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sábado, 5 de janeiro de 2019

Obliviar (Parte 4: O Futuro)



Os olhos do homem de pele muito pálida estavam tristemente fixos nos dois jovens amigos. Ele sabia o que eles queriam e sabia o que fazer, mas não tinha certeza se devia… ou queria… já que estava tão perto de…

***

- Feche os olhos e relaxe. Vai ser uma viagem difícil. Tente ficar calmo.

Ele seguiu as instruções, como lhe fora dito. Nem tinha como não fazê-lo. A viagem começou logo. Ele sentiu um calor no rosto. Parecia que havia uma luz muito forte à sua frente. Ele tentou abrir os olhos, mas foi como se olhasse directamente para o sol. Era impossível mantê-los abertos, sem o risco de magoar-se. Ele tornou a fechá-los bem, até que sentiu o calor arrefecer um pouco. Acreditando ser mais seguro, ele, então, abriu os olhos, com muito cuidado.

Foi então que ele o avistou. Era menor que imaginara e movia-se mais rápido que ele esperava. Oumuamua, ou algo muito similar, viajava no espaço à sua frente. Ele olhou à volta. Estava sozinho, no meio da escuridão do espaço, sentindo-se como quando caiu na fenda, alguns dias antes.

- Mas que diabos! Acho que estou delirando!

Seu corpo vibrava como se todas as moléculas quisessem manter-se unidas, mas precisavam de um esforço enorme para tanto. Ele sentiu uma dor dilacerante, quase insuportável. Depois, pareceu-lhe que todo aquele desespero cessou e ele viu-se de volta na densa escuridão. Como se estivesse sendo sugado, em alta velocidade, por dentro do tubo de um enorme aspirador, seu corpo foi jogado na direcção de uma luz muito branca, mas, daquela vez, perceptivelmente fria. Ele, então, caiu dentro de uma cápsula de vidro, no meio de uma sala toda branca e sem mobília. O choque foi inesperado. Agachado, pelo impacto da queda, ele tentava perceber onde estava.

Ele ouviu o som perturbador de uma sirene, tocando insistentemente, como se estivesse em aflição. Olhou à sua volta e viu um grupo de pessoas de aparência estranha, embora um tanto familiar. Havia, também, uma mulher cujos olhos eram tão verdes, que sobressaíam no meio deles, como um farol na escuridão da noite.

Ele reconheceu um homem de pele muito pálida e sorriu. Estava no futuro.

***

- Como é que tu sabias que o terminal ainda estava ativo?

O homem pálido olhou para o jovem e conjeturou se deveria dizer a verdade ou simplesmente evitar a pergunta e mudar de assunto. Decidiu que já era hora de dizer a verdade.

- Eu o consertei sozinho. Planeava ir de volta ao futuro, mas desconfiava que o terminal não fosse resistir a mais que uma viagem, se tanto, pelo estrago que havia sofrido. Foi sorte… Para falar a verdade, ainda não sei, ao certo, se conseguimos nosso intento.

- Não? Como não?

- As avarias eram quase irreparáveis. Mas como havia uma hipótese, eu tinha que tentar, de todas as formas. Da minha parte, não ia ser grande perda, se algo desse errado com a minha viagem. Eu não tinha nada a perder.

- Então por que não foste antes, sozinho? Ninguém ia saber…

- Eu não estava totalmente preparado e, então, vocês vieram e…

- Isso não é justo e é muito perigoso, de todas as formas.

- É o que é. Aquele jovem precisava de ajuda urgente e eu possuía os meios. Eu tinha que fazer alguma coisa para ajudar. Se tivermos sorte, ele voltará, com alguma resposta.

- E uma missão…

O homem de pele pálida tentou sorrir, mas não conseguiu. Ele não se sentia nada confortável. Estava preocupado. A tristeza em seus olhos era tão palpável, que parecia sólida.

- Esperemos que sim.

- Quanto tempo temos que esperar?

- Se tudo correr como planeado, cerca de uma hora, somente… mas sabes que o tempo é somente um conceito, neste tipo de situações. Existem muitas condicionantes…

O jovem olhou para ele. Ele estava, obviamente, muito preocupado. E se alguma coisa desse errado? Aquilo era uma loucura, mas como ele poderia controlar um amigo necessitado e com tanta teimosia e resistência?

- Eu sei o que estás a pensar. Estou tão preocupado quanto tu. Se a viagem não foi bem-sucedida, nós teremos perdido muito mais que uma hora do nosso precioso tempo, simplesmente… e, agora, não podemos fazer nada, além de esperar.

- Pois! Eu nunca deveria ter concordado com esta loucura!

- Agora é muito tarde! Como sempre, vamos ter que esperar e ver o que acontece.

***

- Como é que conseguiste viajar até aqui, através do tempo e do espaço? Quem te ajudou?

O Supremo estava totalmente fora de si, apesar de ser um homem calmo e razoável, na maioria das vezes. Ele já havia passado por situações semelhantes, em que viajantes do tempo haviam entrado, inadvertidamente, naquele terminal, mas, daquela vez, sentia que algo estava muito errado.

O estrangeiro continuava a olhar para a mulher, que estava, também, curiosa sobre a intenção daquela interferência em suas rotinas, por um homem jovem, vindo de um passado distante em seu planeta de origem.

O Supremo ficou mais impaciente e disse à mulher:

- Dê um jeito nisso! E mande-o de volta para quando e onde ele veio!

A mulher estava surpresa com aquele acesso de impaciência, diante de uma situação que já havia acontecido tantas vezes antes. Ela sabia, todavia, que ele não gostava dos visitantes que vinham do passado. Seu próprio irmão havia sido um péssimo exemplo a lembrar e, com certeza, era aquela a razão pela qual o Supremo lhe havia dado aquela missão, antes que algo pior voltasse a acontecer.

Ela pousou seus olhos verdes sobre o rapaz e pediu que ele a seguisse até o laboratório na Estação Estelar, onde o doutor poderia ajudá-los com a situação.

Até aquele momento o rapaz não havia dito nada. Quando estavam os dois sozinhos, ele olhou para a mulher, que percebeu, logo, que ele ia dizer uma coisa muito importante. Seu coração acelerou. Ele percebeu que não deviam ser boas notícias.

- Eu tenho uma mensagem do passado e do futuro.

- Tu não estás fazendo muito sentido.

- Eu sei, mas vais entender quando eu explicar.

- Então fale, rapaz!

- Leona…

Seus olhos arregalaram-se. Como ele poderia saber seu nome? O coração da mulher acelerou outra vez. Ela precisava se acalmar e não estava disposta a tal, até que a situação fosse completamente exposta.

- Eu não vim por uma razão somente. Mas precisarei da tua compreensão e da tua ajuda.

- Como é que sabes meu nome?

- Eu sei mais que o teu nome. Há coisas que precisas saber, para poder agir, antes que seja tarde demais. Mas eu vim por razões pessoais também. Eu preciso da tua ajuda, para voltar ao meu passado… uns anos antes da época da qual eu vim agora.

- Como é que eu posso confiar em ti e ajudar? Estas coisas não são fáceis. Os terminais são vigiados por câmaras projetadas para escrutinar quaisquer movimentos.

- Eu sei que há um velho terminal na Estação Estelar. O Décimo-Terceiro me disse.

- Quem?

- John, o Décimo-Terceiro…

- Como assim? Onde é que ele está?

- Ele está no passado… e não pode vir ao futuro.

- E como é que tu pudeste?

- Através do terminal que ele ia usar. Não foi totalmente destruído, quando vocês foram transportados na última vez, mas agora deve estar… Tu estás em grande perigo, Leona. Tens que acreditar em mim.

- Espera. Pode parar! Do que é que falas? John, o Décimo-Terceiro, ou seja que nome vocês o chamem, está muito doente. Nós estamos a trabalhar numa vacina e os resultados não são nada promissores. Ele não pode ter sobrevivido…

- Leona, eu preciso que falar com o teu pai. As vacinas estão sendo sabotadas.

- Sabotadas? Por quem? Quem seria tão estúpido?

- Não é estupidez, Leona. Ele é um homem muito inteligente, que tem um propósito maléfico e muita sede de poder. Nós temos que fazer algo… urgente, antes que seja tarde demais. O Supremo tornou-se um homem com uma mente muito pervertida. Ele é mau. Ele vai destruir este planeta, em questão de dias.

- De jeito nenhum. Tu estás delirando. Ele nunca… Ele tem todo o poder que precisa. Além do mais, ele é o maior interessado em seguir os resultados das pesquisas e testes com a vacina.

- Acredita em mim, por favor. Nós estamos perdendo tempo. Como é que tu sabes que eu sei estas coisas todas? Eu tenho que falar com o teu pai. Por favor. Eu posso ajudar.

- Leona!

A mulher virou-se. Dois homens, bem mais velhos que eles, vinham, apressados, pelo corredor. Eles, simplesmente, ignoraram o estrangeiro, como se ali não estivesse. 

- Tens que vir e ver isso. A vacina não está a funcionar. O efeito é muito destrutivo, agora.

- Pai!

- Eu posso ajudar!

- E quem és tu?

- Um visitante do passado, que veio tentar salvar o futuro.

- Do que é que ele está a falar?

Ela tentou explicar, mas antes que começasse, um grito, vindo do laboratório, no outro lado do corredor, fê-los parar a conversa e começar a correr.

- Ele está morrendo!

***

sábado, 17 de novembro de 2018

Obliviar (Parte 1: O mensageiro que veio antes)




Esta estranha bruma de lembranças
Que se desfaz lentamente,
Como se fosse poeira,
Faz meu coração bater sereno
E minha alma repousar,
Numa paz silenciosa e calma.
Deito minha cabeça numa grande almofada
De brancas plumas,
Em uma cama de pétalas rubras,
Para sonhar com anjos
A aplacar minha dor.
Suas asas me envolvem
O corpo e a alma
E me trazem o conforto,
E a protecção morna
De amantes que se abrigam
E se protegem
Num tíbio e terno abraço.

***

- Por que ainda choras por isto? Já foi há tanto tempo. Isto pertence ao passado.

- Acho que nunca ultrapassei aquilo, na verdade.

- Devias. Isso não é bom para ti.

Aquele jovem, cujos olhos nunca pareciam acompanhar o sorrir dos lábios, numa entrega por inteiro, até tentou, mas o que conseguiu foi mostrar uma careta estranha. Por qual razão ele mantinha seu coração num luto constante, depois de tanto tempo? Aquilo já não fazia sentido.

***

Os dois amigos sentaram-se nas cadeiras de balanço, que estavam instaladas na varanda, a olhar o sol a se pôr, lenta e silenciosamente, no horizonte. Cada qual estava tão absorto em seus próprios pensamentos, que a interrupção foi quase como uma interferência à aquela quietude, como se a paz tivesse sido violada, mas que, ao mesmo tempo, soava apenas como uma extensão do pensamento, que vinha a se concretizar em palavras.

- Uma vez eu tive um irmão.

- Bom, agora tens a mim. Sou quase como um irmão para ti, de todo o jeito. Alguns amigos são mais próximos que irmãos, sabias?

- Nunca pensei nisso, na realidade.

- Dizem que os amigos são os irmãos que nós escolhemos para conviver connosco.

- De onde tu tiras estas coisas, afinal?

- Eu leio muito, na verdade…

O rapaz que usava óculos tentou sorrir, mas não pareceu funcionar. Seu amigo estava preocupado com sua sanidade, já que ele parecia estar sempre tão distante, ultimamente. Eles haviam evitado falar sobre o passado, por muito tempo. Mas os fantasmas simplesmente não desaparecem da memória, por mais que se deseje isso. Eles podem se esconder por uns tempos, mas nunca morrem. Parecia que aquela era uma das ocasiões em que eles vinham das trevas, de onde se escondiam, para expor-se à luz, por alguma razão inexplicável.

- Tu não pensas no que aconteceu? Nunca sentes falta deles, às vezes?

- Deles?

- Tua família…

- Claro que sim.

- Ainda bem que sim. Ultimamente tenho pensado muito neles.

- Por qual razão?

- Sinto tanto a falta deles.

- Tu sabes que o passado está enterrado… e bem fundo… literalmente…

- Talvez não…

O rapaz olhou para o amigo. Seus olhos estavam tão perdidos na distância. A dor e a tristeza eram tão evidentes, que pareciam materializar-se ali, na frente deles.

- Temos que tocar a vida para a frente, como sempre fizemos.

- Ah. Tá. Como se fosse fácil. Eu gostaria de poder viajar no tempo e mudar o que aconteceu. As coisas podiam ser tão diferentes agora.

- É. Só que não podemos.

- Tens certeza disto?

Ele sorriu. Parecia que uma ideia completamente insana se formava em sua mente.

- No que é que estás a pensar?

- Eu tive uma ideia. Há alguém que devemos visitar no fim-de-semana, quando ninguém vai suspeitar de uma saída do quartel.

- Ah. Não!

***

- Não é possível, de jeito nenhum! Se fosse, eu já podia ter voltado lá.

- Lá? Já não existe lá. Aquilo foi explodido e completamente destruído.

- Talvez se voltasse um pouco antes da destruição…

- Aquele mundo já não está lá…

- Tu não ias entender. Nem sei se eu entendo, se pensar bem na situação.

- Tem que haver um jeito. É muito importante para mim… para nós…

- Vocês não entendem. Eu não posso ajudá-los. Eu sou apenas um clone, não um cientista. Eu sou a criatura, não o criador…

***

- Tem que haver um jeito.

- Deixa de ser bobo. Tu sabes que não há… pelo menos por agora… nesta era.

- Eu não vou desistir.

- Pois devias. Já soas como um louco.

***
Oumuamua?

"Um mensageiro de longe, que chega primeiro".

- Eu imagino a confusão que está a causar aos cientistas, para tentar explicar a aparição.

- Pois. Mas as teorias são muito vãs, por enquanto.

- Eu tenho uma e acho que é a chave para o que procuramos.

- Pare com isso! Nunca ouvi tamanha loucura. 

- Tenho certeza que nosso amigo vai concordar comigo. Vamos visitá-lo mais uma vez...

- Oh, meu Deus! Lá vamos nós de novo!

***



sábado, 23 de setembro de 2017

O Décimo-Terceiro (Parte 4)


Leona olhou para o pai e David, o décimo-terceiro clone, que corriam junto dela, pelo meio do bosque, sem pensar em outra coisa, além de salvar suas peles. Ela era mais rápida e conhecia o caminho, por isso assumiu a responsabilidade sobre a segurança deles. Por sorte, os homens armados ainda não os haviam detetado, mas poderia ser, somente, uma questão de tempo.

Ouviram mais tiros. Leona não parava de pensar no irmão. Enquanto ela os ouvisse, por mais perigoso que pudesse ser, entretanto, sabia que ele estaria, provavelmente, vivo. O silêncio é que poderia ser mau sinal. Ela tinha medo de pensar no pior. Sua preocupação era, agora, correr, sem parar.

- Temos que chegar à entrada dos túneis. Lá será mais fácil desaparecermos. Tomem cuidado, mas não parem.

Ela sabia que exigia demais daqueles dois seres, mas tinha que ser forte pelos dois, que estavam praticamente chegando aos limites de suas forças. Um pensamento passou por sua cabeça e ela tentou arrancá-lo da mente, mas não era fácil…

“O que será que este surto de adrenalina vai causar ao corpo do clone? Ele já está em estranha mutação. E se isso acelerar algum processo?”

Mais um tiro. Desta vez pareceu estar mais perto deles. Ouviu passos apressados. Estavam quase na entrada dos túneis. Leona não olhou para trás. Mantinha o pai e David, sob sua total atenção. Tinha que se concentrar em deixá-los a salvo, de qualquer maneira. O futuro e o passado corriam junto dela.

Ao passar pela entrada dos túneis, Leona não hesitou. Aquele emaranhado de entradas, nas diversas galerias, era como um labirinto, mas tanto ela quanto o irmão, conheciam muito bem aquele lugar. Eles costumavam fazer uma brincadeira com seu esconderijo favorito.

“Se não é direito ir à direita, então é direito ir à esquerda”.

Assim que se sentiu segura, deixou os dois homens, finalmente, tomarem fôlego. Os três ficaram, quietos, tentando perceber se já estavam seguros. O som de passos apressados indicou-lhes que vinha alguém na mesma direção. Só podia ser o irmão, mas ela pediu aos dois para ficarem escondidos e em silêncio, até terem certeza, enquanto ela se certificava.  

- Leona, consegui salvar o diário. Nem pergunte a que custo. É melhor que o leves contigo. Eu vou continuar a desviar a atenção dos homens, para que nunca cheguem perto do terminal, até vocês estarem seguros.

- Não. Nós temos muito pouco tempo. Vamos ter que sair daqui juntos.

- É nossa única hipótese. Confia em mim. Eu chego a tempo, podes ficar tranquila.

Confiar nele? Ela teve dúvidas… Por mais que parecesse certo do que fazia, ainda assim, era extremamente arriscado.

A mulher não percebeu que o irmão tentava esconder sua dificuldade em respirar normalmente. Ele fingiu estar, somente, cansado e preocupado em fazer com que saíssem dali a salvo.

- Vamo-nos encontrar no terminal em quinze minutos. Não esperem mais que cinco minutos por mim. Agora vão.

Leona articulou, rapidamente, um plano de emergência em sua mente, mas precisava de tempo para executá-lo, antes que o irmão voltasse a juntar-se ao grupo.

Ela chamou o pai e o Décimo-Terceiro. Os dois seguiram-na, sem dizer nada. O personagem mais jovem não conseguia esconder o quão assustado e receoso estava. O homem mais velho, acostumado com fugas repentinas e uma vida bem pouco segura, desde há muito, apenas seguiu a filha, sem reclamar e em apreensivo silêncio.

A mulher era ágil e sabia o caminho como ninguém. Os dois faziam um esforço extra para poderem acompanhá-la, mas seguiam-na cega e confiantemente, em absoluto silêncio.

Todos os outros sons, além de seus passos, haviam ficado completamente para trás, deixando-os mais tranquilos, mas não desatentos. 

- É ali. Chegamos.
***

Leona reprogramou o terminal de transporte, como havia decidido mentalmente, para a volta de quatro viajantes, ao invés dos três que aportaram naquele ponto do passado. Apesar do risco que corriam com aquela atitude e, mesmo sabendo que contrariava todos os procedimentos de segurança e as ordens do Supremo, ela não teve dúvidas quanto à certeza de que tomara a decisão mais acertada.

Ela, o pai e o Décimo-Terceiro clone aguardavam ansiosamente pelo quarto viajante, mas o tempo esgotou-se muito rapidamente e o terminal deu o sinal de transferência. Os três colocaram-se no centro da cápsula e esperaram uma pequena fração de segundo, para que a mesma começasse o processo. 

A mulher sentia-se cansada e triste, mas tinha que seguir o procedimento, em nome da segurança do pai e do clone. Quando chegassem ao futuro, ela trataria de contornar a situação, provavelmente enviando um outro sinal, para que o irmão recebesse e pudesse voltar. Ele saberia o que fazer.

O som de uma rajada de disparos não foi percebido por nenhum dos três, enquanto estavam sendo transferidos de volta para o futuro, por causa do zumbido que a máquina emitiu e da rapidez do processo. O Décimo-Terceiro sentiu um empurrão no pé, mas não percebeu o que acontecia, realmente.

Ouviram uma sirene a tocar, intermitentemente, poucos segundos depois.

A transferência havia sido concluída, efetivamente. Agora, encontravam-se dentro do terminal de transporte do edifício principal, no ano de 4697.

Leona olhou para baixo, aos pés do Décimo-Terceiro e, então, percebeu que o clone tinha as pernas e os pés manchados de sangue.

- O que é isso?

- É sangue. Estás ferido?

- Não… sei…

O clone também sangrava pelo nariz. Ele revirou os olhos e caiu aos pés da mulher, aparentemente desacordado. Ela apressou-se para acudi-lo, quando viu que, atrás dele, jazia o corpo ferido e inconsciente do irmão. Ele também tinha as mãos cobertas de sangue.

Os dois cientistas chegaram, naquele momento, juntamente com o Supremo, que aproximou-se e falou, antes que ela tivesse tempo de explicar-se.

- Eu espero que tenhas uma razão muito boa para isto. Eu te avisei que vocês não deviam intervir com qualquer coisa no passado. A tua missão era justamente impedir que tal acontecesse.

- Eu sei. Mas estávamos sendo perseguidos por homens armados e não podia deixar ninguém para trás. Era a única alternativa.

- A única? A única alternativa era ter evitado esta confusão toda…

- Eu sei, mas temos um problema mais grave, neste momento…

O Supremo olhou por cima dos ombros de Leona e percebeu, logo, ao que ela se referia. Embora fosse um homem extremamente severo, ele não deixava de ser coerente e justo.

***

- Mas nós conseguimos salvar o diário, afinal. Mesmo com tudo que aconteceu… e…

- Sim. É certo. Mas a um preço muito alto.

- Isso já não tem nenhuma relevância. O que importa é que conseguimos garantir o nosso futuro e desta gente...

- Mas mexemos com o passado. Não deveria ter acontecido. Foi um risco muito grande... e, invariavelmente, toda intervenção tem suas consequências.

- Mas tu já não ias ficar muito tempo vivo, lá, de todo jeito… O ataque pode ter sido antecipado pela nossa chegada àquela hora ao laboratório, mas para todos os efeitos, segundo consta, serias morto naquela mesma noite e foi isso que aconteceu. Ninguém, nunca, vai saber a verdade… Que diferença poderia fazer, agora?

- Nunca subestime os efeitos das coisas pequenas ou das que pareçam ter pouca importância… Como sabes que nada ficou intocado, neste futuro? Mesmo que ainda não tenhas percebido… houve uma mudança!

- Houve?

- Houve, sim…

Leona olhou o pai, com preocupação. A morte do irmão fora um sacrifício, em nome do futuro e da ciência, que não fora previsto, nem pode ser impedido ou revertido. O tempo não perdoava… Aquela nova constatação, porém, era preocupante.

O pai apontou para o laboratório. De lá, David, o Décimo-Terceiro clone, olhava para ela e para o velho cientista.

Leona franziu o cenho. Ele parecia tranquilo, mas a anomalia estava cada vez mais evidente. A mulher puxou o pai pelo braço e entraram os dois na sala imaculadamente branca.

O chefe dos cientistas parecia desesperado.


sábado, 2 de setembro de 2017

O Décimo-Terceiro (Parte 3)


Era tarde da noite, no subúrbio da cidade. As silhuetas de duas pessoas, com aparências muito dissimilares, moviam-se em meio às sombras, por entre as ruelas e os becos. Algumas pessoas ainda caminhavam na rua, outras conversavam alegremente, dentro dos bares e restaurantes. Estava uma perfeita noite de Outono, sem ser fria e até bastante agradável. Ao homem mais forte, aquela temperatura era ideal, porém o seu companheiro estava desconfortável, sentindo seu corpo pálido e frágil tremer de frio.

- Vamos por ali. Não devemos estar longe, agora. Só espero não dar um susto demasiadamente grande ao velho.

O outro olhou para ele, sem perceber muito bem o que aquilo, realmente, significava e continuou seguindo ao seu lado, por trás de uma grande casa, que cobria um quarteirão inteiro, na parte mais afastada da vila. Atrás dela, havia um parque com brinquedos e, depois, um grande pátio.

Quando atravessavam uma área bastante arborizada, o movimento que fizeram para afastar os galhos das árvores provocou um efeito surpreendente em alguns dos moradores temporários do bosque. Um farfalhar colorido impressionou o clone, mas irritou o homem que o conduzia, por aqueles caminhos obscuros, na noite fresca de Outono.

- Oh! O que é isso?

- São borboletas. Monarcas, mais especificamente…

- Que interessante… São tão…

Faltaram-lhe palavras. Não conseguia, com seu pouco tempo de vida, dizer o que sentia, em relação à beleza, uma das poucas coisas que o impressionaram.

- … irritantes, quando voam assim à nossa volta. Não devemos fazer muitos movimentos, pois qualquer coisa pode levantar suspeitas e nos colocar em perigo. Temos que manter nossa presença a mais discreta possível.

O clone olhou o homem, que se irritava com tamanha beleza e não compreendeu a razão dele não apreciar aquele momento incomum. O rapaz puxou-o pelo braço, sussurrando, irritado.

- Vamos! Cada minuto que perdermos é precioso demais e vai-nos fazer falta. Ainda vais saber mais sobre as Monarcas, se tiveres tempo… Agora vamos!

Chegarem, finalmente, à entrada de um túnel, escondida na parte de baixo de um edifício. Dali, após passarem por outra série de túneis, emaranhados numa rede bastante intrincada, chegaram, finalmente, a um pequeno e velho galpão, construído nas traseiras de uma casa comum.

Uma luz acesa mostrava que havia alguém dentro da casa. Os dois tiveram o cuidado de manter-se nas sombras, até que tivessem certeza que ninguém os via. O silêncio deu-lhes a certeza que não havia perigo. Os dois avançaram e foram até a porta. O homem mais forte deu uma batida na porta, com os nós dos dedos. Depois, uma parada e, a seguir, duas outras batidas, seguidas de um curto espaço. Era o código que havia sido combinado. Ao ouvir o som de passos, no lado de dentro, ele sentiu uma apreensão esquisita.

Um homem de meia-idade abriu a porta, mas sua expressão logo mudou, para um misto de preocupação e medo. O que aqueles dois estranhos faziam ali à sua porta, usando o código combinado, era uma incógnita. O homem mais forte lembrava-lhe alguém conhecido, mas ele não conseguia saber quem.

- Em que posso ajudá-los?

O homem mantinha a porta meio aberta, tentando controlar a situação. Percebia que estava em desvantagem, mas tinha que tentar intimidar os visitantes, que mantinham-se, um pouco, à sombra da noite.

- Podemos entrar? É importante.

- Não. Não podem, sem dizer-me quem são e o que querem.

 O rapaz avançou um passo e o homem agarrou a porta, tentado fechá-la, antes que perdesse o controlo, mas sua força nem se comparava à daquele jovem.

- Pai?

O homem arregalou os olhos. Não contava com aquela. Ele não tinha nenhum filho daquela idade, com certeza absoluta. Os olhos do rapaz, porém, quando foram atingidos pela luz de dentro da casa, mostraram-se tão verdes quanto os do filho, mas ele refutou aquela característica comum, de imediato.

- Meu filho é mais jovem e eu tenho certeza absoluta que nunca tive outro. Não sei quem tu és e nem o que tu queres, mas não vais conseguir nada comigo.

- Eu sei que parece inacreditável, mas se eu puder explicar… Deixa-nos entrar, por favor. Todos nós corremos perigo.

O homem ficou muito sério. O rapaz tentou uma última cartada.

- Olha isso! Acreditas em mim, agora?

O homem puxou a porta, abrindo-a com cuidado, de modo a deixar os dois visitantes entrarem. Até então, mal havia notado as características do homenzinho, que ele agora observava, com cuidado. Ele era extremamente pálido, jovem, muito longilíneo e parecia ter a cabeça desproporcionalmente maior do que aqueles com quem ele costumava estar. Sua pele parecia muito fina. Os olhos verdes faziam-no lembrar de alguém, mas ele não percebeu bem, no início. Estava, agora, mais ocupado em poder examinar a anomalia que o outro mostrou naquele ser estranho e que ele já havia visto antes, em seu próprio filho.

- Como isso pode ser possível?

- Eu acredito que a resposta esteja aqui, neste tempo. Por isso precisamos de sua ajuda.

Os três voltaram-se para um ponto na sombra, atrás do velho homem, de onde veio a voz feminina.

- Leona? O que aconteceu contigo? Estás tão diferente…

- Todos nós estamos, pai, mas…

- Tu não devias ter vindo.

- E deixar-te causar uma catástrofe? Este teu comportamento intempestivo já nos colocou em problemas… Nós temos que interferir o mínimo possível com este tempo e lugar. Tudo o que nós fizermos aqui, vai interferir naquele mundo, com toda certeza.

- Que mundo? Alguém pode explicar-me esta confusão toda?

Antes que o irmão começasse com verdades impróprias, Leona adiantou-se. Ela teve mais cuidado em usar as palavras e dizer apenas o que não fosse mudar, muito, o curso dos acontecimentos, mas o pai tinha que saber o que aconteceu… ou ia acontecer…

O cientista ouviu, calado, mas não sem deixar de impressionar-se.  Nunca iria imaginar quão importantes suas pesquisas se tornariam no futuro. Na sua modéstia e simplicidade, por trás de toda a genialidade, ele não anteviu que seu trabalho traria tanto benefício à humanidade… ou pelo menos à uma parcela dela…

***

- Pai, o chefe dos cientistas, que é um homem muito experiente e competente, não conseguiu descobrir o que causou aquela anomalia no clone. A preocupação é que ela seja grave e que coloque em risco uma boa parte dos que vierem a nascer, como se fosse uma epidemia, difícil de controlar. Algum elemento na vacina deixou de fazer efeito, ou houve uma mutação qualquer.

- Eu trouxe uma amostra da nova vacina, que está em teste, para analisar. Quando aconteceu comigo, como foi que o pai reverteu o efeito? Não foi encontrada nenhuma anotação sobre isso nos dados de registos existentes no futuro.

- Eu sei. Eu nunca deixei nada disso escrito nos registos oficiais. Fiz apenas umas poucas anotações no meu diário, que mantenho longe das vistas de todos. Mas eu sei o que fazer… Não faz tanto tempo assim que eu lidei com isso. Mas vamos ter que ir ao laboratório da Universidade, fazer uns testes. Nós já havíamos eliminado a… err… Não sei se vai resultar com um clone, cujo ADN já deve ter sofrido muitas mutações, nem sei que tipos de reações podem ocorrer, mas temos que tentar.

Antes de saírem, porém, o homem olhou os três visitantes e, franzindo o cenho, perguntou, com ingenuidade de criança.

- Para que são criados os clones, afinal?

Os três olharam para o velho cientista, como se ele tivesse dito um impropério. Leona riu, com ternura e disse-lhe:

- Eu tento explicar a caminho…

***

- O que é isso? É tão agradável…

- É música. Vamos.

- De onde vem?

- Ora, vamos! Depressa! Não temos tempo para isso.

O pai, bem mais paciente que o filho, tentou explicar de uma maneira mais ou menos coerente:

- A música é a linguagem com a qual as almas dos homens conversam com as dos deuses. Ela é capaz de tocar o mais intangível ser. Existem muitas formas e muitos estilos diferentes. Essa, que tu ouves, é de um artista famoso, que já não caminha nesta terra.

- Não? Onde ele caminha, agora?

- Está morto. Chamava-se David Bowie. Vem do bar do clube ali na frente, mas devemos evitar passar por lá. Não podemos levantar suspeitas…

- Temos que arranjar um nome para ti. Se alguém nos abordar, será a maneira mais conveniente… e apropriada. Não devemos correr riscos desnecessários.

- Eu sou o Décimo-Terceiro.

- Mas isso não é um nome decente, para este lugar. Temos que arranjar outro; mais comum e adequado…

- Pode ser David Bowie?

Leona riu alto.

- Pode ser David. Esquece o Bowie. Vai levantar mais suspeitas, se for usado aqui.

***

O campus da universidade estava praticamente deserto, quando eles chegaram. Havia, na entrada, uma carrinha branca, parada, próximo à área de pesquisa, onde o laboratório ficava localizado. As letras N. M. E., pintadas em vermelho, nas laterais, não levantaram suspeitas, quando os quatro personagens desceram o lance de escadas, que os levava ao seu destino. Assim que o cientista tirou a chave do bolso e girou na fechadura da estreita porta metálica, ouviu-se um silvo e uma marca profunda ficou gravada acima de sua cabeça, no duro metal, pintado de cinza claro. Eles se jogaram para dentro, fechando a porta, em seguida, para ganhar tempo, e foram, correndo, para o Laboratório Principal.

- Quem são esses? Estamos a ser atacados por armas de fogo. Temos que fugir e tentar chegar de volta ao terminal. Vamos todos. Corram!

Ao entrar no laboratório, apressaram-se a arrastar um grande armário e bloquear a porta.

- Temos que usar a saída de emergência, que fica no fundo do laboratório. Vou mostrar-lhes o caminho. Vocês apressem-se, depois que passarem e vão em frente, até o fim do corredor. Entrem pela porta onde está escrito “Para o telhado” e, ao invés de subir, passem por baixo das escadas. Há uma outra porta lá, no fundo do depósito de vassouras e materiais de limpeza, pintada da mesma cor das paredes, para dificultar ser encontrada. Eu tenho que pegar minhas anotações.

Naquele momento ouviram um grande estrondo. A porta da frente havia sido arrombada com explosivos. Os sons de passos, a correrem pelo corredor, muito próximo deles, fê-los entrar em pânico e imaginarem um apressado plano de fuga.

- Não há tempo para voltar. Temos que sair daqui, o quanto antes. Eles já estão vindo atrás de nós…

- Mas é extremamente importante… está mesmo na gaveta da escrivaninha…

O rapaz sabia que o pai tinha razão. Era extremamente importante buscar as informações, para cumprir o objetivo da viagem no tempo, que acabaram por fazer. Sem pensar muito, ele dispôs:

- Eu volto. Sou mais rápido e mais forte. Posso defender-me melhor e, além do mais, quando chegarmos ao terminal, não podemos voltar os quatro, ao mesmo tempo. A programação estará feita para três, somente…

- Nós podemos mudar a programação.

- Se tivermos tempo… Melhor nos apressarmos. Eu saio e, depois, volto pela frente. Não esperem por mim. Deixem, que eu dou um jeito. Se o portal não estiver aberto, eu espero por um sinal.

- Nós mandamos um, assim que chegarmos, programando o terminal para um passageiro, somente… Assim, ele fecha quando tu passares e não trazemos mais perigo junto connosco.

- OK. Agora, vamo-nos separar.

Leona sentiu um aperto no peito. As coisas haviam saído fora do controlo. Toda a operação ficara arriscada demais e, agora, lutavam por manter-se vivos. Eles tinham a dianteira e sabiam o caminho, mas tinham que ser rápidos e insuspeitos, até atingir o terminal.

Ouviram uma série de tiros. Que forma mais eficiente e perigosa de apressar as coisas e os passos…