Mostrar mensagens com a etiqueta carinho. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta carinho. Mostrar todas as mensagens

sexta-feira, 1 de maio de 2020

Dança Lenta



Uma dança lenta, com o Valete de Espadas, não estava, definitivamente, no cardápio. Eu decidi observá-lo de uma distância segura, para não ser queimado pelo fogo dele... ou por aquele que começou a arder, lentamente, no meu peito, quando o vi pela primeira vez.

Lá estava ele, de pé, por trás do pequeno grupo de convidados, olhando casualmente para mim. Eu cumprimentei a todos e caminhei até ele, com um sorriso no rosto e a mão estendida para um aperto firme. Olhei em seus olhos azul-esverdeados, por um breve momento, e me apresentei. Ele fez o mesmo.

Eu quase podia ouvir meus próprios pensamentos gritando, na minha cabeça e, até, tive medo de que ele notasse as evidências, tão claras nos meus olhos, ou conseguisse ler minha mente, de alguma forma.

Eu me perguntei se ele, algum dia, teria ciência do efeito que teve sobre mim, naquele exato momento. Pouco sabia eu do que passava em sua mente, quando ele me sorriu daquele jeito.

"Por favor, goste de mim".

Aquela primeira impressão fora bastante surpreendente, a meu ver.

***

- É bom estar aqui, assim. Me sinto tão em casa.

Ele me abraçou mais forte. Tinha minha cabeça recostada em seu peito e seus braços envolviam-me a parte superior do corpo. Suas pernas musculosas estavam enroscadas nas minhas, como se ele estivesse me segurando para que eu não caísse do estreito sofá. Estávamos ouvindo algumas das minhas músicas favoritas. A maioria delas ele estava, apenas, começando a conhecer...

“You say you had your heart broken
 What a stupid little thing to do…
 Make no mistake
 I'll do whatever it takes
 To get over these walls
 High up in the atmosphere
 If I could catapult my heart
…To where you are” …*
(*Catapult, by Jack Savoretti)

Quando a música terminou, ele se levantou e eu também. Tocou meu rosto, tão levemente, com as duas mãos, que senti como se fossem plumas caindo suavemente na minha pele nua.

Sorri, meio sem jeito. Ele me beijou e me abraçou, firmemente. Em seus braços, sentia uma proteção infinita e aquele foi um dos melhores sentimentos que tive na vida.

Eu dançava, lentamente, com o Valete de Espadas e gostava daquilo, com todo o meu corpo e alma. Tive a sensação de que ele sabia, exatamente, o que estava fazendo e isso me deixava extremamente feliz.

A sala estava quieta, as luzes baixas, mas continuamos dançando as músicas, que continuavam a tocar, silenciosamente, em nossas cabeças, por uma banda invisível... por um bom tempo... Senti o calor suave de nossas peles nuas, uma contra a outra… nossos corações a bater no mesmo ritmo.

Ele, então, pegou minha mão na sua e me conduziu...

***

Minha atenção estava totalmente voltada para como suas mãos pálidas tocavam minha pele, viajando pelo meu corpo, de maneira muito leve e calorosa.

- Adoro tuas mãos e o jeito que tu me tocas. És tão carinhoso.

- Adoro tocar em ti. Tua pele é tão macia.

- E nunca pensei que amaria alguém desse jeito...

- Então teu coração tem sido negligenciado, meu amor...

Houve uma dor repentina no meu peito. Eu me virei. Não conseguia me controlar. Fechei os olhos e deixei minhas lágrimas correrem, silenciosamente, quentes e livres. E elas queimavam, como lava. Meu corpo estremeceu um pouco.

Ele colocou os braços à minha volta e me puxou para perto dele. Seu queixo repousava no meu pescoço. Eu senti que ele cheirava meus cabelos. Senti seu corpo aquecendo o meu, enquanto soluçava, incontrolavelmente, em seu abraço forte.

***

Era uma tarde ensolarada de sábado. Fui dar um passeio na praia e sentei-me em silêncio, olhando o mar. Uma brisa fresca soprou contra meu rosto e cabelo. O céu estava tão azul que me fez lembrar dele e de seus olhos.

Perdi-me a olhar um ponto inexistente, ao longe. Minha mente vagueou no passado. Eu estremeci.

- Quanto tempo faz?

Eu me virei. Além de algumas gaivotas barulhentas, voando acima, não havia ninguém à vista. Eu pensei que minha imaginação estivesse brincando comigo.

- Há quanto tempo? Tu lembras?

Eu decidi responder em voz alta.

- Sabes muito bem há quanto tempo.

Lembrei-me do dia em que nos conhecemos, há longos anos no passado, desde o momento em que as portas deslizantes se abriram e vi seu sorriso acolhedor e o coração nas mãos, até o flagrante beijo de despedida que ele me deu, antes que eu entrasse na área restrita do aeroporto, a caminho de casa.

- Estou tão feliz que tua dor se tenha ido embora.

Não respondi, apenas me levantei e saí silenciosamente.

Lágrimas quentes insistiram em desfocar minha visão, enquanto o vento soprava mais frio, desta vez por todo o meu corpo...

***

domingo, 24 de fevereiro de 2019

Uma noite a mais (Parte 1)



- Deve ser, pelo menos, a quinta vez que ouves esta canção.

- É, eu sei.

- O que se passa?

- Nada… que importe.

- Sei. Se precisares de alguma coisa, fala. Vou deitar-me.

- OK.

Eu não me virei. Estava com a mente ocupada demais a contemplar o imenso vazio à minha frente. Meus olhos perderam-se na escuridão, que se estendia para além da linha do horizonte, ao longo de um oceano pouco iluminado pelas luzes à beira da praia da baía.

Estava uma noite fresca e calma. Era tarde e já não havia quase nenhum movimento nas ruas. Um estranho silêncio enlaçou-me com seus braços frios, provocando um calafrio, que percorreu-me a espinha. Eu tremi, mas sabia que não era de frio.

A canção recomeçou. Eu havia ativado a função de repetição, de propósito. A voz forte e pungente da cantora penetrou-me os pensamentos, como se fosse uma estalactite de gelo, precipitada do teto rústico e sombrio de uma caverna, para dentro de uma lagoa de águas calmas, mas escuras e profundas.

Quantos mistérios e segredos podem esconder-se abaixo da quietude aparente daquela superfície praticamente intocada?

Fechei os olhos e respirei fundo, mergulhando em meus próprios pensamentos. Cada palavra da canção servia de pano de fundo para uma sequência caleidoscópica de imagens, que traziam meu passado e minhas recordações de volta ao presente, com uma nitidez cruel e carregada de emoções tão vívidas quanto aquelas memórias. 

…” They say that love can move a mountain
    They say love can break your heart 
   They say love can make you forget 
   Things that happened in the past” …  (*)

Se aquelas palavras eram verdadeiras, eu não havia experimentado nada similar… até então…

***

Acariciei a cicatriz, como se ela fosse um animal de estimação.

Incrível como nos apegamos às marcas deixadas, tanto no corpo, quanto na alma e as acariciamos sempre que nos sentimos frágeis, como se aquilo nos fosse dar alento e abreviar a solidão ou a dor. É como afagar nossos erros, dando-lhes uma visão mais condescendente. É como trazer alento ao coração, amenizar o efeito de um pecado e conceder uma hipótese de salvação à alma do pecador.  

…”So wave goodbye to heaven for me

  I've thrown it all away

 Just to spend one more night with you”…(*)


- Ainda estás assim?

- Assim como?

- Tu sabes. Eu não sou uma criança, que tu possas enganar facilmente.

- Eu sei que não…

Minhas mãos deslizaram suavemente pelas teclas do piano, talvez, procurando, instintivamente, esquecer aqueles mesmos acordes que não me saíam da cabeça ou dos dedos, já há algumas semanas.
Eu li, uma vez, em algum lugar, que as teclas do piano representam nossos sentimentos. Enquanto as brancas denotam nossas emoções positivas, as pretas representam as negativas. A harmonia, entretanto, só é conseguida com um equilíbrio entre ambas. Não se pode fazer boa música, sem usar tanto as teclas brancas quanto as pretas, assim como não se pode viver a vida verdadeira e completamente, sem um equilíbrio entre as emoções boas e as não boas.

- Toque a música até o último acorde. É melhor exorcizar esta dor de uma vez por todas!

Olhei para ela, surpreso. A menina havia-se transformado numa jovem muito perspicaz. Então eu toquei. Não exatamente para exorcizar, mas para sentir a dor, tão vívida como se estivesse sendo experimentada, pela primeira vez, naquele momento.

Começando quase como um noturno, a acariciar, as teclas brancas e a martelar, levemente, as pretas, minha dor foi aumentando numa progressão de notas e acordes, que se misturaram à minha voz baixa e fraca, no início, porém elevando o tom, como num sentido blues, até que todos os meus nervos reagiam àquela sequência de notas e palavras. Meus olhos e minha alma transbordavam.
…” They say that love can last forever
    They say love can last a day 
    They say love is like an ocean 
    For us to sail away” … (*)


Eu ia ao fundo do poço, para tomar impulso e voltar à superfície. Era necessário descer ao mais fundo do fundo, para poder voltar, com as forças redobradas.
***
- Foi aqui?

- Sim.

- Vamos descer.

- Não.

- Vamos, sim. Vem comigo.

Saiu à minha frente, antes que respondesse, descendo pelo caminho ao lado do penhasco. Meu estômago doeu. Eu segui, sem dizer nada. O caminho não era seguro e eu devia estar por perto, caso acontecesse algo, embora soubesse que estava a me preocupar sem razão.    

Quando chegamos ao fundo da trilha, a praia abria-se, convidativa, embora ainda fosse primavera. O mar rugia, como se a ameaçar, embora eu nunca tivesse medo daquele bramido. Eu havia nascido na ilha. O mar sempre fora um amigo. Não tinha por que temer um amigo.  

Caminhamos pela orla, com os pés na água fria do oceano, em silêncio, por uns momentos. Um grupo de ruidosas gaivotas voavam por sobre nossas cabeças e o vento fustigava nossos rostos.

- Foi um acidente, não foi?

- Foi. Um infeliz acidente.

- Vocês se amavam muito, não?

Eu não pensei.

- Nós éramos grandes amigos. Desde o tempo em que estudávamos juntos.

- Isso não é uma resposta.

- Não. Não é.

Olhou-me com aquele ar de quem quer saber a verdade, quando já não há verdades a saber.

- Então por que vocês decidiram que deviam ter um filho?

- Porque era a vontade dela. Era melhor termos um filho, juntos, sabendo do respeito que tínhamos um pelo outro e sabendo que era melhor isso, que esperar por um sentimento que não existia. Ela era uma mulher prática.

- Vocês nunca se arrependeram da decisão?

- Claro que não. Por que razão haveríamos de nos arrepender?

- Sei lá. Não havia amor…

- Havia um respeito e um carinho muito grande. Ela tinha medo de envelhecer, antes de poder ser mãe… coisas de mulheres!

- Haha! Até parece…

Eu ri. Um riso pálido, quase sem graça. Sabia que ia ter que contar a história toda, pela milionésima vez.

- Achas que vocês foram felizes?

- Talvez. Antes de…

- É estranho…

- O que?

- Aquela vossa relação. A doença. O acidente.

- Não é estranho. O acidente foi uma consequência da doença.

- Mas tu também podias ter morrido.

- Acho que não. Eu só tive uma queda feia, quando tentei ajudar. Falta de jeito, mesmo…

- A cicatriz é grande.

- A dor é maior!

Calou-se. O mar parecia explodir contra as rochas. Caminhou uns segundos, em silêncio, e virou-se. Franziu os olhos, como se estivesse tentando ver algo, atrás de mim, à distância. Pareceu-me que uma nuvem negra se passou pela sua face jovem.

- Pai?

- Que foi?

- É ele, lá em cima do penhasco?

- Hã? O que ele faz aqui?

***

(*) One more night with you : Ged McMahon featuring Kaz Hawkins


***