafrio, que percorreu-me a espinha. Eu tremi, mas sabia que não era de frio.

A canção recomeçou. Eu havia ativado a função de repetição, de propósito. A voz forte e pungente da cantora penetrou-me os pensamentos, como se fosse uma estalactite de gelo, precipitada do teto rústico e sombrio de uma caverna, para dentro de uma lagoa de águas calmas, mas escuras e profundas.

Quantos mistérios e segredos podem esconder-se abaixo da quietude aparente daquela superfície praticamente intocada?

Fechei os olhos e respirei fundo, mergulhando em meus próprios pensamentos. Cada palavra da canção servia de pano de fundo para uma sequência caleidoscópica de imagens, que traziam meu passado e minhas recordações de volta ao presente, com uma nitidez cruel e carregada de emoções tão vívidas quanto aquelas memórias. 

…” They say that love can move a mountain
    They say love can break your heart 
   They say love can make you forget 
   Things that happened in the past” …  (*)

Se aquelas palavras eram verdadeiras, eu não havia experimentado nada similar… até então…

***

Acariciei a cicatriz, como se ela fosse um animal de estimação.

Incrível como nos apegamos às marcas deixadas, tanto no corpo, quanto na alma e as acariciamos sempre que nos sentimos frágeis, como se aquilo nos fosse dar alento e abreviar a solidão ou a dor. É como afagar nossos erros, dando-lhes uma visão mais condescendente. É como trazer alento ao coração, amenizar o efeito de um pecado e conceder uma hipótese de salvação à alma do pecador.  

…”So wave goodbye to heaven for me

  I've thrown it all away

 Just to spend one more night with you”…(*)


- Ainda estás assim?

- Assim como?

- Tu sabes. Eu não sou uma criança, que tu possas enganar facilmente.

- Eu sei que não…

Minhas mãos deslizaram suavemente pelas teclas do piano, talvez, procurando, instintivamente, esquecer aqueles mesmos acordes que não me saíam da cabeça ou dos dedos, já há algumas semanas.
Eu li, uma vez, em algum lugar, que as teclas do piano representam nossos sentimentos. Enquanto as brancas denotam nossas emoções positivas, as pretas representam as negativas. A harmonia, entretanto, só é conseguida com um equilíbrio entre ambas. Não se pode fazer boa música, sem usar tanto as teclas brancas quanto as pretas, assim como não se pode viver a vida verdadeira e completamente, sem um equilíbrio entre as emoções boas e as não boas.

- Toque a música até o último acorde. É melhor exorcizar esta dor de uma vez por todas!

Olhei para ela, surpreso. A menina havia-se transformado numa jovem muito perspicaz. Então eu toquei. Não exatamente para exorcizar, mas para sentir a dor, tão vívida como se estivesse sendo experimentada, pela primeira vez, naquele momento.

Começando quase como um noturno, a acariciar, as teclas brancas e a martelar, levemente, as pretas, minha dor foi aumentando numa progressão de notas e acordes, que se misturaram à minha voz baixa e fraca, no início, porém elevando o tom, como num sentido blues, até que todos os meus nervos reagiam àquela sequência de notas e palavras. Meus olhos e minha alma transbordavam.
…” They say that love can last forever
    They say love can last a day 
    They say love is like an ocean 
    For us to sail away” … (*)


Eu ia ao fundo do poço, para tomar impulso e voltar à superfície. Era necessário descer ao mais fundo do fundo, para poder voltar, com as forças redobradas.
***
- Foi aqui?

- Sim.

- Vamos descer.

- Não.

- Vamos, sim. Vem comigo.

Saiu à minha frente, antes que respondesse, descendo pelo caminho ao lado do penhasco. Meu estômago doeu. Eu segui, sem dizer nada. O caminho não era seguro e eu devia estar por perto, caso acontecesse algo, embora soubesse que estava a me preocupar sem razão.    

Quando chegamos ao fundo da trilha, a praia abria-se, convidativa, embora ainda fosse primavera. O mar rugia, como se a ameaçar, embora eu nunca tivesse medo daquele bramido. Eu havia nascido na ilha. O mar sempre fora um amigo. Não tinha por que temer um amigo.  

Caminhamos pela orla, com os pés na água fria do oceano, em silêncio, por uns momentos. Um grupo de ruidosas gaivotas voavam por sobre nossas cabeças e o vento fustigava nossos rostos.

- Foi um acidente, não foi?

- Foi. Um infeliz acidente.

- Vocês se amavam muito, não?

Eu não pensei.

- Nós éramos grandes amigos. Desde o tempo em que estudávamos juntos.

- Isso não é uma resposta.

- Não. Não é.

Olhou-me com aquele ar de quem quer saber a verdade, quando já não há verdades a saber.

- Então por que vocês decidiram que deviam ter um filho?

- Porque era a vontade dela. Era melhor termos um filho, juntos, sabendo do respeito que tínhamos um pelo outro e sabendo que era melhor isso, que esperar por um sentimento que não existia. Ela era uma mulher prática.

- Vocês nunca se arrependeram da decisão?

- Claro que não. Por que razão haveríamos de nos arrepender?

- Sei lá. Não havia amor…

- Havia um respeito e um carinho muito grande. Ela tinha medo de envelhecer, antes de poder ser mãe… coisas de mulheres!

- Haha! Até parece…

Eu ri. Um riso pálido, quase sem graça. Sabia que ia ter que contar a história toda, pela milionésima vez.

- Achas que vocês foram felizes?

- Talvez. Antes de…

- É estranho…

- O que?

- Aquela vossa relação. A doença. O acidente.

- Não é estranho. O acidente foi uma consequência da doença.

- Mas tu também podias ter morrido.

- Acho que não. Eu só tive uma queda feia, quando tentei ajudar. Falta de jeito, mesmo…

- A cicatriz é grande.

- A dor é maior!

Calou-se. O mar parecia explodir contra as rochas. Caminhou uns segundos, em silêncio, e virou-se. Franziu os olhos, como se estivesse tentando ver algo, atrás de mim, à distância. Pareceu-me que uma nuvem negra se passou pela sua face jovem.

- Pai?

- Que foi?

- É ele, lá em cima do penhasco?

- Hã? O que ele faz aqui?

***

(*) One more night with you : Ged McMahon featuring Kaz Hawkins


***



sábado, 2 de setembro de 2017

O Décimo-Terceiro (Parte 3)


Era tarde da noite, no subúrbio da cidade. As silhuetas de duas pessoas, com aparências muito dissimilares, moviam-se em meio às sombras, por entre as ruelas e os becos. Algumas pessoas ainda caminhavam na rua, outras conversavam alegremente, dentro dos bares e restaurantes. Estava uma perfeita noite de Outono, sem ser fria e até bastante agradável. Ao homem mais forte, aquela temperatura era ideal, porém o seu companheiro estava desconfortável, sentindo seu corpo pálido e frágil tremer de frio.

- Vamos por ali. Não devemos estar longe, agora. Só espero não dar um susto demasiadamente grande ao velho.

O outro olhou para ele, sem perceber muito bem o que aquilo, realmente, significava e continuou seguindo ao seu lado, por trás de uma grande casa, que cobria um quarteirão inteiro, na parte mais afastada da vila. Atrás dela, havia um parque com brinquedos e, depois, um grande pátio.

Quando atravessavam uma área bastante arborizada, o movimento que fizeram para afastar os galhos das árvores provocou um efeito surpreendente em alguns dos moradores temporários do bosque. Um farfalhar colorido impressionou o clone, mas irritou o homem que o conduzia, por aqueles caminhos obscuros, na noite fresca de Outono.

- Oh! O que é isso?

- São borboletas. Monarcas, mais especificamente…

- Que interessante… São tão…

Faltaram-lhe palavras. Não conseguia, com seu pouco tempo de vida, dizer o que sentia, em relação à beleza, uma das poucas coisas que o impressionaram.

- … irritantes, quando voam assim à nossa volta. Não devemos fazer muitos movimentos, pois qualquer coisa pode levantar suspeitas e nos colocar em perigo. Temos que manter nossa presença a mais discreta possível.

O clone olhou o homem, que se irritava com tamanha beleza e não compreendeu a razão dele não apreciar aquele momento incomum. O rapaz puxou-o pelo braço, sussurrando, irritado.

- Vamos! Cada minuto que perdermos é precioso demais e vai-nos fazer falta. Ainda vais saber mais sobre as Monarcas, se tiveres tempo… Agora vamos!

Chegarem, finalmente, à entrada de um túnel, escondida na parte de baixo de um edifício. Dali, após passarem por outra série de túneis, emaranhados numa rede bastante intrincada, chegaram, finalmente, a um pequeno e velho galpão, construído nas traseiras de uma casa comum.

Uma luz acesa mostrava que havia alguém dentro da casa. Os dois tiveram o cuidado de manter-se nas sombras, até que tivessem certeza que ninguém os via. O silêncio deu-lhes a certeza que não havia perigo. Os dois avançaram e foram até a porta. O homem mais forte deu uma batida na porta, com os nós dos dedos. Depois, uma parada e, a seguir, duas outras batidas, seguidas de um curto espaço. Era o código que havia sido combinado. Ao ouvir o som de passos, no lado de dentro, ele sentiu uma apreensão esquisita.

Um homem de meia-idade abriu a porta, mas sua expressão logo mudou, para um misto de preocupação e medo. O que aqueles dois estranhos faziam ali à sua porta, usando o código combinado, era uma incógnita. O homem mais forte lembrava-lhe alguém conhecido, mas ele não conseguia saber quem.

- Em que posso ajudá-los?

O homem mantinha a porta meio aberta, tentando controlar a situação. Percebia que estava em desvantagem, mas tinha que tentar intimidar os visitantes, que mantinham-se, um pouco, à sombra da noite.

- Podemos entrar? É importante.

- Não. Não podem, sem dizer-me quem são e o que querem.

 O rapaz avançou um passo e o homem agarrou a porta, tentado fechá-la, antes que perdesse o controlo, mas sua força nem se comparava à daquele jovem.

- Pai?

O homem arregalou os olhos. Não contava com aquela. Ele não tinha nenhum filho daquela idade, com certeza absoluta. Os olhos do rapaz, porém, quando foram atingidos pela luz de dentro da casa, mostraram-se tão verdes quanto os do filho, mas ele refutou aquela característica comum, de imediato.

- Meu filho é mais jovem e eu tenho certeza absoluta que nunca tive outro. Não sei quem tu és e nem o que tu queres, mas não vais conseguir nada comigo.

- Eu sei que parece inacreditável, mas se eu puder explicar… Deixa-nos entrar, por favor. Todos nós corremos perigo.

O homem ficou muito sério. O rapaz tentou uma última cartada.

- Olha isso! Acreditas em mim, agora?

O homem puxou a porta, abrindo-a com cuidado, de modo a deixar os dois visitantes entrarem. Até então, mal havia notado as características do homenzinho, que ele agora observava, com cuidado. Ele era extremamente pálido, jovem, muito longilíneo e parecia ter a cabeça desproporcionalmente maior do que aqueles com quem ele costumava estar. Sua pele parecia muito fina. Os olhos verdes faziam-no lembrar de alguém, mas ele não percebeu bem, no início. Estava, agora, mais ocupado em poder examinar a anomalia que o outro mostrou naquele ser estranho e que ele já havia visto antes, em seu próprio filho.

- Como isso pode ser possível?

- Eu acredito que a resposta esteja aqui, neste tempo. Por isso precisamos de sua ajuda.

Os três voltaram-se para um ponto na sombra, atrás do velho homem, de onde veio a voz feminina.

- Leona? O que aconteceu contigo? Estás tão diferente…

- Todos nós estamos, pai, mas…

- Tu não devias ter vindo.

- E deixar-te causar uma catástrofe? Este teu comportamento intempestivo já nos colocou em problemas… Nós temos que interferir o mínimo possível com este tempo e lugar. Tudo o que nós fizermos aqui, vai interferir naquele mundo, com toda certeza.

- Que mundo? Alguém pode explicar-me esta confusão toda?

Antes que o irmão começasse com verdades impróprias, Leona adiantou-se. Ela teve mais cuidado em usar as palavras e dizer apenas o que não fosse mudar, muito, o curso dos acontecimentos, mas o pai tinha que saber o que aconteceu… ou ia acontecer…

O cientista ouviu, calado, mas não sem deixar de impressionar-se.  Nunca iria imaginar quão importantes suas pesquisas se tornariam no futuro. Na sua modéstia e simplicidade, por trás de toda a genialidade, ele não anteviu que seu trabalho traria tanto benefício à humanidade… ou pelo menos à uma parcela dela…

***

- Pai, o chefe dos cientistas, que é um homem muito experiente e competente, não conseguiu descobrir o que causou aquela anomalia no clone. A preocupação é que ela seja grave e que coloque em risco uma boa parte dos que vierem a nascer, como se fosse uma epidemia, difícil de controlar. Algum elemento na vacina deixou de fazer efeito, ou houve uma mutação qualquer.

- Eu trouxe uma amostra da nova vacina, que está em teste, para analisar. Quando aconteceu comigo, como foi que o pai reverteu o efeito? Não foi encontrada nenhuma anotação sobre isso nos dados de registos existentes no futuro.

- Eu sei. Eu nunca deixei nada disso escrito nos registos oficiais. Fiz apenas umas poucas anotações no meu diário, que mantenho longe das vistas de todos. Mas eu sei o que fazer… Não faz tanto tempo assim que eu lidei com isso. Mas vamos ter que ir ao laboratório da Universidade, fazer uns testes. Nós já havíamos eliminado a… err… Não sei se vai resultar com um clone, cujo ADN já deve ter sofrido muitas mutações, nem sei que tipos de reações podem ocorrer, mas temos que tentar.

Antes de saírem, porém, o homem olhou os três visitantes e, franzindo o cenho, perguntou, com ingenuidade de criança.

- Para que são criados os clones, afinal?

Os três olharam para o velho cientista, como se ele tivesse dito um impropério. Leona riu, com ternura e disse-lhe:

- Eu tento explicar a caminho…

***

- O que é isso? É tão agradável…

- É música. Vamos.

- De onde vem?

- Ora, vamos! Depressa! Não temos tempo para isso.

O pai, bem mais paciente que o filho, tentou explicar de uma maneira mais ou menos coerente:

- A música é a linguagem com a qual as almas dos homens conversam com as dos deuses. Ela é capaz de tocar o mais intangível ser. Existem muitas formas e muitos estilos diferentes. Essa, que tu ouves, é de um artista famoso, que já não caminha nesta terra.

- Não? Onde ele caminha, agora?

- Está morto. Chamava-se David Bowie. Vem do bar do clube ali na frente, mas devemos evitar passar por lá. Não podemos levantar suspeitas…

- Temos que arranjar um nome para ti. Se alguém nos abordar, será a maneira mais conveniente… e apropriada. Não devemos correr riscos desnecessários.

- Eu sou o Décimo-Terceiro.

- Mas isso não é um nome decente, para este lugar. Temos que arranjar outro; mais comum e adequado…

- Pode ser David Bowie?

Leona riu alto.

- Pode ser David. Esquece o Bowie. Vai levantar mais suspeitas, se for usado aqui.

***

O campus da universidade estava praticamente deserto, quando eles chegaram. Havia, na entrada, uma carrinha branca, parada, próximo à área de pesquisa, onde o laboratório ficava localizado. As letras N. M. E., pintadas em vermelho, nas laterais, não levantaram suspeitas, quando os quatro personagens desceram o lance de escadas, que os levava ao seu destino. Assim que o cientista tirou a chave do bolso e girou na fechadura da estreita porta metálica, ouviu-se um silvo e uma marca profunda ficou gravada acima de sua cabeça, no duro metal, pintado de cinza claro. Eles se jogaram para dentro, fechando a porta, em seguida, para ganhar tempo, e foram, correndo, para o Laboratório Principal.

- Quem são esses? Estamos a ser atacados por armas de fogo. Temos que fugir e tentar chegar de volta ao terminal. Vamos todos. Corram!

Ao entrar no laboratório, apressaram-se a arrastar um grande armário e bloquear a porta.

- Temos que usar a saída de emergência, que fica no fundo do laboratório. Vou mostrar-lhes o caminho. Vocês apressem-se, depois que passarem e vão em frente, até o fim do corredor. Entrem pela porta onde está escrito “Para o telhado” e, ao invés de subir, passem por baixo das escadas. Há uma outra porta lá, no fundo do depósito de vassouras e materiais de limpeza, pintada da mesma cor das paredes, para dificultar ser encontrada. Eu tenho que pegar minhas anotações.

Naquele momento ouviram um grande estrondo. A porta da frente havia sido arrombada com explosivos. Os sons de passos, a correrem pelo corredor, muito próximo deles, fê-los entrar em pânico e imaginarem um apressado plano de fuga.

- Não há tempo para voltar. Temos que sair daqui, o quanto antes. Eles já estão vindo atrás de nós…

- Mas é extremamente importante… está mesmo na gaveta da escrivaninha…

O rapaz sabia que o pai tinha razão. Era extremamente importante buscar as informações, para cumprir o objetivo da viagem no tempo, que acabaram por fazer. Sem pensar muito, ele dispôs:

- Eu volto. Sou mais rápido e mais forte. Posso defender-me melhor e, além do mais, quando chegarmos ao terminal, não podemos voltar os quatro, ao mesmo tempo. A programação estará feita para três, somente…

- Nós podemos mudar a programação.

- Se tivermos tempo… Melhor nos apressarmos. Eu saio e, depois, volto pela frente. Não esperem por mim. Deixem, que eu dou um jeito. Se o portal não estiver aberto, eu espero por um sinal.

- Nós mandamos um, assim que chegarmos, programando o terminal para um passageiro, somente… Assim, ele fecha quando tu passares e não trazemos mais perigo junto connosco.

- OK. Agora, vamo-nos separar.

Leona sentiu um aperto no peito. As coisas haviam saído fora do controlo. Toda a operação ficara arriscada demais e, agora, lutavam por manter-se vivos. Eles tinham a dianteira e sabiam o caminho, mas tinham que ser rápidos e insuspeitos, até atingir o terminal.

Ouviram uma série de tiros. Que forma mais eficiente e perigosa de apressar as coisas e os passos…

sábado, 1 de julho de 2017

Partida




















E partes…

No silêncio solitário

Da manhã de verão,

Das águas e do sol,

Entre os aromas do café

Fresco,

Do leite e do mel,

Na rotina domingueira

Dos bichos e dos homens.

Partes,

Porque partir faz parte

De um processo

Que não pode ser,

Senão e absolutamente

Natural.

Já nem olhas para trás

E teus passos já não são instáveis,

Nesta estrada ladeada por flores,

A cobrir imensos campos

De cobre e aço.

Partes…

E deixas, partidos,

Em incontáveis pedaços,

Os corações

De quem te amou,

Estilhaçando as emoções,

Que já nem sei sentir,

Nesta confusão estranha,

Que manifesta-se, talvez,

Tarde demais.

E partes,

A romper o frágil e físico fio

Que te prendia a este mundo,

Deixando as recordações

De momentos

Que, agora,

Já são apenas, doces lembranças

A flutuar nas memórias voláteis

Dos tempos.

Partes tranquilo,

Porque a tua viagem é,

Agora,

Outra…

E o caminho desse lado

Já foi trilhado.

Partes, enfim,

Porque partir é o objetivo

Final

Desta curta

E solitária jornada.

Partes sem um adeus,

Sem um aviso

E sem o peso desnecessário da bagagem.

Partes,

Porque esta partida é um novo início,

Tanto para quem vai,

Quanto para quem fica,

Porque viver é preciso,

Sempre,

Mesmo que seja,

Somente,

Na memória

De quem não vai contigo…



sábado, 25 de fevereiro de 2017

Revisitando Dragões (Parte final: A Batalha)


O sol nasceu como que por encanto. Não que fosse uma coisa inesperada, mas a tensão do momento, pareceu fazer os guardiães esquecerem que o nascer do dia não era a coisa mais natural do mundo. Era como se tivessem tido um lapso de tempo entre a espera e aquele momento, quando um verdadeiro caos se instalou no laranjal.

 A chegada do guerreiro de negro e seu fiel dragão causou uma correria geral.

 Os sete dragões alinharam-se à volta do grande animal pardo, quando este pousou. Era parte da estratégia de distração, mostrar-se mais suscetível, para que sua contraparte estivesse mais liberta, para trazer o terceiro elemento para a batalha, que estava apenas a iniciar-se.

Em seu caminho, porém, o guerreiro encontrava um pai protetor e disposto a tudo para ter o filho do seu lado e um velho cavaleiro, disposto a sacrificar a vida para derrotar o senhor de todo o mal.

 Os dois homens acorreram, tentando impedir a ação do guerreiro inimigo, quando perceberam que ele veio para libertar seu protegido e fazê-lo cumprir sua missão, antes de voltar para o gélido norte.

A investida do guerreiro loiro, entretanto, foi tão violenta, que os homens foram jogados para o lado, como se fossem crianças desajeitadas, quando ele abriu seu caminho para a entrada da caverna, onde seu pupilo estava preso ainda.

A espada do senhor de todo o mal partiu a porta da caverna com um golpe só. O rapaz saiu imediatamente e, apanhando sua própria espada, que estava do lado de fora, tomou lugar ao lado de seu senhor, numa batalha que teria um inevitável e único final.

Por mais que estivessem em vantagem de número, o pai e o amigo estavam, todavia, em evidente desvantagem, tanto pela força e violência dos ataques, quanto pelo treinamento que os dois guerreiros possuíam, bem diferente deles.

Os dragões avançaram contra o pardo, tentando imobilizar seus movimentos, mas sabiam o quão perigoso e poderoso aquele animal era, pois além de ser superior em tamanho e força, era também mais bem preparado que eles, em batalhas contra homens e animais, desde há muito tempo. 

O caçador e o velho retomaram suas posições e a verdadeira luta começou. Nem um nem outro podia antecipar a força com que seus contendores iam atacá-los, mas não foi pouca e, por conseguinte, difícil de segurar por muito tempo. Viram, logo, que estavam em desvantagem e aquela consciência deixou-os, de certa forma, amedrontados.

Os adversários perceberam a fraqueza e, mesmo sem falarem nada, usaram suas forças e habilidades contra os dois homens, que foram derrubados com facilidade.

O tirano ocupou-se do pai do rapaz, enquanto aquele estava a lutar contra o velho cavaleiro. As forças eram praticamente incomparáveis, mas a resistência e o instinto de sobrevivência eram maiores que eles podiam imaginar, por isso tentavam, pelo menos, defender-se. Mas o velho não tinha mais a mesma força de antes e caiu.

O dragão verde-azulado foi em socorro do velho.

O dragão pardo, usando sua habilidade e vigor, logo conseguiu libertar-se, aproveitando a oportunidade e a quebra do círculo de força que os sete mantinham, quando estavam juntos.

Ao chegar perto, o verde-azulado empurrou o rapaz de cima de seu amigo, com uma violência a que ele não era acostumado, de modo a livrar o velho da ponta da espada do outro.

O rapaz caiu de frente, com sua arma na mão. Mesmo com o golpe violento, ele apenas ficou meio atordoado, mas não o suficiente para sentir-se derrotado. Era forte e robusto, muito bem treinado e disposto.

Quando tentou levantar-se, porém, ele sentiu a pressão da garra no seu braço e não teve dúvidas. Agarrou a espada com muita força e desferiu um golpe na pata do dragão, que ficou seriamente ferida, esguichando sangue em grande volume. O guerreiro levantou-se rapidamente, disposto a acabar com o animal, que urrava de dor.

O dragão verde-azulado estava com os olhos arregalados a olhar a cena, de longe, tão surpreso quanto o velho, que erguia-se do chão, um tanto desajeitado.

O guerreiro negro vinha correndo em sua direção com a espada em punho, soltando imprecativos em alta voz, ao ver o dragão pardo seriamente ferido, por engano, quando tentava ajudar o jovem protegido. O homem na armadura negra avançou contra o rapaz, com todo seu ódio afluindo para a arma em suas duas mãos.

O rapaz tentou afastar-se, mas não foi bem-sucedido. O outro foi muito rápido. O impacto foi grande e ele perdeu o equilíbrio, caindo de costas no chão, tentando, com sua espada e com toda a sua força, segurar a ira de seu tutor. Espada contra espada, ele sentiu que começava a perder espaço e a sentir a lâmina afiada quase a tocar-lhe a pele.

O homem estava irascível. O dragão era parte dele e feri-lo seria o mesmo que ferir ao senhor dele. O rapaz nem conseguia dizer nada, apenas tentava conter a força extraordinária do homem, mesmo sabendo que ia perder.

No meio do esforço descomunal que fazia para conter a ira do seu tutor, o rapaz balbuciou o que pode, tentando redimir-se.  

- Eu sinto muito! Pensei que fosse o outro dragão…

- Tua missão era destruir os dragões… aqueles sete dragões! Eliminá-los completamente! Não era para ferir o grande dragão pardo, rapaz estúpido!

 - Eu sinto muito!

 De repente, o homem, que estava com o rosto muito próximo do rapaz, impelindo a espada contra seu pescoço, arregalou os olhos e afrouxou a força que estava fazendo. O rapaz empurrou-o para o lado e levantou-se, deixando o outro a cair pesadamente sobre o solo.

 De pé, o pai olhava os dois, com o cajado firmemente seguro em suas mãos, após haver batido com aquele na cabeça do guerreiro de negro, seu poderoso inimigo e tutor do filho que, então, mostrava-se completamente confuso, como se não compreendesse perfeitamente o que acabara de acontecer.

Mas o guerreiro de negro não era um páreo fácil, nem desistia sem conseguir o que queria. Rapidamente levantou-se e, com a espada em riste, avançou contra o pai e o filho.

Ambos prepararam-se, quase sem ter muito tempo para voltar a reagir, antes que a arma do homem loiro cortasse o ar com velocidade e violência, atingindo o cajado e a espada, ao mesmo tempo, destruindo o primeiro e fragmentando o metal da segunda, como se fosse feito de material extremamente frágil. O rapaz ficou sem ação. O pai caiu de lado, ao ser empurrado com os pés, pelo homem tomado de fúria combativa.

Sem o cajado e sem poder defender-se propriamente, o homem, mesmo assim, partiu para cima do guerreiro loiro, que desviou-se facilmente, deixando o outro a abraçar o ar e perder o equilíbrio. O senhor de todo o mal voltou-se e partiu para cima do rapaz, que já havia levantado, mas estava desarmado. Ao aproximar-se, ouviu um grito atrás de si e viu que o velho trazia uma espada em sua mão e atirava ao rapaz, que agarrou-a com destreza de um bom e bem treinado guerreiro.

O ato foi apenas em tempo suficiente para defender-se, ainda que mal defendido. O rapaz e seu tutor lutavam um contra o outro com violência, mas o primeiro sabia que estava em desvantagem. Quando aproximaram-se a forçar as espadas, uma contra a outra, o rapaz falou:

- Por que lutamos? Estamos ambos do mesmo lado.

 - Nunca estivemos do mesmo lado! Eu usei-te para conseguir o que queria, mas tu não foste destro suficiente para cumprir a missão e, ainda assim, feriste o dragão errado.

 - Mas não foi de propósito!

O guerreiro de negro empurrou o rapaz e voltou à carga com mais violência, tentando atingir e exterminar seu concorrente.

O jovem estava confuso. Fez o que pode para satisfazer os desígnios de seu tutor, foi-lhe fiel e um exímio aluno e, via-se sendo atacado pelo mesmo, como se fosse um inimigo.

O velho, percebendo o perigo, acudiu o pai do rapaz. Ambos partiram para cima do senhor de todo o mal, juntos e dispostos a morrer para salvar o filho e amigo. Com a atenção desviada da luta contra seu pupilo, o guerreiro loiro voltou-se à sua própria defesa, mas percebendo que os atacantes vinham sem armas, tratou de avançar contra os dois, derrubando-os imediatamente, um sobre o outro, e posicionando a espada no pescoço do caçador, de modo que se trespassasse um, atingiria o que estava por baixo. O rapaz percebeu que tinha que fazer algo e partiu para cima, mas o homem gritou:

- Se chegares mais perto, eu mato os dois. Eu posso morrer, mas, antes, eles vão comigo. 

 O rapaz parou a meio caminho. Tinha que fazer algo, mas estava em desvantagem. Não estava sendo bem recebido do lado de seu tutor e estava sendo defendido pelo seu pai e o velho amigo, os quais haviam abandonado a busca, há muito tempo atrás, deixando-o à mercê do inimigo e senhor de todo o mal.

Sentia-se só, abandonado e enganado, mas algo queimava seu peito, com o calor de um estranho fogo. A espada em sua mão tremeu. O amuleto pendurado em seu pescoço e tocando seu jovem peito ardia como se estivesse fervente. O rapaz, então, parou e percebeu que os dragões haviam-se aproximado.

O grande dragão pardo, ferido gravemente, não conseguia ter forças para atacar. Alguns dos dragões, incluindo o verde-azulado, mantinham a vigília sobre a fera ferida. 

Os três dragões mais jovens, o negro, o dourado e o albino colocaram-se à volta do grupo, mas sem mostrar quaisquer formas de ameaça.

O dragão negro fez um sinal com a cabeça, olhando o rapaz. Este não percebeu imediatamente o gesto, mantendo os olhos firmes nos animais e nos homens, que formavam um grupo bizarro à sua frente. O amuleto queimava sua pele. Ele passou a mão no peito e sentiu-se estranhamente diferente. Olhou todos, aproximou-se dos três homens e falou, baixando a espada e deixando-a cair aos seus pés.

- Deixa-os ir. Eu me entrego no lugar deles. Vou lutar ao teu lado até os fins dos meus dias, mas deixa-os viver! Tens a minha palavra de honra.

O guerreiro ficou tão surpreso quanto o pai e o velho amigo.

O dragão negro acedeu com a cabeça. Ele sabia por qual razão o rapaz havia tomado aquela atitude. Era necessário ter muita força de espírito e caráter para tomar uma decisão daquelas, no meio daquela confusão de personagens, de sentimentos e de atitudes contraditórias.

O rapaz baixou os braços e aproximou-se. O guerreiro de negro ainda hesitou um pouco e então, levantando-se lentamente, mostrou que aceitava a oferta.

 Os dois homens levantaram-se e tentaram, ainda, defender aquela atitude com um ataque ao senhor de todo o mal, mas o rapaz gritou com eles e disse-lhes:

- Eu dei minha palavra. E ela foi dada em troca das vossas vidas. Não vou voltar atrás. Ajudem-me a acudir o dragão pardo, que está ferido. Nós partimos assim que ele recuperar suas forças.

Seu tutor, mesmo estando entre estar desconfiado e acreditar na honra do rapaz, afastou-se, mantendo-se de frente, enquanto o grupo acudia a fera ensanguentada. O pobre dragão estava com a pata bastante cortada e precisou de um torniquete e umas bandagens, mas a não ser por um certa fraqueza causada pela perda de sangue, não estava impedido de voar.

Os dois guerreiros passaram a noite a vigiar, para terem certeza que não iam ser surpreendidos e prepararam-se para partir ao amanhecer, sem se despedir de ninguém.

O dragão negro, entretanto, aproximou-se do rapaz e fez um aceno com a cabeça, numa demonstração de afeto e de aceitação daquele destino, mas, ao mesmo tempo de apoio. De uma forma muito discreta, transmitia a mensagem de que estava disponível, se necessário fosse.

O rapaz passou a mão à volta do pescoço e retirou o amuleto que ali estava pendurado e estendeu-o ao dragão, mas este não aceitou, empurrando a mão do rapaz de volta ao seu pescoço. Este percebeu o que a animal quis traduzir.

O amuleto era seu por direito. Era o único vínculo que ficaria vivo entre os dois lados – o bem e o mal – a lembrar que não há um lado sem o outro e que mesmo o mal precisa do bem para equilibrar-se no Universo.

O rapaz repôs o amuleto à volta do pescoço e foi de encontro ao seu mentor e ao dragão pardo, que estava pronto a partir. Deu uma última olhada para trás e fez um aceno com a cabeça, que foi repetido pelo jovem dragão negro.

 Quando o pai e o velho amigo despertaram, o trio já ia alto no céu, viajando contra a luz do sol da manhã.

Um aperto nos corações dos dois foi, também, compartilhado pelos sete dragões.

Todos os personagens sentiram que aquele não era um fim definitivo, mas sabiam que aquela decisão tinha consequências graves no futuro de todos.

Lá longe, no alto do azul cerúleo da manhã, sobre as costas largas do dragão pardo, o rapaz mantinha seus olhos à frente, tentando não deixar que aquelas lágrimas que inundavam seus olhos, sua mente e seu coração, fossem percebidas pelo seu mentor, que sentara-se no dorso do grande animal, um pouco à sua frente.

A viagem para o extremo norte ia ser longa. Também ia ser muito fria, como o coração do senhor de todo o mal…

O guerreiro loiro esboçou um leve sorriso. Havia ganho mais uma batalha. Aquela era uma das mais importantes que ele travara, mas a guerra não estava terminada…

domingo, 23 de outubro de 2016

Pássaros Azuis


- Acho que estou apaixonada.

- A sério?

Ela corou. Para mim, era ainda a menininha que eu vi crescer, que corria pela casa e que cantava as letras das canções inventadas por ela mesma, cada vez de um modo diferente e que nos deixava atônitos e a dar risadas, diante da esperteza dela…

- Bem sério!

- Ele é bom para ti? Te respeita e faz-te sentir bem?

Ela olhou-me séria, hesitou por um milésimo de segundo e respondeu.

- Sim.

- Então só posso apoiar-te, obviamente, meu amor.

Ela sorriu e me abraçou, sussurrando um ‘obrigada’ ao pé do ouvido, como se o meu apoio fosse fazer alguma diferença no que ela sentia ou queria. Certamente aliviaria uma carga emocional enorme, pela aprovação que ela queria, mas não poderia alterar seus sentimentos.

Ela beijou-me a face e saiu correndo pela porta afora, a caminho de ‘sei-lá-para-onde’… Fiquei a olhar a forma como ela parecia radiante. Quase flutuava, de tanta felicidade. Antes de sair pelo portão, ainda voltou-se e acenou-me um adeus engraçado, com um sorriso enorme estampado na face jovial. Eu sorri e acenei-lhe de volta, dando-me conta que ela havia, definitivamente, crescido e desabrochado. A juventude é mesmo uma fase maravilhosa da vida.

Fiquei a olhar o vazio no portão, depois que ela desapareceu na distância e a pensar na minha própria vida.

Atrás de mim, as palavras de uma canção conhecida a tocar, pareceu cutucar meu coração com uma certa crueldade, quase intencional. Minhas memórias estavam sempre tão associadas à música e às muitas canções significativas, que eu mal conseguia controlar minhas emoções, cada vez que ouvia alguma que havia, de alguma forma, marcado minha vida.

… I wish you, I wish you, I wish you all the best
    I’ll miss you, I’ll miss you, I’ll miss you not the least…*

***
- Pai?

- Diz…

- Quem foi o grande amor da tua vida?

A pergunta pegou-me desprevenido. Brinquei com a resposta, para ganhar algum tempo.

- Foi Ginger.

Ela deu uma gargalhada.

- Eu já devia esperar por esta resposta, mas falo sério. Ginger foi, sem dúvida um grande amor, mas eu falava de uma pessoa, não do gatinho.

- Ginger foi mais que um gatinho. Foi um grande companheiro, meu amor…

- Pai?

Eu sorri. Sabia que ela não ia desistir, sem receber uma resposta aceitável. Seus olhos pareciam duas grandes bolas de vidro escuro. Fingi que não percebi…

- Diz.

- Quem foi? De verdade, mesmo!

- Não sei se houve ‘o grande amor’ da minha vida…

- Oh! Mesmo? E a mãe?

Eu olhei a face séria da minha menina e respondi com sinceridade.

- Ela foi uma grande paixão, é verdade e deu-me a ti, que és o meu maior presente de vida. É certo que tive muitas outras paixões, mas para ser o grande amor, não pode ser uma coisa unilateral, não é mesmo?

- Não necessariamente. Se te fez sentir amado; se foi intenso; se te fez sonhar; se te fez sentir especial e, de alguma forma, uma pessoa melhor… Se soube trazer à tona o melhor de ti...

- Quanta sabedoria em uma criatura tão jovem…

Ela riu, meio sem jeito, com as faces enrubescendo ligeiramente. Eu reconheci que o tempo havia transformado aquela menininha em uma jovem e sábia mulher e agradeci aos céus por aquilo. Ela estava radiante e aquela felicidade fazia-a refulgir e contagiava a mim também.

Mas ela estava certa. Quem, além de nós mesmos, pode-nos fazer felizes, mesmo que por uns breves momentos? Não é este a verdadeiro sentido do amor: brotar e desabrochar de dentro para fora?

Havia aprendido, contudo, que nem os pequenos, nem os grandes amores sobrevivem à distância, ou à falta de reciprocidade, ou à mentira. Mais cedo ou mais tarde estas coisas vêm à tona e destroem o que de bom os sentimentos ainda possuem. As máscaras caem, as verdades aparecem, o tempo e a distância esfriam as ligações e os afetos vão-se desvanecendo, até o ponto em que o fio da ternura parte-se, para sempre e aquilo, que era tudo, passa a ser, apenas, mais uma ilusão destruída e convertida em dura e triste realidade e em uma quebra nas expectativas…

Pior ainda é quando o tal amor transforma-se em ódio ou desprezo, ou outro sentimento tão negativo quanto estes. Ao invés de nos sentirmos felizes pelo que foi, nos sentimos mal pelo que deixou de ser.
 
Como eu ia dizer à ela que meu coração teve muitas paixões muito intensas, mas que eu jamais poderia revelar que alguma vez existiram? Para todos os efeitos, foram ‘affairs’ que nunca aconteceram. Para todos os efeitos, foram paixões que só disseram respeito a mim e a mais ninguém… assim unilateralmente. Sad but true…

- Pois eu acho que este é o grande amor da minha vida.

- Fico feliz por ti, meu amor. Tenho certeza que só pode fazer-te bem. Parece até que viste um passarinho azul!

- É verde, pai! Passarinho verde!

Eu ri. Ela também. Aquela era uma piadinha que nós fazíamos. Uma ‘private joke’ só nossa.

- Meu amorzinho, nunca deixes as pessoas, que não sabem a tua história, interferirem na tua vida amorosa. A vossa vida só interessa a vocês e a mais ninguém…

- Eu sei, pai.

- E tenha cuidado para não te machucar. O coração vê através de óculos que a razão não usa.

Mesmo sabendo melhor que ninguém que uma pessoa apaixonada não ouve conselhos daqueles, por mais coerentes que possam ser, eu não pude furtar-me de dá-los.

Sabia que o que importava, realmente, era ouvir a voz do coração e viver intensamente… “Que seja eterno enquanto dure”, como dizia o poeta…

E como eu poderia saber se ela estava certa ou não, em definir aquele como “o” amor da sua vida, se não estava vivendo o que ela sentia? No fundo eu só queria que ela fosse feliz.

***
- Estás nervoso?

- Não! Tu?

- Um pouco preocupada.

- Eu compreendo. Mas não te preocupes. Ninguém vai notar se alguma coisa sair fora do teu plano. Faz parte do processo.

Ela pareceu absorver aquelas palavras com tranquilidade. O que acontecesse, não ia estragar o brilho daquele dia. Apenas as pessoas mais íntimas estavam presentes e não havia motivos para apreensões. A simplicidade e o carisma dela eram suficientes para fazê-la brilhar, mas ela talvez tivesse menos consciência daquilo, que eu mesmo tinha.

- Vai lá. Agora é encarar e ir em frente!

Ela ia, por assim dizer, marcar o dia de seu aniversário com uma decisão bastante importante e muito corajosa.

Quando ela voltou, vestida como se fosse para a ocasião mais marcante de sua vida, até então, parecia deslumbrante e nervosa, ao mesmo tempo. Tinha um brilho no olhar que não deixava dúvidas sobre o propósito daquela decisão.

Ao seu lado, o amor de sua vida sorria, com os dedos entrelaçados nos dela, tão deslumbrante quanto a minha menina.

As duas formavam um par excepcionalmente suave, belo e, ao mesmo tempo, forte e destemido.

Eu sorri, abri os braços e as duas encaixaram-se no meu abraço. Ao pé dos ouvidos delas, eu disse, baixinho:

- Vocês são duas deusas guerreiras! Sejam muito, muito felizes!

As duas me abraçaram e beijaram-me as faces. Estavam abençoadas.

O que viesse, dali, para frente, eram batalhas para as duas travarem juntas...


*( Benjamin Clementine's "The Movies Never Lie")